VERDES ANOS. 07

04-09-2014 09:07

Traição dos «Clercs»[1]

 

Dirigem-se estas linhas àqueles que, sendo escritores por vocação irrecusável, reconhecem ao mesmo tempo que a literatura, tal como se encontra socializada, constitui um meio em que pode perder-se a essência ígnea que eles põem em movimento. Existem, efectivamente, homens para os quais escrever actua como um comando interior, mas que visam outra coisa que não se identifica com a literatura nem com qualquer das formas – místicas, políticas, religiosas, filosóficas –, por que é conhecida vulgarmente a manifestação do espírito. A situação desses homens é eminentemente problemática. Como resolvê-la?

Uma atitude indispensável é tomar as manifestações literárias no que elas são: qualquer coisa que não é mais nem menos do que o resto, que não goza, por mais espiritual ou intelectual que pareça, de nenhuma superioridade sobre as restantes formas de actividade humana. Ver na literatura o domínio em que o espírito eminentemente se revela, sentir isso na forma de admiração pelos génios alheios ou pelos próprios, eis o que caracteriza a disposição íntima do literato. Este sentimento ligado à impressão de que para escrever não faz falta pensar, pode ser uma das explicações da razão por que nos últimos anos tem aumentado tanto o número dos escritores. Não há adolescente que não se julgue um génio em potência; não há homem que, depois de ter recebido os aplausos do seu grupo ao primeiro livro publicado, não se creia um génio definitivo. Se perguntarmos, porém, o que é um livro de versos – até mesmo a Divina Comédia –, ou um romance – até mesmo As Afinidades Electivas, ou uma tragédia – até mesmo o Hamlet, verificamos que só por os referirmos a algo que não é literatura e que nada tem que ver com «talentos» e «génios» podem assumir um real interesse. Esse algo aponta para as raízes da vida, para a tremenda verdade do mistério essencial.

Outra atitude indispensável é a de guardar o anonimato. Assim se evitará o perigo ocasional do prestígio, que é o brilho do próprio nome actuando negativamente sobre o indivíduo que, em vez de o ter, dele é tido. Como se guarda, porém, o anonimato? Como guardá-lo? Melhor, como consegui-lo?

Numa época em que todos estamos socialmente identificados, os pseudónimos podem servir apenas como um processo de anonimato construído interiormente. Pelo pseudónimo somos anónimos para nós mesmos. A sua adopção actua como um processo mágico sobre quem o adoptou. Eu não sou eu e sou outro. Desde que se mantenha firmemente o intervalo, não atribuindo importância aos sucessos ou insucessos do nosso outro (e o facto de ser outro a tê-los favorece esta atitude de superioridade) realiza-se uma espécie de desdobramento que, sendo ainda meramente formal, constitui todavia um exercício libertador. A exacta vivência do pseudónimo transforma-o em heterónimo. No caso de Fernando Pessoa, a projecção e animação de alguns elementos constitutivos do seu ser preparou e acompanhou a desidentificação em relação à «pessoa aparente com que vivia física e socialmente».

A sociedade ilude-se quando julga que homem fica identificado desde que sejam fixadas com precisão as linhas de referência exteriores. O escritor deve, porém, tomar consciência desta impossibilidade e viver activamente por processos intelectuais o princípio em que radica a infinita possibilidade de se dar a si próprio formas diversas. Consciente da sua dignidade inominável, pode depois descer ao mundo literário sem perigo de ser contaminado.

Uma terceira atitude indispensável é a do segredo quanto à própria doutrina que defende. Deve apresentá-la de tal modo que a critiquem ali onde ela não está e que ignorem ali onde ela parece não estar. Isso fez também Fernando Pessoa, que defendeu ao mesmo tempo várias doutrinas nos campos político, religioso, filosófico –, mas que só pôde fazer isso porque de todas se serviu sem contradição para justificar e realizar aquela tal que, sendo doutrina, quando se apreende já é outra coisa.

Estas três atitudes, que se poderiam multiplicar em seis, nove ou mais, concentram-se numa directriz única essencial: a de manter um destaque em relação a nós e ao ambiente que escolhemos ou nos escolheram para actuar. Quer isto dizer que o escritor do tipo indicado é para literatos que escreve? Ou que da literatura se serve para levar longe a sua influência?        

O literato português, e falamos dele sempre de um modo geral e abrangendo nesse termo não só o poeta como o crítico, não só o romancista como o historiógrafo, não pode constituir o tipo de leitor que convém ao escritor que definimos. Esta cultura que passamos a examinar e que é a da dissociação da poesia e da prosa em termos tais que exprimem uma mentalidade definitivamente cindida e fechada. Observe-se, no exemplo mais alto, a incapacidade que poetas e romancistas de indiscutível valor mostram em transpor para o domínio da prosa reflexiva a problemática fundamental que os preocupou no romance ou no poema. Por outro lado, aquilo que predomina na crítica, no artigo, na notícia, no ensaio é uma prosa de tipo desportivo, com a preocupação dos valores adjectivos – coisa evidente para quem se der ao trabalho de comparar, nas respectivas publicações, os dois tipos de linguagem. Determinado escritor deve treinar-se ainda, neste livro mostra mais qualidades, é já uma promessa das nossas letras, é superior àquele e inferior a este, deve procurar outra profissão, etc., etc…. Tudo isto numa prosa mascarada em que se pensa tão-pouco que quem tem a paciência de a ler, semana após semana, jornal após jornal, chega, por vezes, a suspeitar que, se há quem pense, com certeza não escreve. Ao lado dos escritos de apreciação ou intercruzados com estes, temos, com carácter mais científico, aqueles em que friamente se situa o escritor estudado na época em que viveu ou vive, na escola a que pertenceu ou pertence, no meio social que o definiu ou define. Não será preciso procurar muito para encontrar algo nas folhas desportivas. Tudo, porém, muito respeitado porque se trata de «crítica» e de «sociologia».

Aos poetas consente a sociedade literata que se ocupem de «problemas metafísicos», porque a poesia e o romance pertencem ao reino da fantasia, do sonho e do irreal. A poesia é uma forma de deleite, de passatempo, de evasão. Tratar em prosa, e numa linguagem firme, positiva, em que o conceito domina a palavra, segredos como o do amor e da morte ou o da sedução feminina ou o da reminiscência activa, constitui um crime que deve ser apontado e logo esquecido, quando não for castigado pelos vários processos de crueldade social. É que a prosa vem a dar a consciência lúcida da realidade que, na poesia, no romance e no teatro fora conhecida por vias semiconscientes e segundo a categoria da espontaneidade – o que equivale a querer realizar o acto absurdo de trazer a noite para dentro do dia.

Neste panorama ou nesta ambiência nada há a esperar daqueles que, por este ou por aquele motivo que a psicologia mais superficial explica, deixaram a «poética» pela «crítica»; mas nada impede que por um acto de transcensão inferior os artistas que no domínio da espontaneidade são espíritos que vêem façam por pensar os mesmos temas em prosa, naquela prosa que se adequa ao seu conceito, e realizem assim sensivelmente o trânsito para o tipo de homem superior. Claro que o círculo perfeito supõe um terceiro termo, aquele que, para lá da espontaneidade e da lucidez, a ordem dos espíritos que podem define como operatividade.       

 

António Telmo



[1] Chave, 1.º ano, n.º 2, Lisboa, Maio de 1964, p. 8.