VOZ PASSIVA. 27
Na edição n.º 452 do jornal Raio de Luz, mensário de opinião e informação do concelho de Sesimbra, que saiu hoje, Pedro Martins, na sua habitual coluna, evoca António Telmo, agora que se aproxima o quarto aniversário da partida do filósofo.
Do lado esquerdo*
Pedro Martins
– Não recuse o socialismo que há em si. Procure antes o que ele tem de superior…
Foi assim, quase à queima-roupa, no Rossio de Estremoz, defronte do Café Águias d’Ouro onde escrevera a História Secreta de Portugal e tantas outras laudas da sua obra genial, que António Telmo, surpreendente, me exortou a tentar via, como diria o preclaro Bruno, José Pereira de Sampaio de seu nome, graça a que os leitores amigos se vão já acostumando. Deste último, no parecer de Pessoa o único homem que no seu tempo, em Portugal, mostrava compreender, e portuense ilustre que, na visão mítica de um Augusto de Castro, ao balcão da sua padaria na Rua do Bonjardim, aos Aliados, recebia, humílimo, a insigne, insólita visita de um Dom Miguel de Unamuno (foi, na verdade, esperar o basco à estação ferroviária, para depois com ele conversar no recato do lar), até António Telmo Carvalho Vitorino, o Tó, filho do doutor do Registo que muitos, entre os mais velhos, ainda recordam em Sesimbra, corre uma fieira de nós na corda luminosa das gerações que, da informal Escola Portuense ao movimento da Filosofia Portuguesa, com estação central na gesta da Renascença Portuguesa, procuraram, a cada instante, pensar audazmente os problemas humanos e os segredos da Natureza, os pés firmes como raízes no chão dilecto da Pátria, olhos fitos no mistério do firmamento, onde estrelas lucilam as letras que há no imenso tinteiro de Deus.
Quando, pelos meus vinte anos, descobri Teixeira de Pascoaes e a sua Arte de Ser Português, logo me maravilhou que ideias como a de Deus, a de Pátria e a de Família, a despeito da concisa homonímia, pudessem ali ser tratadas bem nos antípodas do salazarismo. No breviário pascoalino haveria por certo, interposta, a insuspeição da palavra grandiloquente: Humanidade; mas o jeito arejado com que o vate de Amarante se antecipara a revirar os termos triádicos que o tiraninho de Santa Comba, lustros mais tarde, tornará impraticável por décadas, despiu-me de preconceitos pelo avesso.
Apesar de Sampaio Bruno haver encabeçado a frustrada revolta republicana de 31 de Janeiro de 1891; e de, no seu livro maior, A Ideia de Deus, protestar mais não ser do que um sectário jacobino (no que aliás, com proverbial modéstia, falta sem mácula à verdade da sua grandeza); apesar de Teixeira de Pascoaes, o heterodoxo impenitente, expressar publicamente, alto e bom som, em 1949 o seu apoio ao candidato oposicionista Norton de Matos; apesar de Leonardo Coimbra, que viera do anarquismo, haver afrontado, enquanto Ministro da Instrução Pública da I República, a anquilosada e retrógrada alma mater conimbricensis de então, ao estabelecer, no Porto, a Faculdade de Letras que, em uma só geração, dará à terra mais antifilosófica do planeta (assim Leonardo se referia a Portugal) a plêiade gloriosa onde pontificam pensadores de escol como Álvaro Ribeiro, José Marinho, Agostinho da Silva e Delfim Santos; apesar de Marinho, por mor de acrisolada oposição ao Estado Novo, se ter visto impedido de aceder ao magistério e, anos a fio, sobreviver, aos baldões, de explicações angariadas pelo prestígio do génio com que iluminava os espíritos; apesar de Álvaro, vindo da Renovação Democrático, primeiro grande movimento de oposição ao Estado Novo, haver passado as passas do Algarve sem nunca porém passar de um modesto emprego como editor do Mensário das Casas do Povo, prestimoso repositório ainda hoje subestimado; apesar de Agostinho da Silva, com indeclinável dignidade e coragem cívica exemplar, no curso da abominável Lei Cabral (que Pessoa, intimorato, execrara em magistral artigo de imprensa) se ter recusado a proclamar perante os áulicos que não era mação nem comunista; apesar de tudo isto, e de muito mais, aquilo a que, com razoável extensão, sói chamar-se Filosofia Portuguesa tem surgido conotado, urbi et orbi, com uma certa ideia político-religiosa a que, por comodidade de expressão, cabe o nome de reacção, ali onde o autoritarismo e o dogmatismo dão as mãos à repressão.
No entanto, haverá que reconhecer como, adentro da casa de Portugal, em indisfarçada insídia, lavravam os germes malsãos. Cingindo-me ao testemunho pessoal da década exaltante que com António Telmo me foi dado viver, deporei, anónimos, dois casos reveladores de como, ao redor do filósofo, nas suas cercanias, pude colher ventos inquietantes.
A vez primeira que tomei parte da roda convivial, na sequela vespertina de um repasto de caldeirada (estávamos em solo sesimbrense, já se vê!), alguém me abordou com um zeloso panegírico de Salazar, mal ciente, porventura, de que à sua ilharga, tutelar na bravura, mas alheado do dislate, estava o homem que, em 1971, enfrentando, à sombra do campanário, com a barba suspeita de bolchevismo, a intriga de alguns tiranetes provinciais, ousara fundar no Redondo a primeira escola democrática de Portugal.
Anos mais tarde, no decurso de uma tertúlia em Arruda dos Vinhos, onde, com Telmo, revisitávamos o paraíso terreal da sua infância, descobri, com assombro e protesto, como os pederastas insulares, deixados na penumbra do esquecimento devido a um louvor que o maioral da Madeira, intuitu personae, endereçara à Filosofia Portuguesa, eram passíveis de benévola destrinça perante os continentais, de muito mais duvidosa inclinação política. Quando saímos do café, António Telmo acercou-se de mim e disse: – Você tem razão!
Entre muitos outros benefícios, devo-lhe, com efeito, o aviso sério de quão baldada é a progressão no pensamento sem a observância da estrita imparcialidade. Não há mais alta posição no exercício difícil de se ser livre. Exprobrar com justeza um regime caduco como aquele em que hoje vegetamos como pátria e como nação não pode, notadamente, implicar o renovo de uma mordaça que, como freio infamante, foi aposta aos portugueses durante meio século. E a verdade é que escrevo agora estas linhas sem sombra de receio daquelas outras que os lápis azuis outrora traçavam.
Como bem notou Miguel Real, em tempos de plebeísmo foi António Telmo um aristocrata do espírito, em permanente comunhão com o povo, e desdenhando, com íntima solenidade, de uma burguesia de falsete que, em sua irresponsável pulsão juvenil, muito amesquinha quando tudo julga poder comprar. Assistido pela coragem suprema da liberdade, só por si dignidade bastante ao crédito de reverência com que sempre nos interpela, perseguiu Telmo a difícil via crucis de reclamar, a um tempo, à esquerda e à direita da cruz, o direito a afirmar o santo nome de Deus e o de pensar livremente a sua ideia, caminho dos mais estreitos numa terra como a nossa, em que os campos tão extremados se confrontam. Não sem engulhos entre alguns dos mais próximos, fê-lo pelo lado de dentro, desoprimindo no recôndito da alma o costado hebraico soterrado por séculos de labaredas e fumos negros. Tenho para mim que, nele, o marrano haveria por força da dar o cabalista e este o iniciado que, ao revelar publicamente, mais do que a sua condição, o seu pensamento maçónico, pôde mostrar como poucos homens se lhe avantajaram numa vida veramente religiosa.
Com António Telmo, que, pressentindo, com lucidez e argúcia, a elevação do sacerdote, teve a coragem de defender Joseph Ratzinger quando tantos o verberavam no começo do seu pontificado breve, mas germinal, muito gostaria hoje de conversar a propósito deste extraordinário Jorge Bergoglio que a Providência nos designou. Creio que Telmo (que em seus escritos tardios revelava crescente compreensão pela Companhia de Jesus, de onde o Papa Francisco provém) lhe apreciaria o desprendimento frugal, o diálogo franco e exemplar (Skorka, o amigo rabino, evocando o kabbalista Nathan vis a vis com Thomé, o cristão gnóstico, personagens dos diálogos télmicos), a coragem escandalosa de tolher sinecuras, desmandos e perversões, ou a irreverência deposta nos gestos, simples mas autênticos, com que se acerca dos pobres e de quantos sofrem.
Evoco Telmo prestes a completarem-se quatro anos sobre a sua partida, lembrando a sua coragem, a sua autenticidade. Como daquela vez em que, já director da Biblioteca Municipal de Sesimbra, numa recepção a Américo Tomás, tocado de apetite, irrompeu pelo meio da mesa em U aprontada para o banquete oficial, encetando, à revelia dos comensais, a lagosta que dominava a távola. Ao erguer o rosto, com um pedaço na mão, deparou-se o filósofo, à sua frente, com o olhar censório, fulminante, quase patibular do chefe de estado. Não vacilou, porém, este homem incomparável, a quem o astrólogo Hórus, que consultara a instâncias de Rafael Monteiro, predissera, anos antes, ser ele o único capaz de derrubar Salazar. Com um sorriso intrépido, propôs a Tomás:
– Prove. É uma maravilha! Ou não fosse de Sesimbra!...
Foi isto pelo meio da mesa em U. Aqui o recordo. Do lado esquerdo, que é onde pulsa o coração...