Blogue

VOZ PASSIVA. 27

13-08-2014 18:10

Na edição n.º 452 do jornal Raio de Luz, mensário de opinião e informação do concelho de Sesimbra, que saiu hoje, Pedro Martins, na sua habitual coluna, evoca António Telmo, agora que se aproxima o quarto aniversário da partida do filósofo.

Do lado esquerdo*

Pedro Martins

 

– Não recuse o socialismo que há em si. Procure antes o que ele tem de superior… 

Foi assim, quase à queima-roupa, no Rossio de Estremoz, defronte do Café Águias d’Ouro onde escrevera a História Secreta de Portugal e tantas outras laudas da sua obra genial, que António Telmo, surpreendente, me exortou a tentar via, como diria o preclaro Bruno, José Pereira de Sampaio de seu nome, graça a que os leitores amigos se vão já acostumando. Deste último, no parecer de Pessoa o único homem que no seu tempo, em Portugal, mostrava compreender, e portuense ilustre que, na visão mítica de um Augusto de Castro, ao balcão da sua padaria na Rua do Bonjardim, aos Aliados, recebia, humílimo, a insigne, insólita visita de um Dom Miguel de Unamuno (foi, na verdade, esperar o basco à estação ferroviária, para depois com ele conversar no recato do lar), até António Telmo Carvalho Vitorino, o Tó, filho do doutor do Registo que muitos, entre os mais velhos, ainda recordam em Sesimbra, corre uma fieira de nós na corda luminosa das gerações que, da informal Escola Portuense ao movimento da Filosofia Portuguesa, com estação central na gesta da Renascença Portuguesa, procuraram, a cada instante, pensar audazmente os problemas humanos e os segredos da Natureza, os pés firmes como raízes no chão dilecto da Pátria, olhos fitos no mistério do firmamento, onde estrelas lucilam as letras que há no imenso tinteiro de Deus.  

Quando, pelos meus vinte anos, descobri Teixeira de Pascoaes e a sua Arte de Ser Português, logo me maravilhou que ideias como a de Deus, a de Pátria e a de Família, a despeito da concisa homonímia, pudessem ali ser tratadas bem nos antípodas do salazarismo. No breviário pascoalino haveria por certo, interposta, a insuspeição da palavra grandiloquente: Humanidade; mas o jeito arejado com que o vate de Amarante se antecipara a revirar os termos triádicos que o tiraninho de Santa Comba, lustros mais tarde, tornará impraticável por décadas, despiu-me de preconceitos pelo avesso.

Apesar de Sampaio Bruno haver encabeçado a frustrada revolta republicana de 31 de Janeiro de 1891; e de, no seu livro maior, A Ideia de Deus, protestar mais não ser do que um sectário jacobino (no que aliás, com proverbial modéstia, falta sem mácula à verdade da sua grandeza); apesar de Teixeira de Pascoaes, o heterodoxo impenitente, expressar publicamente, alto e bom som, em 1949 o seu apoio ao candidato oposicionista Norton de Matos; apesar de Leonardo Coimbra, que viera do anarquismo, haver afrontado, enquanto Ministro da Instrução Pública da I República, a anquilosada e retrógrada alma mater conimbricensis de então, ao estabelecer, no Porto, a Faculdade de Letras que, em uma só geração, dará à terra mais antifilosófica do planeta (assim Leonardo se referia a Portugal) a plêiade gloriosa onde pontificam pensadores de escol como Álvaro Ribeiro, José Marinho, Agostinho da Silva e Delfim Santos; apesar de Marinho, por mor de acrisolada oposição ao Estado Novo, se ter visto impedido de aceder ao magistério e, anos a fio, sobreviver, aos baldões, de explicações angariadas pelo prestígio do génio com que iluminava os espíritos; apesar de Álvaro, vindo da Renovação Democrático, primeiro grande movimento de oposição ao Estado Novo, haver passado as passas do Algarve sem nunca porém passar de um modesto emprego como editor do Mensário das Casas do Povo, prestimoso repositório ainda hoje subestimado; apesar de Agostinho da Silva, com indeclinável dignidade e coragem cívica exemplar, no curso da abominável Lei Cabral (que Pessoa, intimorato, execrara em magistral artigo de imprensa) se ter recusado a proclamar perante os áulicos que não era mação nem comunista; apesar de tudo isto, e de muito mais, aquilo a que, com razoável extensão, sói chamar-se Filosofia Portuguesa tem surgido conotado, urbi et orbi, com uma certa ideia político-religiosa a que, por comodidade de expressão, cabe o nome de reacção, ali onde o autoritarismo e o dogmatismo dão as mãos à repressão. 

No entanto, haverá que reconhecer como, adentro da casa de Portugal, em indisfarçada insídia, lavravam os germes malsãos. Cingindo-me ao testemunho pessoal da década exaltante que com António Telmo me foi dado viver, deporei, anónimos, dois casos reveladores de como, ao redor do filósofo, nas suas cercanias, pude colher ventos inquietantes.

A vez primeira que tomei parte da roda convivial, na sequela vespertina de um repasto de caldeirada (estávamos em solo sesimbrense, já se vê!), alguém me abordou com um zeloso panegírico de Salazar, mal ciente, porventura, de que à sua ilharga, tutelar na bravura, mas alheado do dislate, estava o homem que, em 1971, enfrentando, à sombra do campanário, com a barba suspeita de bolchevismo, a intriga de alguns tiranetes provinciais, ousara fundar no Redondo a primeira escola democrática de Portugal.

Anos mais tarde, no decurso de uma tertúlia em Arruda dos Vinhos, onde, com Telmo, revisitávamos o paraíso terreal da sua infância, descobri, com assombro e protesto, como os pederastas insulares, deixados na penumbra do esquecimento devido a um louvor que o maioral da Madeira, intuitu personae, endereçara à Filosofia Portuguesa, eram passíveis de benévola destrinça perante os continentais, de muito mais duvidosa inclinação política. Quando saímos do café, António Telmo acercou-se de mim e disse: – Você tem razão!

Entre muitos outros benefícios, devo-lhe, com efeito, o aviso sério de quão baldada é a progressão no pensamento sem a observância da estrita imparcialidade. Não há mais alta posição no exercício difícil de se ser livre. Exprobrar com justeza um regime caduco como aquele em que hoje vegetamos como pátria e como nação não pode, notadamente, implicar o renovo de uma mordaça que, como freio infamante, foi aposta aos portugueses durante meio século. E a verdade é que escrevo agora estas linhas sem sombra de receio daquelas outras que os lápis azuis outrora traçavam.

Como bem notou Miguel Real, em tempos de plebeísmo foi António Telmo um aristocrata do espírito, em permanente comunhão com o povo, e desdenhando, com íntima solenidade, de uma burguesia de falsete que, em sua irresponsável pulsão juvenil, muito amesquinha quando tudo julga poder comprar. Assistido pela coragem suprema da liberdade, só por si dignidade bastante ao crédito de reverência com que sempre nos interpela, perseguiu Telmo a difícil via crucis de reclamar, a um tempo, à esquerda e à direita da cruz, o direito a afirmar o santo nome de Deus e o de pensar livremente a sua ideia, caminho dos mais estreitos numa terra como a nossa, em que os campos tão extremados se confrontam. Não sem engulhos entre alguns dos mais próximos, fê-lo pelo lado de dentro, desoprimindo no recôndito da alma o costado hebraico soterrado por séculos de labaredas e fumos negros. Tenho para mim que, nele, o marrano haveria por força da dar o cabalista e este o iniciado que, ao revelar publicamente, mais do que a sua condição, o seu pensamento maçónico, pôde mostrar como poucos homens se lhe avantajaram numa vida veramente religiosa.

Com António Telmo, que, pressentindo, com lucidez e argúcia, a elevação do sacerdote, teve a coragem de defender Joseph Ratzinger quando tantos o verberavam no começo do seu pontificado breve, mas germinal, muito gostaria hoje de conversar a propósito deste extraordinário Jorge Bergoglio que a Providência nos designou. Creio que Telmo (que em seus escritos tardios revelava crescente compreensão pela Companhia de Jesus, de onde o Papa Francisco provém) lhe apreciaria o desprendimento frugal, o diálogo franco e exemplar (Skorka, o amigo rabino, evocando o kabbalista Nathan vis a vis com Thomé, o cristão gnóstico, personagens dos diálogos télmicos), a coragem escandalosa de tolher sinecuras, desmandos e perversões, ou a irreverência deposta nos gestos, simples mas autênticos, com que se acerca dos pobres e de quantos sofrem.

Evoco Telmo prestes a completarem-se quatro anos sobre a sua partida, lembrando a sua coragem, a sua autenticidade. Como daquela vez em que, já director da Biblioteca Municipal de Sesimbra, numa recepção a Américo Tomás, tocado de apetite, irrompeu pelo meio da mesa em U aprontada para o banquete oficial, encetando, à revelia dos comensais, a lagosta que dominava a távola. Ao erguer o rosto, com um pedaço na mão, deparou-se o filósofo, à sua frente, com o olhar censório, fulminante, quase patibular do chefe de estado. Não vacilou, porém, este homem incomparável, a quem o astrólogo Hórus, que consultara a instâncias de Rafael Monteiro, predissera, anos antes, ser ele o único capaz de derrubar Salazar. Com um sorriso intrépido, propôs a Tomás:

– Prove. É uma maravilha! Ou não fosse de Sesimbra!...

Foi isto pelo meio da mesa em U. Aqui o recordo. Do lado esquerdo, que é onde pulsa o coração... 

INÉDITOS. 18

25-07-2014 09:24


Ensino e Cabala

 

A doutrina de Álvaro Ribeiro sobre educação e ensino funciona como uma alavanca que tem como ponto de apoio a puberdade. A educação é um movimento por iniciativa do adulto que tem por fim acompanhar e transformar o movimento natural do homem, da infância até ao termo da adolescência, numa viagem de pensamento e de conhecimento. Este movimento natural progride por fases, que transitam de umas para as outras por mutações subtis ou do corpo subtil, talvez de sete em sete anos, com sinais evidentes no comportamento biológico do ser humano. Álvaro Ribeiro procura pôr a iniciativa do movimento educativo de acordo com essas fases, renová-lo e alterá-lo no momento das mutações, de modo a fazer do ensino uma arte de imitação da natureza, não uma imitação servil, mas que espiritualize o movimento da alma incorporada, acompanhando-o e iluminando-o. A mutação crucial é a da puberdade. Inicia a fase da adolescência e é precedida pela puerícia, caracterizada nas Memórias de um Letrado como “idade mimética”. A adolescência será a idade poética, entendendo o adjectivo poética pelo étimo que originou a noção leonardina de “criacionismo”. A idade adulta ou “adultidade” é a idade política.

A criança é o ser que cresce. Álvaro Ribeiro censura, isto é, propõe a cesura desta palavra híbrida, responsável pelo ensino homossexual do homem e da mulher. O primeiro ensino é o materno. Sendo o infante o ser que não fala ainda, mas pode falar, a mulher, cuja missão é inconfundível com o destino animal, só completa a natividade quando acaba de formar no filho o corpo inteligente que sabe falar, isto é, quando anima esse corpo de sensação com o sopro da inteligência. O primeiro período vai até à segunda dentição, mutação brusca para novo alimento, termo de uma fase biológica durante a qual a alimentação não pôs ainda com suficiente clareza a distinção entre o subjectivo e o objectivo. É tal a ligação entre a mãe e o filho que dir-se-á que o ser humano, durante os primeiros sete ou cinco anos, se alimenta de si próprio. Prolongar a infância para além dos sete anos é conservar e manter um estado psíquico, uma concentração energética, de índole narcisística, em que o eu mal se distingue da natureza que o originou. Com a segunda dentição, a agressividade própria da infância muda de direcção e de intenção. É o momento que os legisladores têm escolhido para início da pedagogia do Estado. Álvaro Ribeiro prefere para a puerícia o termo de instrução ao de educação, porque, durante a idade mimética, convirá aperfeiçoar e fortalecer o intelecto passivo com estruturas mentais que mais sirvam ao intelecto activo de suporte para a criação espiritual. O ensino, nesta fase, deve ser mnemotécnico, mas as mnemónicas devem assentar sobre paradigmas matemáticos, aritméticos, geométricos e mecânicos – apresentando-os como sequências de palavras: o esquema da árvore da cabala, formado por pequenas ou parciais totalidades (três, seis, sete, dez, por exemplo) dará ordem e sentido ao mundo das percepções. A analogia entre as séries ou sequências será mais tarde desenvolvida e compreendida poeticamente, mas deve já presidir à sua composição: sete anos, sete dias da semana, sete vogais, sete planetas, etc.… O professor hábil e inspirado encontrará, a partir da analogia, as séries que convenham para sistematizar pela mnemónica a matéria e a forma da disciplina que lhe cabe ensinar.

É pela analogia que se estabelece a ligação da aritmética (estudo dos números), da geometria (estudo das figuras e dos sólidos) e da mecânica (estudo dos movimentos de motor externo) com o logos ou o verbo, interpretando pelo Trivium disciplinas que, mais tarde, se integrarão, de outro modo mais alto e mais profundo, no Quadrivium.

Até aos catorze anos, o rapaz e a rapariga, não distinguem o bem do mal. A sua imaginação, oscilando entre a contensão e o impulso, oscilação que reflecte a mecânica da explosão, tende para a associação mental indefinida. Álvaro Ribeiro adopta o ensinamento da Cabala, segundo o qual somente pelo acto sexual o homem e a mulher se podem purificar do mal. O mal é o narcisismo, a redução, cismática ou violenta, de toda a realidade ao próprio eu. Só pela sexualidade se estabelece a relação criativa com o outro. O outro tem de apresentar-se como o diferente, como aquele que vem do outro hemisfério. Só a relação sexual dá a garantia duma autêntica sociabilidade.

É de observar aqui a oposição do cabalista Álvaro Ribeiro à moderna orientação do ensino, que se esforça, através da sua programação e metodologia, por anular a consciência do próprio sexo no rapaz e na rapariga. Foram distribuídas recentemente aos professores estagiários do ensino preparatório e secundário planificações de sequências de aulas com o objectivo explícito de anular a diferença dos sexos. Tal estratégia é comandada por monitores suecos que doutrinam os funcionários, mais bem colocados para dirigir as operações do Ministério da Educação Nacional. Não surpreende que a doutrinação de Álvaro Ribeiro tenha até agora sido silenciada, ignorada, hostilizada, activamente por aqueles que pretendem fazê-lo passar por reacionário, passivamente por aqueles, mais chegados, que se negam a aceitar e reflectir o seu pensamento esotérico.

Com efeito, lê-se no Zohar:[1]

 

(…)

 

Álvaro Ribeiro responsabiliza o ensino neomaniqueu de manter na adolescência, na puerícia, e até na infância a maioria dos portugueses. Não é ironicamente que observa haver muito poucos que conseguem atingir a idade mental própria do adulto. Serão aqueles que se distinguem pelo favor da sorte, homens que Leonardo Coimbra classificava com o termo de extravagantes. No entanto, é impossível que não tenha existido, para esses, ao lado ou por detrás do ensino oficial, uma escola secreta ou esotérica, que lhes conferiu imunidade. O nosso filósofo acredita, porém, que a certa orientação do ensino levaria todos a atingirem a idade mental que, por direito natural, está ao alcance de todos os homens.

Com a puberdade, a instrução do intelecto passivo dá lugar à educação para o intelecto activo. Educar é agora ensinar a pensar, a criar pensamento, capaz de conhecer, pela sua progressiva adaptação às várias realidades ou planos significados na escala das sephiroth. O pensamento não deve ser subordinado ao conhecimento, mas sim orientado para o conhecimento. Será, em relação aos conhecimentos dados, a sua unificação activa, mas terá como enteléquia o movimento futurista para conhecimentos mais altos, ou mais profundos. O étimo da palavra “filosofia” indica o superior paradigma que deve guiar as relações do pensamento com o conhecimento.

Com isto, põe-se uma importante afirmação: é a de que só há ensino da filosofia. O modo mais astucioso de se ter [palavra ilegível] a negação desta afirmação foi a de limitar a filosofia ao ensino de uma disciplina. Alguma culpa têm também aqueles que dissociam as artes e as ciências da filosofia. Para Álvaro Ribeiro que a concebe como uma arte, a arte, por excelência, da palavra, ela procede por condução para a Cabala das várias direcções assumidas pela actividade do pensamento que procura o saber universal. Sendo assim, todo o ensino é compreendido como um movimento da filosofia. O programa de filosofia elaborado por Leonardo Coimbra para os liceus merece, por isso, todo o seu aplauso, na medida em que tem por suporte a hierarquia das ciências de Augusto Comte, mas recebe o seu reparo, porque nele se esquece a importância das disciplinas de letras constitutivas do Trivium.

A classificação das ciências de Augusto Comte, corrigida pela introdução da Psicologia (já proposta por Herbert Spencer), constitui, no seu movimento progressivo (matemáticas, física; química, biologia; psicologia e sociologia) uma escada de três graus compatível com o esquema da árvore sefirótica. O primeiro livro de Leonardo Coimbra, O Criacionismo, constitui-se, como Álvaro Ribeiro indica, sobre o suporte daquela classificação.

Os três pares estudam sucessiva e progressivamente os três planos que a analogia refere simultaneamente ao homem e ao cosmos: o plano dos corpos, o plano das almas e o plano dos espíritos. Álvaro Ribeiro, embora compreendendo como a sociologia está em Leonardo Coimbra referida à fraternidade universal dos espíritos, receia que a teologia a ela se reduza pela tríade Deus, Cristo, Igreja, própria do positivismo católico francês, parecendo acenar para um quarto plano que viesse completar o quadro das categorias, ou restabelecer a progressão por quatro vias, isto é – o Quadrivium.

A doutrina cabalista da incompletude do homem sem mulher tem uma larga aplicação na doutrina alvarina do ensino. Estamos em condições de aprofundar essa doutrina no leitor que queira estudar o capítulo deste livro sobre Aristóteles. Segundo o Zohar, ao ente humano masculino correspondem nove das sephiroth; o décimo é a mulher. A mulher corresponde a Malcuth ou, nos termos aristotélicos, ao domínio da paixão. Como a árvore é um todo, dir-se-á que a parte mais importante, aquela para a qual convergem todas as correntes, está separada. É o amor que desce de Yesod, onde a acção tem a sua base ou fundamento, a energia física, psíquica e espiritual que faz tender para a perfeição o ser humano.

Noutros termos. A mulher é o princípio de vida, que o espírito do homem solteiro está incapacitado de conhecer. A redenção tem por condição, depois do conhecimento do bem e do mal, o conhecimento da árvore da vida, por tal modo que os processos orgânicos de crescimento e de gestação possam ser compreendidos pela imaginação, cujo segredo mais íntimo só pelo amor pode começar a desvendar-se.

Álvaro Ribeiro propõe um ensino divergente durante a puerícia dos dois sexos, de sorte que a diferença de natureza e de potencial psíquico se traduza em formas distintas e provoque a atracção de um pelo outro, isto é, a consciência de uma incompletude ou imperfeição, não só no plano natural dominado pelo instinto, mas também no plano psíquico dominado pela actividade do pensamento e da palavra. É através do homem, e só através do homem, que a mulher pode ter notícia do espírito. Ela, diz Álvaro Ribeiro, se permanece solteira, é incapaz, só por si, de pensar o monoteísmo. A sua ideação é, por natureza, mitológica, no fascínio sentimental do facto, do feito e do feitiço, que se traduz religiosamente pela veneração das imagens representativas de santos ou de santas.

Convém não esquecer que o homem, no pleno sentido da palavra, é o composto do masculino e do feminino, que só pelo património e pelo matrimónio tende eficazmente para a sua realização. A dialéctica que opõe o homem à mulher como se ele não fosse somente nove décimos e ela um décimo e que ignora o significado qualitativo destes números, não quantitativo, procederá sempre como se opusesse um ser completo a outro ser completo, que não precisassem um do outro para se realizarem. Álvaro Ribeiro descreve demoradamente as consequências lamentáveis desta dialéctica, que só aumenta o sofrimento no mundo dos homens, e, por isso, confia no ensino, tal como se organizará um dia a partir dos princípios da Cabala para que seja a medicina que libertará a humanidade da adolescência dolorosa e infeliz.

Falámos de matrimónio e de património. Estes dois termos relativos entre si por um terceiro que é o filho ou constituído pelos filhos é costume empregá-los separadamente. É, no entanto, pela relação destas duas noções que se formará a noção de família. O múnus da mãe e o múnus do pai correspondem a dois númenes ou nómenos diferentes, embora complementares. É curioso que quando se fala de património se refiram os bens da família, mas que se entenda por matrimónio a união do marido e da mulher. Não é assim em Álvaro Ribeiro. Matrimónio é o que diz respeito à maternidade e património à paternidade. O segredo do matrimónio pertence à mulher, senhora do númen que lhe corresponde e que oculta dos próprios filhos e até do próprio marido. O adultério consiste em dizer a outro homem aquilo que, mais ou menos, o exponha. A família fica em perigo, porque, em geral, é com um homem solteiro que ela entra em confidências. Mas o património, entendido restritamente como a posse dos bens materiais, tem também o seu segredo.

O decagrama das sephiroth recebe, na Tradição, vários nomes. O mais divulgado é “árvore”. Há também “balança” e “homem”, e a ideia de “templo” está dada na referência a três colunas: a esquerda, a direita e a do meio.

Na imagem do “homem” a coluna do meio é a coluna vertebral. O homem é, assim, o próprio templo.

Dado que o homem integral está representado no decagrama, qual é a parte que significa a mulher?

Há várias perspectivas. Uma delas, a mais corrente, é a que identifica o feminino com Malcuth, a séfira separada que não entra numa relação triangular. Todas as sephiroth convergem para Malcuth, onde desaguam as águas através de Yesod, significativo como já sabemos do poder fecundante masculino. Em cada uma das colunas há três sephiroth; há também, acima de Malcuth, três tríades. Três sephirot x 3 colunas = 9 = três tríades. Assim, tudo se entrelaça e estrutura. O centro da estrutura novenária é Tiphereth, o nódulo da teia. A Coroa liga-se indirectamente com a sétima e oitava sephiroth. Yesod também indirectamente com a segunda e a terceira. A ligação estabelece-se através de Tiphereth. Tiphereth é também uma representação da Schekina.    

 

António Telmo

____________                                 

Comentário

António Carlos Carvalho

No livro do Génesis (6, 16) encontramos a seguinte passagem: «Tu dotarás a arca de uma abertura luminosa». Arca, Têvah, também significa palavra – o que permite a seguinte leitura cabalística: «Tu dotarás cada palavra de uma abertura luminosa, a fim de que brilhe como um sol em pleno meio-dia.»

António Telmo fez esse exercício constantemente: ele, que sempre buscou a luz, iluminou as palavras de muitos textos, abrindo os nossos olhos para o sentido real do que estava escrito.

É precisamente o que vemos neste seu inédito, «Ensino e Cabala», em que mais uma vez se debruça sobre as palavras do seu mestre Álvaro Ribeiro. Professor e pedagogo, Telmo interpreta os ensinamentos do também pedagogo Álvaro Ribeiro, que via a educação como um movimento, «uma viagem do pensamento e do conhecimento», progredindo por fases que transitam de umas para outras por «mutações subtis ou do corpo subtil», de sete em sete anos. Esse movimento educativo deve ser feito de acordo com as mutações, a fim de que o ensino seja uma arte de imitação da natureza que «espiritualize o movimento da alma incorporada, acompanhando-o e iluminando-o».

E assim temos a puerícia (a idade mimética), a adolescência (idade poética) e depois a idade adulta ou idade política. O primeiro ensino é feito pela mãe, que só completa o acto de dar à luz quando «acaba de formar no filho o corpo inteligente que sabe falar», ou seja, quando «anima esse corpo de sensação com o sopro da inteligência». Uma fase que deve durar sete anos e não mais do que isso, sob pena de manter um estado psíquico de índole narcísica.

À puerícia convém o termo de instrução, porque na idade mimética é suposto aperfeiçoar e fortalecer o intelecto passivo com estruturas mentais que sejam adequadas ao intelecto activo como suporte para a criação espiritual. Nessa fase o ensino deve ser mnemotécnico, assente sobre paradigmas matemáticos apresentados como suportes de palavras: «o esquema da árvore da Cabala, formado por pequenas ou parciais totalidades (3, 6, 7, 10, por exemplo), dará ordem e sentido ao mundo das percepções» -- 7 anos, 7 dias da semana, 7 vogais, 7 planetas, etc.

(Encontramos aqui um eco da «Gramática Secreta da Língua Portuguesa». E logo a seguir o comentário de Telmo reflecte a leitura da «Carta sobre a Santidade», de Gikatila, leitura feita por Telmo mas não por Álvaro Ribeiro – o qual, no entanto, soube expor doutrina semelhante, como o próprio Telmo sublinhou na sua conferência de 1996, «A influência da Cabala em Portugal».)

Afirma Telmo: «Álvaro Ribeiro adopta o ensinamento da Cabala, segundo o qual somente pelo acto sexual o homem e a mulher se podem purificar do mal» (o mal que rapazes e raparigas até aos 14 anos não conseguem distinguir do bem). Esse mal é o narcisismo; logo, só pela sexualidade se estabelece a relação criativa com o outro, «só a relação sexual dá a garantia de uma autêntica sociabilidade».

Lembra Telmo que o «cabalista Álvaro Ribeiro» sempre foi um opositor da moderna orientação do ensino, que se esforça por anular a consciência do próprio sexo no rapaz e na rapariga. Daí que não seja surpreendente que a doutrinação de Álvaro Ribeiro tenha sido «silenciada, ignorada, hostilizada», «activamente por aqueles que pretendem fazê-lo passar por reaccionário, passivamente por aqueles, mais chegados, que se negam a aceitar e reflectir o seu pensamento esotérico».

Repare-se na tremenda acusação contida nesta segunda metade da frase: mesmo os mais próximos de Álvaro Ribeiro têm-se recusado a aceitar e a reflectir o seu pensamento mais profundo. Infelizmente (e incompreensivelmente), essa afirmação mantém toda a sua actualidade. Podemos mesmo acrescentar que Álvaro Ribeiro e António Telmo continuam a ser pensadores incómodos para muita gente, por vezes mesmo para os que invocam os seus nomes.

O comentário de Telmo prossegue com uma observação de Álvaro Ribeiro – graças ao efeito perverso do ensino oficial, muito poucos conseguem alcançar a idade mental que se deve esperar num adulto. A esses poucos, Leonardo Coimbra chama-lhes «extravagantes», mas Telmo afirma que a imunidade deles só se explica pela existência de uma «escola secreta ou esotérica».

E porque «educar é ensinar a pensar, a criar pensamento capaz de conhecer», percebemos o papel superior da filosofia. Álvaro Ribeiro concebia a filosofia como uma arte, a arte da palavra, por excelência. Ou seja, conduz para a Cabala as várias direcções que assume o pensamento em busca do saber universal. Logo, todo o ensino é compreendido como um movimento da filosofia, que não é uma «disciplina» escolar.

A partir daqui, e porque a redenção exige o conhecimento da Árvore da Vida, o comentário de Telmo remete para o esquema da Árvore Sefirótica ou das emanações divinas – um esquema também ele luminoso porque mostra como a criação e a formação do homem se fez (e faz) através da condução da palavra divina ao espírito e à consciência humana e ao próprio cosmos. Sempre sob o signo do 3 (3 graus ou planos dos corpos, das almas e dos espíritos, tal como – acrescentamos nós – 3 são as almas, 3 são os níveis no sonho de Jacob ou 3 são as etapas do estudo da Torah; se o 1 é o processo inicial, primário, e o 2 é o processo secundário, a elaboração, o 3 é a síntese integrada, com vista à sublimação).

Na Árvore, 3 tríades convergem para a décima Sefira (ou Safira, como Telmo preferia). Essa décima Sefira, Malcuth, a Mulher, é o «princípio da vida», que «o espírito do homem solteiro está incapaz de conhecer».

Telmo sublinha que a própria doutrina cabalista da incompletude do homem sem mulher (tal como é afirmado por Álvaro Ribeiro em «A Literatura de José Régio») tem ampla aplicação na doutrina do ensino exposta pelo seu mestre: a proposta de um ensino divergente durante a puerícia dos dois sexos, de tal modo que a diferença de natureza e do potencial psíquico se traduza em formas distintas e suscite a atracção mútua – a consciência de uma incompletude ou imperfeição igualmente mútua nos planos natural e psíquico. Daí que Álvaro Ribeiro colocasse toda a sua confiança na possibilidade de, um dia, o ensino, organizado a partir dos princípios da Cabala, fosse a cura que viesse a libertar a humanidade da adolescência «dolorosa e infeliz».

E Telmo termina o seu comentário com uma alusão significativa à Presença Divina.

 

Resumindo: estamos perante uma importante reflexão de Telmo sobre as ligações íntimas existentes no pensamento mais profundo de Álvaro Ribeiro entre o ensino e a Cabala – e que, aliás, serão desenvolvidas pelo próprio Telmo nas suas próprias obras (veja-se, por exemplo, «Filosofia e Kabbalah»). E, tal como Charles Mopsik -- estudioso destes temas muito apreciado por Telmo -- sublinhava que o «Zohar» é acima de tudo um livro de comentário sobre a Torah que adopta o modo, a língua e o tom das exgeses rabínicas do final da Antiguidade, também nós podemos dizer que António Telmo desempenhou esse mesmo papel: abriu as palavras de Álvaro Ribeiro para quem quiser ver.

 


[1] António Telmo não concretiza, no manuscrito, o trecho do Zohar que pretende citar. 

 

DOS LIVROS. 17

23-07-2014 10:19

De um caderno de apontamentos. 07

Hoje, o dia amanheceu chuvoso, mas, pela tarde, entre os cúmulos pacificados, abriram-se belas extensões azuis.

Os meteorologistas anunciaram isto mesmo ontem na televisão. A sua ciência é igual à minha sobre o movimento dos autocarros. Posso saber a que horas chega a Estremoz um autocarro, desde que conheça a que horas partiu de Lisboa.

Quanta seriedade e quanta profundidade na adivinhação do tempo pelos camponeses! A sua é uma ciência de sinais e de qualidades. Não conta, não pesa e não mede. Lê palavras, aquelas que se desenham no céu ao nascer ou ao morrer do Sol e da Lua, na origem e no fim das luzes diurna e nocturna.

É possível combinar as duas ciências, a do meteorologista e a do camponês. Os frequentes desacertos do boletim meteorológico com o tempo do dia seguinte levaram a encarar esta possibilidade. Seria mau, porque o menos culto depressa cederia ao fascínio da quantidade. Além disso, bastava um erro seu para lhe caírem em cima, ridicularizando-o e desacreditando-o. Os médicos enganam-se frequentemente e muitos pagam morrendo o preço levado por esses enganos. Se um curandeiro, um endireita, um bruxo se mostra ineficaz uma só vez que seja logo bradam apontando o charlatão.

 

António Telmo

 

(Publicado em Viagem a Granada, 2005)

UNIVERSO TÉLMICO. 07

18-07-2014 00:25

Agostinho da Silva em Setúbal

António Mateus Vilhena

 

 

Exm.ª Senhora Representante da Governadora Civil de Setúbal;

Exm.º Senhor Vereador da Câmara Municipal de Setúbal;

Exm.ºs Colegas,

Estimados Alunos;

Meu Senhores e Minhas Senhoras;

 

Graças a uma iniciativa dos professores do 8.º grupo A e B da Escola Secundária de Bocage, desde a primeira hora acarinhada pela Câmara Municipal de Setúbal, sobretudo através do pelouro da Educação e do Serviço de Relações Públicas, os quais desenvolveram todos os esforços para que tal iniciativa viesse a concretizar-se, temos hoje o enorme prazer e a subida honra de receber, no Salão Nobre do Município da nossa cidade, o Prof. Dr. Agostinho da Silva, um dos mais fecundos e originais pensadores portugueses deste século, que proferirá uma conferência subordinada ao tema “Problemas da Cultura Portuguesa”.

Tratando-se de uma personalidade que, pela sua projecção na vida cívica e cultural do país, é de todos tão conhecida, não me alongarei na sua apresentação, deixando, por assim dizer, de parte quaisquer considerações acerca das traves mestras da sua obra, uma vez que, por um lado, não é meu intento fazer uma conferência e, por outro, espero que este encontro constitua mais um incentivo para que em Setúbal, nas Escolas e fora delas, se venha a reflectir cada vez mais sobre as cativantes linhas de força do seu pensamento.

Filólogo, poeta, ficcionista, crítico literário, investigador em áreas científicas, professor, filósofo e sobretudo homem atento aos problemas do homem do seu tempo, dele se poderia, com propriedade, afirmar, parafraseando o dramaturgo latino Terêncio: “É homem: nada do que é humano lhe é estranho”.

O Prof. Agostinho da Silva nasceu na cidade do Porto, em cuja Universidade se licenciou e doutorou em Filologia Clássica (1929). Costuma até dizer que aí fez “a licenciatura em liberdade e o doutoramento em raiva” (Dispersos, p. 52).

Após a obtenção do grau de Doutor, frequentou a Escola Normal Superior de Lisboa e foi bolseiro em França, na Sorbonne. De regresso a Portugal, em 1933, ano em que publicou a única tradução portuguesa moderna das Poesias do escritor latino Catulo, passou a exercer funções docentes no Liceu de Aveiro, vindo a ser demitido do cargo dois anos depois, por se ter recusado a assumir o compromisso de não vir a pertencer a qualquer associação secreta. Com a sua extraordinária capacidade para transpor obstáculos, não baixou os braços perante tal arbitrariedade e injustiça. “Obstáculo – disse uma vez – foi coisa que jamais me importou;  procurei sempre seguir nisto a lição dos rios: tirar a extensão e variedade de seu curso daquilo que se lhes opõe; ou das pedras: depende do que somos esbarrarmos nelas e nos queixarmos ou subir-lhes em cima e vermos mais longe” (Dispersos, p. 24).

Após residir algum tempo em Madrid, como bolseiro, voltou a Lisboa, onde viveu vários anos, de aulas no ensino particular e de explicações, e se relacionou profundamente com o grupo da “Seara Nova”.

Em 1944, “encontrando-se – como afirmou numa entrevista – em estado de cepticismo quanto ao futuro de Portugal, além de não saber bem como ganhar a vida” (Dispersos, p. 59), resolveu partir para o Brasil, país de que é cidadão, e aí permaneceu até 1969, empreendendo algumas deambulações pela América Latina e pelo Japão, Macau e Timor. Para atestar o extraordinário e multiforme labor desenvolvido pelo Mestre, nas suas queridas paragens sul-americanas, durante esse quarto de século, basta recordar que traduziu para português, prefaciando-os e anotando-os, textos capitais da literatura latina, como o Poema da Natureza, de Lucrécio, a Germânia, de Tácito, o Sonho de Cipião, de Cícero, uma antologia das comédias de Plauto e de Terêncio; realizou estudos no domínio da histologia, estes no Uruguai; efectuou pesquisas no campo da entomologia e da parasitologia; “seguiu no dia-a-dia – são afirmações suas – a criação da Universidade da Paraíba (…), a da Universidade de Santa Catarina, (…) a da Universidade de Brasília, (…) a da Universidade de Goiás; [acompanhou] com Jaime Cortesão, o surto do Departamento de Pesquisas Históricas do Itamarati; (…) com Jânio Quadros, o início das relações culturais com a África; com Jaime Cortesão ainda, Mário Nunes e Silva Bruno, a Exposição do Quarto Centenário de São Paulo” (Dispersos, pags. 23-24).

Foi director do Centro de Estudos Filológicos da Universidade de Santa Catarina; fundou o Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade da Bahia, o Centro Brasileiro de Estudos Portugueses da Universidade de Brasília; integrou o Centro de Estudos Ibéricos da Universidade de Mato Grosso e de Estudos Europeus na Universidade do Paraná. Ainda no mesmo período o Prof. Agostinho da Silva exerceu funções docentes em várias Universidades e publicou diversas obras que de seguida enumeramos.

Em 1953, aparece Herta, Teresinha, Joan, a sua única obra de ficção, que a maioria dos leitores desconhece existir e cuja 2.ª edição será lançada na próxima semana. No entanto, a Livraria Culsete, desta cidade, obteve das Edições Cotovia e da distribuidora Diglivro a amável autorização para hoje fazer um pré-lançamento do livro com que homenageia o insigne Mestre na sua vinda a Setúbal; em 1957 sai do prelo Reflexão à margem da literatura portuguesa, que um crítico definiu como uma verdadeira filosofia da nossa história; de 1959 data Um Fernando Pessoa, livro sedutor e polémico, que constitui um dos marcos essenciais da bibliografia pessoana; em 1960 é dada à estampa outra obra, As Aproximações.

A partir de 1969, o Prof. Agostinho da Silva passou a residir em Portugal, na qualidade de cidadão brasileiro.

Senhor de uma mundivivência plurifacetada, sempre atento ao evoluir quotidiano dos acontecimentos no nosso país e no mundo, continuou a reflectir e a escrever sobre a essência, o destino e a missão de Portugal e os problemas do nosso tempo; ao longo destes anos, sobretudo após o 25 de Abril, tem sido frequentemente solicitado a proferir conferências sobre os mais variados temas, assistindo-se sempre a um renovado e crescente interesse do público pelas suas ideias, tão originais e contagiantes, que foi expondo em ensaios como ”Fantasia Portuguesa para Orquestra de História e Futuro” (1982), “De como os Portugueses Retomaram a Ilha dos Amores” (1982), “Dez Notas sobre o Culto Popular do Espírito Santo” (1984), para já não falar do volume Carta Varia (1988).

Desde 1984, o Instituto de Cultura e Língua Portuguesa convidou o Prof. Agostinho da Silva para seu conselheiro, podendo, assim, usufruir de muitas sugestões ditadas pelo saber e a longa experiência do Mestre, profundo conhecedor, autêntico paladino e apóstolo da cultura luso-afro-brasileira.

Foi sob o patrocínio do ICALP que, no final do ano transacto, surgiu, com o título de Dispersos, um volume de textos esparsos e inéditos e de entrevistas, que pode considerar-se, na sua essência, uma suma das meditações do Mestre acerca do ser e da missão de Portugal no mundo. Portugal que é para ele, na esteira de Pessoa, “todo o território de língua portuguesa” (Dispersos, p. 127), em prol do qual decidiu, há meses, criar a Fundação Mensagem, “destinada a fazer que a terra, o mar e o céu (desse espaço português) possam ser objecto de pleno amor.”

Só então a nossa grande Raça – diria Pessoa – partirá em busca de uma Índia nova, que não existe no espaço, em naus que são construídas “daquilo de que os sonhos são feitos.” (in A Nova Poesia Portuguesa).

 

Abril de 1989



 

VOZ PASSIVA. 26

16-07-2014 10:21

Em A Aventura Maçónica, livro póstumo saído a lume já em 2011, António Telmo incluiu uma longa carta dirigida a Eduardo Aroso, onde a Rainha Santa, traço de união entre Estremoz e Coimbra, é o motivo central da reflexão do filósofo. O escrito de Aroso que agora publicamos pode ser visto como um diálogo com esse texto de Telmo, sobretudo no que toca à "alquimia operativa" de Isabel de Aragão.

Registos - A Rosa e o Pão entre abertura e oclusão
Eduardo Aroso
 

«As direcções dos ventos têm origem no ponto central da Rosa, donde irradiam para todas as partes do Universo. Não é ainda a rosa perfeita, porque essa é, para lá do mundo subtil, a rosa de treze pétalas»  (António Telmo)

 

Ela imita, no reino vegetal, a receptividade da noite servindo de sacrário a certas espécies que na mais densa penumbra descansam para assegurar a continuidade possível. Mas no repouso do escuro, onde a lucidez, às vezes, acorda de repente nos seres humanos para fazer surgir o fotão das palavras «a intacta glória de Deus». A Rosa conhece a lei das alternâncias, a cronometragem dos ciclos da Grande Obra e diariamente esforça-se por falar do aroma e dos espinhos. É uma linguagem mais encriptada do que a do Sermão de Santo António aos Peixes, porque a palavra primeira é silêncio (silêncio apenas vigiando o esforço invisível e universal) enquanto os pés não tiverem passado antes pela lição das Bem-aventuranças da Montanha e, doloridos, por fim, sintam que não é ilusão ouvir-se a palavra que a Rosa pronuncia – o seu indício é apenas rosácea. Foi colocada nos templos como garantia. Antes do verbo religar tempos, vidas e solidão de puros anseios, requer-se a faina constante de edificar sem «ruído de martelo» e nada de agitar publicidades fora do templo, quando entram no espaço onde pouco ou nada se distingue do que seja alma.

A Natureza ensina: as pétalas abrem-se ao mavioso toque da manhã, merecido afago, indiferenciado todavia para o mundo vegetal, havendo, ainda assim, respostas diferentes. Mas ao ser humano, que vai no caminho consciente, isto é, o que foi talhado - não encontrado - há um outro sol que se levanta no horizonte da busca árdua, que pode trazer a palavra vinda da seiva intacta. Aí talvez o som dos pássaros se capte de outro modo; não apenas ultra-sons, mas outros sinais que indiciam boas-novas, como as que habitavam de esperança nas «flores de verde-pinho». Do anoitecer à aurora, entre o piar e os chilrear, esconde-se a escala de outros hinos. Já sabemos tudo sobre os ninhos circulares nas árvores (da lida e da vida) também eles circulares como as rosáceas?

A Rosa não escolhe cátedra, podendo vicejar num jardim real ou encostar-se a um humilde muro. Seja como for, utiliza sempre a mesma linguagem, um estilo onde o sentido é como se sente, porque os que a ela chegam, venham de onde vierem, distinguem claramente a palavra que é a mesma do Bom-Pastor, a que soa sempre, porém inaudível para a turba.

No decorrer dos tempos, quando se torna necessário, a Rosa cria também os seus heterónimos! Um deles tem o nome de Pão. Nasceu num dia límpido como os da certeza que há nos sonhos que se vão realizar. A Rosa distingue o pão dos pobres de espírito do pão dos pobres em espírito. Ninguém melhor do que uma real Senhora (e Senhora real) pode mostrar isso. E pode fazê-lo para ambos os pobres. Esse é o verdadeiro bodo, o mais acolhedor. Uns pobres vêem o cereal, outros vêem ainda e escutam a palavra vivente, tradução da seiva, o verbo que abre e fecha a operação no verso e no inverso.

 

CORRESPONDÊNCIA. 17

14-07-2014 09:36

UMA CARTA INÉDITA DE ANTÓNIO QUADROS PARA ANTÓNIO TELMO (NO 91.º ANIVERSÁRIO DO AUTOR DE PORTUGAL, RAZÃO E MISTÉRIO)

Transcrição de Pedro Martins

Cascais

8.7.87

 

Meu caro António Telmo:

  

(…).

O ano de 1986 foi sobretudo de batalha intelectual comigo próprio: para completar a organização das Obras em Prosa de F. Pessoa para a Europa-América; para completar e entregar a tempo o vol. II de Portugal, Razão e Mistério; para preparar o curso sobre Filosofia Portuguesa que dei no Rio de Janeiro…

À chegada, já sabe, os meus problemas cardíacos. Só há pouco terminei a longa série de análises complicadas no Hospital de St.ª Cruz (coronariografia, isótopos, etc., etc.), pois suspeitavam de algo mais grave do que afinal parece que tenho. Foi pois posta de lado a cirurgia, mas terei que tomar sempre uns 5 ou 6 remédios, fazer regime constantemente e reduzir o “stress” da minha vida, no que o IADE tem a parte maior, hoje com cerca de 100 professores e cerca de 1.000 alunos. (…). Mas… meti-me nisto e já não poderei sair tão facilmente, pois sinto a responsabilidade perante as pessoas que trabalham no IADE, os alunos, etc. É qualquer coisa da ordem do dever, mas que distrai do que seria essencial: pensar, reflectir.

E é do que sinto mais falta. Decerto, o meu trabalho intelectual ressente-se deste misto de falta de tempo e de pressa, pois me pesa muito não saber se ainda terei os anos suficientes para completar a obra, que imodestamente julgo poder realizar dentro das minhas possibilidades e faculdades, obra esta que afinal, depois destes anos todos, povoados de tanta inutilidade, ainda vai no princípio, nas primeiras frases…

Assim, o ano de 1987 foi mais marcado pela luta pela saúde, o que graças a Deus, e de momento, parece já quase controlado, embora ainda chegue ao fim do dia bastante cansado, sobretudo quando o passo todo em Lisboa. Entretanto, tenho escrito alguns textos e ensaios, como a comunicação que em Agosto vou fazer à Áustria, no Alpbach European Forum (“Do Império do Espírito Santo ao Mito do Quinto Império”), como outra que fiz na Universidade Católica sobre a Justiça e a Paz ou o longo texto sobre a Filosofia Portuguesa no século XX para a revista Democracia e Liberdade (para o qual você também colaborou e que, segundo diz o Pinharanda, deve sair em Setembro); e também fui falar de temas semelhantes à Escola Superior de Belas Artes, à Universidade Nova, à Sociedade Histórica da Independência de Portugal e ao Instituto D. João de Castro, sempre a convite de estudantes e gente moça (excepto no último caso), o que mostra o interesse que os temas portugueses voltam a despertar na juventude. Mas tudo isto é… viver dos rendimentos, de certo modo repetir os temas já tratados! Nalguns destes lugares tenho coincidido com o Agostinho da Silva, com o desgosto de verificar que está cada vez mais acérrimo na sua campanha contra a filosofia portuguesa. Portugal não tem filósofos (apenas o Spinoza) e aliás não tem importância, porque o que importa é a Sabedoria (e isso o povo português tem-na com seus mitos e crenças) e a matemática ou pragmática!

Não é preciso filosofar, o que é preciso é agir, para o que basta o fundamento de uma sophia por assim dizer inerente ao nosso povo, com a graça do Espírito Santo a soprar no nosso sentido, etc. Em tudo isto, muitos compromissos com a política do momento, com o socialismo, com o terceiromundismo, com os nomes em voga, Soares, Saramago, etc. É muito esquisito mas não me arrependo de lhe ter dedicado o livro, pois tenho que ser justo: foi ele que me inspirou o seu tema central, além de que há nele um fogo na oratória, que leva muita gente nova para fora dos enquadramentos positivistas ou comunistas, abrindo-lhes portas.

No entanto, não o sigo, longe disso, pois sou acima de tudo discípulo de Leonardo Coimbra e de Álvaro Ribeiro, estando pois do lado das suas teses e procurando defendê-las e expandi-las.

Receei na verdade que você, ou não tivesse recebido o livro, ou nada me quisesse dizer a seu respeito por o achar demasiado cristão, ou católico.

Aliás, você foi direito a um dos tópicos mais controversos, uma pedra de toque, a questão dos Jesuítas. Na realidade, julgo ser um livre-pensador, só que não quero perder a ligação directa, vivencial, a uma Igreja pontifícia. A ponte com o sobrenatural pode decerto dispensar a Igreja, como sucede com os místicos e os gnósticos, mas, não me sentindo ou não sendo agraciado com tais faculdades, ao menos situo-me na ponte entre o hoje existencial e o eterno divino, representado na herança de Cristo Jesus a Pedro e aos Pontífices. Contudo, é ainda mais funda (embora dificilmente expressável) a minha ligação também pontifícia, à Igreja de João e do Espírito Santo, o que me defende de cair no clericalismo e no dogmatismo. Há aqui um acto de humildade, como penso que terá sido o de Leonardo, na sua conversão pública. A metanóia era muito, muito anterior. Mas, com a sua conversão pública, não quis ele diminuir o ego e juntar-se ao povo que não tem acesso a outras pontes, senão a ponte por Pedro?

No fundo, este meu segundo volume foi (ao menos para mim) um livro luminoso.

Que vai ser o terceiro (que ainda não comecei a escrever), se é no terceiro que tenho de defrontar os problemas da Contra-Reforma e depois do Iluminismo? Julgo que vai ser um livro labiríntico, de luz-sombra ou de sombra-luz, mas mais sombrio do que aquele.

Pensei muito em si, quando, espectacularmente, marquei as datas de 1321-1521 para o projecto áureo. Claro, isto foi um pouco de provocação, pois as vidas não se podem datar com tanta precisão. O fim do ciclo é a morte de D. Manuel (como eu marquei) ou a época infamante em que D. Manuel, por ambição, cede aos Reis Católicos, obriga à conversão artificial dos Judeus, à figura do Cristão Novo, à expulsão dos Judeus Velhos, como no seu conceito, caro António?

Pois apesar de tudo forço na figura de D. Manuel, não só porque acho que ele quis sobretudo enganar os espanhóis, para obter o trono das Espanhas, mas também porque ele era da Ordem de Cristo e lhe devemos a Arte Manuelina e Gil Vicente. Mas fi-lo em dúvida íntima!        

Que significa, aqui, passar da Ordem de Cristo à Companhia de Jesus? Eis um tema em que tenho de lutar corpo a corpo. Eu não faço propriamente distinção entre os Jesuítas espanhóis e os portugueses. Os portugueses da primeira vaga, da geração de Loyola, foram de facto iguais aos espanhóis.

Põe-se-me no entanto a dúvida quanto aos das vagas seguintes. É que, com o período filipino, eles descobriram-se portugueses – e daí Vieira, a quem F. Pessoa chamou Mestre da ordem dos Templários! Estiveram na luta pela restauração, colaboraram na expansão, lutaram contra holandeses e ingleses, e, na luta contra Pombal, de que lado deveremos estar? Aí eles defenderam o tomismo e o aristotelismo contra a filosofia das luzes e a reforma de Verney.     

Como vê, são temas para os quais estou desperto e para os quais não tenho de momento solução pronta. Vai ser um dos pontos mais difíceis do vol. III. Uma coisa é certa: serei tão objectivo e livre-pensador quanto possível. D. João III e a Inquisição são imperdoáveis. Os Jesuítas… a questão é ambígua e controversa. Preciso de estudar melhor o problema, pelo que a sua ajuda seria preciosa. Como vê você os problemas que levantei? Mas a minha conclusão final será sempre criacionista. A regeneração passa, depois da fase dos mitos, pela fase do criacionismo filosófico, por uma filosofia teleológica, segundo o magistério dos nossos mestres.

Bom, esta carta já vai demasiado longa. Que está você a fazer neste momento? Estou certo de que tem muitas coisas pensadas e escritas, que nos irão surpreender e iluminar, como sempre.

Gostaria muito de ir visitá-lo. Mas vai ser difícil!

Viu o livro do Álvaro, organizado pelo Pinharanda? É esmagador…

 

Saudades à sua mulher e um abraço do seu amigo dedicado,

 

António Quadros

 

P. S. Não me disse nada acerca da minha “leitura” dos Painéis. Que achou? Fiz uma interpretação claramente gibelina: a Casa de Avis a dominar o Alto Clero, a Nobreza e os Condestáveis…

Quanto ao meu horóscopo: n. a 14 de Julho às 7 da manhã – 6,20 h. exactamente, parece que sou um Caranguejo com ascendente de Leão. Fortemente lunar, a verdade é que tenho passado o meu tempo a fazer reflectir a luz solar dos outros (os Portugueses, Álvaro Ribeiro, Marinho, Leonardo, Pessoa, Pascoaes, etc.), do que a emitir uma luz própria. Mas é um papel que hoje assumo com consciência e com alegria. Talvez pudesse fazer mais por exprimir o meu próprio pensamento, e talvez tivesse alguma coisa a dizer, mas vou-o sempre adiando, nas urgências de valorizar a filosofia e a paideia portuguesas, o magistério do Espírito através dos nossos Mestres, etc. Já era imenso se nesse capítulo conseguisse algo. Querer mais do que isto seria estultícia da minha parte. Já me tenho classificado, não como filósofo, mas como filo-filósofo. Aliás, a tarefa de receber o sol de Portugal e do seu espírito ou pensamento é tão enorme que pouca margem deixa (ou o meu inconsciente o escolhe assim) para um mais que provavelmente seria menos.

Por curiosidade, mando-lhe fotocópia do Horóscopo que o Vasco da Gama Rodrigues me levantou aí por 1950. Parece-me bastante acertado, se descontarmos um certo tom de elogio ou de simpatia…

 

Um grande abraço do

                                                                         António 

UNIVERSO TÉLMICO. 06

11-07-2014 10:27

Álvaro Ribeiro*

Rafael Monteiro

 

Algo de insólito se verificou na sessão da Assembleia Nacional, realizada no dia 21 deste mês de Janeiro, ano de 1970.

A evocação tardia (porque feita após o termo da vida terrena) de José Régio permitiu a Veiga de Macedo, associando-se calorosa e sentidamente à homenagem, nobres e justíssimas palavras de apreço por Álvaro Ribeiro, pela obra e pelo escritor, «extraordinário pensador que da sua vida tem feito sacerdócio».

O ilustre deputado leu aos seus pares trechos da «Dedicatória» do último livro do mais português dos nossos pensadores: A Literatura de José Régio – o mais humilde livro que a um homem pode ser dado escrever, «livro porventura único na nossa literatura de pensamento», segundo as certas palavras do editor.

Há muitos anos, certamente, que tão alta e representativa Assembleia não escutava palavras de tão justos louvor e apreço para com a obra de dois dos mais nobres espíritos da nossa terra, de dois dos mais inteligentes portugueses das últimas gerações.

Se podemos pensar que nem toda a assembleia desconhecia o nome de José Régio, cremos ser, para a maioria, nome sem significado, o de Álvaro Ribeiro. Louvemos, por isso, o acto de Veiga de Macedo, o acto de lembrar aos políticos eventos e verdades que, transcendendo-os, importa conhecer: verdades e eventos cujo desconhecimento não dignifica os homens.

Insólito dissemos ter sido o acontecimento; bastará, como demonstração da nossa asserção, o relato da Imprensa, que conta: Veiga de Macedo, a uma interrupção que lhe foi feita, houve que responder, respeitosa e firmemente: «Não estou a fazer retórica! Estou a prestar homenagem a um pensador!»

Tão desabituados andam os homens de ouvir palavras nobres, tão afastados estão da beleza e da verdade!

 

 * * *

 

Álvaro Ribeiro é, como Régio foi, um vivo entre mortos, ente acordado que pensa e age entre seres adormecidos. Despertá-los tem sido a missão do seu génio; no reino onde dormem, embora adormecidos se entronizem. Se não quereis que vos chamem retóricos, não os desperteis.

Os despertos que durmam – eis a regra de todos os que, à luz, preferem a treva, regra que os obrigou, por feminino temor, ao culto de um deus nocturno; cega-os os raios do Deus luminoso e verdadeiro. Não correspondendo neles a idade cronológica à idade do espírito, continuam adolescentes entre adultos – e o diálogo é de surdos quando estes falam e aqueles escutam.

Álvaro Ribeiro, pensador português agraciado, fez da sua vida – onde há dores e soluços – gratuito dom a todos os portugueses. Entre os anos de 1943 e 1965 escreveu e publicou onze livros magistrais; não podem eles deixar de ser lidos e meditados por todos quantos se dizem honrar com a condição de portugueses.

Depois da influência exercida por Leonardo Coimbra, na Faculdade de Letras do Porto (de 1919 a 1931), Álvaro Ribeiro foi o filósofo português de mais magistral influência em Portugal, quer se reconheça ou se negue tão importante verdade.

Pouco habituados ao reconhecimento, não manifestámos ainda a Álvaro Ribeiro a merecida gratidão que lhe devemos – manifestação que há-de ser, necessariamente, diferente do banquete encomendado ou da homenagem em dia certo…

«Dos trinta anos para cima, e até aos cinquenta, já servi o tempo propício à expiação», escreve o filósofo, citando os Números. Que, para ele, agora, a vida terrena seja de paz, e que nela lhe permitam realizar um dos seus desejos, ainda não há muito manifestado: o de dirigir a publicação de uma edição popular da obra de Aristóteles. Conceder a Álvaro Ribeiro o necessário para – em paz – tornar real o seu desejo, será o modo digno de lhe manifestarmos toda a gratidão que lhe devemos, que todos lhe devemos.

Há, no nosso país, meios suficientes para concretizar aquele desejo; esperemos (a esperança é uma virtude) que os homens inteligentes e bons possam contribuir para que o homem e o pensador viva em alegria e paz os últimos anos da sua vida – entrecortada por dores e por soluços.

____________

*Publicado originalmente em Jornal da Costa do Sol, de 31 de Janeiro de 1970, e republicado em Sesimbra Eventos, n.º 35, Fevereiro/Março de 2005.

INÉDITOS. 17

10-07-2014 09:10

Dando sequência ao trabalho de estudo do espólio de António Telmo, publicamos hoje dois breves apontamentos do filósofo, plenos de revelações autobiográficas, e cujo sentido se ilumina pela leitura astrológica que o autor de O Horóscopo de Portugal neles ensaia. Surgem aqui acompanhados pelo comentário de Eduardo Aroso. 

Autobiografia e astrologia: dois apontamentos*

 

1.

Os vinte e três anos primeiros da minha vida estiveram sempre ameaçados pela sombra temível do mal. Deve-se isso em primeiro lugar ao meu horóscopo. O signo do Touro, onde estava o meu Sol quando nasci, é, como se sabe, oposto ao signo do Escorpião, que, logo por meu azar, preside aos horóscopos de minha mãe e de meu irmão Rui, que Deus tenha as suas almas em paz. Do mesmo lado, a um ou dois graus do Escorpião se encontrava ao nascer, o Sol do meu irmão Orlando.

Éramos três irmãos. Eu era o mais novo com uma diferença para eles de quatro e cinco anos. O Orlando era o mais velho; o seu horóscopo era, por sinal, dominado pelo planeta Marte que é, aliás, o planeta que tem no Escorpião o seu lugar essencial.

O meu Pai era alheio a esta oposição, pois nascera no signo de Virgem. Teve muita dificuldade em amestrar aqueles dois filhos. Eu era dócil e sofria com angústia os conflitos de meu Pai com eles. Foi, neste sentido, uma infância horrorosa no período dos 7 até aos 16 anos, quando deixámos Arruda dos Vinhos por Sesimbra.  

 

2.

Nasci com o Sol e a Lua altos em Touro, quando no horizonte se levantava o signo de Leão.

Fui o último de três irmãos. A minha mãe esperava uma rapariga, veio um rapaz. Cogitou fazer de mim padre para a acompanhar na viuvez. O seu signo era aquele onde o forte Marte tem o seu domicílio. Os meus dois irmãos também nasceram associados a Marte. O signo do Escorpião é oposto ao do Touro.

Vejo agora pelo I Ching que nós os três, os irmãos, realizámos com grande aproximação, as características que o famoso, muito respeitável livro chinês, o mais antigo do mundo, atribui aos três filhos do Céu e da Terra:

 

                O fulgor para o primogénito.

                O perigo para o segundo irmão.

                A imobilidade para mim.

 

Na Idade Média, o primeiro, na classe nobre, ficava o senhor do património.

O segundo filho, de natureza quereria tornar-se militar.

O último tinha por destino o sacerdócio.

Mas o último era, nos contos tradicionais, a pedra que se punha de lado e sobre a qual se haveria de edificar.

A alma do sangue dos meus pais criou-me como terceiro filho em oposição aos meus dois irmãos e à minha mãe. O dado inicial é o horóscopo. Nasci com o Sol e a Lua ao alto no signo do Touro. Do lado oposto, o Escorpião e a agressividade de Marte. Os três contra mim sem que o soubessem. Sabia-o o espírito envolvido pelo sangue.

 

António Telmo

 

* Título da responsabilidade do editor.

____________

Comentário

Eduardo Aroso

Nestes inéditos (1 e 2) de António Telmo podemos observar o que em astrologia se designa por sinastria, ou seja, comparação de horóscopos, embora a situação neste caso não seja completa, pois o filósofo apenas se refere ao seu signo solar e ao dos seus familiares. Isto é, não compara – pelo menos no texto não o refere – cabalmente os horóscopos. Vejamos: «Os vinte e três anos primeiros da minha vida estiveram sempre ameaçados pela sombra temível do mal. Deve-se isso em primeiro lugar ao meu horóscopo. O signo do Touro, onde estava o meu Sol quando nasci, é, como se sabe, oposto ao signo do Escorpião, que, logo por meu azar, preside aos horóscopos de minha mãe e de meu irmão Rui, que Deus tenha as suas almas em paz». A primeira questão que se nos levanta é a que se refere aos «vinte e três primeiros anos da sua vida». A justificação podemos encontrá-la apenas (ou não) na astrologia, já que é disso que o filósofo trata. Assim, feitas as progressões planetárias para os 23 anos de AT, encontramos, entre outros, dois indicadores muito significativos: Vénus (planeta dos relacionamentos) progredido e regente da 3ª casa (irmãos) passou a quadratura - o aspecto planetário mais difícil/desafiador – com Marte e depois com Plutão de nascimento, sendo estes dois os regentes da 4ª casa, a do pai e da mãe e da família em geral. Ao mesmo tempo o Sol progredido no horóscopo de António Telmo tinha saído recentemente de Touro (oposto a Escorpião). É muito provável que AT tivesse feito estas contas para escrever dessa maneira.

A sinastria ou comparação de mapas astrológicos é uma técnica muito antiga e que se baseia no princípio universal das «simpatias e antipatias», princípio esse que opera, por exemplo, na química, ou na botânica. Todo o agricultor experiente sabe que determinadas plantas não se desenvolvem bem, ou nem chegam mesmo a crescer, junto de certas árvores, acontecendo também o contrário. É claro que no caso dos seres humanos as coisas passam-se de modo diferente, como é óbvio, mas ainda assim Goethe deixou claro que as afinidades electivas existem, o que qualquer um de nós comprova no que respeita às nossas relações na vida diária, sabendo, ou não, astrologia.

O cenário “familiar astrológico” tenso, embora apenas quanto aos signos solares, que AT aqui descreve, e de modo muito explícito, refere-se à mãe e aos dois irmãos Rui e Orlando, todos eles do signo solar de Escorpião oposto ao signo de Telmo, o Touro. Veremos de seguida o sentido astrológico da afirmação «O meu pai era alheio a esta oposição, pois nascera no signo de Virgem».

AT aponta como maléfico o signo solar de Escorpião oposto ao seu o de Touro. Na verdade, a palavra mais correcta é complementar, e nisto nos adentramos, por exemplo, no alcance astrológico da profunda relação Touro/Escorpião, Sagitário/Gémeos, Aquário/Leão, etc. Aliás, é bem de ver que a atracção ou simpatia (muitas vezes não isenta de fricções e tensões!) das oposições faz-se, seguindo o meu exemplo dado, respectivamente pelos elementos: Terra/Água; Fogo/Ar; Ar/Fogo. Estes signos complementam-se, tal como as antíteses se resolvem pela síntese ou por um terceiro elemento/signo. E aqui vemos o papel que o pai de AT – houvesse ou não consciência disso – teve no meio familiar. O esquema geométrico seguinte pode elucidar. A oposição (180º) e a quadratura (90º) são considerados os “aspectos maléficos” enquanto os sextis (60º) e os trígonos ou trinos (120º) são “aspectos benéficos”. (1)

Orlando, Rui e mãe – signo de Escorpião; Telmo signo de Touro (como que isolado) e o pai signo de Virgem, originando um ângulo de 120º em relação ao signo de Telmo e um de 60ª em relação ao dos irmãos e mãe. A posição do signo solar do seu progenitor actuou como um ponto astrológico alquímico, conforme o esquema acima, percebendo-se assim o papel do pai de AT na família, tivesse ou não o primeiro consciência disso.

Em jeito de conclusão, poderíamos perguntar o seguinte: conhecendo AT a astrologia, considerando que este texto é escrito nos anos maduros da sua vida, qual a razão por que se referiu ao signo de Escorpião como maléfico, para seu azar? Qualquer condição familiar é íntima e marcante na vida de cada um, a primeira estação do fatum ou destino, onde o nosso livre-arbítrio pouco ou nada dita, já que sem alternativas que mais tarde podemos ter como mudar de emprego, de localidade, etc, nascemos numa única família e a ela herdamos. No caso de AT terá dolorosamente - mas porventura como bênção divina - feito com que escrevesse o texto do modo como o fez. «Os três contra mim sem que o soubessem. Sabia-o o espírito envolvido pelo sangue». Há um indício todavia que nos faz supor que o filósofo conhecia profundamente o sentido da oposição ou do complementar em astrologia (e, como é óbvio, na filosofia), porquanto, vários anos antes – note-se –, escreveu desta maneira em Horóscopo de Portugal, página 26 «uma das singularidades do horóscopo de Portugal é que a inversão do hemisfério superior no hemisfério inferior se produz nos acontecimentos e ideias que se vão dando em cada um deles com o curso do Sol» (…) as Casas opostas se correspondem dando o mesmo movimento na dupla forma luminosa e tenebrosa». Ou seja, mais uma evidência de que não há signos melhores ou piores do que outros, embora cada um deles possa expressar, consoante as situações, ora o seu lado luminoso, ora o tenebroso.

Seja como for, AT entendeu que uma certa forma de realização - dir-se-ia também uma «diversidade na unidade» - acabou por acontecer, pois assim escreve: «Vejo agora pelo I Ching que nós os três, os irmãos, realizámos com grande aproximação, as características que o famoso, muito respeitável livro chinês, o mais antigo do mundo, atribui aos três filhos do Céu e da Terra»

 

4-7-2014 (dia da Rainha Santa Isabel)

____________       

Nota (1): a fundamentação de aspectos “bons/favoráveis e aspectos maus/desfavoráveis" baseia-se na Tradição e no conceito sagrado, neste caso, da divisão do Círculo.

DOS LIVROS. 16

09-07-2014 10:49

De um caderno de apontamentos. 06


A saudade e o amor são manifestações do que a angelografia hebraica designa por Shekina e Metraton?

Pelo menos, é através de uma e de outro que parece passar a luz pela qual as duas potestades angélicas se nos tornam humanamente inteligíveis.

A saudade e o amor, no seu primeiro momento fenomenológico que é o da relação terrestre do amante com a amada, oferecem-se-nos como as duas faces do mesmo. Assim, no amor, a presença corporal da amada acorda no amante o sentimento do fugaz e inapreensível, do que estando presente está ao mesmo tempo ausente, do inviolável; pelo contrário, na saudade, ela é presença na imagem vivida em lembrança e ausência no seu corpo e seu lugar longínquo no espaço e no tempo.

O amor à distância de todo o espaço e de todo o tempo que há entre os dois é saudade; a saudade que se tem do que se possui na proximidade é amor. Nos dois casos, há sempre uma elipse, de que um foco é visível e o outro invisível. Num desses focos está a imagem luminosa e directamente visível; no outro o seu reverso nocturno e inacessível. O movimento de amor ou de saudade é elíptico como o da terra à volta do sol. Se não há, porém, a consciência simultânea do acessível e do inacessível, da presença e da ausência não há amor nem saudade. Haverá lembrança com dor, mas sem alegria, presença satisfeita, mas sem o sentido do mistério que é a amada.

Esta identidade especulativa, e digo especulativa a pensar na inversão pelo espelho, tem sido assinalada pelos poetas, mas ignorada pelos filósofos. Camões diz do amor ser “um contentamento descontente”; Pascoaes diz da saudade ser um misto de dor e de alegria, de presença e de ausência, de desejo e de lembrança.

Metraton é o Anjo da Face, o medianeiro entre a Divindade insondável e a Criação. A sua linha de presença à Divindade insondável que contempla face a face e à Criação de que tem o segredo da origem é a do meio, mas divide-se, de acordo com o desenho ou o desígnio da Árvore da Vida, em duas correntes nele unificadas, à esquerda e à direita. À direita São Miguel é o seu aspecto luminoso, à esquerda São Gabriel é o seu aspecto nocturno. Num é Misericórdia, no outro Rigor. A Shekina levanta-se do abismo, reflectindo a luz que emana de Metraton, descida do alto. É Malcuth, na sua suavidade lunar, mas participando de Geburah, o Rigor ou o Pavor, na sua essência profunda.

 

António Telmo

 

(Publicado em Viagem a Granada, 2005)

UNIVERSO TÉLMICO. 05

07-07-2014 12:11

CORRESPONDÊNCIA DE ÁLVARO RIBEIRO PARA RAFAEL MONTEIRO. 02


 

Lisboa, 20 de Setembro de 1973

Exmo. Sr. Rafael Monteiro,
meu prezado Amigo:

 

Recebi, li e agradeço o seu curioso opúsculo sobre os painéis «de Nuno Gonçalves». Também li, recentemente, o belo estudo que intitulou de «Esclarecimento da história da vila piscatória de Sesimbra».

Bem sabe que muito aprecio os trabalhos históricos do Rafael Monteiro, com suas inteligentes hipóteses e suas ressurreições de vidas esquecidas. O tema dos painéis, além de misterioso e escabroso, é também perigoso para quem o abordar sem os indispensáveis sacramentos, pois causou já muitos desgostos a escritores ilustres e até uma morte por suicídio, mas eu louvo a coragem de quem é capaz de se sacrificar na defesa de causas perdidas. Perdida está a minha campanha em prol do ensino da filosofia portuguesa nas escolas públicas, mas nem por ver a desistência dos que outrora me acompanharam deixei alguma vez de insistir na seriedade do meu propósito.

O espírito arábico-judaico, por assim dizer sefardim, que subjaz na língua e na cultura portuguesas, moldado depois pela cleresia católico-romana, bem merece a atenção do Rafael Monteiro no anunciado estudo sobre o «convento» do Cabo Espichel, cuja publicação se aguarda com o maior interesse. Não é verdade que os cristãos portugueses impedissem que se pintasse a figura do judeu em igreja católica; contra essa objecção milita a abundância de azulejos com temas do Velho Testamento, a pintura de uma admirável e perfeita figura de rabino na igreja do Convento de Cristo em Tomar, e a extraordinária figura da árvore sefirótica, com seus dez judeus, num altar lateral da Igreja de S. Francisco em Estremoz. Grande parte, se não a maioria, dos sacerdotes portugueses protestavam em silêncio contra as barbaridades cartaginesas da Santa Inquisição, e protegeram quanto possível os marranos.

Nossos tempos são diferentes!… Vivemos num período de destruição política da Pátria, e até dos fundamentos históricos da Nacionalidade. O Governo nomeia deputados, governadores civis, presidentes das câmaras entre doutores que ignoram as raízes étnicas e o passado institucional dos povos sobre os quais vão exercer autoridade. Assim se descaracteriza a paisagem natural e social por obediência às instruções da O.C.D.E. e da U.N.E.S.C.O.

Bem hajam, pois, os escritores populares e patriotas que protestam contra a utopia da uniformização cultural num Mundo em que o espaço e o tempo diferenciam as manifestações da vida. Rafael Monteiro merece a gratidão dos sesimbrenses!…

Queira confiar sempre na estima intelectual que já alguns anos lhe dedica o seu amigo e admirador

 

Álvaro Ribeiro

 

<< 46 | 47 | 48 | 49 | 50 >>