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UNIVERSO TÉLMICO. 04

17-06-2014 11:26

CORRESPONDÊNCIA DE ÁLVARO RIBEIRO PARA RAFAEL MONTEIRO. 01

 

 

Lisboa, 27 de Dezembro de 1965

 

Exmo. Sr. Rafael Monteiro e
Prezado Confrade nas Letras:

 

 

Motivada é esta carta pela obrigação normal de lhe agradecer, quanto antes, a bela amabilidade das suas notícias e a gentil oferenda de um livro. Nesta fase última da minha vida sou pouco dado à epistolografia, mas perante factos de significação e valor, como o da sua missiva, não posso deixar de reagir com gratidão.

Folguei deveras com o anúncio de que o Rafael Monteiro vai elaborar, e concluir, um estudo sério sobre uma nova hipótese acerca da origem do fado, e queira Deus dar-lhe perseverança para cumprir tal dever, neste triste país onde é constante a elegia do não vale a pena. Se me expediu tão boa notícia, considerou também o meu exemplo de homem que persiste e não desiste, enquanto os outros se lamentam e desculpam.

Creio verosímil a sua hipótese acerca da origem e da essência do fado, com a correcção do dizer semita onde diz hebraico. A influência arábica foi poderosíssima na Península Ibérica, e também a fenícia…

O meu velho estudo sobre o fado foi um escrito de circunstância que não poderá ser útil ao trabalho do Rafael Monteiro. Quem lhe deu a informação nunca leu o texto, e errou se não mentiu. No entanto, como se trata de escrito publicado, gostosamente envio uma cópia. No mesmo semanário colaborou José Régio com um poema que reproduziu no respectivo livro. Convém não ignorar que também escreveram fados Afonso Lopes Vieira e António Botto.

Envio-lhe os “Parabéns”, ou o “Deus queira” (Oxalá) de bom augúrio e incitamento para o seu estudo. Com os melhores agradecimentos pela sua gentileza, subscrevo também os votos de Boas Festas e de Feliz Ano Novo de quem lhe manifesta tão sincera estima intelectual.

 

Álvaro Ribeiro

DOS LIVROS. 12

16-06-2014 10:37

Meta-História ou a Terra Prometida

 

Quando consideramos, isto é, conjugamos com o sideral, o saturnino espectáculo do mundo não podemos, apesar de todas as promessas, deixar de ficar tristes. São as guerras, as doenças, os assassínios em massa, a progressiva e intencional estupidificação dos homens, o alastramento do vício e a mecanização das inteligências, e, sobretudo, a mediocridade dos contabilistas que se apoderou do mundo, é tudo isso e muito mais, que alguns têm explicado como a manifestação de uma vontade perversa actuando do subconsciente para o consciente da humanidade. O filósofo D. Duarte considerava a tristeza um pecado porque é sinal de que deixámos de acreditar na bondade de Deus. Sempre me espantou que o ensino dos artistas, dos poetas da ciência ou da palavra, dos filósofos ou dos místicos receba dos governos a resposta da mediocridade. Pela sua crucificação, Jesus Cristo aboliu os sacrifícios humanos; a Inquisição, fundando-se no cristianismo, queimou aqueles que protestavam contra esses sacrifícios.

Está anunciada uma terceira idade de que nos aproximamos velozmente, em que, como disse o Bandarra, a paz será em todo o mundo. Como conciliar isto com aquilo? É que a terra em que vivemos é apenas um laboratório; no athanor da humanidade separa-se o subtil do denso. Esta não é a terra definitiva. Para onde vai a energia que, pela entropia, constantemente se perde? Transforma-se em energia espiritual. Tudo quanto de bom e de verdadeiro se pensou e imaginou, se pensa e imagina, é o subtil que se separa do denso e vai formar a Terra Prometida.

As formas do nosso verídico imaginar ficarão à espera de que os tempos se cumpram para se incorporarem numa nova humanidade de que não participarão só os vivos de então, mas também todos os mortos do presente e do passado que não podem ter vivido em vão.

 

António Telmo 

 

(Publicado em O Portugal de António Telmo, 2011)

CORRESPONDÊNCIA. 13

11-06-2014 15:50

 

CORRESPONDÊNCIA DE ÁLVARO RIBEIRO PARA ANTÓNIO TELMO. 07

 

Lisboa, 2 de Março de 1973

 

Meu caro António Telmo:

 

Respondo ao seu pedido, enviando cartão com a nota da minha residência. Ela figurou nos envólucros das publicações que já lhe havia enviado pelo correio...

A Maria Júlia e eu teremos muito gosto de vos ver em nossa casa, para longa e demorada conversa amiga. Apareçam!

De momento não tenho notícias a transmitir-lhe. A minha vida é cada vez mais doméstica e privada, porque me vai faltando saúde e resistência à morte. Espero e esperarei pelo que Deus quiser.

Cumprimentos meus e da Maria Júlia para a Maria Antónia, beijos aos vossos filhos, e um abraço do velho amigo

Álvaro Ribeiro

DOS LIVROS. 11

06-06-2014 14:41

De um caderno de apontamentos. 05

 

Muitos meses depois de ter escrito Os Dioscuros, um conto imaginado por reacção à clonagem, descobri que a escolha do nome Leda para a mãe dos dois irmãos gémeos se deveu a um acto de escrita automática, mas do domínio do mistério.

O nome viera por imposição do ritmo da frase: “Fui encontrar leda a vossa mãe, leda como o seu nome”.

Sempre que, durante esses meses, me lembrava do conto, esse filho do acaso vinha-me à memória em contraste com os nomes das outras personagens que conscientemente escolhera com a mais rigorosa propriedade. Assim Zebedeu era o pai de Tiago e de Túlio, como é no Evangelho, de Tiago e de João, dados pela tradição como gémeos. O duplo aparecimento do T é propositado e o nome de Túlio é censurado no conto pelo vagabundo que repreende o pai por não lhe ter posto o nome de João. Os dois rapazes nascem de um parto difícil ao ribombar do trovão. Cristo chama aos dois discípulos “filhos do trovão” e, por isso mesmo, o vagabundo, o sábio mendigo itinerante os crisma, a Tiago e a Túlio, de Boanergues. Tudo isto está certo dentro do simbolismo do conto. Só o nome de Leda parecia fugir à regra que traçava linhas direitas entre os vários pontos etimológicos.

Eu sabia que Leda significa alegre, mas não sabia mais nada. Qualquer coisa me dizia, eco de alguma reminiscência, que fosse uma figura da mitologia clássica. Fui hoje ver no Dicionário de Mitologia que a minha mulher comprou ontem. Como é possível?! Leda é a mãe dos Dioscuros que os concebeu de Zeus-Júpiter disfarçado na forma de um cisne. Uma coisa traz outra: Zebedeu prolonga a sonância de Zeus e este é, como Júpiter, o deus do trovão. Não é menos espantoso que coincidam a narrativa cristã e a narrativa pagã.

Tudo isto faz-me responsável do modo como apresentei os factos no conto. Devo reescrevê-lo, porque, sem querer, estou lidando com o sagrado e o misterioso.

 

António Telmo

 

(Publicado em Viagem a Granada, 2005)

 

VOZ PASSIVA. 24

05-06-2014 09:25

O comentário de Eduardo Aroso, membro do projecto António Telmo. Vida e Obra, que hoje publicamos irá integrar, com dois outros comentários de António Carlos Carvalho, a marginália de A Terra Prometida, I volume das Obras Completas de António Telmo, cujo lançamento terá lugar em Sesimbra, na Biblioteca Municipal, no próximo dia 21, durante a terceira TARDE TÉLMICA, com apresentação de António Carlos Carvalho, Miguel Real e Pedro Martins. Versa O Horóscopo de Agostinho da Silva, escrito télmico reunido naquele volume. 

 

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Comentário a O Horóscopo de Agostinho da Silva

Eduardo Aroso 

 

O texto em apreço traduz o conhecimento abarcante de António Telmo em matéria astrológica, no que ela tem de simbolismo e mito, para além de evidenciar o que vulgarmente se chama conhecimento operativo astrológico. Quanto a este último, diga-se que não é habitual esperá-lo de um filósofo da estirpe de AT e dos círculos que  frequentou. Tomando o local de nascimento (um dos dados essenciais para o levantamento de uma carta do céu) começa por se referir à questão a que o próprio Agostinho da Silva alude, e bem conhecida de todos, quando este nos informa: «nasci no Porto, mas onde eu queria nascer era em Barca d’Alva, pois antes de nascer foi a ela que eu escolhi. Os deuses que movem os astros quiseram fazer a minha vontade, mas como se trata de relações de grandes movimentos não conseguiram ser exactos e daí o Porto em vez de Barca de Alva.”

Refira-se, desde já, que estas palavras de AS, tanto no domínio escatológico como astrológico, levar-nos-iam muito além do escopo deste artigo. Sublinhe-se apenas que há aqui uma forte convicção do que em poética e filosofia se entende por fado, fatum, ou maktub, ou seja, os complexos meandros do destino, tema que baila constantemente no miolo de um horóscopo. É claro que AS ironiza a verdade, dizendo que «os deuses que movem os astros quiseram fazer a minha vontade, mas como se trata de relações de grandes movimentos não conseguiram ser exactos e daí o Porto em vez de Barca de Alva”! Com isto quis significar que, em última análise, os Céus (ou a divina sophia) suplantam a Terra, o limitado conhecimento individual, ou como diriam os antigos helenos «o todo é maior do que a soma das partes». 

 AT, lucidamente, faz a transposição de sentido para conciliar os opostos ao dizer que «não fez mais do que lançar-se ao mar, afastando-se do porto numa barca capitaneada pela deusa do nascer do dia», ou seja, a Estrela d’Alva. Vénus, na mitologia representando o amor e em «Os Lusíadas» como que um guia superior, na tradição popular é conhecido por este nome, que, consoante a sua posição astronómica, também se chama Estrela da Tarde, quando brilha perto do horizonte ocidental. Curiosamente, este planeta no horóscopo de Agostinho rege a 2ª casa, a 6ª (serviço e saúde) e a 9ª (mestres e conhecimento superior, estrangeiro e longas viagens). Escreve AT que AS quando escolheu Barca d’Alva tinha presente o mito de Er, de que falou Platão, ensinando que as almas antes de virem a este mundo escolheriam, por assim dizer, as linhas fundamentais do seu destino ou projecto de vida. Torna-se mais interessante este ponto se lermos o que Max Heindel, no início do século XX, diz em «Conceito Rosacruz do Cosmos», cap. III, onde se explica que o ser humano, ou espírito puro, antes de vir a este mundo, na missão que têm os chamados «Anjos do Destino» (lipikas, em sânscrito), é-lhe dado escolher alguns «panoramas» ou projectos de vida. Uma vez escolhidos têm que ser cumpridos nas linhas essenciais - sublinhe-se essenciais - pois é só no restante que se pode falar em livre-arbítrio. Havendo fugas, podem resultar dores e sofrimentos, por desobediência às leis da Natureza e, sublinhe-se, ao que nós próprios escolhemos!

AT, na análise do horóscopo de AS, confessa que vai tentar «interpretá-lo seguindo dois caminhos combinados um com o outro: o caminho dos astrólogos que tomarei consultando um bom livro da especialidade e o caminho da razão poética ou da mitologia, porquanto é à mitologia que os astrólogos vão buscar os nomes dos astros e dos signos». Interessante é também o relato que faz de ter levantado o horóscopo em Brasília, pedindo a AS os dados necessários. Este deu-lhe o local de Barca d’Alva e não o Porto, cidade onde aconteceu o seu primeiro gemido ou berro neste mundo.  Porém, astrologicamente não seria correcto se o horóscopo fosse levantado para o local de Barca de Alva. Todavia, AT, em visão de águia altaneira, como que corrige, conciliando os opostos, quando escreve «os meridianos [linhas que marcam a longitude] são próximos um do outro; do Porto, onde se formou na Escola de Leonardo Coimbra, saiu para capitanear com outros seus pares o movimento atlântico do pensamento português». Ora nesta relação Porto (escola de filosofia) e Barca d’Alva (barca), ou seja, o que se aprende e de onde sai (Porto) realiza-se partindo de Barca d’Alva (em barca/caravela/navio), pelo que a ansiedade de AS está bem patente querendo sair metaforicamente do “porto de Barca d’Alva” para o mundo!

Assim, este aparente imbróglio, sem a explicação de AT poderia ficar assim. Quando este escreve que «os meridianos [linhas que marcam a longitude] são próximos um do outro» diz o que um astrólogo já sabe, isto é, a alteração do grau ascendente do horóscopo é quase desprezível, pois não chega a ser de um grau. Mas o dilema, pela lucidez de AT, ganha luz na simbólica e por isso superior interpretação da carta dos céus e, consequentemente, da vida de AS. E recorrendo agora a outra imagem: sem colocar a questão do horóscopo, mas pelo símbolo, o que poderíamos dizer também de António Telmo: o filósofo de Estremoz ou o filósofo de Sesimbra?

O autor de O Horóscopo de Portugal pega no fio de Ariadne e toma a palavra considerar, sidério e sideral  e o «sul sidério», e por extensão, em Considerações,  livro de AS. Ora, isto mais não é do que quando o «Céu e a Terra se combinam para urdir os problemas da humanidade, mas também para os resolver». E acrescenta que AS tinha a sua carta astrológica desenhada em si mesmo, isto é, a sua vida espelhava claramente o que AT via na carta do céu e ainda hoje nela se lê. O filósofo de Estremoz – ou também de Brasília, pois lá fez este estudo e o entregou a AS – continua dizendo que Mercúrio é dominante no horóscopo, pois vemos que não só é regente do signo ascendente, Virgem, como do signo do Meio-do-Céu, Gémeos, e «forma com a Lua e Neptuno aspectos altamente benéficos». Telmo, atentamente, refere-se à dupla natureza de Mercúrio, pois um mensageiro/intermediário (figura associada a este planeta) pode sê-lo de várias maneiras, tanto pode servir a Deus como a Mamon, pelo que AT diz que «todos os deuses têm duas faces». É claro que no horóscopo de Agostinho, tendo este reagido superiormente ao que a tradição chama «mensageiro dos deuses», AT acrescenta o seguinte «Mercúrio em Aquário: Intuição, rapidez e inteligência fulgurante. Inventivo e aberto às ideias novas». Esta tónica aquariana está reforçada pela posição do Sol, ou arquétipo solar, também no signo de Aquário «aberto às ideias de vanguarda, vê as relações humanas de uma forma despreconceituosa e informal». Muito mais se poderia dizer e de suma importância quanto ao signo de Aquário, e que está bem enfatizado no caso de AS, ou seja, um traço bem vincado de individualidade ou individuação (no conceito de Carl Jung), gerando um sentido de independência que, ao mesmo tempo, nos espíritos superiores, se faz altruísta, fraternal e cooperante, mantendo-se todavia consciente de si.

O leitor pode ler o mais que AT descreve, mas vale a pena acrescentar «Marte em Carneiro: enérgico e resistente. Iniciativa, impetuosidade, audácia». Vemos a verdade disto quando AT nos diz que Agostinho, aquando da construção da Universidade de Brasília, carregava tábuas às costas, andava muitos quilómetros a pé e o que comia de manhã dava quase para todo o dia! É mister falar ainda de Neptuno «a renúncia a tudo o que é fácil, lutando pela felicidade do futuro, os contrastes profundos, a oratória, a política, as experiências científicas e sociais audaciosas, o misticismo religioso ou ateu, tudo isso está fortemente impregnado da influência de Neptuno»  

Telmo remata, dizendo que há um «admirável texto em que está bem evidente o perfeito acordo do seu pensamento com o seu ser íntimo, tal como podemos imaginá-lo através do horóscopo. Tem por título «Quanto a Deus». Na verdade, este texto mais que teológico, fulgurante e lúcido - dir-se-ia no Sopro do Espírito Santo - é a perfeita combinação do melhor da lógica, da razão e da expressão enquanto atributos de Mercúrio com a sua oitava superior, Neptuno, «o das longas viagens pelo mar, o que leva ao Brasil e a todas as partes do mundo», planeta do misticismo religioso, da inspiração,  universalidade, da compaixão e do serviço abnegado ao próximo. Repare-se que o Sol, Vénus e Mercúrio (este a entrar) estão na 6ª casa do horóscopo, a do serviço sob formas que necessariamente devem ser visíveis para o mundo.

Há, assim, neste texto, ainda que num espírito de síntese, um raro e profundo estudo de um filósofo para outro filósofo, com a vantagem de um deles ter recorrido à astrologia. Mas a importância deste «arcano sagrado» de sabedoria milenar ainda está por fazer quanto ao que se poderia dizer de influência subliminar na ampla obra de AT, pois do que nos deixou da Cabala temos recebido o suficiente para sabermos o quanto e como ela marca a sua obra. Prossigamos, pois, a «reunir o que está disperso».

INÉDITOS. 15

04-06-2014 11:37

Sonho mágico*

 

Os esquilos são animais ágeis, por sua essência ligados às árvores. Armazenam nos seus buracos provisões para o Inverno, constituídas por sementes e frutos duros. Saltam graciosamente de ramo em ramo e de árvore em árvore. Os cientistas não puderam encontrar ainda a razão da cauda, um grande e belíssimo tufo de pelos que parece não servir para nada.

O esquilo tem, evidentemente, o seu arquétipo. A beleza é, em geral, explicada nos animais e nas plantas pelo sexo. Não nos consta, porém, que animais hediondos, como o hipopótamo por exemplo, não tenham sexo. Outros factores virão resolver o problema. No tinteiro dos cientistas não há tinta para as ideias tais como existem na ideação de Platão e muito menos tais como vivem no pensamento de Deus.

Tudo o que escrevi que ler se leia fi-lo como num sonho mágico. Houve aí como que um ir à toa do pensamento e, no entanto, algo que é íntimo em quanto escrevi e a mim estranho tem, não raras vezes, a claridade de um olhar certeiro.

Sempre que leio textos meus antigos, esquecidos entre os meus papéis, mais se me torna evidente que foram elaborados por uma espécie de magia. Sinto-os, pois os esqueci, como alheios. Todavia, encantam-me e seduzem-me como se ouvisse a minha alma falando-me das bandas onde sopra o Espírito.

 

António Telmo

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* Título da responsabilidade do editor.

UNIVERSO TÉLMICO. 03

03-06-2014 21:53

Álvaro Ribeiro*

António Cândido Franco

RIBEIRO, Álvaro (1905-1981). Álvaro Carvalho de Sousa Ribeiro nasceu no Porto e faleceu em Lisboa. Frequentou a primeira Faculdade de Letras do Porto, onde se vinculou a Leonardo Coimbra e a Teixeira Rego, e nela concluiu em 1931 o curso de Ciências Histórico-Filosóficas. Participou activamente nas derradeiras actividades da Renascença Portuguesa, ainda que não tenha chegado a colaborar nas últimas séries do seu órgão, a revista A Águia. Assim como assim, a sua assiduidade na livraria da Renascença Portuguesa, à Rua dos Mártires, levou-o a dirigir com Casais Monteiro e Manuel Maia Pinto a última nova publicação da Renascença, a revista Princípio (1930), que, por uma aproximação à Seara Nova e à revista Presença, se propunha combater nas novas gerações a influência do Integralismo Lusitano e do pensamento reaccionário e antidemocrático.

Dois anos depois, dispersos os discípulos de Leonardo Coimbra e encerradas de vez as portas da Faculdade de Letras do Porto, fechadas ainda as duas últimas publicações da Renascença Portuguesa, as revistas A Águia e Princípio, e desfeita a sociedade cultural portuense, surge em Lisboa o manifesto da Renovação Democrática, assinado por Álvaro Ribeiro e Pedro Veiga. O movimento depressa se tornou um pólo de atracção para os antigos alunos da Faculdade de Letras do Porto ou para os colaboradores mais novos da revista A Águia, como Domingos Monteiro e Eduardo Salgueiro, acabando por se tornar o herdeiro que melhor procurou prosseguir e interpretar em novo contexto, o do Estado Novo, os ideais democratistas da Renascença Portuguesa. As movimentações duraram até 1943, ano em que Álvaro Ribeiro se estreou em livro com O Problema da Filosofia Portuguesa, dedicado a José Marinho e publicado por Eduardo Salgueiro na Editorial Inquérito. Com o opúsculo, procurou Álvaro Ribeiro desenhar a Filosofia Portuguesa como movimento cultural herdeiro da Renascença Portuguesa, mas sublinhando desta vez, quase em exclusivo, as fontes esotéricas ou acroamáticas em detrimento das sociais ou das cívicas.

Depois disso, nos anos ímpares, com uma regularidade quase matemática, publicou Álvaro Ribeiro até ao fim da vida uma vasta obra de prosador, de pedagogo, de hermeneuta e de memorialista, em que pretendeu por um lado actualizar um racionalismo aristotélico muito atento aos problemas da linguagem verbal, no qual via a genuína matriz do pensamento português, desde Pedro Hispano ou de Álvaro Pais (século XIV), e por outro magistralizar a tradição esotérica do saber, sobretudo judaico-cabalista, no qual inseria a renovação moderna do pensamento português, começada para ele com Sampaio Bruno.

Nesse sentido, atendendo à sua dupla filiação racionalista e ocultista, o poeta português moderno que mais vivamente interpelou o Álvaro Ribeiro pensador de enigmas foi Pessoa. Dele compilou em volume os textos publicados na revista A Águia em 1912, dedicados à poesia saudosista; a recolha, A Nova Poesia Portuguesa (1944), foi a primeira compilação de dispersos do poeta e antecedeu muitas outras iniciativas do género, a primeira das quais a recolha de Jorge de Sena, Páginas de Doutrina Estética (1945), que contou com larga e generosa colaboração de Álvaro. Assinale-se por fim a coincidência, decerto consciente, senão procurada, entre as iniciais da «Filosofia Portuguesa» e as de Pessoa.

BIBL.: DOMINGUES, Joaquim, Filosofia Portuguesa para a Educação Nacional. Introdução à Obra de Álvaro Ribeiro, Lisboa, Fundação Lusíada, 1997; GALA, Elísio, A Filosofia Política de Álvaro Ribeiro, Lisboa, Fundação Lusíada, 1999; GOMES, Pinharanda, «Álvaro Ribeiro: Da Renascença Portuguesa à Filosofia Portuguesa», in Aa. Vv., O Pensamento e a Obra de José Marinho e de Álvaro Ribeiro, vol. II [inteiramente dedicado a Álvaro Ribeiro], Lisboa, IN-CM, 2005.

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*entrada publicada no Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português, Lisboa, Caminho, 2008.

CORRESPONDÊNCIA. 12

02-06-2014 12:01

CORRESPONDÊNCIA DE ÁLVARO RIBEIRO PARA ANTÓNIO TELMO. 06

Lisboa, 7 de Junho de 1972

 

 

Meu caro António Telmo:

 

Há meses que vivo no desejo de ir até Redondo, conversar consigo, cumprimentar Maria Antónia e beijar seus filhos. Não me esqueço do Manuel. Parece ter chegado, enfim, a ocasião de vos visitar. O Germano e a Conchita ofereceram-nos uma “boleia” durante a volta que irão dar pelo Alentejo nos feriados nacionais. Talvez não se demorem em Redondo, mas dar-nos-ão oportunidade, à Maria Júlia e a mim, de mais uma vez exprimirmos a simpatia e a amizade que temos por vós.

Encerro este aviso, enviando os nossos cumprimentos que na epistolografia nunca logram perfeita expressão

Álvaro Ribeiro

UNIVERSO TÉLMICO. 02

30-05-2014 09:45

Agostinho da Silva*

António Reis Marques

 

Por mercê do meu amigo António Telmo, tive o privilégio de conhecer o Professor Agostinho da Silva, e depois com ele conviver durante muitos anos.

Muitas vezes lhe ouvi dizer que gostava de contactar com as pessoas simples, com as quais, como também dizia, sempre aprendera muito.

A esse propósito todos nós conhecemos a referência que faz aos faroleiros do Cabo Espichel, no seu livro “Reflexão”.

Eu sou um dos muitos homens simples que ele conheceu mas, no meu caso, obviamente que fui eu que aprendi com ele, e disso vos quero transmitir alguns, também simples, testemunhos e pequenas notas de recordações que traduzem, para além da alma límpida e da inteligência cristalina, a grandeza humana desse saudoso amigo.

 

 * * *

 

Uma vez manifestou-me o desejo de visitar uma loja de companha, para os que não sabem uma espécie de armazém onde se guardam os apetrechos de pesca, visto querer conhecer de perto o trabalho dos pescadores.

Acompanhei-o então a uma dessas lojas, infelizmente já desaparecidas, dada a decadência que se tem verificado na vida piscatória.

Um grupo de pescadores, bem como o respectivo mestre, entretanto prevenido da visita, dispuseram-se a explicar, na sua linguagem característica, que por vezes tive de “traduzir”, as várias tarefas em que estavam ocupados para a pesca com aparelhos de anzol.

Sempre atento e interessado por tudo, a certa altura surpreende-nos quando, pedindo para ser ele a fixar o anzol na respectiva linha, o fez com a rapidez e a destreza de um pescador experiente.

Haveria de segredar-me depois que, talvez por ter pensado em ser marinheiro, aprendera a arte de fazer nós, e por isso tinha exposto numa parede da sala da sua casa um quadro com alguns dos nós mais usuais.

Na conversa que manteve com os pescadores, deixou-os admirados com o à-vontade com que falava de pesca, dos peixes e de navegação, emocionando-os até quando lhes disse:

“Vocês são os descendentes desse sesimbrenses que correram mundo nas naus e caravelas dos Descobrimentos.

“Foi com pescadores como vocês que os nossos mareantes aperfeiçoaram a arte de navegar, e foi também com eles que, velas desfraldadas, conseguiram um dos maiores feitos das navegações portuguesas: aprender a navegar à bolina, ou seja, navegar contra o vento”.

 

 * * *

 

Como todos sabemos, o Prof. Agostinho gostava muito de gatos. E até é bem conhecida uma fotografia sua com um gato ao colo.

Poucos saberão porém que ele se deslocava muitas vezes a Sesimbra, propositadamente, para distribuir comida pelos gatos vadios que existiam perto do seu apartamento na falésia.

Numa dessas vezes convidou-me para conversarmos.

Era um dia de Verão e a praia estava cheia de gente que, à medida que o sol declinava, se ia retirando.

Sentámo-nos na sua varanda, donde se avistava em toda a extensão a praia e a baía, e começou por me dizer: “Veja só! O areal está cheio de gente, que não sei porquê chamam de banhistas, visto que passam horas só a apanhar sol, com o objectivo de se bronzearem, que é hoje uma moda com muitos seguidores.

“Agora que se aproxima aquela hora mágica do entardecer, é que todos se vão embora, quando podiam pelo menos contemplar um daqueles poentes que todos os dias lhes são oferecidos. E que tão belos são, ali para as bandas da serra que leva ao Cabo Espichel.”

“Leonardo Coimbra tem um magnífico texto sobre isso”, acrescentei eu. “É verdade”, respondeu-me, “mas quantos são hoje os que o lêem?”

A conversa prolongou-se noite dentro, com muito gosto e proveito para mim. Os gatos, coitados, é que ficaram prejudicados, pois dessa vez só comeram no dia seguinte.

 

* * *

 

Num período difícil e doloroso da minha vida, motivado pela doença incurável dum filho de vinte anos, tive mais uma vez ocasião de verificar a extraordinária dimensão do homem bom, generoso e amigo que ele era.

Por ter deixado de o visitar com a regularidade habitual, e não tendo conseguido contactar-me telefonicamente, procurou saber junto de amigos comuns o motivo da minha ausência.

Logo que o soube, tratou imediatamente de averiguar junto de alguns dos melhores médicos que então havia, quais as possibilidades de tratamento.

Inclusivamente, telefonava para a América, onde então se encontrava uma sua amiga, a cientista portuguesa Maria de Sousa, com quem se aconselhava sobre o problema.

Para além disso, chamou-me a sua casa e disse-me: “Embora eu o conheça, nestas circunstâncias, por mais fortes que sejamos, nunca o somos o suficiente.

“Quero portanto prepará-lo para enfrentar a situação, tanto mais que é casado e tem um outro filho menor, o que torna tudo mais complicado.”

A partir daí, todos os dias passava por sua casa e, com ele, consegui de facto fortalecer o meu ânimo para melhor suportar a fatalidade que se deu.

Nessa altura, falando-me das contingências e fragilidades da vida, ouvi-lhe aquilo que considero um dos seus mais lúcidos aforismos: “Nós fazemos planos para a vida, mas nunca sabemos que planos a vida tem para nós!”

 

 * * *

 

Certo dia telefonou-me de Lisboa, informando-me de que vinha a Sesimbra no dia seguinte e, se estivesse em casa, aproveitaria para me visitar.

Assim aconteceu e, para minha surpresa e satisfação, presenteou-me com uma miniatura de um veleiro, visto saber do meu gosto pelos barcos.

Perante a honra da visita, e da oferta, manifestei-lhe, naturalmente, o meu agradecimento, e disse-lhe que tinha pena de não saber retribuir-lhe tanta gentileza.

De imediato, me retorquiu: “Uma coisa que nunca deve haver é conta corrente entre os amigos”.

Logo dois dias depois dessa visita, chegava nova surpresa para mim. O correio trouxe-me uma carta dele, acompanhada de uma poesia que me dedicara, e passo a ler, sendo a primeira vez que a divulgo.

 

Vou pelo justo que houver

No que seja atribuir,

Pelo generoso impulso

Da acção de distribuir,

Ou pela fraternidade

Que vem no contribuir,

Mas por amor do gratuito

Que tem de haver no sentir,

Nem gosto de ouvir falar

No verbo retribuir.

 

 * * *

 

A última vez que o visitei em Lisboa, já ele não estava bem de saúde.

Toquei à campainha e a porta abriu-se, pensando por isso que teria sido por ele.

Qual não é o meu espanto quando o vejo, sozinho, encostado à parede do patamar do segundo piso. Ele morava no terceiro.

Não respondendo ao meu bom dia, reparei então que estava de olhos fechados e, pouco depois, fez-me sinal para esperar.

Durante alguns momentos, daqueles que em certas circunstâncias nos parecem uma eternidade, entre surpreso e preocupado, esperei que me dissesse alguma coisa.

De repente, abre os olhos, cumprimenta-me e diz-me:

“Sabe, fui aqui surpreendido por uma dor, que me obrigou a parar. Quando você chegou, estava já na fase de conseguir que eu estivesse aqui e a dor ali, lá consegui afastar-me da dor.”

Por alguma coisa que me ensinou, julgo saber o que ele fez.

Como o fez, julgo também saber que isso será apenas do domínio de quem tenha uma preparação especial, melhor dizendo, uma iniciação de grau elevado, a que só podem aceder alguns homens superiores como ele de facto era.

 ___________

 * Comunicação apresentada ao colóquio “Uma conversa com Agostinho”, realizado em 23 de Novembro de 2002, no Auditório Municipal Conde de Ferreira, em Sesimbra.

FOTOS COM HISTÓRIA(S). 04

29-05-2014 10:01

29 de Maio de 2010. Visivelmente doente, António Telmo faz a sua derradeira oração pública na Sala Polivalente da Biblioteca Municipal de Sesimbra, casa de que foi o primeiro director. É manifesto o sacrifício com que o orador, bastante debilitado, fala para a assistência. Surpreende, porém, pelo tom empolgante com que a arrebata num apólogo estrénuo da República, suscitando-lhe, a final, tremenda ovação. No âmbito do colóquio "Anarquia, Monarquia e República", do ciclo Portugal Renascente, Telmo fala sobre "Monarquia e República". A seu lado, António Cândido Franco aborda o tema "Anarquia e República", além de apresentar o livro Luís de Camões, de Telmo, lançado nesse mesmo dia.

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