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UNIVERSO TÉLMICO. 78

07-04-2024 17:45

Risoleta C. Pinto Pedro e a portugalidade*

Paulo Jorge Brito e Abreu

 

 

(dedico o meu labor ao Arcano da Estrela)

 

«Porque nós somos cooperadores de Deus; vós sois
lavoura de Deus e edifício de Deus.» São Paulo, in «Primeira Carta aos Coríntios», 3: 9

 

De Risoleta C. Pinto Pedro (S. Vicente, Elvas, 14/ 07/ 1954), eu tenho, na minha banca de trabalho, o «Kronos Inversus», dado a lume, dessarte, por Edições Sem Nome. São, no fundo, 17 sonatas, ou sonetos, de aticismo e acribia. Ou seja, a libertária, o livre-pensamento, se casa, aqui, com a harmonia das esferas. E a Musa, amaviosa, se congraça e enlaça com a Santa Kabbalah. Como é já raro, em dias nossos, a Autora é uma Alumbrada, e a rima ajuda o lente a ficar alumiado. De Risoleta, então, eu digo o mesmo que disse, há vários lustros, sobre a Luz e a Liberdade de Carlos Carranca (Figueira da Foz, 09/ 11/ 1957 – Lisboa, 29/ 08/ 2019): Risoleta não foi nada para o banal, nem para o comando, ela nasceu para cantar, ou declamar, ao som de uma guitarra. Pra tudo embelezar, de boamente, ao seu derredor. Como ela diz, «verbi gratia», na lauda número 9: «Hoje leio os poetas que não penso, / Junto letras em modo de canção. / Em sonetos muitos, novos, os condenso, / Apoiado numa rima e num guião.» Ou seja, é, da Autora, é, da Risoleta, a monda e o mundo mágico-simbólico. Quero eu, afinal, aqui dizer: em mágica, ou ática, conotação, o significante, nesta cifra, determina e precede o significado. E o sujeito poético é, simultaneamente, espectáculo, trama, actor e espectador. E em «sacrum facere», portanto, Risoleta denomina, ela nomeia, o sagrado e o adro. E entre a vigília e o sonho, a Autora recebe, deveras, dos deuses, para dadivar, solerte, aos homens. Pitonisa, na verve, Risoleta, o deus Apolo mata a Píton, e Pitágoras é decerto o Áugure pítico. Ou como assevera, a sagrada, no último soneto: «Que aquilo que escrevo esqueça o atroz. / O que me inspirares seja limpo e sério, / Que andam as gentes em busca da voz / De amor, alegria, do santo mistério.» É uma vez, e uma voz, de alacridade, é a alegria fantástica das alegorias. É Risoleta que faz conciliábulo, e sempre e sempre em busca da acácia, do Arnaut (Penela, Cumeeira, 28/ 01/ 1936 – Coimbra, 21/ 05/ 2018), da Palavra perdida. Tamanha pureza só achamos, nós outros, em Minerva, ou Essénia, Fraternidade. Ou diríamos que é, na didascália, o escol e a escola da «Sophia» Portuguesa??? Quer ela razoar: a Lusitânia, aqui, é uma citânia de Luz. E como em poucos Poetas do nosso Portugal, as palavras, no carme, são seres vivos, Poesia é professar, e confessar, uma clarificação. Pois é, no Parténon, a lis e o lai do com-preender. E clareando, abertamente, na clareira do Ser.

 

Uma vez aqui chegada, prima, a Risoleta, por insólito e sinal, e eis, aqui, uma insígnia selecta: é «O Sol do Tarot de Sintra», é, no lausperene, o «Liber Mundi» perene. Sendo o Tarot, deveras, uma Arte Real, sendo a Poesia, tão-só, uma Arte magistral, e magnificente. Uma Arte em que os Numes são mitos e metáforas, o cabal, a Kabbalah e a Fonte Cabalina. As imagens, o magismo, o batel e a batalha do magista «Bateleur». E eis o símbolo, a irmandade, a «communio» presuntiva e por isso presente. Ou melhor: sendo animal metafísico, o homem é do Hermes o animal simbólico. E o «inversus» de que fala a Autora deste livro, ele não é, nada mais, que o Dependurado estreme. É aquele que se sacrifica por o alar, e o bem-estar, da comunidade. E é daí que nos vem o ofício do Poeta, é daí que nos advém a comunicação. A Filologia, Magia ou Metaciência, as imagens, os Mitos e as metáforas: é aqui que se situa, sitiada, a pitonisa e o palmar, a Risoleta Pinto Pedro. Sendo, as imagens, como infere o ledor, a letra e a linguagem, o meio de expressão do subconsciente. E sendo, o soar, a rima e «personare», e sendo, o soneto, a catarse e a purga. E se a métrica é do metro, Poesia é malabar, Poesia é portanto o matemático Arquitecto. Esse Arquitecto tudo fez, no início do mundo, de acordo com o número, o peso e a medida (Sb, 11: 20), e por isso as palavras, nesta Poesia, são pesadas, são pensadas, compensadas na prensa. Pois pensar é pôr o penso no fel e na freima, na ferida narcísica – e disso nos fala, com força, o Teatro, e disso nos falam Mistérios de Elêusis… A música, desse modo, é a Alma da Geometria. E a marcha está para a dança como está, a preste prosa, para a Poesia perene. Pois se Deus geometriza, segundo Platão (428/ 427 – 348/ 347 a. C.), o esquadro e o compasso são terminantes, relevantes, para o alor e a feitura da Obra do futuro. Ou como asserta Risoleta, na lauda 25: «O melhor, meu amor, é viver, é o sabor, / A água abençoada, e rir sem ser por nada / Até Deus memorar que também Ele é actor.» E sendo, o «Tarô», anagrama de «Ator». Que em Risoleta divisamos: não o fácil nem o fútil, não a cara, dessarte, mas as máscaras muitas. Um misto de similar, meu Deus, e simular, a «Alêtheia» que revoga o letargo e o Leteu. E em Psicodrama, isagoge, ou mistagogia, o fingir, desse modo, o laborar a ficção. O jogo, amavioso, que é só próprio do jogral. E o rimar, no romanço, e no preste romanceiro. Assim na terra, por isso, como no Céu: no Céu, desta sorte, com as Estrelas; na terra, cauta e culta, com as letras e o lais do «Kronos Inversus». Alterando, sempre e sempre, o soturno, invertendo o Saturno e a caducidade. Transmudando, como o faz o Saltimbanco, a verdade em mentira e a mentira em verdade: e eis, «verbi gratia», «O Sol nas Noites e o Luar nos Dias», e eis o fasto e o Fado, eis o lema e emblema da Natália Correia (Fajã de Baixo, São Miguel, Açores, 13/ 09/ 1923 – Lisboa, 16/ 03/ 1993). Quero eu dizer: se a Poesia, aqui, é superior à História, a Autora e actriz do «Kronos Inversus», ela faz, do seu drama, uma trama narrativa. Sendo a lenda, sempre e sempre, uma legenda. E lendo, com atenção, Risoleta, inferimos nós outros feericamente: não é a Arte que imita a vida, a vida, isso sim, é que imita uma Arte estreme. E a «imago» é pois magista, e tem no poster o «teenager» a guitarra do Cantor. «É que todos, / Sem o ser, se mascaram de Minerva», nos diz, na Musa, a maviosa, «São máscaras usadas como pele, / Indiferentes ao vírus tão temido / E tementes de quem com zelo vele. // Por isso os vejo da janela aberta / E não tento fingir o olhar contido, / Morto sob a máscara que me encoberta.» Pois seguindo, agora, e segundo Lord Byron (Londres, 22/ 01/ 1788 – Missolonghi, 19/ 04/ 1824), a mentira é a verdade duma mascarada, o Carnaval, no carme, é essência da Poesia. Quero eu dizer: Risoleta é lilial. Sua Poesia, forte e fértil, se baseia nas imagens, Poesia é qual a sorte dos jogos malabares. E voltamos a dizê-lo: as metáforas, os Mitos, as mentiras, uma guisa e uma laia de banda desenhada. Tem razão, por isso mesmo, o Robert Desoille (Besançon, 29/ 05/ 1890 – Paris, 10/ 10/ 1966): na escola, sideral, do sonho acordado, imaginar, então, é como fazer, e o «songe» é qual a sorte de mágica lanterna. Sendo, a Magia, o surto e o discurso do subconsciente. O subconsciente de Freud (Freiberg in Mahren, 06/ 05/ 1856 – Londres, 23/ 09/ 1939) e Janet (Paris, 30/ 05/ 1859 – Paris, 24/ 02/ 1947), a maior descoberta do século XIX; e aqui nós alteamos, realçamos e alçamos o Abade, luso-goês, José Custódio de Faria (Goa, Candolim, 30 ou 31/ 05/ 1756 – Paris, 20/ 09/ 1819). Ou seja: de acordo, curial, com Egas Moniz (Avanca, Estarreja, 29/ 11/ 1874 – São Sebastião da Pedreira, Lisboa, 13/ 12/ 1955), também na Psicanálise Portugal é pioneiro.

E que mais, Amigo ledor? Com que símbolos, e signos, nos enleva Risoleta? O símbolo, acima de tudo, do livre-pensamento, ela o faculta, facilita e bem preste o habilita. Quero eu dizer: tal como no passo bíblico da escada de Jacob, o Morfeu informa Orfeu, e ela recebe do divino pra dadivar à Humanidade: é que o Nume é pois o número, e a Poeta, ao ser a porta, ela é, também, a pontifical. Ou melhor: a serpente mercurial ela preside, e reside, nesta Poesia. Pra Risoleta a Beleza, na linha de Schelling (Leonberg, 27/ 01/ 1775 – Bad Ragaz, 20/ 08/ 1854), é o invisível, indizível, tornado sensível, ela é o objectivar da Ideia platónica. Do Arquétipo, afinal, em termos e teores do Carl Gustav Jung (Kesswil, Turgóvia, Suíça, 26/ 07/ 1875 – Kusnacht, Zurique, Suíça, 06/ 06/ 1961). A talho de foice, seguindo e segundo Max Heindel (Aarhus, Dinamarca, 23/ 07/ 1865 – Oceanside, Califórnia, 06/ 01/ 1919), a palavra «Mação» tem origem no egípcio «Phree Messen», e significa, ou tipifica, os «Filhos da Luz». E quem acende, nas trevas, essa Luz, é sempre o primeiro a dela, e com ela, se beneficiar. Que Risoleta está, aqui, em missão, e a Luz é uma cruzada, uma Santa cruzada, que alenta e alimenta a razão animada, é ciência selecta, consciente e deveras saliente. Escrever isto é dizer: lindamente e ledamente, tem realizado, Risoleta, seminários e estudos sobre Fernando Pessoa (Lisboa, 13/ 06/ 1888 – Lisboa, 30/ 11/ 1935), Teixeira de Pascoaes (Amarante, 02/ 11/ 1877 – Amarante, Gatão, 14/ 12/ 1952), Agostinho da Silva (Porto, Bonfim, 13/ 02/ 1906 – Lisboa, 03/ 04/ 1994) e António Telmo (Almeida, 02/ 05/ 1927 – Évora, 21/ 08/ 2010). No que está, belamente, acalentada e companhada por Pedro Martins (Lisboa, 22/ 01/ 1971), Manuel Cândido Pimentel (Vila Franca do Campo, S. Miguel, Açores, 01/ 08/ 1961), António Cândido Franco (Lisboa, 13/ 07/ 1956) e Paulo Borges (Lisboa, 05/ 10/ 1959). Que é preciso prosseguir, propugnar e propalar o solerte 57, o Movimento, afinal, da Cultura Portuguesa.

E vamos, agora, à Numerologia. Se Risoleta foi nada a 14/ 07/ 1954, somando o dia com o mês obtém-se o número, deveras, da sua Missão. Ora 14 + 7 = 21, e 2 + 1 = 3. É o símbolo da comunicação, caroal, e da criatividade. Em suma: desenvolvendo, dessarte, o seu estético senso, a Autora torna mais belo tudo o que está ao seu derredor. Calculemos, então, seu Caminho da Vida: 1954 + 21 = 1975, e 1 + 9 + 7 + 5 = 22, que é o chamado Número Mestre. Esse é o número das vidas de António Manuel Couto Viana (24/ 01/ 1923 – 08/ 06/ 2010), Émile Coué (26/ 02/ 1857 – 02/ 07/ 1926), Sigmund Freud (06/ 05/ 1856 – 23/ 09/ 1939), Fernando Grade (Estoril, 01/ 04/ 1943), Mário Máximo (Lisboa, 19/ 09/ 1956), Karl Abraham (Bremen, 03/ 05/ 1877 – Berlim, 25/ 12/ 1925), Pierre Janet (30/ 05/ 1859 – 24/ 02/ 1947), Marie Curie (07/ 11/ 1867 – 04/ 07/ 1934), Maria da Conceição Valdez Telles de Menezes (Lisboa, 13/ 04/ 1958), Paul McCartney (Liverpool, 18/ 06/ 1942), Josemaria Escrivá de Balaguer (09/ 01/ 1902 – 26/ 06/ 1975), Zeca Afonso (02/ 08/ 1929 – 23/ 02/ 1987) e Annie Besant (01/ 10/ 1847 – 30/ 09/ 1933). E o Professor, professo, Agostinho da Silva (13/ 02/ 1906 – 03/ 04/ 1994). E, ademais, «last but not least», Tenzin Gyatso, Sua Santidade o 14.º Dalai Lama (Taktser, 06/ 07/ 1935). Sendo o 0, ou 22, o Arcano do Louco não é o parvo «stricto sensu», ele é o êxtase, a «divina loucura», o «puer aeternus» que existe no homem. É uma espécie de «pralaya», do Nirvana, do incriado, desta feita, e do incognoscível. Atentemos, dessarte, na ciência matemática: 22/ 7 = 3, 14, e este cálculo dá o Pi, que é o número irracional. Por isso o 22 é o número dos génios, é mirífico mergulho no inconsciente. Em contacto, nitente, com o inédito e o novo, o 22 funciona à margem das regras, mas é o Nume e o número dos Construtores das Catedrais. Ou melhor: oscilando entre a sabedoria e a despreocupação, ora eis aqui o símbolo dos que oram, e laboram, para toda a Humanidade. Que a lavra de Risoleta é falante e aflante, ela é causa de progresso, dinamismo e civilização. E o campo de acção dos 22 são os organismos políticos, os centros de poder, as gradas, grandiosas, instituições culturais. E sendo, o 22, o precursor e pioneiro, ora eis aqui o trilho do anticonformismo, da acracia, ou nos lemas e emblemas, ora eis aqui o número de Risoleta Pinto Pedro. E sendo a Cruz em forma de T, a 22.ª letra do alfabeto hebraico, ela é, afinal, a Cruz com asas egípcia, a «Crux ansata» do hermetismo e o «Ankh», afinal, do povo das pirâmides. E «Tau» significa, também, o «sendeiro» ou a «senda», quer dizer, o «caminho da Cruz». Se alia aqui, Pinto Pedro, à Sabedoria Divina: o Tau pertence, exclusivamente, aos Iniciados, e Adeptos, de cada país. De toda esta plêiade, bastariam os nomes de Marie Curie, Sigmund Freud e Annie Besant pra ilustrar, e fazer jus, ao número 22. Nunca será de mais dizê-lo: são 22 os Arcanos Maiores do Livro de Thoth, 22 são os capítulos do sagrado Apocalipse. Quanto à Annie Besant, deveras, ela tem que se lhe diga: além de presidir, de 1908 a 1933, à Sociedade Teosófica, ela fez parte, ou participou, na Ordem do Templo da Rosa-Cruz e, outrossim, na Ordem Maçónica Internacional «Le Droit Humain». E falemos, ora, falemos em termos de Numerologia Comparada. Sem salamaleque, dessarte, mas com cortesia, o filósofo e filadelfo Pedro Martins foi nado, ou nasceu, como já vimos, em Lisboa, em 22 de Janeiro de 1971. É que o dia de nascimento é crucial, e relevante, pra definir, dessarte, o carácter da pessoa. Senão, vejamos nós: o londrino Francis Bacon, que foi político, filósofo, empirista e cientista, ele tem, como data natal, 22 de Janeiro de 1561. E o grado Lord Byron nasceu, ou foi nado, em Londres, a 22 de Janeiro de 1788. Uma vez aqui chegado, medite o ledor: no dizer de João Belo (Cebolais de Cima, 25/ 06/ 1959), «não é por acaso que nada é por acaso». Tem o Vate, ledamente, a lúcida razão: é que no Pitagorismo, os números não são, somente, aleatórios, eles são grávidos e prenhes de carga simbólica. E nascendo, Risoleta, no dia 14, a sua vibração é 4 + 1 = 5. Quer dizer: mercuriana de gema, ela é uma artista nata. Versátil, curiosa, afectiva, deveras e imaginativa. Ela entusiasma-se, veramente, com as palavras e os sons; não sendo, propriamente, uma «outsider», ela é uma avigorada, apaixonada, por a Cultura Portuguesa. Ou não fosse, a lâmina 5, a carta, no Tarot, do Sumo Sacerdote, quero eu dizer, do letrado ou do «clerc». É que o Friedrich Hegel (Estugarda, 27/ 08/ 1770 – Berlim, 14/ 11/ 1831), ele tinha, dessarte, toda a razão: as grandes cousas, neste mundo, só se fazem com paixão. Como é facto e como é feito, a Arte, para o tudesco, ela é sita na esfera do Espírito Absoluto. E quanto, agora, à Risoleta? Não sendo geronte, por isso, mas deveras generosa, ela sente-se atraída por o novo, o exótico, o miráculo, dessarte, e o mirabolante. Queremos dizer: ela foge do cânon, da rotina e do ramerraneiro. Temperamento oblativo, ou imaginativo, é dada, dessarte, a pressentimentos, a capacidades oratórias e por isso premonitórias. Só assim se explica o fulgor, e alor, duma lavra que é sua, e só por isso no afã, e só na faina Risoleta se sente feliz. Meditemos, deveras, nós outros: António Quadros nasceu, ou foi nado, a 14 de Julho de 1923. António Gabriel de Castro e Quadros Ferro o Autor, o feitor e promotor de «Portugal, Razão e Mistério» (Março de 2020), «Portugal, Razão e Mistério» seu testamento literário. E foi, cabalmente, de uma artista que eu falei, ela é estado e ela é estudo da especulação. O que nos leva, agora, a demandar: para onde nos leva, lilial, a Risoleta??? O que nos traz, dessarte, seu canto e o quinto??? E a resposta é: a essência, a súmula da Rosa, o Menino Jesus. O Império, mavioso, da Paz Universal…….

Tomar, 20/ 12/ 2023

SIC ITUR AD ASTRA

PAULO JORGE BRITO E ABREU

 

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* Texto originalmente publicado em TRIPLOV em 20/12/2023.

 

DOS LIVROS. 73

07-04-2024 16:18

Entrevista à revista LER,

conduzida por Francisco José Viegas

 

            Hoje podemos dizer que chegou a um ponto em que tem uma obra regular, com alguma insistência em pontos fundamentais. Comecemos pelo princípio. Como é que se aproximou dos assuntos do esoterismo?

             Bom, eu tenho um interesse por esses temas desde que me conheço, desde muito pequenino…

            Mas quando é que reparou que se interessava realmente por estas coisas, quais foram as suas primeiras leituras?

            Eu vivia em Arruda dos Vinhos, e na biblioteca municipal havia uns livros. Um dia, tinha eu dez anos, apanhei um que se chamava Ciências Ocultas, e o que me maravilhou nele foi que, entre muitas coisas que lá havia e que eu não percebia, se dizia uma coisa espantosa: que nas nuvens se podia ler o destino. Isto impressionou-me muito, e eu passei a ir para o campo, deitar-me de barriga para o ar a ver passar as nuvens e a ver se era capaz de ler o meu destino. Nunca fui capaz, mas aquela beleza das nuvens impressionou-me e ficou a fazer parte de mim. É aí que nasce tudo, é nesse impulso que começa a minha tendência para esses temas.

            Mas isso foi aos dez anos. Depois, teve uma aprendizagem…

            Sim, conheci pessoas. O primeiro que conheci versado nesses assuntos foi o Álvaro Ribeiro, e foi por ele que entrei para o chamado movimento da Filosofia Portuguesa. E o Álvaro Ribeiro é que me ia abrindo o caminho para a cabala, o esoterismo, tudo em conversas confidenciais… A partir daí interessei-me muito. Depois comecei a ler sobre isto e conheci outras pessoas, como o Agostinho da Silva, com quem privei tanto cá como em Brasília (a minha filha até é afilhada dele)… Acho que o Álvaro Ribeiro era um homem das ciências místicas. Eram afins, mas não bem a mesma coisa.

            E quando começou a ler estes temas, lia o quê?

            Naquela altura, nos meus vinte anos, as livrarias não tinham literatura esotérica. Uma vez apareceram, na Sá da Costa, uns livros de ciências esotéricas, que, aliás, foram logo apreendidos no dia seguinte. Eu só tive tempo de comprar um… E lembro-me que um dia apareceu A Teodiceia da Cabala, de Warrain[1] (que eu cito na minha Gramática Secreta). Era um livro grande, bonito, que continha a sabedoria do mundo, como eu o sentia. Eu ia com um amigo, quando o vi, e disse-lhe “Que pena não ter dinheiro.” Quando saímos da livraria, ele tirou o livro debaixo do casaco e deu-mo. Não sei se podem escrever isto, trata-se de um furto na Sá da Costa, mas é por aí que começam os meus estudos de cabala, tudo começou com esse livro.

            Os estudos que fazia tinham alguma coisa a ver com estas matérias?

            Não. Eu andava na faculdade de Letras, em Clássicas, e nada disto era ensinado, claro – tinha um grande desinteresse por aquilo que me ensinavam e nem ia às aulas, pagava até aos contínuos para me tirarem as faltas… A universidade não teve influência nenhuma em mim. Hoje, a universidade está diferente, já se abriu a este mundo do mistério, mas naquela altura era completamente positivista. Só encontrei o que desejava em homens como o José Marinho, que não tinham nada a ver com a universidade.

            Talvez também com o Leonardo Coimbra…

            Sim, mas esse não o conheci. Ele era de facto um inspirador daquilo tudo.

            Disse que as conversas que teve com Álvaro Ribeiro eram em tom confidencial. A “filosofia portuguesa” não comportava questões esotéricas?

            O Álvaro Ribeiro era uma pessoa muito secreta. Toda a obra dele tem um entendimento superficial que pode levar a pensamentos hostis, no sentido de uma orientação conservadora e reaccionária. E, por outro lado, há nele muito material que está cifrado, que não se vê: é preciso ler bem para entender o que está por baixo e perceber que ele era um revolucionário. Muito mais, por exemplo, do que o Agostinho da Silva. O Álvaro Ribeiro foi anarquista, foi marxista, depois fundou o Movimento de Renovação Democrática. Nesse tempo havia uma grande hostilidade em relação ao esoterismo, e era preciso cifrar tudo para que o leitor pudesse descobrir sozinho. Sobretudo depois do 25 de Abril, as coisas mudaram muito.

            Qual era a sua relação com as tertúlias políticas de Lisboa?

            Nunca participei nos meios políticos. Fui convidado, mas não aceitei e tive problemas.

            Como?

            Quando vim do Brasil, usava barba. E o ministério do Veiga Simão pediu-me para ir fundar a escola do Redondo. E eu vim. Nesse tempo ainda se fundavam escolas – agora abrem-se escolas. E quem ia fundar uma escola tinha, também, de escolher os professores, etc.. Quando lá cheguei, apareceram-me os políticos da terra a impor os professores, mas eu não deixei. Entre os que escolhi, pelo menos dois eram contra a situação, o que, aliado às minhas barbas, fez com que isto chegasse ao Governador-Civil e, depois, ao ministério. Lá fui eu a Lisboa. O director-geral perguntou-me: “Você é a favor da situação?” E eu disse: “Não, sou contra.” E ele perguntou-me o mesmo que vocês agora: “Mas pertence a alguma coisa?” E eu disse que não. “Então volte lá para o Redondo, que tem o nosso apoio”, respondeu-me ele. A partir daí não tive mais problemas.

            Tinha ido para o Brasil quando?

            Teria perto de quarenta anos, foi antes de vir para o Redondo.

            Foi aí, nesses três anos, que esteve mais perto do Agostinho da Silva.

            Sim, e depois também cá, em Lisboa. Eu era professor de Latim e de Literatura Portuguesa no Centro de Estudos de Literatura Portuguesa[2] fundado pelo Agostinho da Silva. Mas antes de ir para lá aconteceu-me um episódio que posso contar, muito curioso. Eu estava em Lisboa sem trabalhar, e um amigo meu apareceu e disse-me para eu ir com ele àquele astrólogo, o Hórus. Eu não queria, disse que não estava interessado nessas coisas da astrologia. Bom, ele lá me levou, pagou-me a consulta e então aconteceu esta coisa extraordinária: pegou-me na mão, perguntou a hora e data de nascimento e disse: “Isto é uma coisa impressionante, você é o único homem que pode derrubar o Salazar.” E adiantou: “Mas não o faça, não o faça.” Isto era em Agosto, e ele disse que no próximo mês de Fevereiro eu ia para o Brasil e que no dia um de Outubro iria conhecer aquela que viria a ser a minha mulher. Disse também que tudo o que eu quisesse conseguia da vida, e era verdade. Foi verdade. Conheci a minha mulher no dia um de Outubro e fui para o Brasil no mês de Fevereiro. O que tem graça é que eu tinha bilhete para trinta e um de Janeiro, mas uma pequena avaria no avião atrasou o voo e só saí de cá em Fevereiro.

            Como é que reagiu quando o homem lhe disse isso?

            Ri-me, como é natural. Contei à família, aos amigos, e nem sequer via como é que podia ir para o Brasil. Logo a seguir abriram as aulas, e eu, na reunião de professores, conheci a minha mulher. Era o dia primeiro de Outubro… nessa altura as aulas começavam a um de Outubro. Chegando ao Natal, recebi um telefonema do António Quadros a dizer que tinha falado com o Agostinho da Silva e que queriam que eu fosse para lá. Olhe, o chão até me caiu debaixo dos pés. Ele perguntou-me se eu não queria ir. E como o Hórus me tinha dito para dizer que sim a tudo, lá respondi: “Claro que sim.” E fui em Fevereiro, como estava marcado. Foram tempos espantosos, graças aos momentos que passei com o Agostinho da Silva.

            Tais como?

            Havia uma aldeia perto de Brasília que se chamava Taguatinga e que tinha um clube, o Clube de Taguatinga. E esse clube era de um contínuo do Centro de Estudos Portugueses, o Teodoro, um senhor negro muito divertido. Fomos lá, e o clube consistia em quatro paredes de madeira, sem tecto e com uns bancos corridos de onde se viam as árvores gigantescas que estavam lá fora. Nós todas as semanas íamos lá fazer umas palestras, e toda a gente da terra assistia àquilo. O Teodoro levantava-se e apresentava-nos assim: “O senhor professor Agostinho da Silva vai falar sobre São Jorge.” Ou: “O senhor professor António Telmo vai falar sobre Dom Sebastião.” E nós, que não levávamos nada preparado, chegávamos lá e falávamos, e aquela gente ouvia-nos religiosamente. Outro episódio curioso: havia um senhor do Alentejo que era latifundiário da Vidigueira, mas muito de esquerda, muito dado às esquerdas. Um dia arruinou-se, e a situação aqui ficou muito complicada para ele, ainda por cima sendo de esquerda no Alentejo de então e no Portugal da altura. Bom: escreveu-me a pedir um lugar – eu falei com o Agostinho da Silva e ele disse que sim, que fosse, que se lhe conseguia alguma coisa. Arranjámos uma viagem paga e tudo. Antes, ele perguntou pela casa, porque ia com a mulher e os filhos. Nós arranjámos, no serrado, um chalé, que eram quatro paredes e um telhado de madeira… Eu é que disse que era um chalé, mas aquilo era uma casa gigantesca, sem divisões e, portanto, com condições muito rudimentares, sobretudo para quem vinha de um latifúndio, de um monte. Imaginámos que podíamos dividir aquilo em compartimentos, mas mandei-lhe dizer que havia um chalé bom para ele. Respondeu-me que a mulher tinha ficado muito feliz com a boa notícia, e claro que eu e o Agostinho nos rimos bastante por causa disso. O homem chegou lá e só queria ver o chalé. Quando os levei lá, ele ficou completamente surpreendido, vendo que aquilo não era, não diria inadequado, mas pouco parecido com um chalé. Ele, um revolucionário, estava no papel de um burguês, a queixar-se das condições… Foi dormir para um hotel e arranjou uma bela duma casa, por intermédio do reitor da universidade. Tudo se resolveu, como se resolvia sempre. Há também a história do bispo João Ferreira, que depois deixou a igreja, ele era franciscano. Falou com o Agostinho da Silva e preparou-se para ir para lá fundar uma faculdade de Teologia, que não era mais do que uma construção inacabada no meio do Atlântico. Em cima tinha umas divisões, e eu e o Agostinho passeávamos por lá e ele imaginava: ali fica um cristão, ali um budista, ali um islamita, e sonhava-se com uma teologia universal. O bispo, finalmente, chegou, acabadinho de fazer uma operação à vesícula, com uma dieta rigorosa. Nós soubemos disso e levámo-lo a comer uma feijoada à brasileira. O homem ficou curado, essa é que é essa, e lá ficou à espera do seu lugar até que perguntou quando é que se fundava mesmo a universidade. E o Agostinho da Silva respondeu-lhe: “Olhe, vá para o serrado, sente-se em cima de uma pedra, pense em Deus e está fundada a universidade de Teologia.” Um dia, ele veio ter comigo e disse: “Isto é muito bonito mas eu não tenho que comer.” O Agostinho da Silva, entretanto, fugiu para a Baía, e tive de ser eu a resolver o problema, pondo-o na universidade, falando com o reitor, contando-lhe as dificuldades do senhor que acabou por ficar a ensinar literatura portuguesa. Depois, encontrei o Agostinho da Silva que, entretanto, tinha voltado da Baía e que ia a fugir de mim. Mas eu disse para ele não fugir, que o homem já estava instalado. E ele responde: “Não me diga! Então vamos tomar um café com ele…”

            O que é que unia todas essas loucuras umas às outras?

            O prazer da vida, a certeza de que isto não era para se levar muito a sério. O sentido da liberdade, da liberdade interior, dando largas à nossa vida…

            Regressa do Brasil e vai para onde?

            Fui para Granada. E aqui há outra história muito interessante, que ainda não foi contada. O Agostinho da Silva tinha um sonho, que era o domínio do mundo por Portugal. Consistia esse sonho em pôr um português em cada lugar do mundo, e, por isso, tinha um em Macau, outro no Japão, outro na Índia… Bastava ele conhecer alguém que mostrasse interesse que ele perguntava: “Para onde é que quer ir?” Se respondesse quero ir para a Pérsia, era capaz de ir mesmo para a Pérsia.

            Mas como é que se pagavam essas embaixadas?

            Tinha uns capitalistas que lhe tratavam disso. Um deles era o Vinhas. Quando eu vim do Brasil, perguntou-me: “Então, você vai mesmo para aquela pasmaceira do Chiado? Não quer ir pôr um padrão num lado qualquer do mundo?” E eu disse “Quero.” “Para onde?”. Espanha, respondi eu. Fiquei de escolher a cidade e escolhi Toledo, e ele disse: “Óptimo, boa escolha. Toledo é mesmo para si.” E falou-me de Toledo, um discurso belíssimo sobre Toledo. No dia seguinte, cheguei ao pé dele e disse que Toledo, afinal, não me convinha, que preferia era Córdoba. Ele respondeu: “Essa é que é boa para si.” E fala-me de Córdoba. Fui mudando, até que sugeri Granada, e a descrição que ele me fez agradou-me muito mais. Quando cheguei a Lisboa fui falar com um capitalista, de cujo nome não me lembro agora. Ele recebeu-me atrás de uma secretária, como um capitalista a sério. Disse que eu podia partir no dia seguinte e que todos os meses iria receber um cheque no valor de uma quantia enorme, muito boa. Fui, e todos os meses recebia o cheque. Não fazia nada em Granada, lia, andava por aqui e ali, ia a umas conferências, a umas bibliotecas e quase só isso. Até que escrevi ao Agostinho da Silva a perguntar o que é que estava ali a fazer. Ele responde-me: “Você está aí e pensa. Pensando, Portugal domina isso tudo.” Eu lá fiquei, um ano. E depois, ao fim de um ano, escrevi-lhe a dizer que já não queria lá ficar mais, que estava um bocado cansado daquela vida. Ele lá me escreve: “Óptimo, tem toda a razão. Venha.” Isto, para conhecer o Agostinho, é importante.

            Mas nunca se interrogou sobre o que estaria por detrás disso?

            Sabe, aqueles capitalistas eram homens que tinham pelo Agostinho da Silva uma admiração espantosa, e aquilo para eles era muito pouco dinheiro. Nunca investiguei quais eram as relações políticas desses homens quer com o regime, quer com o Agostinho da Silva. Mas tinham por ele muita admiração.

            Quais eram os outros representantes de Agostinho da Silva?

            Quando eu fui falar com esse senhor, estava lá uma rapariga mulata, que me disse o nome mas que eu esqueci. Estávamos lá à espera, eu olhei para ela e perguntei: “Então para onde é que vai?” E ela, que ia para Malta. Havia para aí umas dez ou doze pessoas espalhadas pelo mundo.

            Mas havia aí plano. O que é que pensava disso?

            Era só isto, ter portugueses espalhados pelo mundo. Eu concordava, era assim que via o nacionalismo místico. Sabe que isto, pela política, era muito difícil. Era melhor assim.

            Viviam na pele de uma espécie de embaixadores secretos de Portugal, de espiões?

            Era uma presença. Desde que pensássemos.

            Nunca teve de fazer nenhum relatório sobre o que se passava em Granada?

            Nunca fiz relatório nenhum, nada. Só pensava. Lia muito. Andava pelos sítios.

            Finalmente, veio para Portugal.

            Pois, vim para Tomar. Vim cheio de dinheiro, que tinha poupado das mesadas mensais. Estava em Tomar e vi uma casa com uns escritos e disse à minha mulher: “Vamos morar para aqui.” Ficámos lá seis meses. Depois fui para Sesimbra, e depois é que fui convidado para o Redondo. Apareceu-me lá o Agostinho da Silva, olhou para mim e disse: “Então agora está em Sesimbra, hã? Ó homem, você tem de arranjar um modo de vida…” Fui para o Redondo.

            Por esta altura, já tinha começado a escrever…

            Quando vim para Estremoz, tinha apenas um livro, que era o Arte Poética, escrito aos trinta e seis anos. A Arte Poética passou completamente despercebida… A História Secreta de Portugal só surgiu depois do 25 de Abril, porque se passam fenómenos estranhos durante os períodos revolucionários e há uma maior abertura a outras ideias. A História Secreta foi escrita durante a revolução, sempre ali na mesma mesa do café… [n.d.r.: Café Águias d’Ouro, em Estremoz]

            O que o levou a escrever a História Secreta de Portugal?

            Eu acho que o escritor não programa… Eu não tenho cor politica, nunca foi uma coisa que me interessasse muito. Embora, evidentemente, tenha as minhas posições, as minhas indignações. Também me indigno… Mas nesse meu livro o objectivo era o de ajudar os portugueses a criar um nacionalismo místico, que fosse como um suporte de tudo quanto se passa. E acho que isso está a aparecer.

            Mas escrever sobre o nacionalismo naquela altura não podia ser considerado como uma recuperação dos ideais conservadores do Estado Novo?

            Mas o livro até é a favor do 25 de Abril. O Estado Novo não tem nada a ver com os Dom Afonso Henriques nem com os Jerónimos… Aliás, a própria politica de esquerda foi muito favorável, o livro agradou a toda a gente. O Assis Pacheco, por exemplo, escreveu um bom artigo sobre o livro.

            Acha, então, que há “um desígnio português”?

            Pois, esse é o tema do meu último livro. Eu acho que sim.

            Nesse sentido, o que lhe sugere a ideia do Quinto Império?

            Não serão, de certeza, o império americano nem o russo. É um novo estádio da Humanidade, onde as pessoas serão mais inteligentes, mais livres, mais amigas umas das outras, mais criadoras…

            Não quer definir isso de uma maneira mais concreta?

            É um bocado difícil, mas vamos lá ver. A história de Portugal é como uma roda, com os seus raios. Um raio representa a era dos reis, outro a dos sacerdotes, o outro do clero, e o outro da plebe. O quinto império é o centro da roda, e o quinto tem de começar por cada um de nós. Deixamos de ter uma vida descentrada, temos de passar a dançar à volta de um centro – esse centro é um centro secreto, é onde está Deus. Se cada homem fizer isso, nasce o nacionalismo místico. E isso não tem nada a ver com qualquer ideia de ditadura, é um lugar onde todos nos entenderemos.

            Mas para isso teremos de passar uma fase de decomposição…

            Que é a que existe actualmente. Os Portugueses formam uma entidade, mas temos de andar à luta até ao fim, sobreviver aos conflitos, a coisas horríveis como a Inquisição, mas por fim tudo isto será integrado num centro e transfigurado. Cada português poderá então ser, ele mesmo, o Quinto Império.

            Isso não conduz a uma concepção dos Portugueses como um povo superior? Isso é perigoso…

            Pois, eu acho que devemos pensar assim. Embora a gente saiba que não é assim, devemos pensar dessa maneira, porque de outro modo estamos a pensar que os outros é que são superiores e ficamos debaixo deles.

            É por isso que reage desfavoravelmente à integração de Portugal na União Europeia?

            Não sou eu que reajo. É um dado exacto, no horóscopo que Fernando Pessoa fez de Portugal.

            Sim, mas identificado em 1986 como uma grande ameaça à independência do País. Comunga dessa opinião?

            E quem sou eu para julgar a opinião dos astros? Mas se quer a minha opinião, fora do horóscopo, eu acho que é fatal o que se está a passar – já somos uma província da Europa, somos um país de turismo e pouco mais.

            É um risco para a independência?

            Sim, eu acho que Portugal acaba. Acaba enquanto entidade política, mas mantém-se o nacionalismo místico dentro de cada um – tal como a diáspora judaica, que mantém a pátria dentro de cada judeu. E repare que os judeus nunca deixaram de se sentir superiores, nem nunca perderam as suas tradições.

            Mas ao povo judeu está subjacente uma religião, uma prática, uma tradição, os seus livros místicos…

            O filósofo judeu Maimónides escreveu um livro com o objectivo de dar uma nova unidade ao povo judaico, o Guia dos Perplexos. E cada judeu que vai hoje a Israel leva consigo o Guia dos Perplexos. E o Zohar, evidentemente. E é também esse o papel de um Agostinho da Silva, responsável por uma doutrinação que mantenha os portugueses unidos para sempre…

            E essa previsão de que Portugal finda enquanto entidade política acaba por radicar na tal ideia de Agostinho da Silva, de espalhar os portugueses pelo Mundo…

            Claro, é isso mesmo.

            Qual é a sua relação com as filosofias e as letras judaicas?

            Eu acho que Portugal, quando nasceu, queria ser no mundo o mesmo que o velho Israel não tinha conseguido ser. É por isso que a nossa bandeira era azul e branca. Todos os sábios e reis que conviveram com eles queriam fazer de Portugal o Portugal-Israel. Repare, o Rei Dom Manuel pede ao Papa para que o Arcanjo São Miguel seja reconhecido como o Anjo de Portugal, São Miguel é também o Arcanjo de Israel. Quando se deu a expulsão dos judeus, muitos escreveram que tinham perdido a sua pátria. Isto tem um enorme valor.

            Mas há três dimensões nessa sua interpretação. Pode ter sido uma intenção declarada, pode ter sido coincidência e pode ter sido uma conspiração absoluta. Nesse sentido, toda a sua obra aponta para uma teoria da conspiração que sobrevive em função de alguém que orienta o nosso desígnio numa linha pré-determinada…

            O que há, é uma intenção. Parece-me natural que exista um fio condutor em tudo isto.

            Quer dizer que, desde a batalha de São Mamede, há uma intenção histórica que se transmite de pai para filho, ou é uma entidade que gere tudo isto?

            A minha tese é a seguinte: Portugal é uma organização iniciática. De resto, Fernando Pessoa dizia que existia uma ordem Templária, activa mas completamente encoberta, de quem ninguém sabia nada senão ele. E disse também que ela se havia de revelar proximamente. Mas ninguém sabe o que é essa ordem. Essa ordem é Portugal.

            Isso não será apenas uma criação poética?

            Não é, não. Eu percebo onde é que querem chegar. Querem também ter a certeza disso, não é? Se há uma coisa que eu procuro mostrar nos meus livros, é que Camões, o Manuelino, a língua portuguesa, tudo isto constitui a expressão de uma sabedoria intencional que é a de uma organização iniciática, à qual pertencia o próprio Camões. Tudo isto foi já revelado pelo Sampaio Bruno.

            E qual é que é o seu papel nessa organização iniciática?

            Sou um médium literário. Penso, sonho, imagino e interpreto coisas que coincidem com essa intenção. Eu penso que, com o Manuelino, a organização se calou. Fala-se muito na retirada do Graal para o reino do Preste João. Fala-se também na retirada dos Rosacruzes. Mas quando se deu a destruição da Ordem dos Templários em França, Dom Dinis transformou-a na Ordem de Cristo. E os Rosacruzes, que eram uma reunião de espíritos, estavam em Portugal, e isso está ainda hoje expresso em símbolos. Depois, o Dom Afonso V teve o pressentimento disso e passou a estudar a Cabala. Portugal foi escolhido, não sabemos por que razão – talvez por razões ligadas à geometria sagrada… –, como o país para realizar isso. Só que, a determinada altura, viram que não conseguiam. Ou, por outra, viram que tinham de abandonar o País a si próprio até à completa decomposição, para depois surgir uma coisa nova. Isto porque tem de haver sempre aquilo que os alquimistas chamam a obra ao negro, que existe também nas estações, onde a seguir ao Inverno vem a Primavera. Tem de se descer até ao fundo do abismo…

            Estamos no Inverno?

            Não, nós agora estamos no Outono, que é a época da decomposição.

            Pode então dizer-se que precisamos de morrer para ressuscitar?

            Exactamente. Não há pessimismo neste último livro, há apenas realismo. Há pessoas que já reagiram ao livro dizendo: “Isto é uma desgraça, Portugal vai bater no fundo, o que é que vamos fazer…” Mas isto não acaba hoje nem amanhã, tudo continua. A pressa que temos é sempre o erro de todos os revolucionários.

            Essa frase é politicamente lapidar.

            Pois.

            Quais são os escritores que estiveram atentos a estes fenómenos?

            O maior de todos é o Sampaio Bruno, mas também o Teixeira de Pascoaes, o Agostinho da Silva, o Álvaro Ribeiro, o José Marinho… mas até um Herberto Hélder, uma Fiama Hasse Pais Brandão – que estão um bocadinho mais à margem, mas que são uma inspiração…

            Já falou na roda, que o centro dessa roda é Deus. Quer isso dizer que devemos voltar a nossa vida para Deus?

            Pois, devemos tentar. Sabe, eu acho que não há ateístas. Há os crentes declarados, há os ateus (que o não são) e há os antiteístas (que são os mais teístas, porque andam sempre a bater em Deus). A minha ideia de divino é perfeitamente compatível com a do conceito judaico-cristão.

            E Deus é a grande coincidência ou o grande conspirador?

            Isso são perguntas… não posso responder.

            Mas repare que é possível dizer, a partir das suas palavras, que Deus é o grande conspirador… Partindo do princípio de que há um desígnio.

            Altos são os desígnios do Senhor…

 

(Publicado em Viagem a Granada seguida de Poesia, 2016)

 



[1] N. do O. – No texto das edições anteriores, erradamente: A Filosofia da Cabala, de Warran. Trata-se, na verdade, de La Théodicée de la Kabbale, de Francis Warrain.

[2] N. do O. – Em rigor, Centro de Brasileiro de Estudos Portugueses.

 

VOZ PASSIVA. 140

09-01-2024 15:25

De Miguel Real, publicamos hoje a sua recensão do livro A Glória da Invenção. Uma Aproximação ao Pensamento Iniciático de António Telmo, de Pedro Martins e Risoleta C. Pinto Pedro, recentemente dado à estampa no número 353, de 13 de Dezembro, do jornal portuense As Artes Entre as Letras.  


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António Telmo

Descida aos infernos

Miguel Real

 

De um modo genérico, o topos literário da “descida aos infernos” ou catábase foi vivenciado  por três autores portugueses no século XX não presentes no importante artigo de A. Rosado Fernandes, “Catábase ou a descida aos infernos” (Coimbra, Humanitas, vol. XLV, 1993): António Telmo (1927-2010), que a pensou; José Régio (1901-1969), que, com uma vida regular em Portalegre, apenas a dramatizou em duas peças de teatro, Jacob e o Anjo e Benilde ou a Virgem Mãe, e Luís Pacheco (1925-2008), que a experimentou em vida (cf. António Cândido Franco, O firmamento é negro e não azul. A Vida de Luiz Pacheco, Lisboa, Quetzal, 2023, cp. 12); do ponto de vista coletivo, ou de grupo, Orpheu, revista de 1915 que tinha por projeto extrair a Arte do inferno (a vida normal republicana e positivista), Fernando Pessoa, o próprio, esotérico, que teorizou e poetizou a “descida aos infernos”, e Mário de Sá-Carneiro que a viveu em Paris, suicidando-se.

Vem esta brevíssima introdução a propósito da publicação de A Glória da Invenção. Uma Aproximação ao Pensamento Iniciático de António Telmo (2023, Sintra, Zéfiro Ed.), de Pedro Martins e Risoleta C. Pinto Pedro, ambos fundadores e mentores do “Projeto António Telmo”, consultável na Internet. Uma palavra de louvor para a perseverança, a disciplina e o rigor entusiasmante de Pedro Martins, que, após a morte de Telmo, deitou mão ao seu espólio e tem vindo a publicar na Zéfiro a sua Obra Completa, indo já em dez volumes. Para falar verdade, não fosse a ousadia de Pedro Martins, António Telmo estaria hoje duplamente morto (desculpem a brutalidade da frase): estaria morto o seu corpo e estaria morto o seu espírito vazado nos livros que publicara desde 1963, data do seu primeiro livro, o dificílimo e extraordinariamente heterodoxo Arte Poética. Com o livro ora publicado, Telmo pode repousar em paz, passou doravante a ter um livro sintético do seu pensamento e da sua obra. Certamente que durante muitos anos não será publicada outra interpretação sintética do seu pensamento tão perfeita como esta. Em 2015, Pedro Martins lançara Um António Telmo. Marranismo, Kabbalah e Maçonaria (Zéfiro Ed.), onde se sublinha o primeiro capítulo, “Teoria do Marranismo”, mas, sem dúvida, Glória de Invenção supera-o. O ideal seria o leitor ler os dois livros para poder mergulhar profundamente na obra de A. Telmo.

Com efeito, a catábase ou a descida aos infernos permite a Telmo evidenciar a experiência mais profunda do sagrado, dos seus rituais propiciatórios e dos seus diversos planos: a religião, a magia, o gnosticismo, a cabala e o misticismo.

Telmo recusa a separação dicotómica e até contraditória entre Razão e Poesia que o Ocidente proclama desde o Renascimento, e, usando de uma dialética superior, engloba a poesia na própria razão e, ao modo de Paul Ricoeur (A Metáfora Viva, 1975), valoriza a metáfora como síntese de ambos os planos de conhecimento: “a metáfora garante a mediação entre a experiência iniciática e a sua expressão literária ou filosófica” (p. 32). Num plano superior, pensar é, assim, pensar por metáforas e não segundo uma lógica dedutiva ou indutiva. A esta dupla divisão civilizacional, Telmo acrescenta uma outra, constitutivamente portuguesa: a divisão entre um fundo cultural judaico e a afirmação cristã, o marranismo. Para Telmo, “o Marrano é o ser dividido entre dois credos: o antigo [judaico], de súbito interdito aos ancestros; e o novo [cristão], que lhe foi imposto [por D. Manuel I] de modo abrupto” (p. 31). Neste sentido, um vago judaísmo permanece no subconsciente cultural e religioso dos portugueses, e pensar é quebrar a barreira cristã do consciente e fundi-la com o antigo judaísmo. Este processo é o que Telmo designa por Filosofia (cultural), não a concebendo senão como um processo operacional que provoca efeitos comportamentais no filósofo, uma espécie de metanoia transformadora (“uma transmutação interior”, p. 37) para um caminho ético de perfeição. Este é, como o leitor já adivinha, um processo gnóstico, que, além de exigir rituais específicos (Maçonaria), exige igualmente o antigo conhecimento da Cabala (a Tradição) judaica (cf. Filosofia e Kabbalah, Zéfiro, 2013). Como escrevem os autores, o que Telmo propõe é, de certo modo, “é um comércio estreito e fecundo entre a via da filosofia clássica e a tradição iniciática” (p. 37). É justamente o que Telmo faz, apresentando a história de Portugal em “três ciclos”: ciclo Heroico ou dos Reis, ciclo do Clero e ciclo do Povo (cf. desenvolvimento em Horóscopo de Portugal, Zéfiro, 2017), bem como, aplicando a metáfora, numa análise ao Mosteiro dos Jerónimos, como templo iniciático da viagem do Gama à Índia: Jerónimos, os Lusíadas em pedra; os Lusíadas, os Jerónimos em livro, uma ideia fabulosa de Telmo que já está gravada a letras de ouro na cultura portuguesa.

Ora a “glória da invenção” consiste, justamente, … não, não dizemos, reenviamos o leitor para a pág. 43, lá está tudo esclarecido.

Porém, A Glória da Invenção possui outro supremo atrativo: os 10 sonetos intercalados no texto e escritos por Risoleta Pinto Pedro, que, obedecendo ao espírito da Arte Poética de Telmo, criadora de metáforas, faz a união, melhor, a ponte entre a poesia e a filosofia. A filosofia de Telmo sintetizado em 10 sonetos, cumprindo a tradicional função desta forma poética, eminentemente lírica, inventada no Renascimento para cantar o Amor, o que une, enlaça, o que funde, praticado por Camões, Bocage, Antero, Florbela e tantos outros mais. São composições delicadas, não improvisadas, muito menos espontâneas, cada palavra escolhida com uma pinça, porventura substituída uma e outra vez para criar a adequação ao todo do soneto, diligenciando nos dois primeiros quartetos o leito formal do rio donde correrá a conclusão como rápidos perturbadores e agitadores das águas os dois tercetos finais. Se o texto em prosa revela a grande sabedoria télmica de Pedro Martins, os 10 sonetos de Risoleta espelham a beleza do livro

Em conclusão, António Telmo é aqui apresentado como o grande pensador português do Hermetismo pós-25 de Abril, prosseguindo o caminho iniciado no século XX pelo portuense Sampaio Bruno e pelo lisboeta Fernando Pessoa.

 
 

VOZ PASSIVA. 139

09-01-2024 15:06

Publicamos hoje o artigo com que Risoleta C. Pinto Pedro colaborou no mais recente número de Praça Velha, da Guarda, revista cultural editada pela edilidade local. A sessão de lançamento deste número, já o 45, em que a hermenêutica de António Telmo surge em destaque, teve lugar no Museu da Guarda, no passado dia 23 de Novembro, com a apresentação a cargo do Arcipreste da Guarda e Manteigas, o Reverendíssimo Pároco Doutor Henrique Manuel Rodrigues dos Santos. 

 

A Literatura Galaico-Portuguesa enquanto cifra de um património imaterial oculto*

Risoleta C. Pinto Pedro

 

RESUMO

Pretende-se, com este texto, chamar a atenção para a origem imaterial do nosso património e território, origem de que a primeva poesia nacional conhecida como cantigas d’amigo dá testemunho, através de sinais escritos e sonoros apenas apercebidos por uma subtil hermenêutica alinhada com o mistério, e na senda da tradição iniciática de que o filósofo António Telmo é voz eminente.

Assim, sentimo-nos tentados a afirmar que os cancioneiros onde estão registadas as cifradas notações musicais e poéticas das cantigas galaico-portuguesas, estão, para essas músicas cantadas, como o território está para a nação, esta para a língua, e a língua para o génio nacional, que é poético e é a origem deste desejo de ser, de nascer e de criar.

 

Actualmente já se começa a encarar com a mesma importância do material, o património imaterial, mas… e a história? Quando começa uma nação? Apenas quando adquire um território? Não será assim, pois sabemos da existência de nações sem território, como é o caso dos curdos. No nosso caso, quando começou a nação? Segundo alguns, antes, muito antes do território, o qual teria sido apenas a materialização de um desejo colectivo revelado pelo surgimento de uma língua, que já existia enquanto potência ainda antes dos sons. Segundo Platão, as ideias precedem as coisas. Numa certa concepção da Língua que se situa nesta ordem de ideias, alguns autores e pensadores da língua portuguesa ligados a uma filosofia nacional e a uma teoria da língua não alinhada com as concepções materialistas, defendem que antes do povo e do território já existia a língua, de modo que não podemos afirmar que seja o latim a origem da nossa, mas que terá sido uma ferramenta para a língua portuguesa se ir materializando em som e imagem e assim evoluindo, uma espécie de enraizamento indispensável à existência nesta dimensão. Assim, estando para além do tempo e do espaço, difícil não lhe é voar sobre tempo e espaço e corporizar-se em odores, ritmos e melodias sem deixar de ser a Língua, dado que a essência não é corruptível, pois não está acessível à corrupção. Como tal, sinto-me à vontade para falar de poesia e de música, inserindo-as numa temática sobre história e património, uma vez que a nossa poesia começou como música, e que António Telmo, ilustre conterrâneo desta nobre revista, pois natural de Almeida e uma das figuras de eleição da região, foi um importante estudioso, hermeneuta e investigador das origens simbólicas da nossa literatura primeva, os cancioneiros galaico-portugueses.

Assim, tratarei da literatura galaico-portuguesa enquanto cifra do carácter iniciático de uma nação, ou da «ondulação das letras da doçura». O que passarei a explicar.

Uma hermenêutica não condicionada é indispensável para compreender o modo como nasceu a literatura portuguesa. Se algumas explicações têm sido, do ponto de vista académico, relativamente consensuais, como o facto de esta poesia, normalmente designada como poesia galaico-portuguesa, ter como base, ora cânticos religiosos, ora de trabalho, algumas das suas características passam completamente ao lado quer de uma, quer de outra explicação. Não significa que tenhamos de as pôr de lado, mas a sua abrangência não é total. Alguns hermeneutas têm-se debruçado sobre elas, trazendo à luz, não a explicação, mas o mistério. O que é o princípio da clareza, para cuja compreensão é sempre necessário partir da obscuridade. Isto significa que esta poesia vela mais do que revela. Toda a poesia (e a criação em geral, sendo-o verdadeiramente, pela sua natureza equívoca, geradora de significados múltiplos), é terreno propício à ocultação, a única que permite o verdadeiro ver, mais no sentido de descortinar. Ver, não como exercício de captação de imagem exterior e nítida, mas da imaginação do que se encontra escondido. É desse destreinado, desprezado e oculto “sentido” que necessitamos, para conseguirmos ler, como hermeneutas, o importante património que é a nossa literatura tradicional. Como veremos.

A poesia trovadoresca medieval, apresentando uma vertente satírica, outra amorosa, ora se aproxima, ora se afasta da arte poética provençal. É autóctone a que se apresenta mais musical, a mais rítmica, a mais repetitiva ou paralelística, como se costuma designar. De todas, são as cantigas d’amigo, as que são postas na boca de uma mulher, que mais se articulam com esta categoria, mas também entre as de amor (assim são designadas as do amor masculino) podemos encontrar as de influência autóctone, ou opostamente, as de estrutura mais reflexiva e quase argumentativa, próximas da arte provençal. O mesmo se passa com as satíricas. Mas é nas de amigo que queremos demorar-nos, por serem, apesar de aparentemente mais populares e simples, as mais misteriosas, as que vão requisitar, para a sua hermenêutica, o exercício do tal “sentido” de que falávamos atrás.

Pela musicalidade aproximam-nos do jogo e do prazer, mas se a sua génese se encontra na música, pois na realidade foram compostas para serem tocadas, cantadas e dançadas, e isso pode ser comprovado pelas partituras encontradas nos pergaminhos Vindel e Sharrer, preciosos registos patrimoniais cujas ilustrações acompanham este trabalho, outra dimensão nos arrasta para um nível que exige de nós pensamento profundo, interrogação e espanto. Essa dimensão é a da irregularidade, a do paradoxo e a da metáfora, quando esta nos surpreende mais do que esperaríamos. Os hermeneutas do mistério, sendo algumas destas vozes da filosofia portuguesa, alertam-nos para a importância destes sinais de irregularidade, como um dedo que aponta. Porque existe um ocultar, um cifrar, tem de existir um re-velar, isto é, um duplo ocultar que seja um factor de perplexidade e atenção.

Camões viria a chamar essa mesma atenção para o exercício do amor como uma transformação, e estas cantigas que outra coisa não são, senão de amor, veremos de que tipo, são o transporte do leitor de uma dimensão para outra, de uma leitura literal para a hermenêutica de um objecto artístico, e novamente o afirmo, cifrado. Arte oculta tendo como chave a metáfora. Chave que não abre, mas cria no leitor o desejo de entrar. Este desejo não pode ser satisfeito, mas a luz da chave aponta uma janela, um cortinado, uma luz velada, um vulto, uma névoa, um movimento, um som, uma música, um labirinto.

Talvez por isso tenha sido este o título escolhido por Fiama Hasse Pais Brandão para o seu livro O Labirinto Camoniano e outros Labirintos, onde recolhe artigos vários em que vai transmitindo a sua pesquisa sobre Camões, embora tenha estudado, na mesma perspectiva, outros autores, como Rodrigues Lobo e António Ferreira, bem como os romances pastoris, apoiando-se na sua própria investigação, mas também na de «homens verdadeiramente curiosos e investigadores, sobretudo do século passado [XIX]» (1), e que ainda assim não conseguiram «endireitar de vez as extraordinárias distorções ou omissões que se repetem ainda hoje» (1), sendo uma das maiores ameaças ao património, a qualquer património, a repetição banalizada de visões distorcidas, ainda que oficializadas, que espalham e querem fazer passar por verdade, o que o não é ou será apenas uma parte muito superficial. É esta visão do labirinto que Fiama apresenta sobre a obra de Camões, o que António Telmo igualmente faz, recuando também até às cantigas de amigo. Uma poeta e um filósofo, a união quase perfeita. No entanto, ainda que idóneos e esforçados, não foram ainda suficientes, porque os dicionários e outras importantes publicações e vozes do sistema se lhes têm fechado. E, como se não bastasse, por vezes vilipendiado. Muito pouco universal se tem mostrado a Universidade. Nem todos têm a coragem de percorrer o labirinto das interrogações, mais fácil lhes é seguir o trilho do engano com roupagens sistémicas e falsamente académicas de certeza.

Acompanhemos, então, um pouco da investigação sobre o segredo e a cifra nas cantigas de amigo, elaborada por António Telmo e presente em mais do que uma das suas obras.

Como muito bem explica, tudo se prende com uma doutrina secreta «que vem de longe (pelo menos desde a fundação da nacionalidade), cujo momento fundamental e decisivo se deve situar na queda dos Templários» (2), que continuaram a existir a coberto da Ordem de Cristo, em Portugal, onde estaria a verdadeira e oculta sede. Esta realidade, impossível pela sua natureza, de ser encontrada em documentos, só em palavras cobertas como é a linguagem do manuelino ou a poesia dos trovadores, poderia ser desvelada. Como na de outros poetas, tais como Rodrigues Lobo e Camões, considerado este o último fiel do amor, essa requintada e oculta ordem de cavalaria.

Se falámos há pouco da dificuldade em encontrar sinais de confirmação em documentos, uma excepção existe. Trata-se, paradoxalmente, das declarações aos inquisidores, nomeadamente de um Frei João da Ordem de S. Bento, que segundo António Telmo, terá fornecido informações sobre aspectos e objectos do rito e das vestes dos neófitos e dos iniciados. Os mesmos que vão ser encontrados repetidamente nas cantigas de amigo, com os temas da camisa e da corda:

«Fez-me tirar a corda da camisa»

«E vai lavar camisas/Eno alto»

«Quando eu vi esta cinta que ele me deixou/ Chorando com gran coita, e me lembrou/ a corda da camisa»

Considera o hermeneuta, com toda a justeza, que a repetição quase obsessiva de temas não se prende com falta de imaginação, mas com o apontar para determinadas cifras, assim lhes descortinando um sentido. É o caso da impressionante semelhança, quase a rondar o plágio, entre a cantiga de D. Dinis “Levantou-se a velida” e a de Pero Meogo “Levantou-se a louçana”.

Isso voltará a acontecer no Renascimento, e não é difícil encontrar o mesmo tipo de semelhança entre poemas de Camões e de Petrarca, como tive oportunidade, há anos, de comparar. A tese da primitividade do momento literário ou da falta de imaginação criadora atribuída ao momento trovadoresco de que falávamos, ainda mais difícil seria de aceitar aqui.

Tenhamos em mente o poema de D. Dinis “Ai flores, ai flores do verde pino”, sobre o qual António Telmo afirma que «o refrão é para ser ouvido cantado pelo coro de anjos no grande silêncio do mundo». 

Recordemos o refrão «Ai Deus, e u é?» e assinalemos esta marca acima distinguida, do cantar. Por isso são cantigas.  A arte de trovar medieval em seus versos desvendando «até ao íntimo dos íntimos».

O texto que acompanha o Cancioneiro da Biblioteca Nacional (3) é uma Arte de Trovar e nele se fala em coplas ou cobras, que são as estrofes. Copla é a abreviatura de cópula, e entre os vários significados, apresenta o seguinte:

«Tudo o que serve para ligar, cadeia, corrente, encadeamento, sucessão de palavras.»

Isto leva-nos a recordar as citações, acima contidas, sobre a corda.

Mas a corda também é capaz do movimento serpentino da cobra, a qual, por sua vez, se encontra ligada à ideia de encadeamento, sucessão de palavras.

Este encadeamento podemos encontrá-lo não só nos vários significados, mas dentro do mesmo poema; também de poema para poema e de poeta para poeta. Uma espécie de Ouroboros. Basta pensarmos no poema de D. Dinis e no do galego Aira Nunes de Santiago “Bailemos”.

António Telmo chama a atenção para a importância do «equívoco», na Arte de Trovar, entre «cobra [colúbra], o animal ondulante» e «cobra [copúla], forma versejada».

Este equívoco, a que António Telmo, enquanto personagem Thomé num magnífico diálogo entre Thomé e Nathan (4) chama «confusão» derivada das cantigas de amigo paralelísticas, é mais do que uma questão de linguística, trata-se de uma questão filológica, a única que poderá aproximar-nos «do verdadeiro motivo por que o processo de desenvolvimento verbal de uma forma poética foi associado ao movimento próprio das serpentes» (4).

Essas que silvam, assim acompanhando, acrescento eu, do seu silvado som, a dança sinuosa e sibilina do movimento paralelístico das palavras, dos versos, da música e dos corpos na dança.

O filósofo vai discorrer sobre isto em termos profundos e complexos que aqui não cabem, e por isso remeto para a leitura dos “Diálogos de Thomé e Nathan”, na página 83 das “Congeminações de um Neopitagórico” (4).

Neste diálogo ele cita, a propósito do tema, o belga Charles-André Gilis:

«A fluidez relativa dos sons e das letras é fundamental na pronunciação das fórmulas sagradas. Não acontece seguramente por acaso que as três letras Alif, Wâw e Yâ, que são entre todas as mais fluidas, revistam no esoterismo islâmico uma função axial, […] as letras da doçura e da misericórdia. Observa-se também que a qualidade sensível ao éter é o som e que, segundo Kanade, o som é propagado por ondulações, vaga após vaga, ou onda após onda».

Letra após letra, verso após verso.

Fazendo o paralelismo destas «letras de doçura e de misericórdia» com o refrão do nosso cantar «Ai Deus y u é?», pretende assim, para além da sugestão da «forma ondulada» destas cantigas como o «deslizar da cobra que é como o do som, propagando-se pelo éter vaga após vaga, onda após onda», ir mais além e mostrar, nos diálogos, que a própria «terminação em é das fórmulas de invocação divina é uma constante nos ritos dos homens antigos. Lembra-te de Evoé. O próprio nome de Deus termina, na língua dos meus pais [Nathan é judeu], pela mesma vogal I H V H (y é u é). Podes ver que o y u é de D. Dinis lembra estranhamente o santo nome de Deus ao qual faltasse uma letra, precisamente o primeiro é. Não corresponderá esse vazio à saudade do Amigo, por que o coro brada?».

Genial. Se non è vero è ben trovato.

Afirma o mesmo Nathan, o judeu, a Thomé, o cristão, ambos facetas ou polaridades da alma de António Telmo, que pretende este estar «ensaiando um caminho sinuoso que nos leve a ver em D. Dinis e, através dele, na poesia dos trovadores medievais a expressão dissimulada de qualquer coisa como a gnose dos primeiros cristãos dissidentes de Roma, entre os quais os cátaros ou os albigenses». Caminho em que não é seguido por Nathan, porque «olhando em volta, podemos dizer que, hoje, assistimos ao triunfo do que havia de pior na doutrina e na prática das primeiras seitas gnósticas».

Ao que responde Thomé, reabilitando a serpente, com o auxílio de Dalila Pereira da Costa, que vê nela o «animal imortal, sábio e oracular». Também a ideia de regeneração, pela renovação periódica da pele, está associada à serpente. Fernando Pessoa associa-a à «Grande Obra». Finalmente, com Eva, a indicação do «caminho da liberdade e da sabedoria pelo conhecimento do bem e do mal».

Prolonga-se, mas não se detém Nathan na sinuosidade destas incursões, regressando ao dedilhar das «dezasseis cordas do canto de D. Dinis que porei a vibrar nos teus ouvidos com as cordas do alaúde. Como compreenderás, falando em cordas, não me afasto muito da tua teoria que vê cobras nas coplas».

Nestes termos, continua analisando, símbolo a símbolo, o cantar do rei, enquanto cifra de uma ordem iniciática, relação de que, embora não seja central para o nosso tema, recomendo a leitura, até pela sua aproximação metafísica bem estruturada e bem documentada, a Dante e a Camões.

De toda a sua exemplificação, retiro que «o bailado é um rito», e a propósito disto não podemos esquecer as bailias. Por outro lado, neste rito «só era qualificado quem amasse amigo», que nesta sinuosa cadeia de associações seria o «daimon», o «amigo da sua alma», no sentido que lhe era atribuído pelos antigos. Assim, há que ler este amigo das cantigas medievais, de um modo mais metafórico e menos literal que aquele comummente tomado, ou pelo menos há que o ler de modo não exclusivamente literal, e a própria forma, silvada, paralelística, ondulada, encadeada e dançada, participa da cifra que aponta para muito mais além, mais alto e mais profundo. Que não nos contentemos com a pequenez mental.

Por outro lado, é como se esta poesia, pela sua própria estrutura simbólica ondulante, contivesse em si a música, sendo a notação musical uma redundância, dada a sua natureza. O território que regista aquilo cuja existência vai muito mais além.

Espero ter, pelo menos indiciado, com a ajuda de quem mais sabe, que não apenas a nossa literatura nasce com a música, o ritmo e o movimento, mas contém em si tudo isso, pela sua origem sagrada e ritual.

Termino manifestando o desejo de ter desassossegado o leitor, não com certezas, mas com dúvidas que o levem à sua própria investigação e aprofundamento deste tema apaixonante que é a génese, natureza e desígnio da poesia trovadoresca peninsular ou ibérica.

 

Risoleta C. Pinto Pedro

risoletacpintopedro@gmail.com

(Texto redigido segundo a ortografia anterior ao Acordo.)

 

BIBLIOGRAFIA

(1) Hasse Pais Brandão, Fiama. O labirinto camoniano e outros labirintos : temas de literatura e de história portuguesas .  2ª ed.  Lisboa. Teorema. 2007.

(2) Telmo, António. O horóscopo de Portugal e escritos afins. Pref. Eduardo Aroso; org. e notas Pedro Martins; transcrição Diana Vaz Ribeiro, Pedro Martins; fot. Filipe Nobre Gomes, Maria do Céu Costa. - 1ª ed. – Sintra, Zéfiro, 2017. (Volume VII das Obras completas de António Telmo).

(3) [Cancioneiro da Biblioteca Nacional]. [1525-1526]. Cota do exemplar digitalizado: COD-10991.

(4) Telmo, António. “Diálogos de Thomé e Nathan”, “Congeminações de um Neopitagórico”, in A Aventura Maçónica. Pref. de Risoleta C. Pinto Pedro. Org. e notas de Pedro Martins. Sintra, Zéfiro, 2018. (Volume IX das Obras Completas de António Telmo).

 

*Artigo publicado na revista Praça Velha, n.º 45, Câmara Municipal da Guarda, 2023.

DISPERSOS. 21

20-11-2023 11:10

Publicamos hoje um disperso télmico que se encontrava esquecido e omisso da sua bibliografia. Foi expressamente escrito por António Telmo para o catálogo da exposição Souvenir, do seu amigo, o escultor açoriano Carlos Dutra, que esteve patente, de 14 de Julho a 12 de Setembro de 2008, na Biblioteca Pública e Arquivo Regional João José da Graça, na cidade da Horta, de onde Dutra é natural.  

 

 

Carlos Dutra é nome de escultor[1]

 

Carlos Dutra é nome de escultor. O ritmo sonoro de Dutra e de Pedra é o mesmo. Os dois nomes, o do escultor e o da pedra, diferem em especial pelo U de um e pelo E do outro. A vogal U aparece em palavras nocturnas, enquanto que a vogal E vemo-la brilhar em Primavera, em amarelo, em estrela. Carlos indica contenção pelo C, suavidade e movimento pela combinação do R com o L, infinitude pelo S. Carlos Dutra recebeu estes dois nomes em 1959 na ilha do Faial, quando as almas ainda não tinham recuperado do medo causado pelo vulcão dos Capelinhos.

Os Açores são formados por nove grandes pedras envoltas em terra e minério que emergiram à superfície das águas para receberem a luz do Sol e se encherem de vida. A escultura de Carlos Dutra prolonga o mesmo movimento. Vem dele como a onda do mar. Está programada nos seus dois nomes. A pedra arrancada à intimidade da obscura terra brilha agora ao Sol em múltiplas formas, as formas que a bela imaginação do escultor criou para o mundo dos homens.

Esta exposição tem por divisa a palavra souvenirSouvenir é o que vem de baixo, da profundidade da alma à consciência. O traço entre o sous e o venir distingue os dois planos.
Tudo assim se conjuga e harmoniza e é por isso, com estes ritmos na alma, que devemos olhar as múltiplas expressões da pedra que Dutra nos oferece neste lugar. 

 

António Telmo 



[1] Nota do editor – O título é da nossa responsabilidade.

 

EDITORIAL. 31

20-11-2023 10:21

Com 2027 no horizonte

 

O Projecto António Telmo. Vida e Obra completa hoje dez anos de existência.

Nestes dez anos, contribuímos decisivamente para a concretização do projecto das Obras Completas de António Telmo, em curso de publicação na Zéfiro, ao qual temos dado todo o apoio institucional e científico. Após a edição dos dez volumes já disponíveis, compreendendo já, entre éditos e inéditos, grande parte da obra do nosso patrono, será de crer que até 2027, ano do centenário de António Telmo, essa publicação esteja completa.

Por outro lado, com a criação da Colecção Thomé Nathanael – Estudos Sobre António Telmo, igualmente editada pela Zéfiro, e na qual foram já publicados três títulos, temos propiciado o estudo da vida, da obra e do pensamento do filósofo da razão poética.

De resto, o mais recente título desta colecção, A Glória da Invenção – Uma aproximação ao pensamento iniciático de António Telmo, de Pedro Martins e Risleta C. Pinto Pedro, conheceu no passado sábado o seu quarto lançamento, que teve lugar no Museu Berardo Estremoz, numa sessão promovida pelo Projecto em parceria com a edilidade estremocense e que contemplou ainda uma mesa-redonda sobre a presença marcante e duradoura que foi a de António Telmo na cidade de Estremoz, congregando os seus amigos nesta cidade, à semelhança do que em 7 de Outubro último já acontecera no Convento dos Remédios, em Évora. Seguir-se-á, seguramente, uma ida ao Redondo, no primeiro trimestre de 2024. O Projecto está de novo na estrada.

A pouco mais de três anos do centenário de António Telmo, novos e aliciantes projectos se perspectivam. Procuraremos dar-lhes corpo, com o total apoio e o estímulo inexcedível que sempre temos recebido da família do filósofo, a quem saudamos e expressamos a nossa gratidão, na pessoa de Maria Antónia Vitorino.  

 

ERRATA. 01

16-11-2023 15:14

Recebemos de Carlos de Almeida Roque um pedido de correcção da nota biográfica de seu pai, Ernâni Roque, com que, em Correspondência. 35, de 20 de Janeiro de 2017, havíamos introduzido o leitor à publicação da sua correspondência para António Telmo, de quem foi amigo muito próximo.

Cabe-nos publicamente agradecer a Carlos de Almeida Roque a chamada de atenção para as incorrecções que ali existiam e apresentar-lhe as nossas desculpas pelo sucedido.

O texto, na sua versão corrigido, já se encontra publicado e pode ser lido AQUI.

 

VOZ PASSIVA. 138

06-11-2023 16:51

Guerra Junqueiro na visão de Pinharanda Gomes, José Marinho e António Telmo

Eduardo Aroso

 

Tua carne de fluidos e metais

É a carne-embrião do mundo todo,

Das águas e das rochas e do lodo,

Que foram nossas mães e nossos pais!

Por isso lanças para nós teu grito,

Por isso voam para nós teus ais!

 

Oração à Luz

 

No ano em que se comemora o centenário de Guerra Junqueiro (1850-1923) e o mainstream nacional pouco ou nada se importa com isso, só um punhado de portugueses ainda o sente como um (a par de Pascoaes), dos últimos poetas da natureza, se apenas nos quisermos situar neste seu timbre. Das suas facetas pouco conhecidas, do que hoje se chama científico, mesmo de insólito e de outro género, deixo para aqueles que bem se adentram nesses campos, tal é o caso do Prof. Joaquim Fernandes. Por isso louvemos, na admiração ao poeta, também os que se esforçam por recordar aquele que, de Freixo de Espada à Cinta, tinha sempre a sua pena em riste quando exprimia o seu republicanismo de veia portuguesa, ou a pena como puro arado, ou círio ardente, quando escrevia, por exemplo, Oração ao Pão e Oração à Luz. Odes onde a narrativa nunca deixa cair ou esmorecer a exaltação da poesia, versos em que as forças naturais parecem conjugar-se para que o poeta as desoculte e as cante. Junqueiro assim no-las mostra, em carne viva, na dureza da rocha que é sentida como anjo que um dia há-de ser, mas ainda petrificado, ou na seiva de uma planta que não é tão distante do sangue da águia que cruza os céus. O poema só não é pagão no melhor sentido do termo (dir-se-ia aquele incarnado por Pessoa), porque é repassado da nossa tradição hebraico-cristã. Poema onde qualquer inerte ou não inerte pode ser altar, na aparente rudeza do chão e o gorjeio de uma ave lançada como hossana, tudo repassado cosmologicamente pela mão do Criador.   

Quando se diz de Junqueiro, a par de Pascoaes, ser dos últimos poetas da natureza, trata-se da natureza que é invocada e responde, ao invés dos poetas que, muito embora o sejam de boa estirpe, a evocam ou simplesmente a fotografam, num acto compulsivo característico de uma época de turistas sempre de máquina na mão, pelo que, nessa ânsia, não se demoram o tempo mínimo para sequer nela se concentrarem e senti-la.

No texto introdutório de Oração ao Pão, Oração à Luz (magnífica edição gráfica da Lello Editores, 1997), Pinharanda Gomes (1939-2019), numa apreciação global do poeta, fala-nos do seu proverbial anticlericalismo (ou talvez não) perante «intelectuais católicos que se limitaram a assumir o pré-conceito face a Junqueiro e se lhe encomiam a obra poética, lhe limitaram o mérito por causa das arremetidas do seu espiritualismo combativo». Considerando a sociedade daquele tempo, parece ter sido necessário tanta arremetida, pois acrescenta ainda Pinharanda: «Viveram-se dias difíceis, em que os cristãos, e de modo especial o clero, se orientaram não tanto para os desafios sacrificiais da Escritura, mas para as promessas e estratégias do Ministério do Reino e do Ministério da Justiça e dos Negócios Eclesiásticos». Na verdade, o gume que há na pena junqueirina é tão-só o ímpeto «para acordar a santidade adormecida dos crentes e dos seus pastores». No que diz respeito sobretudo em Oração ao Pão, Oração à Luz, «Junqueiro é um criador de oração e, diremos, um promotor da poesia para a oração, para uma poesia assumida de modo querigmático e de alcance soteriológico». E se mais nos adiantássemos logo veríamos que, por exemplo, em Os Simples, para além da moldura rústica que os preenche, repassa-os dir-se-ia um cristianismo franciscano, de vidas singelas, naquele jeito comovedor com que Eça de Queiroz finaliza o seu genial conto O Suave Milagre, quando a criança inocente, doente, «erguendo as suas pobres mãozinhas que tremiam e embrulhada em negros trapos» pede à mãe, desgrenhada, para ver Jesus e este, «abrindo devagar a porta e sorrindo» diz: «aqui estou».

José Marinho (1904-1975) também não ficou indiferente a Junqueiro. Num dos seus escritos sobre o poeta, diz-nos que: «o íntimo pensamento de Junqueiro exprime-se num contraste que, de diversos modos, caracteriza outros homens representativos do seu, do nosso e de outro tempo». Esta simples afirmação faz-nos ver de imediato o contraste que há, por exemplo, em A Velhice do Padre Eterno e Oração ao Pão, Oração à Luz. Para Marinho, na compreensão dos poemas de Junqueiro há que atentar «onde existe a presença intencional do poeta e naqueles onde essa presença intencional não existe». Desocultando a sua poesia, continua: «é muito difícil escrever hoje sobre Guerra Junqueiro como sobre os homens verdadeiramente grandes do nosso país. O grande torna-se pequeno na falsa perspectiva do juízo dos medíocres. E onde a mediocridade se faz juízo e crítica não há perdão para a grandeza. Tem esta de ser medida por baixo estalão. (…) Nós devemos agradecer a Junqueiro ter levado ao limite a sátira contra o catolicismo e contra as formas degradadas da vida religiosa» e até como ele «desmentiu os seus veementes sarcasmos da juventude. Devemos agradecer-lho porque os livros sagrados frisam bastante explicitamente a necessidade de o catolicismo entrar de vez em quando em purgação. (…) Sem dúvida, a mais profunda tradição de Junqueiro vai passar para Teixeira de Pascoaes». José Marinho lançou esta sentença de vera tradição, a que corre nas veias da filosofia portuguesa, neste caso tradição poética. Afirmação de tal ordem certeira que figuras destacadas do pensamento português da segunda metade do século XX se ocuparam profundamente da linha poética aurífera do poeta do Marão.

 António Telmo (1927-2010), voltou mais a sua atenção para Régio, Pascoaes e Pessoa, não esquecendo um Eugénio de Castro ou até um Carlos Queirós. Mesmo assim, na obra Viagem a Granada, o filósofo de Razão Poética como que irmana Sampaio Bruno e Junqueiro como pedras-angulares do século XX. Ouçamo-lo: «Sampaio Bruno e Guerra Junqueiro representam, de facto, o binómio que, por irradiação, virá formar, no século XX, o hexagrama central do pensamento português, no diálogo sucessivamente renovado com a poesia. Leonardo Coimbra e Teixeira de Pascoaes, José Marinho e Fernando Pessoa, Álvaro Ribeiro e José Régio não teriam podido ser o que foram sem o fulgor nascido do encontro daqueles dois». Acrescenta que neles (em Bruno e Junqueiro), «está a força propulsora, pela fascinação da Ideia, do criacionismo, do saudosismo e do futurismo que marcaram a doutrinação dos que se lhe seguiram, por vários modos trazendo ao domínio do pensamento a religião da Pátria».

Em História Secreta de Portugal (a ler e reler), capítulo VIII, António Telmo, tratando da ocultação da natureza como «um dos fenómenos mais significativos do fim de um ciclo» fala-nos do moderno «sentimento fotográfico da paisagem» incarnado por Alberto Caeiro que «parece ter pretendido, entre outras coisas, resgatar a natureza de um romantismo que a personifica e macula de alma e sentimento». Diz Telmo que em Caeiro «a revelação é imediata sem passagem pelo negativo».  E adverte para «o fascínio da imagem que imobiliza o espírito». A invocação da natureza, com todos os medos e outros obstáculos em Pascoaes «chama e atrai a coisa invocada, mas ao mesmo tempo põe um certo espaço entre ela e quem a invoca, como se as próprias palavras invocatórias, projectando-se, criassem também o lugar da aparição. O poeta está dentro do círculo». (…) Teixeira de Pascoaes é um dos poetas do limiar do tempo, quando o terceiro ciclo da nossa história está prestes a fechar-se. (…) Outros, tão videntes como ele (Guerra Junqueiro, Pessoa, Bruno, Leonardo, Régio), viram a mesma estrela».  

Se Telmo se debruçou essencialmente na obra de Pascoaes, no legado de Junqueiro apontado por Marinho, o filósofo de Estremoz parece ter lançado luz sobre dois poetas da natureza de linhas diferentes, Pascoaes e Caeiro, ao mesmo tempo que nos mostra por uma subtil hermenêutica que a tradição que Pascoaes ainda incarna, parece ter ficado em suspenso. Suspensão, intervalo ou interregno como o Portugal por cumprir? Poderíamos apontar outros dois ou três grandes poetas do século XX, próximos também da natureza, que a entrelaçaram e exorbitaram, com imagens de elevada poesia e ritmos pessoais, mas sem aquela ventura e força de alma ungida por um fatum escatológico, que tomam conta do poeta para o que mais importa do transcendente.

 

Outubro de 2023

CORRESPONDÊNCIA. 65

14-10-2023 18:17

Carta de Max Hölzer para António Telmo de 7 de Setembro de 1977 

 

Mon cher António Telmo − [i]

 

Ce temps, après mon retour, a continué d’être identique à tous ces processus dans lesquels vous m’avez bien trouvé engagé – mais ça ne va pas, visiblement, sans certaines difficultés qui consistent, entre autres plus grâves, aussi en « rechutes » de la santé – ainsi que votre lettre m’est parvenue à un moment où je ne pouvais pas vous répondre immédiatement. Je vous en remercie de tout cœur. Et pourquoi ne pas avouer qu’elle était – plutôt est une joie pour moi (et en ce moment, même une certaine  « consolation » éssayait de se répandre en moi…), et surtout que cette compréhension vient de vous. Pardonnez-moi, donc, que je ne vous réponds qu’aujourd’hui, et que ces lignes ne vous joignent qu’après votre retour à Borba. Je dois tracer une ligne nette, moi, entre l’enseignement que je veux transmettre, et un tel « écrit », même « articulé en onze points » : là où nous sommes en générale dans notre travail, tout mélange avec les expressions d’autres courants devait être évité, parce que la connection [sic} ne peut se faire authentiquement à partir de la « source » commune, c’est-à-dire, à partir d’une certaine «réalisation » − qui voit par expérience le sens du courant transmis par G. Si vous trouvez une certaine connexion, si vous, comme vous me dites, avez pu en profiter, j’en suis très content, et tout-à-fait d’accord, mais je ne peux pas attendre le même des autres. Moi, j’en pense, pour moi, comme vous. (Bien entendu, il y a des points dans cet « écrit » qui reflètent très superficiellement et sommairement l’enseignement, qui donnent des « mots » et des concepts seulement, et dans un raccourci indéfensable… : mais c’est un texte « mélangé », pour des lecteurs « mélangés » aussi. Reste un malaise )

Je suis sûr que vous me comprendrez, et je ne veux pas ternir votre « joie » qui se doit à tout ce merveilleux que j’ai cité, que j’essayais d’évoquer – et qui est destiné à vous.

7.9.77



[i] A data vem no final da carta.

 

DOCUMENTA. 10

14-10-2023 17:11

A 21 de Março de 2009 era lançado, com a chancela da editora Serra d´Ossa, na Biblioteca Municipal de Sesimbra, Universalidades, o primeiro número dos Cadernos de Filosofia Extravagante, revista de que António Telmo foi mentor e da qual viriam ainda a sair mais cinco números, dois dos quais com a chancela da editora Zéfiro.

Graças a João Augusto Aldeia, membro do nosso Projecto, é hoje possível publicar, da sua autoria, algumas fotos, que cremos estarem inéditas, desse lançamento e dos momentos que o antecederam.

Paulo Santos, Pedro Martins e António Telmo na Rua Jorge Nunes, em Sesimbra 

António Telmo e António Reis Marques junto à entrada da Biblioteca Municipal de Sesimbra

António Telmo, António Reis Marques e Maria José Albuquerque junto à entrada da Biblioteca Municipal de Sesimbra

António Telmo, Anahi Braia Vitorino e Maria do Resgate Almadanim na Sala Polivalente da Biblioteca Municipal de Sesimbra 

 

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