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DISPERSOS. 10

16-05-2014 09:22

O batoteiro

 

Usava monóculo e, como o heterónimo do poeta, chamava-se, que coincidência!, Álvaro de Campos. Aparecera em Borba no verão quente de 197… e, no club que frequentava assiduamente, conjecturavam os esquerdistas que devia tratar-se de algum fascista que fugira para onde ninguém o conhecesse, mas alguns, menos apaixonados, duvidavam que assim fosse porque, então, porque diabo teria escolhido o Alentejo?

Não jogava, mas assistia de pé, longas horas, atrás de um dos jogadores, sem dizer palavra e sorrindo amavelmente para quem olhasse para ele. Várias vezes o tinham convidado, mas recusava o convite, dizendo não conhecer o jogo de poker aberto. Tentaram por meio de perguntas que julgavam hábeis saber alguma coisa sobre o indivíduo. “Gosto muito do Alentejo e dos alentejanos.”  “O médico recomendou-me estes ares.” Os argumentos que metam filhos ou doenças convencem toda a gente. Mas a sua presença silenciosa irritava-os. Os mais corajosos lançaram-lhe uma ou outra “indirecta”. Ficava imperturbável.

Jogava ali um barbeiro que fazia dó, quando perdia. Os outros chasqueavam: “Lá se foi o dinheiro de mais dez barbas!”. Não respondia, procurando esconder as mãos que insistiam em tremer, coisa impossível, já se vê, porque as mãos têm que estar sobre a mesa a segurar e a manipular as cartas.

“José Joaquim, lá se foi o dinheiro de mais quatro barbas!”

E repetiam a cada jogada perdida do barbeiro o mesmo estribilho, só com a variante do número calculado pelo valor da importância. Naquela noite, se não fosse a presença do homem do monóculo, o barbeiro, como de costume, teria deixado andar. Como, porém, os chasqueadores procuravam com o olhar a aquiescência do “desconhecido”, o barbeiro teve um súbito acesso de cólera e disparou:

- Ainda vou a casa buscar a navalha para vos fazer a barba a todos.

Foi um troar de gargalhadas. O barbeiro levantou-se e saiu furioso, deixando na cave duas fichas esquecidas. Houve um grande silêncio e todos se voltaram quando o homem do monóculo falou:

- Posso sentar-me e jogar aquelas duas fichas?

Toda a gente se esqueceu do barbeiro, emocionados todos com verem que, finalmente, o homem ia entrar na sua sociedade. Um deles ainda tartamudeou: - Se não traz dinheiro consigo…, mas dois cotovelos sustiveram-lhe a palavra. “Pois não, faça favor.”

Era a vez do barbeiro distribuir as cartas. O desconhecido recolheu-as de sobre a mesa e, antes e começar a misturá-las olhou fixamente para o centro da mesa. Sentia-se o silêncio dos outros. Lentamente, começou a manipulá-las e disse para os lados:

- A mistura dos elementos.

Com a mão esquerda pôs o baralho à frente do jogador a quem cabia “cortar”  e falou de novo:

- A troca do que está em cima com o que está em baixo.

Pegou de novo no baralho e, enquanto distribuía as cartas, ouviu-se distintamente como num rito mágico:

- Para Leste, para Sul, para Oeste, para mim. E assim sucessivamente duas vezes. Tirou depois um ás para a mesa.

Não se ouvia uma mosca. O da esquerda abriu. Seguiu a roda das apostas. Metade não foi à jogada, os dos ângulos colaterais. Nova carta: outro ás. Desistiram os outros quatro. O desconhecido recolheu as fichas.

Um deles disse:

- Gostava de saber se tinha os quatro ases.

- Pois não. –  E mostrou um oito de oiros e um nove de espadas. Não me digam que nenhum de vocês tinha um ás!

Aqueles homens, habituados ao inusitado, estremeceram na sua sólida auto-confiança. Começaram a sentir-se ridicularizados, mas nada disseram porque não havia um motivo plausível para protestar o que quer que fosse. Todos pensaram no seu íntimo que deviam esperar pelas outras jogadas. Mas, nas outras jogadas, o homem ganhou sempre, por tal modo que, por volta da meia noite, ficou sozinho. O contínuo viu que durante alguns minutos se manteve sentado, olhando tristemente para o pano verde da mesa.

- Não quer rebater as fichas?

- Ah! Sim. Se fizer favor.

Meteu no bolso umas boas dezenas de contos e saiu.

Ninguém o viu mais nem teve qualquer notícia dele. Rosnavam que se tinha abotoado com o dinheiro deles e à custa das duas fichas do barbeiro. Mas este comprou um automóvel e duas cadeiras modernas para a sua barbearia.

 

António Telmo

DOS LIVROS. 09

15-05-2014 09:47

De um caderno de apontamentos. 04

 

Quando dei a um dos meus contos o nome de A Dama de Oiros, tive alguma hesitação entre oiros e ouros. A melhor gramática de língua portuguesa, que é uma gramática espanhola, ensina que, nos autos de Gil Vicente, os dois ditongos distinguiam cristãos e judeus. Onde o cristão diz agouro diz o judeu agoiro. Com efeito, a evolução do ditongo au latino de aurum para oi, sendo foneticamente impraticável, terá de explicar-se por importação de outra língua o uso deste ditongo, alternando com o ditongo ou nessas palavras de forma dupla. O mais comum é dizer-se, hoje ainda, ouro e não oiro, tesouro e touro.

A substituição do vau (u) pelo yod (i) na palavra aurum está, como nas outras palavras de forma dupla, como uma marca de um povo em que o yod (i) designa o judeu.

A raiz aur da palavra aurum aparece em aurora e em aura e, como em hebreu aur significará luz, estamos perante um dos muitos casos que torna discutível a separação entre línguas semitas e línguas indo-europeias. O que é surpreendente é que também a palavra aures (orelhas, ouvidos), tenha a mesma raiz, como se o ouvir fosse um escutar da luz.

Ninguém como os judeus do tempo de Gil Vicente estava em condições linguísticas mais bem situado do que eles para interpretar a palavra aurum na sua relação com a luz. Podemos por isso imaginá-los a repelir o som cavo e obscuro ou, achando-o imperfeito para exprimir o esplendor do metal luminoso.

O i, décima letra, enquanto yod, do alfabeto hebraico, é aquele ponto luminoso irradiante (Tipheret) para oito direcções. O vau corresponde a Malcuth, ali onde a luz toca o abismo e as trevas, é, como expliquei na minha Gramática da Língua Portuguesa, o ponto em que a treva se torna luz e a luz treva. Entre a noute (palavra hoje desusada) e a noite há toda a diferença de uma noite escura sem luz e sem estrelas para uma noite límpida de Janeiro.

A Dama de Oiros está impregnada de uma luz que a Dama de Ouros não contém. Daí a minha preferência no titular do conto.

Para o rio Douro não temos a variante Doiro. Mas, se em vez de Minho puséssemos Munho, criaríamos uma palavra sem qualquer luz dentro. Os fonemas são ou não são significativos?

Só não o são para os linguistas de ofício. E, no entanto, são estes linguistas que nos ensinam nas Universidades. Fazem-no de costas voltadas para a Arte Poética, essa Cabala dos loucos.

 

António Telmo

 

(Publicado em Congeminações de um Neopitagórico, 2006-2009)

VOZ PASSIVA. 21

13-05-2014 09:36

TELMO, António, Contos, Lisboa, Aríon, 1999, 186 pp.*

Pedro Sinde

 

António Telmo surpreende-nos agora com um livro de contos. Cada um destes contos surge como aquelas casas antigas dos aldeões portugueses: a partir de um centro, que era a cozinha, onde se mantinha aceso o fogo do lar – como as Vestais no templo sagrado – ia-se acrescentando, ao longo das gerações, novos compartimentos, resultando o conjunto num edifício harmonioso, como se uma só pessoa o tivesse projectado e edificado. Assim, colocado mesmo no centro da casa, vai o  olhar de António Telmo (o “olhar místico” como o caracterizou António Quadros) espraiando-se sobre as diferentes personagens dos contos, partindo esse centro comum a todas elas.

Cada personagem julga-se sozinha até encontrar esse ponto comum que a une a uma série de outras personagens; aí ela percebe que os acontecimentos são regidos e unificados por algo que a transcende e orienta pelo meio de “acasos” que passam a ser vistos como efeitos.

Há um jogo mágico de forças que, antes de se realizarem como destino, são pensamentos. São forças que atam e desatam as pessoas umas às outras, forças sempre precedidas por sinais anunciadores dos acontecimentos, sinais que são a linguagem do mundo – por exemplo o trovão em Os Dioscuros ou, no mesmo conto, o facto de Tiago pensar, a certa altura, constantemente em Jacinta, e esta lhe aparecer logo de seguida; é o caso ainda da coincidência de, em A Arte de Olhar, o protagonista se ter visto privado dos óculos, mesmo no período em que lhe é dada a oportunidade de experimentar o método do Dr. Bates. A linguagem do mundo aparece (de) cifrada de modo claro em A Minha História. Que o leitor leia atentamente este relato verdadeiro. Nestes contos há sempre uma íntima união entre as personagens e o que as rodeia, como se tudo convergisse para o mesmo, para a realização do mesmo, como no lar a cozinha.

O mesmo fio misterioso que perpassa os seus livros de Filosofia Cabalística, perpassa aqui estes contos. São experiências, vivências e pensamentos que nascem ora sob a forma de ensaio ora sob a forma de contos, como se estes últimos fossem o laboratório da luz filosófica, onde as concepções de António Telmo se testassem. Por isso nos seus livros de filosofia se entrançam já contos com ensaios – por exemplo Filosofia e Kabbalah ou o Horóscopo de Portugal.

O conto é, tantas vezes, a melhor forma de transmitir doutrina, porque aí os conceitos são obrigados a sair do mundo noético do espírito quase puro para incarnarem, como o Verbo exemplar, e ganharem vida terrena. Esta herança do Álvaro Ribeiro de A Razão Animada é aqui praticada pelo seu discípulo, conforme se diz no Prolóquio a Filosofia e Kabbalah: “No Liceu Aristotélico, que funcionava na Brasileira do Rossio, Álvaro Ribeiro ensinava, no ano simbólico de 1957, que a filosofia é uma arte, a Arte de Bem Cavalgar Toda a Sela, o que pode explicar também como, num livro de Filosofia e Kabbalah, apareçam poemas, aforismos, contos.”

Mas António Telmo não escreve os contos como quem ensaia em laboratório. Os contos surgem da sua vida pelo ímpeto criador, voluntário ou involuntário; surgem como surge o céu e a terra e as flores nela, nesse palco incomensurável de comédias e tragédias. Assim vão sendo dados ao autor, vivendo na sua alma em gestação para serem depois concebidos e incarnarem no corpo estreito ou largo (depende do leitor) das letras.

 

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*Publicado em Teoremas de Filosofia, n.º 2, Outono de 2000. 

 

VOZ PASSIVA. 20

12-05-2014 09:27

O milagre do Le Bateleur*
Ângelo Monteiro

A primeira vez que li o LE BATELEUR (Lisboa: Átrio, 1992), de António Telmo, seu autor me fez lembrar um Jorge Luiz Borges português. Numa segunda leitura veio-me à idéia de que Jorge Luiz Borges bem poderia ser um António Telmo argentino. O jogo de espelhos, a escala de similitudes bem como de contrastes, toda uma infinita série de gradações de sentido levou-me a aproximar um do outro, mas o solo que alimenta a criação do escritor portenho não é o mesmo do escritor português, em que o cruzamento subterrâneo de várias influências, não somente lusas, mas também mouriscas, judaicas ou cristãs-novas, lhe permite um diálogo permanente com um alter-ego perfeitamente à sua altura, que é o personagem Tomé Natanael, com o qual se completa até anagramaticamente.

Outra diferença: Jorge Luiz Borges toma, muitas vezes, como ponto de partida de sua narrativa uma relação com literaturas supostamente existentes ou desaparecidas, para mostrar, no fundo, a evanescência de todas as coisas e, afinal, sua relatividade, ao passo que António Telmo lida com uma tradição viva, de que busca desvelar o misterioso significado para além do campo imediato das aparências.

Os contos de LE BATELEUR formam na realidade uma fabulação única marcada por cogitações que vão desde a criação da linguística no século XIX, na Alemanha, e os problemas provocados pelo choque com a herança hebraica da Kabbalah, – de que António Telmo é um exímio estudioso – até à história secreta dessa mesma linguística, envolvendo, inclusive, uma fantástica teoria conspiratória.

Tudo começa com a história de um poeta que foi pintado por um pintor. A imagem do poeta, de tal maneira se tornou estranha àquela que possuía em vida, que terminou por dominar a primitiva na memória de todos. A pintura do poeta virou um negativo, em suma, da primeira carta do TAROT que traz a figura de um bateleur, uma espécie de arlequim ou prestidigitador. Não se sabe ao certo se se trata da história – como parecem sugerir a capa e a contracapa, onde estão as duas figuras – do retrato do poeta Fernando Pessoa feito pelo pintor Almada Negreiros.

O argumento por excelência do livro é um caloroso debate intelectual entre António Telmo e Tomé Natanael: e não escapa a esse debate nem uma nova interpretação do quadro de Rafael, A Escola de Atenas, - por sinal bastante original, por enfatizar antes o foco interior de uma mesma energia nos olhos dos dois filósofos , Platão e Aristóteles, que a convencionalíssima opinião dos dedos para cima e para baixo de ambos, como representando apenas suas posições opostas – nem uma absolutamente surpreendente comparação ente as Categorias de Aristóteles e o seu equivalente à luz da Kabbalah.

Há, portanto, uma relação de simetria entre o retrato do poeta feito pelo pintor – que nos aparece, prestidigitadoramente, como o negativo de um arlequim – e a A ESCOLA DE ATENAS, de Rafael, - que procura representar a histórica ambivalência entre os dois pensadores gregos mais famosos – à qual somos convidados a contemplar. Para que contemplando essa simetria, possamos participar, subindo os degraus necessários, do conflito eterno e emblemático entre a realidade e a aparência, ou, noutro plano, do antagonismo, em sua função complementar, entre a Arte e a Filosofia.

António Telmo é um dos poucos autores contemporâneos, daqui ou de além mar, de quem realmente podemos aprender algo; via de regra desaprendemos de tudo quando começamos a lê-los, em sua grande maioria, porque o culto da personalidade parece neles ser mais absorvente que a ânsia, afinal legítima, de comunicar sua própria intuição ou uma forma da Verdade que supostamente lhe foi dado captar.

Em LE BATELEUR temos um autor erudito sem deixar de ser sábio, sobretudo pela exemplaridade de seu instinto artístico, onde não há lugar para divagações tão brilhantes quanto estéreis, que se querem imbuídas da mais alta modernidade, porém desconhecem inteiramente o espírito da literatura e a verdadeira marcha do pensamento.

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* Publicado em Encontro - Revista do Gabinete Português de Leitura de Pernambuco, ano 16, n.º 16, 2000, p. 203.

INÉDITOS. 12

09-05-2014 10:18

O escritor justifica-se. Sob a forma dialogal, António Telmo revisita, num conto que deixou inédito, o seu livro de Contos, prevenindo-lhe as críticas e as objecções. É este um escrito em que a sua lúdica inteligência vai a par do humor, sempre subtil, com que nos toca. 

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O contador de histórias e a mesa de bilhar

 

“Li o teu novo livro e quero dizer-te, com toda a franqueza, com a lealdade que se deve ter entre amigos, que achei os teus contos cheios de defeitos. Não há o retrato físico de uma só personagem que seja. Não lhe vemos o rosto. Contentas-te com lançar um nome que é Julião ou Isidro Jorge como podia ser outro qualquer. São apenas um nome e às vezes nem nome têm. Não sabemos se são morenos ou loiros, magros ou gordos, altos ou baixos.

Os lugares onde se passam as histórias são apenas indicados.

Depois, só há praticamente o protagonista e, às vezes, uma segunda personagem para o fazer existir. A intriga, como a palavra o diz, exige, pelo menos, três pessoas. Os teus contos não têm intriga.”

O crítico falou assim e ficou à espera da reacção do contador de histórias.

– “Tens razão.” Respondeu por fim. “É verdade tudo quanto dizes.” E ficou silencioso.

O crítico irritou-se.

– “E então?” Perguntou ele.

– “E então, nada.”

– “Nada não”, vociferou o crítico. “Tens obrigação de dar uma satisfação aos leitores, de te justificares perante eles.”

O contador de histórias sorriu e disse suavemente:

– “Falas dos meus contos como se desempenhassem na sociedade um papel igual aos das pastas de dentes. Verificou-se que a pasta produz a cárie dentária. O fabricante tem de retirar o produto e de pôr no mercado um que satisfaça os seus utentes. Não é isso?”

– “É e não é. É no sentido de que, quando vieres a publicar outro livro de contos, terás o cuidado de não cair nos mesmos defeitos.”

– “Então porque não o escreves tu?”

O crítico guinchou um som indistinto e ripostou:

– “Não sou um contista. Sou um crítico. Um especialista em análise literária. Compete-me orientar o gosto dos leitores.”

– “Ou o talento dos escritores?”

– “Uma coisa e a outra.”

– “Oh meu caro amigo, sempre houve grandes escritores e os críticos não têm dois séculos de existência. Eu não vejo como seja possível, com palavras, tirar o retrato físico exacto de uma pessoa. A palavra não se fez para isso. Talvez, aqui, nos fosse mais útil a foto-espingarda do Julião. Quando leio nos grandes escritores, num Camilo, num Eça, num Domingos a descrição física de uma personagem, não fico a vê-la como ela é, se algum dia foi, no espírito do seu criador. É o leitor que a imagina, se quiser.

Quanto às paisagens, tenho que dizer-te o seguinte. Basta falar em eucaliptos e no alto de uma montanha para que o leitor veja toda a paisagem, aquela que ele gosta de imaginar naquele caso particular.

No que diz respeito ao terceiro ponto, o de não haver intriga, porque só há uma personagem, pergunto-te se achas que um homem é pouca coisa. Tu preocupas-te com mais alguém, além de ti? E não é, preocupando-te contigo e com o teu aperfeiçoamento, que podes melhorar os outros?”

A discussão prosseguiu pela noite fora. Oxalá tivesse antes prosseguido pela noite dentro!

O contador de histórias acordou, no dia seguinte, mal disposto. Tinha a zoar-lhe na alma a crítica do crítico.

Depois de ter mascado na cozinha o pequeno almoço, saiu para o quintal. Ouviu cantar um galo. Como é que diabo poderia ele dar com palavras o canto do galo? Lembrou-se daquele seu professor de Português no Liceu que soltava um assobio e pedia a um aluno que escrevesse no quadro aquele som. “Esta gente só quer artes plásticas”. Rosnou. No entanto, havia no seu espírito qualquer coisa de muito forte que dava razão ao crítico. Entrou em casa e foi ao seu quarto buscar o seu livro de contos que tinha na mesa de cabeceira. Folheou-o e leu aqui e ali. Sentia-se triste, cheio de desânimo. Leu de novo aqui e ali e voltou a não gostar. De repente, viu que estava farto de literatura. “Tenho de deixar de escrever.” Concluiu. “Não tenho paciência”.

Foi então que pensou em comprar um bilhar, a sua grande paixão de quando era adolescente e que, mais ou menos, conservou pela vida fora. Tinha em casa uma sala de que fizera, de concerto com a mulher, o seu escritório e, simultaneamente, a sala de visitas. Era a única divisão na casa que comportaria o tamanho de uma mesa de bilhar. Era ali, porém, que a sua mulher dormia agora, num divã que era ao mesmo sofá e cama. Esse divã teria de sair e as estantes, os livros e o restante mobiliário, para que o bilhar pudesse funcionar, teriam de ir para o sótão, o único lugar onde tinham cabimento. Isto ainda era o mais fácil. O pior era que a mulher voltaria a dormir com ele na cama do casal.

Não era que não se dessem bem. Incomodavam-se um ao outro com o ressono. Se ela adormecia primeiro, com o barulho que fazia ressonando, não conseguia ele pegar no sono; se era ele o primeiro, não conseguia ela. De comum entendimento, decidiram que se montasse no escritório aquele divã e passaram a ter noites separadas. Ela,  porém, cedeu dificilmente porque temia que a separação física tivesse consequências físicas indesejáveis.

Se ali pusesse um bilhar, voltariam a ter de dormir juntos e reapareceria o problema causado pelo ressono. Mas a ideia de um bilhar, de praticar nele a série americana, dominava-o com a força de uma obsessão. Consultou a mulher. Fingiu ela que a ideia não lhe agradava; ele ficaria sem escritório, ela sem sala de visitas. Fingiu e sentiu ao mesmo tempo. Mas enfim, era como ele quisesse.

O bilhar foi mais forte do que o ressono e entrou pela casa dentro.

Aconteceu, porém, que, passados uns tempos, nem dormia nem jogava ao bilhar. era aborrecido estar ali estupidamente e empurrar três bolas sem o atractivo da competição. E não encontrou ninguém disposto a vir jogar com ele. Os poucos jogadores que havia na cidade preferiam praticar o bilhar onde fossem assistidos por outros.

Uma noite, apareceu-lhe o crítico em casa. Já não se viam desde aquela discussão. Ficou admiradíssimo de ver a modificação da sala.  

– “Por um miserável jogo de bilhar, perdeste o teu reduto de escritor, tens os livros a apodrecer no sótão e não tens onde receber decentemente as visitas.”

 – “A ti se deve. – Disse o contador de histórias.

– “A mim se deve?!”

– “Sim. por causa de, ti perdi o gosto de escrever e reapoderou-se de mim a paixão do bilhar. Voltei a dormir com a minha mulher. Foi, afinal, a única coisa positiva. Difícil, mas positiva.”

E contou-lhe a história do ressono.

O crítico riu a bandeiras despregadas. E repetia: “O ressono! O ressono!” E concluiu: “Aí está um belo conto!”

O leitor desta história pode ver que ela foi escrita e sem o retrato físico das personagens. 

 

António Telmo

VOZ PASSIVA. 19

08-05-2014 11:39

António Telmo – Fábulas com pinturas*

António Cândido Franco

 

Eu podia dizer que a Filosofia Portuguesa é uma rosa brava que se usa na lapela sem se desfolhar ou então um bordado selvagem, mas prefiro abster-me, que o assunto é sério e tem andado resfriado de equívocos.

A chamada Filosofia Portuguesa encarada à distância de 50 anos nada tem de desperdício cultural ou de transigência política. Para desperdício cultural há trabalho em demasia e para transigência política oposição a mais. Por detrás da benevolência tartamuda de um Álvaro Ribeiro esconde-se um invejável cepticismo ou até um racionalismo de esquadro e compasso, como por detrás da expressiva eloquência de um José Marinho se depara com um espantoso inconformismo, apostado em livrar o homem de todos os incómodos. Marinho não foi só o mais saudoso dos discípulos de Leonardo Coimbra; foi também o bravo que suportou corajosamente 30 anos de exclusão social, por ter sido implicado no atentado de 1937 contra Salazar.

A Filosofia Portuguesa parece assim um admirável ardil da História. Há humores que só se percebem 50 anos depois e este bem pode ser o estratagema a que a História inteligentemente engendrou em clima adverso e frio para salvar do esquecimento os sóis quentes da cultura espiritual republicana da Renascença Portuguesa.

É lástima que um tal trabalho de resistência possa ter sido visto, mesmo por argutos, como pouco menos que o afortunado dizer da sensibilidade média da época. Mais que demolir, interessou aos homens da Filosofia Portuguesa demandar o espírito que sobrevive às ruínas, mas isso só abona o talento raro de que dispunham e a desamparada situação de orfandade em que viviam.

António Telmo foi um dos jovens que há 40 anos se deu conta que o diálogo de Álvaro Ribeiro e José Marinho a uma obscura mesa de café não era assunto de rotina. Deixou-se então ficar na roda e estreou-se aos 36 anos com uma Arte Poética (1963). Hoje com mais de setenta, o autor passa por ser um caprichoso esotérico, quando não um perdulário que desperdiça em charadas e horóscopos a inteligência que Deus generosamente lhe confiou. Outros ainda, mais prosaicos e rasos, dizem-no tão só apreciador da batota e do bilhar, quando não da tourada portuguesa ou da caça às perdizes.

Eu nada sei disso. Conheço-lhe bem as letras, mas mal os passos. Por isso, digo que ele é um homem discreto, que foge da vaidade do mundo, sem precisar para isso de se fazer hipócrita ou insuportável. Tem o gosto inato do convívio, mas não se presta a fazer de pavão nas montras dos passeios públicos. Tal como Herberto se fica por um recanto de uma anónima tasca do Largo da Misericórdia, também Telmo não troca o café da cidade onde vive pelas docas de Alcântara ou os bares do Bairro Alto.

 

Julgo que isto só lhe fica bem. E julgo ainda que esta modéstia pessoal não é uma questão de feitio mas de justiça. Mais do que um hábito, ela é uma vontade. Há em tal cuidado a nobreza de um propósito, que tem sido de resto o centro de todo o seu trabalho literário. Este homem tem procurado em tudo quanto escreve, e não tem sido muito, o esforço de um aperfeiçoamento moral. De nada lhe vale a beleza, se tal encanto não se traduzir para ele num acréscimo de melhoria interior.

O que anda por aqui não é nenhum idealismo requentado, mas o lastro bem apetrechado do Aristóteles que desfibrou a tragédia, encontrando no suor amargo da poesia um superior sentido purgativo. O resultado é António Telmo ser um dramático, antes de ser um filósofo; mais vale para ele a beleza sem efeito que o raciocínio sem catarse. A primeira é só postiça, sem chegar a ser pérfida; o segundo é diabólico, sem ser inofensivo.

Daí o requintado domínio que este escritor de ideias pôs desde a sua estreia nos processos poéticos. A poesia é que monta, já que só ela garante, através do efeito purgativo, a operacionalidade moral e emotiva das ideias. E daí ainda este seu novo livro de contos, que sendo porventura o primeiro parágrafo do seu testamento espiritual é também o lugar onde a filosofia se dramatiza. Telmo parece dizer: – Não se pode chegar a uma arte de pensar sem primeiro viver uma arte de ver; quer dizer, não há filosofia sem o espectáculo prévio da poesia. Eu sei que coisas destas se esquecem facilmente. Mesmo um livro como este, em formato de álbum e com sete pinturas de Armando Alves, se abandona a correr. É muito mais fácil lembrar Mónica Lewinsky ou o cartão multibanco. Mas mesmo que nada disto mexa com a nossa vidinha, pode vir a bulir com a dos deuses, que esses, parece, nada sabem de televisão. Então aí o assunto ganha uma transcendência insuspeita. A palavra dos poetas, tão desabonada na terra, faz de vez em quando rugir o Céu.

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* Publicado em JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias, de 1 de Dezembro de 1999.

in JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias, de 1 de Dezembro de 1999.

Ler mais: https://antonio-telmo-vida-e-obra.webnode.pt/bibliografia-/

 

VOZ PASSIVA. 18

06-05-2014 14:53

Editado com a chancela da Átrio (José Manuel Capêlo), O Bateleur de António Telmo foi lançado no dia 10 de Dezembro de 1992, na Galeria Nasoni, em Lisboa (na Av. Columbano Bordalo Pinheiro), tendo sido apresentado por Afonso Botelho. Viria, mais tarde, a ser incluído nos Contos, saídos a lume na editora Aríon, do mesmo Capêlo, em 1999.

Naquela sessão, e também com a chancela da Átrio, foram ainda lançados os livros Estruturas Simbólicas do Imaginário na Literatura Portuguesa, de António Quadros, apresentado por Artur Anselmo, e Eleonor na Serra de Pascoaes, de António Cândido Franco, apresentado por Francisco Soares.

Então jornalista do Diário de Notícias, António Carlos Carvalho, que esteve presente na sessão (tal como, por exemplo, Natália Correia), escreveu de O Bateleur:

«Le Bateleur» é a primeira carta do Tarot, como se pode ver na capa do livro de António Telmo. E constitui a chave que foi dada ao autor (pelo seu «alter ego» Tomé Natanael) para decifrar o famoso retrato de Pessoa feito Almada Negreiros. Todo o texto (apenas meia centena de páginas, mas deliciosas de ler e profundas nos conhecimentos que encerram e nos transmitem) conduz o leitor a domínios que são caros a António Telmo desde há muitos anos e que fazem dele o mais esotérico (e por isso mais interessante), discípulo de Álvaro Ribeiro, sendo assim o mais original pensador das últimas gerações da Filosofia Portuguesa (que existe e recomenda-se), como salientou Afonso Botelho na apresentação do livro. Um texto de um filósofo do espírito para despertar os que conseguiram sair do adormecimento encantatório em que foram mergulhados pelo chamado «mundo moderno».

É o texto da apresentação de O Bateleur, de Afonso Botelho, que dedicou a António Telmo -- “Ao António Telmo com um abraço do amigo Afonso Botelho” -- o respectivo original dactiloscrito, hoje guardado no espólio do filósofo, que em seguida se publica.

 

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Lançamento de O Bateleur - Dez. 92

Afonso Botelho

 

Primeiro o Autor. Porque a obra que hoje aqui apresentamos, não obstante a forma narrativa por que se exprime, constitui uma teoria de todos os seus trabalhos anteriores. O leitor que não lhes apreendeu o sentido tem, se se deixar conduzir pelo Bateleur, a oportunidade de agora o apreender. E se o seu espírito não se satisfizer, poderá ainda continuar viagem com este barqueiro em direcção ao próximo livro de António Telmo, já que um conto exemplar não se esgota por ser exemplarmente contado. 

Por mais do que uma via, o símbolo pictórico ao significado ideal, António Telmo recupera a figura do Bateleur, trasladada pelo negativo para o retrato de Fernando Pessoa. E recupera-o como Hermes-Mercúrio, conciliador em si mesmo das oposições, mítica personalidade que tanto pode significar o poder, a vontade firme, como as máscaras do ilusionista.

No seu labor criativo, o nosso Autor tem andado sempre próximo do deus hermético, compreendido na sua complexidade; Almada Negreiros seguiu de perto o ilusionista, o bateleur saltimbanco, no duplo sinónimo que encontramos em qualquer dicionário Francês-Português.

Voltemos, porém, ao Autor, para dizer dele o que nenhum crítico literário está em condições de dizer: Das últimas gerações da Filosofia Portuguesa ele é o pensador mais original. E com este juízo não o estou valorizando mas apenas caracterizando-o entre os seus pares. Digo que é o mais original, como poderia dizer que António Quadros é o mais inspirado, Orlando Vitorino o mais racional ou António Braz Teixeira o mais essencial. Tais atributos só fazem sentido, todavia, desde que os consideremos à luz de um movimento que tem o pensamento em língua portuguesa como o mais filosófico dos pensamentos. Bastaria, portanto, a dedução deste universo do pensamento para que a originalidade que atribuímos a Telmo tomasse um sentido oposto ao que o uso literário lhe fixa e para o qual a origem se restringe à causa imediata da mudança, ao aparecimento do diferente, da imagem fugidia e efémera.

A origem que alimenta a narrativa, agora apresentada, não é causa imediata de mudança alguma que os nossos olhos possam detectar. É, pelo contrário, a fonte que nasce entre a imagem primeira, do uno e eterno, e a sua expressão metafísica. Ela manifesta-se ao nosso olhar, desenganando os nossos olhos.

Tal prodígio explica o comportamento dos livros de António Telmo nas nossas bibliotecas pessoais. Tenhamos a coragem, de confessar que as suas lombadas, quase sem espessura, brilham e sobressaem entre os costados volumosos e baços dos tratados ou manuais, parecendo até que tudo o que eles tratam e nós manuseamos pede constante socorro àquelas “miniaturas preciosas”, como chamava Sánchez Albornoz aos livros de Merêa, porque nelas está escrito o que ainda não tinha sido dito nem tratado, sendo verdadeira a secretude que anunciam para a História de Portugal, para a Gramática da Língua Portuguesa, para os Lusíadas ou para a Filosofia e Kabbalah.

É como se nessas poucas páginas se inscrevesse um roteiro de tesoiro escondido, é como se nelas encontrássemos as regras de um jogo humano-divino, que tanto pode valer uma liturgia religiosa, em que o logos inteiramente substitui a vontade, como um jogo de cartas regido pelo best, que tudo ou nada vale.

Ao primeiro jogo escusam-se os moralistas, que preferem a decisão judicativa à liberdade de espírito; ao segundo furtam-se os racionalistas extremos, que a tudo querem atribuir valor imutável, ou os materialistas, que não admitem carta principal em nenhum jogo humano.

No entanto, nestes livros se compreende que não existe qualquer saber lúdico, ou do espírito, sem padrão que assuma o Nada, nem valor que não gere infinitas combinações.

Esta plurivalência dos termos, regra de oiro do secreto, cumpre-se ao longo do texto que hoje vem à luz, ou da Luz, a começar pelo primeiro conto, que emerge da sentença popular: “quem conta um conto acrescenta um ponto”. E o ponto desdobra-se em vários sentidos, que não lhe alterando a essência, lhe permitem que seja contado infinitas vezes, como se novidade fosse de cada vez. Este é o ponto que acrescenta ser ou o renova – é o ponto da tradição, guardado na gaveta do Antiquário, Tomé Natanael e entregue depois ao hermeneuta, cujo nome descende etimologicamente de Hermes, cristianizado e santificado.      

Ponto será também o grau de conhecimento a que o iniciado se eleva. Ponto é com certeza o excesso de luz que o narrador deixa no conto de novo narrado, e, igualmente, a situação do olhar – o ponto de vista – do que narra, propõe ou argumenta. Ponto é um sinal de escrita que dá termo visível a um conceito; ou é sinal inefável que dá início à geometria sagrada, de interpretação infinita e oculta.

Mas o ponto-chave do Bateleur é aquele que medeia os dois grandes temas deste livro, os quais, por essa mediação ou iniciação se transformam nos dois seguintes filosofemas: a magia da primeira carta do Tarot, trasladada para o retrato de Pessoa deu o poder criador do hermeneuta; a unidade essencial da Cabala e das Categorias de Aristóteles deu a adunação do pensamento grego à tradição sófica hebraica através da língua portuguesa

Estes dois mundos de conhecimento apresentam-se em continuidade temática e, por integração, acabam completando um só universo.

O primeiro, através de subtil dedução etimológica, faz participar o Autor do poder mágico de Hermes, e o hermeneuta, de intérprete de enigmas, passa a ser ele mesmo criador de enigmas.      

Embora vários e aparentemente díspares caminhos sejam percorridos, desde o científico ao onírico, desde o lógico ao intuitivo, desde o teatral ao rigorosamente filosófico, todos concorrem para tornar exemplar e único o segundo filosofema.  

Interpretado do ponto de vista do drama existencial do Autor, isto significa que, desde a Gramática Secreta, em que está meridianamente proposta a Cabala de Portugal, como síntese da hebraica e da cristã, António Telmo vem percorrendo a sua estrada de Santiago, na demonstração de que o português tem a energia que promove o encontro do pensamento grego com o pensamento do Ocidente, corrigindo assim a ideia de Heidegger de que só “a técnica constitui o verdadeiro triunfo da metafísica ocidental”.

Tal como outros pensadores do centro da Europa, este filósofo não interpretou a afinidade que perdura no mistério da civilização mediterrânica e no qual a luta religiosa entre judeus e cristãos esconde uma conciliação subjacente dos mútuos saberes, que a língua e filosofia portuguesas singularmente consubstanciam.

Conhecendo esta fonte viva do pensamento não será efectivamente possível afirmar que a técnica é o triunfo da metafísica ocidental, nem que seja inviável uma irmandade dos povos no Espírito, superadora da linguística que concebe a fundação exclusiva do ser pela palavra, como propõe aquele pensador germânico.

O convívio espiritual dos idiomas, e por ele o convívio dos saberes, está secretamente guardado na tradição, da qual os livros de António Telmo levantaram o primeiro véu.

Decerto o Autor desejaria que mais leitores tivessem merecido os benefícios da revelação completa, cônscio da missão que cabe aos que pensam em língua portuguesa, missão que ele assumiu desde que em 1964, no seu primeiro livro, começou a dar-nos o resultado de uma reflexão funda e iluminada sobre os mistérios do falar e pensar humanos.

Possivelmente sentindo aquela solidão para que a sociedade portuguesa remete os filósofos do espírito, António Telmo dispôs-se a fazer mais uma tentativa de encontrar novas vias de acesso às verdades que se ocultam na nossa tradição judaico-cristã e elegeu o conto como o género que mais adequadamente poderia transmitir-nos essa mensagem porque tradicional é a sua própria voz.

Lendo o Bateleur confirmaremos como resultou benéfica essa tentativa.   

 

Lisboa 3/12/92

INÉDITOS. 11

05-05-2014 21:12

O leitor de Doutoramento e Incesto, um dos Contos de António Telmo, encontrará neste breve apontamento do filósofo, ainda inédito, e presumivelmente incompleto, importantes pistas de aprofundamento. Foi escrito por Telmo após a leitura da tradução portuguesa da Autobiografia do cientista britânico, publicada pela Relógio d'Água em 2004. Os três brevíssimos parágrafios finais, dados entre parêntesis rectos, são, ao que tudo indica, notas auxiliares da composição.

 

Charles Darwin[1]

 

Comprei a Autobiografia de Charles Darwin em tradução portuguesa, num só volume cuja capa é totalmente coberta pela reprodução de um retrato do biografado. Observei, elucidando-me, que as arcadas supraciliares do retratado poderiam muito bem ter-lhe sugerido ao espelho as do seu “antropopiteco” original, antepassado segundo ele e os seus numerosos seguidores, de todos nós mesmo tendo em conta, pelo que a mim diz respeito, o lindo rosto da minha mulher, como ainda hoje se vê, nos seus anos jovens. Tais arcadas formam uma plataforma por sobre os olhos.

Fui à procura numa enciclopédia. Aí aparecia de frente com dois olhos vivos muito chegados um ao outro, proximidade que veio confirmar as minhas suspeitas. Alguém verificou tal similitude antes de mim, porquanto fez aparecer na internet um gorila cuja cabeça é a de Charles Darwin.

O livro com a sua autobiografia veio abrir caminho a outra possibilidade, a de que a ideia de atribuir ao homem, ser meio divino, a vergonhosa origem animaloide lhe tenha vindo, não por via científica (isso viria depois a documentar), mas por causa de lhe ser insuportável outra ideia, a de se imaginar a ter relações sexuais com a própria mãe, a quem adorava tanto que, ao falar da mulher com quem casou, depois só vê nela o facto de ser mãe; e lembrando-o constantemente aos próprios filhos que o admiravam tanto como ele tinha sempre admirado o próprio pai.

Por que terá nascido nele essa insuportável ideia? Porque terá sido a mãe (e decerto também o pai) a fazê-lo praticar a leitura da Bíblia, por volta dos treze anos, conforme era tradição nas famílias judaicas. O Génesis e o Cantar dos Cantares, o nascimento do homem e da mulher que o origina, são os textos bíblicos que mais atraem os púberes e os adolescentes.

Carlos Darwin era, como tudo indica, muito inteligente. Ao verificar que, para haver continuidade de Adão e Eva para diante na sequência das gerações, tinha sido inevitável o incesto, tinham sido inevitáveis as relações sexuais entre a mãe e o filho, entre o pai e a filha, ou simplesmente entre irmãos e irmãs, a ideia do antropopiteco foi como uma iluminação. Se o homem proviesse do macaco por transformação da espécie, Darwin expurgava a ideia que o atormentava. Substituía-se Adão e Eva pelo macaco e pela macaca e a ideia de geração pela de transformação e evolução e a ideia do incesto perdia grande parte do seu poder. Assim o jovem Darwin enviava para o subconsciente esta possibilidade, tapando-a no consciente com a sua famosa conjectura.   

 

[Dá-se-lhe o nome de símio porque o macaco imita o homem.

Aristóteles: “A arte é a imitação da natureza”.

O macaco não é artista, não imita a natureza do homem, mas apenas aquilo que no homem se desvia da natureza.]

 

António Telmo

 

[1] Título da responsabilidade do editor.

 

INÉDITOS. 10

02-05-2014 09:29

87 ANOS DEPOIS: ANTÓNIO TELMO, SEMPRE!

No dia do 87.º aniversário de António Telmo, oferecemos aos nossos leitores um impressionante dactiloscrito inédito do filósofo sobre a pequena vila de Arruda dos Vinhos, terra das suas primeiras grandes memórias e lugar decisivo na formação do homem e do pensador. O comentário é de Pedro Martins.

 

Arruda[1]

 

Começo a lembrar-me de mim em Arruda. É uma terra dos arredores de Lisboa, formada de ruas estreitas, atravessadas de um a outro lado por uma rua mais larga, de alcatrão, à qual, como em quase todas as nossas vilas, se chama rua Direita. Está rodeada de montes, mas os declives são suaves, cobertos de vinhedos, com algumas manchas de searas. A rua Direita sobe com algumas curvas desde a Quinta da Ponte, que se me representa como um largo portão, desde um rio, que para mim sempre foi maior que o Tejo do livro de Geografia, desde uma ponte que passa por cima do rio, até ao jardim, pequeno e bem tratado, cheio de sombras e árvores, – acácias, freixos, álamos e outras de que não sei os nomes –, até ao campo da feira, todo cruzado por fileiras de plátanos, até à praça de touros, redonda e encarnada, com grandes portas em forma de ferradura e pequenas bilheteiras de um e de outro lado da porta principal, por onde enfiávamos as pedras lestas das fisgas.

Naquelas ruas, cheias de medos e becos, brincávamos aos polícias e ladrões logo que anoitecia. O resto do dia por aí fora (havia tantas férias nesse tempo!) passávamo-lo no adro da Igreja a jogar o pião ou o botão ou a malha ou o berlinde, conforme a estação do ano, mas eu preferia matar toutinegras nas duas grandes pimenteiras tão altas que quase tocavam na torre, onde havia um grande sino de bronze escuro, que não soava só para baptizados, casamentos e enterros, soava também quando nos entretínhamos a atirar-lhe pedradas. Saíamos muitas vezes para o campo, em grupos de dois, e três, e quatro a roubar fruta, a caçar pássaros, a procurar ninhos. No tempo do figo lampo, passávamos tardes inteiras na sombra gelada e febril da árvore de Judas, espiando com olhos atentos o saltitar das flosas entre as folhas largas como mãos. Eu ia poucas vezes sozinho. O silêncio do campo fazia-me pânico. Ainda não tinha lido os filósofos alemães e não podia saber que era a minha própria presença que me apavorava. Procurava os lugares da ribeira onde brotassem juncos e malmequeres; tinham um aspecto de jardim e de família que me tranquilizava e esconjurava os sátiros. À noite, antes de me deitar, e conforme reza a história de todas as crianças, uma criada meio vesga, alta e magra, muito feia, contava-me contos de lobishomens. Ia para a cama cheio de terror, puxava o cobertor por cima da cabeça e suava suores frios muito tempo antes de adormecer. Havia na vila um lojista, o sr. Matos, de quem se dizia que era lobishomem. Íamos até lá e, enquanto aviava os fregueses, púnhamo-nos a olhar-lhe para as mãos a ver se descobríamos calos nos nós dos dedos. Tinha as mãos fortes e cara de cavalo. Sem respeito pela etimologia, a pobre mulher dizia que lobishomens eram homens que, de noite, se transformavam em burros. O sr. Matos não era bem lobo nem bem burro, mas tinha qualquer coisa dos dois por ter cara de cavalo. Anos mais tarde, encontrei-o em Lisboa numa esplanada, conversámos, recordando Arruda, como dois bons burgueses, e, apesar de o ter ali a falar comigo na mais clara língua de gente, não resisti à tentação de lhe investigar nas mãos sinais daquela tara sobrenatural.

 

[…][2]

 

Outra coisa que não posso esquecer foi que, ao chegar pela manhã à escola com os olhos inchados, certamente por uma picada de insecto, apanhei da professora, D. Maria Teotónio Guadalupe (como a primeira professora é importante e também o seu nome!), que deve ter interpretado o inchaço como resultado de uma briga. E que fosse uma briga, meu Deus?

A ideia que se faz da infância como de um paraíso na vida não é tão certa quanto rezam os livros, pelo menos se a minha pode servir de exemplo. Vivia num mundo hostil, povoado de medos. Tremia ao ouvir o trovão, enquanto o meu Pai se sentava a um canto da sala, muito quieto, envolvido numa manta, e mandava fechar todas as janelas. Ouvia falar do comunismo e da guerra, como de uma ameaça terrível, como de uma nuvem negra pejada de coriscos. Uma noite estávamos na sala e tínhamos visitas, as do costume, – o médico e um lavrador chamado Vaz Monteiro –. De repente, a criada irrompeu por ali dentro, gritando: – Uma grande Luz no Céu, Senhor Doutor! Saímos todos em tropel, atrás da criada que nos encaminhou para a varanda da cozinha. Era uma aurora boreal! Estávamos todos contemplando em silêncio aquela poeira de fogo, quando se ouviu alguém dizer: – É a Guerra! O meu coração maravilhado fez-se pequenino como uma espiga.

 

*  *  *

           

Mais tarde, vim a atribuir esta obsessiva sensação de instabilidade interior, que nunca mais me deixou pela vida adiante, não à minha infância, (e como à minha infância, se a criança que fui a vejo, lembrando-a, como vejo qualquer outra criança exterior a mim?), mas à carga de atavismo judaico que transporto comigo. Nos meus tempos de menino em Arruda, os outros rapazes chamavam-me o Chinês. (…)

 

[*  *  *]

 

 

À volta da vila, havia várias ribeiras, a que chamávamos rios. Havia o rio da Ponte, de que já falei; o rio da Verruga, com a sua água feita das fezes amalgamadas da população, mas tão fresco e tão sombrio nas tardes de verão e com tantos pássaros, por causa da sombra e dos insectos amantes dos dejectos, que para nós era o mais belo rio do mundo; o rio da Pipa, sabe-se lá hoje porquê Pipa!, com um largo caminho sempre ao lado e entre um e outro uma fileira de choupos e eucaliptos todos inclinados para um lado; o rio da Fresca, estreito e cavado fundo entre vinhedos, todo cheio de curvas, cotovelos e silvas, por cujas margens era uma aventura ir em fila indiana, todos os sentidos atentos ao surgir dos lagartos, das cobras e das ratazanas. Seguindo o curso dos rios, percorríamos todo o arredor. Só não subíamos para o lado da Quinta de São Sebastião, onde morava a Bruxa, numa casinha branca a meia encosta entre a vila e a quinta. Contava-se entre os garotos que um homem vinha descendo, uma noite, um pouco depois da casa e uma sombra se lhe atravessou no caminho e não o deixava passar.

– Mas uma sombra de quê? Uma sombra duma árvore? Perguntava eu.

– Uma Sombra. Não sabes o que é uma Sombra? Respondia o Malicos.

Malicos era o rei do adro. Todos nós o temíamos. Não costumava acompanhar-nos nas nossas excursões ao campo, onde se sentia em situação de inferioridade nos combates contra os pássaros. Também era dos piores nos jogos, mas aí obrigava-nos a jogar com ele até ganhar e fazia batota. Uma vez que o meu berlinde estava a um palmo do dele e eu jogava a matar, disse para mim:

– Tira-te daí que quem joga por ti sou eu.

– Mas tu não podes jogar por mim.

– Porque não? Não é o mesmo?

– Não, não é o mesmo. As tuas mãos não são as minhas nem os teus olhos são os meus olhos. Tu erras de propósito e se queres jogar por mim, então joga sozinho.

Eu estava revoltado e quase capaz de perder o medo, nem que tivesse de ir para casa com os olhos pisados de murros. Jogávamos com abafadores e o vencido perderia o seu. O meu abafador tinha umas cores muito lindas.

– Já te disse que te tirasses daí. – Empurrou-me para o lado e abaixando-se atirou devagarinho o meu. Meteu os dois berlindes no bolso, andou uns passos, tirou-os outra vez de lá, e fê-los brilhar ao sol saltando-lhe nas mãos. Eu estava pálido, não fazia um movimento, mas com qualquer coisa em mim sinistra se estabelecia um terrível pacto de vingança.

Malicos era baixo, mais forte do que qualquer de nós e tinha um pescoço grosso. Tinha cara de homem com treze anos. A tudo quanto dizíamos para fazer valer os nossos direitos respondia sempre: “Isso não interessa”. Das crianças que brincavam no adro, creio que não havia uma que não lhe desejasse a morte.

Malicos acamaradava com Lucas. Pela época em que se passou o roubo do abafador, Lucas tinha perdido o seu prestígio entre os rapazes, um prestígio de natureza mágica que lhe adviera de ser capaz de cortar um arame com os dentes. Era um cobarde. Malicos também certamente, mas a cobardia não estava à flor da pele como em Lucas. Nunca ninguém se atreveu a responder à sua agressividade com a agressividade e pôde chegar a homem temido por todos. Lucas, porém, era frágil como um caniço e tinha uma cabeça grande de chimpanzé com os seus terríveis dentes. Entre os trapos que o vestiam, parecia estar sempre a tremer de frio. Depois que lhe perdemos o medo e o fizemos fugir à frente das pedras e dos murros, passou a andar sempre com Malicos. No tirano veem os cobardes aquele dos seus capaz de estabelecer uma situação de domínio sobre os humildes, inteligentes e corajosos.

Todos os rapazes da vila passavam pelo adro a brincar, excepto um: o filho do Mário das Galinhas. Como o pai, vivia à margem da sociedade. Às vezes, víamos passar os dois em cima da carroça puxada por uma mula. A casa deles ficava por trás da minha, mas levantava-se um grande muro entre os dois quintais e só uma vez trepando ao telhado consegui entrever uma mulher, de certo a mãe do rapazito, a despejar numa sardinheira um balde de água. O Mário das Galinhas era o herói da vila para todos nós, que o procurávamos imitar roubando fruta nos pomares e botões na caixa de costura. Era um homem de cinquenta anos; ao pé do filho, que rodava pela nossa idade, parecia mais avô que pai. Lembro-me de um rosto de ave de rapina cheio de rugas, calado, triste e austero, por baixo dum boné cinzento, e com um bigode grisalho, muito bem tratado como o de meu pai. O filho era gordo e corado, com umas pernas brancas e moles, e tinha um olhar inexpressivo, apagado e doce como o dos bovinos. Uma tarde de outono, [em] que eu e outro rapaz regressávamos pelo rio da Ponte de uma caçada aos pássaros, vimos a carroça parada junto ao muro da Quinta do Tonicas. O rapazito estava em cima da carroça e ia recolhendo as maçãs que o pai lhe passava por cima do muro. Nem sequer olharam para nós, quando nos cruzámos por eles. Faziam aquilo sem pressa, com naturalidade e indiferença, como se a fruta fosse deles e estivessem a apanhar o que era seu.

Este encontro quebrou parte do encanto que em mim despertava o ladrão de galinhas. Os meus roubos de maçãs tinham muito mais emoção e muito mais risco. Nessa mesma tarde, tínhamos limpado dezenas de pêssegos nas barbas do proprietário, que a vinte metros de distância tratava a sua horta e não via o vai-vem contínuo dum bracito saindo dum canavial na margem da ribeira.

O Mário das Galinhas, dias depois, fez vibrar a vila com uma proeza extraordinária. Foi em Vila Franca, terra onde não era tão conhecido. Pelas onze horas da noite, alguém que passava reconheceu a sua carroça junto a um celeiro. Correu a avisar a polícia, tanto mais que reparara estar a porta entreaberta. Juntou-se ali muita gente, mas a polícia quando entrou viu que havia uma abertura no telhado por onde o ratoneiro se escapulira. Subiram para os telhados, distribuíram-se pelas ruas próximas, mas foi em balde que o procuraram. De repente alguém gritou: – A carroça desapareceu! Tranquilamente, Mário esperou que não estivesse ninguém à porta, saiu de sob o trigo onde se escondera e tomou um rumo desconhecido. Durante alguns meses não foi mais visto em Arruda. Dizia-se que estava em Runa.          

– Eh pá, vocês sabem uma coisa? – Dizia-nos o Asdrúbal, a mim e a mais três rapazes. – O Mário das Galinhas já aí está outra vez.

– Viste-o?

– Não vi, mas estava o meu pai a dizer isso a um amigo.

Estávamos no adro e anoitecia. Passavam bandos de pardais para o lado dos freixos do rio da Verruga. Os guinchos voavam em grandes curvas, soltando sons estrídulos. Duas mulheres conversavam ao pé das pimenteiras. O sacristão passou por nós assobiando e entrou para a igreja. O Asdrúbal morava numa das casas que circundavam o adro. A mãe chamou-o da janela. Dois dos rapazes partiram com ele. Eu fiquei com o José Mantas, sentados os dois num recanto do adro sobre um pequeno banco de pedra. Era o meu habitual companheiro de caça e a nossa conversa girava, como sempre, em torno de atiradeiras e pardais. Puxou-me pela manga da camisola e fez-me sinal com o olhar para o lado das pimenteiras. As mulheres já não estavam lá, mas junto ao muro da igreja vi duas pequenas sombras deslizando com cautela que, daí a instantes, se sumiram pela porta da igreja que o sacristão deixara aberta.

– Viste quem era? Perguntou-me o Mantas num sussurro.

– Um deles pareceu-me o Malicos.

– Claro que era o Malicos mais o Cunha. Que é que achas que eles vão ali fazer?

– Sei lá! O sacristão está lá dentro.

– Eu não percebo é por que iam a esconder-se, os tunantes.

Calámo-nos e pusemo-nos a espiar. Pressentíamos qualquer coisa, não sabíamos o quê e os nossos corações sentiam-se bater.

– Se a gente fosse lá ver? Disse eu, mas o Mantas puxou-me outra vez pela camisola. Desta vez era o sacristão que saía. Era já noite fechada e só lhe distinguíamos o vulto. Ouvimos a grande chave girar com estalos na fechadura. Malicos e Lucas tinham ficado lá dentro fechados. Quando o sacristão passava na nossa frente, com a chave suspensa numa das mãos, pensámos ao mesmo tempo ir dizer-lhe, mas foi ainda o Mantas que, desistindo, me segurou pelo braço:

– Fica quieto! Não te mexas! Pôs o dedo indicador a prumo sobre a boca.

O homem recomeçou a assobiar e pudemos assim segui-lo até que o som se perdeu na distância.    

– Ouve! – disse-me o Mantas – Vais jantar, não é? Sais esta noite?

– Esta noite não posso. Tenho lição com o meu Pai.

– Que chatice, mas não tem importância. Amanhã pela manhãzinha, oito e picos, está bem?

encontramo-nos aqui. E não digas nada lá em casa. Parece-me que adivinho o que os bandidos foram ali fazer. Agora vamos!  

 

*  *  *

 

 

O prior da Arruda, padre José Lopes, era, como se está mesmo a ver, uma das figuras familiares da rapaziada do adro, que o via passar a horas certas do relógio, marcadas pelas horas dos ofícios: fora das horas dos ofícios, ou caturrava com os republicanos da farmácia ou andava a apanhar espargos nos caminhos trilhados pelas cabras. Calcorreava terreno que nem um demónio este velho de forte arcabouço, não tivesse ele sido o maior caçador da região, enquanto a vista voava mais que a perdiz e os braços eram mais velozes que o ziguezaguear da lebre. Nas horas certas em que passava pelo adro, lá ia pesado e trôpego, mas rijo, resmungando qualquer coisa que nos parecia latim. Nunca nos fazia festas, nunca nos dirigia a palavra: sabíamos, contudo, que gostava de nós. Quando me confessei por ocasião da minha primeira comunhão, mandou-me embora sem me deixar abrir a boca: – Vai-te! Tu não tens pecados.

Na verdade, olhávamo-lo com respeito, não por ser padre, mas por termos ouvido dizer que dez anos atrás não havia na redondeza melhor atirador de perdizes. Havia um mês que o tinha vindo substituir um homem novo, enquanto ele se não restabelecesse duma operação aos órgãos genitais a que o submeteram em Lisboa. A Igreja tinha agora uma frequência mais assídua de senhoras, mas o padre parecia-nos maricas, com o seu passinho curto a atravessar o adro e aquele jogar do corpo dentro da sotaina. Punha-nos a mão na cabeça e fazia-nos perguntas sobre os nossos pais, os nossos estudos, os nossos deveres religiosos. À sua volta, parecíamos um coro de anjos, um círculo barroco de cabeças morenas com dois grandes rios de ranho jorrando dos narizes. Aconteceu algumas vezes que, logo que voltava costas e entrava na Igreja, era um tal chover de pedradas no sino da torre que todas as mulheres vinham às janelas e o sapateiro do canto deixava de bater na tripeça, abrindo a boca num grande sorriso alvar de satisfação anticlerical. O padre vinha de dentro e encontrava o adro deserto. Das esquinas mais distantes víamo-lo esguio e cómico no meio do portal, a fazer muitos gestos, num jeito de espantalho ou de artista de circo capaz de fazer rir os santos nos altares.

Quando eu e o Mantas, na manhã seguinte, chegámos ao adro, a porta da Igreja estava aberta. Entrámos. Os bancos estavam cheios de mulheres que assistiam à missa, enquanto o padre fazia gestos silenciosos, se curvava, se benzia, umas vezes de costas, outras vezes de frente, e lia num grande livro posto sobre o altar. Deste livro dizia o professor Lança na escola que tinha as letras assim tão grandes por ter sido escrito para analfabetos. A Igreja cheirava a papéis velhos. Eu não gostava do cheiro da Igreja, mas ficava fascinado a olhar os vitrais e aquela misteriosa transformação da luz. Havia um silêncio, um andar nas pontas dos pés como se estivesse ali alguém muito doente, que nos fazia olhar para todos os lados à procura de qualquer coisa de invisível; todavia, se alguém tossia começavam todos a fazer o mesmo e era um rascar de escarros nas gargantas por entre o qual o rito continuava a celebrar-se imperturbável. O Mantas tinha-se apercebido, antes de mim, que a tosse era contagiosa. De outras vezes ali tinha ido, acompanhado de alguns de nós, e, escondendo-se atrás duma coluna, escolhia um momento de perfeito silêncio para tossir; logo, uma aqui, outra ali, as mulheres começavam a tossir também e tínhamos de sair à pressa para fora para poder rir à vontade até chorar. Nesses momentos, enquanto a tosse se propagava e os rapazes começavam a não serem capazes de suster o riso, parecia-me que, pelos rostos dos santos alinhados dum e doutro lado da Igreja, passava uma expressão severa.

Naquela manhã, procurávamos com os olhos o Lucas e o Malicos.

– Foi pena termos chegado já com a Igreja aberta. – Sussurrou-me ao ouvido o companheiro. E, de repente, tendo uma ideia que lhe iluminou o olhar: – Anda cá para fora!   

– É o seguinte. – Disse-me na porta. – Como se arranjaram eles com as famílias para passar a noite na rua? Vem daí! Vamos a casa do Lucas.

A mãe do rapaz disse-nos que o filho não estava, que tinha passado a noite na casa do Malicos. Fomos a casa do Malicos e a mãe deste deu-nos análoga resposta, que o filho não estava, que tinha passado a noite na casa do Lucas.

Um vento frio fustigava a vila. Dentro de casa estava-se bem. Uma criança olhava para a rua por detrás dos vidros da janela. À porta da taverna do Matias, um grupo de homens, embuçados em capotes, conversavam de mãos nos bolsos. Uma camioneta de carga vinha descendo lentamente com um chiar de travões que irritava os ouvidos. Por detrás vinha correndo um  homem com uma grande caixa cúbica suspensa nas costas por correias, toda pintada de branco. Parou em frente do grupo e gritou:

– Esquimó fresquinho!

Os homens riram-se: – Eh moço! Isso aquece a gente?

Mas em cima a janela da criança abriu-se e uma mulher fez sinal ao vendedor de gelados: – Que subisse as escadas!

– Esta gente rica! Disse um dos homens. – Quando é que um filho meu comeria esquimós por um tempo destes? Não sabem o que hão-de fazer ao dinheiro.

Um rapazinho puxou-o pelo capote. Tinha uma expressão espantada e tremia com frio, embora levasse uma camisola de malha, levantada até ao pescoço.

– Não viram por aqui o rapaz dos esquimós?

O homem manteve-se de costas voltadas, enquanto os outros riam. Ficou calado e sério uns instantes e por fim informou sem olhar para a criança:

– Está aí dentro. Deve estar a sair.

Começou a chuviscar. O homem voltou-se:

– Olha lá, gaiato! Que danado de gosto é esse de querer comer gelados com um frio destes?

O outro encolheu os ombros e preparava-se talvez para responder quando surgiu o vendedor de esquimós.

– Quatro. – Disse o rapazito, mostrando quatro dedos levantados.

Abalou a correr rua abaixo com os gelados nas mãos. De dentro da taverna, donde vinha um som surdo de vozes e se ouviam estalar sobre a mesa pedras de dominó, alguém disse para fora, interpelando o grupo:

– É o filho do Mário das Galinhas.

Voltaram-se todos procurando o miúdo com os olhos, mas este já havia desaparecido.

– Filho do Mário das Galinhas. E como está bem vestido o diacho!

– Logo quatro gelados. Aquilo era um para ele, outro para o pai e outro para a mulher.

– O quarto para as galinhas (…)    

 

 

António Telmo

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 Comentário

Pedro Martins

 

1. Na obra de António Telmo, nos livros que escreveu, nas entrevistas que concedeu, são várias, porventura abundantes, as referências que o filósofo faz a Arruda dos Vinhos, pequena vila da antiga província da Estremadura, incrustada no limiar indeciso que separa o Ribatejo do Oeste, onde, durante cerca de uma década (após o seu regresso de Moçâmedes, Angola, em 1933, e até à partida para Sesimbra, em 1943), completou a infância e viveu boa parte da juventude. Ali cumprirá com distinção o ensino primário e encetará, como autodidacta (na verdade, não deixará nunca de o ser), a aprendizagem liceal em regime de ensino doméstico, a que seu pai empresta uma tutela branda, mas vigilante.

Antes de mais, tenham-se presentes as páginas, com diversos laivos autobiográficos, de “Os Dioscuros”, narrativa inaugural dos Contos, onde os gémeos protagonistas, Tiago e Túlio, nascem e crescem em Arruda. Ainda neste livro, mas noutro escrito – o extraordinário depoimento intitulado “Trabalho de Grupo” –, deparamos com uma importante revelação de autobiografia espiritual, espacialmente referida ao velho burgo arrudense:

 

    O meu pai foi o meu primeiro Mestre e envolveu o melhor da sua força na forma do filho primogénito. Com efeito, por volta dos meus quinze anos, meu irmão mais velho, que viria a tornar-se famoso como Orlando Vitorino, conheceu o José Marinho e o Álvaro Ribeiro. Por seu intermédio, fui agraciado com a leitura de um livro que decidiu de toda a minha vida espiritual: Literatura e Ocultismo de Denis Saurat.

    É um estudo de poetas ocultistas (William Blake, Milton, etc.), que pretende mostrar a influência na sua obra da Kabbalah. Mas o que me acordou para a ciência do mistério foram os textos do Zohar no fim do volume que o autor selecionou para ilustrar o seu ponto de vista.

 

Tudo isto se dá ainda em Arruda dos Vinhos. José Marinho, impedido pelo Estado Novo de continuar a ensinar nas escolas públicas, ganhara renome como explicador de filosofia. António Diniz Victorino, pai de Telmo e Orlando, solicitou o concurso eficaz do seu prestígio no apoio ao filho mais velho, que pretendia ingressar na licenciatura de Histórico-Filosóficas. Então amiúde se deslocou Marinho à Arruda, onde tomava as refeições com a família Victorino, para habilitar cabalmente o filósofo a haver. O sucedido teve consequências já sabidas: preparou o ingresso de Orlando Vitorino e António Telmo no círculo que ao seu redor, e de Álvaro Ribeiro, se desenhava já, com impressionante vigor, nas tertúlias filosóficas dos cafés lisboetas.

Proporcionada por Orlando, também a descoberta do francês Denis Saurat se revela decisiva na formação de Telmo. À margem das evidências, e para bem avaliarmos a sua importância na formação deste último, bastará considerar que, em apontamento autobiográfico manuscrito que se guarda no seu espólio, o filósofo afirma ter ido para a Universidade de Brasília para ensinar – precisamente – “literatura e ocultismo”.

Fora já em Arruda que uma outra, análoga, descoberta se lhe oferecera à vocação, conforme António Telmo revela na entrevista que, em 1998, concedeu à revista LER – Livros e Leitores:

 

    Eu vivia em Arruda dos Vinhos, e na biblioteca municipal havia uns livros. Um dia, tinha eu dez anos, apanhei um que se chamava Ciências Ocultas, e o que me maravilhou nele foi que, entre muitas outras coisas que lá havia e que eu não percebia, se dizia uma coisa espantosa: que nas nuvens se podia ler o destino. Isso impressionou-me muito, e eu passei a ir para o campo, deitar-me de barriga para o ar a ver passar as nuvens e a ver se era capaz de ler o meu destino. Nunca fui capaz, mas aquela beleza das nuvens impressionou-me e ficou a fazer parte de mim. É aí que nasce tudo, é nesse impulso que começa a minha tendência para estes temas.

 

São afirmações inequívocas, estas; e ilustram definitivamente a seminal, fundamental importância da década de Arruda na formação do futuro filósofo e hermeneuta. E é ainda na pequena vila estremenha que outras leituras – as dos grandes poetas portugueses – se vão insinuando na alma do jovem Telmo, consoante o próprio, já perto do fim da vida, nos revela, a instâncias de Henrique Manuel S. Pereira, na entrevista destinada ao volume À Volta de Junqueiro – vida, obra e pensamento:

 

    Tem presente a época e circunstância em que “descobriu” Guerra Junqueiro?

    Descobri Guerra Junqueiro quando comecei a compreender aquilo que lia. Por volta dos meus treze anos. Nesse tempo, não havia televisão, que veio corromper as noites em família. Jogávamos, conversávamos, líamos. O meu Pai era monárquico e bom cristão. Em jovem, tinha batalhado no movimento do Integralismo Lusitano do António Sardinha e tinha sido preso. Eu e os meus irmãos (éramos três, o António, o Rui e o Orlando, por ordem ascendente das idades) gostávamos de ver a fotografia do nosso pai no Talassa, ali onde se elogiava a actividade monárquica que o levou à prisão. Por esses tempos, também o Agostinho da Silva andava pelo Integralismo Lusitano. Este meu grande Amigo e meu pai devem ter-se conhecido. Ora acontecia que, na pequena biblioteca literária do meu pai (era jurista), só quase havia livros de republicanos anticlericais. É o que acontece hoje com os anticomunistas: todos têm na sua estante, em lugar de honra, o Saramago e o Lobo Antunes.

    Arrisco dizer que um desses livros era A Velhice do Padre Eterno

    Sim, era, e com os Sonetos de Antero de Quental e com o do António Nobre apaixonei-me pela beleza da nossa língua. Lia e relia, nesses serões provincianos de Arruda dos Vinhos, A Velhice do Padre Eterno, mas desse livro só se me imprimiram na memória para toda a vida os dois versos com que começa um dos poucos em que Guerra Junqueiro não ataca o clero: “Minha mãe, minha mãe! ai que saudade imensa, / Do tempo em que ajoelhava, orando, ao pé de ti”. Também eu orava ajoelhado ao pé de minha mãe, que me ensinou a traçar sobre a minha fronte, sobre a minha boca, sobre o meu peito o sinal da cruz, fazendo-me acompanhar os três movimentos do polegar com estas palavras: “Pelo sinal da Santa Cruz/Livre-nos Deus Nosso Senhor / Dos nossos inimigos.”

 

2. A par dos livros, e dos enigmas que neles há, um outro, maior segredo irá interpelar António Telmo: o que se encerra – já que de Junqueiro e d’A Velhice do Padre Eterno (nela inclusos os versos tremendos de O Melro) se vem de falar – nessa “verdadeira Bíblia” de olor franciscano que o grande livro da Natureza contém. São na aparência felizes os anos por si levados em Arruda numa vida ao ar livre, na roda do rapazio: ora no adro da igreja, à sombra do portal manuelino, sugestivo e inspirador; ora à solta nos campos, entre montes e vales permeados pelo assomo copioso das ribeiras: incessante sucessão de jogos, aventuras e partidas em que, por entre as hastes da fisga exímia, desponta já o futuro – e enfim repeso – caçador que Telmo também foi. O excerto de um apontamento tardio, trazido a lume nas Congeminações de um Neopitagórico, constitui-se como o testemunho autêntico do que se acaba de afirmar:

 

    Fazendo por pensar e escrever com a mesma inocência com que vivia o rapazinho de calções armado de fisga; não deixar, por excesso de humildade, de pensar e escrever o que me vai sendo dado como o rio que corre ou o vento sopra. E, cada vez mais, estar retirado do mundo no meu canto provinciano, onde o 666 e as suas manobras se esquecem de atingir-me.

    Vem cá amanhã o Pedro Sinde, vem do Norte ao Sul para conversar. Estou muito contente por termos mais uma vez ocasião de caçarmos juntos ideias com um prazer análogo ao que eu sentia a caçar pássaros com o Mantas pelos campos da Arruda dos Vinhos.

    Mas a dor dos pássaros feridos de morte brada contra mim do outro mundo, de um mundo que é outro mas que está na minha alma. Hoje deixei de caçar, tomado de remorsos. As ideias caçam-se? Aristóteles viu bem quando comparou a filosofia à altanaria? Não somos nós que somos caçados por elas? Não são as ideias aves resplandecentes de luz que uma vez pousadas na árvore do nosso ser íntimo afastam dele todas as aves nocturnas, tenebrosas, inquietantes como o próprio remorso?

 

Bem se vê que tudo lhe começa na Arruda: até o contacto ingénuo com o subconsciente hebraico, que lhe será críptico atavismo, posto a par de um certo fundo anticlerical, ressumado da herança renascente de Bruno e Pascoaes, que será depois também a sua. Ainda num outro apontamento dado à estampa nas Congeminações, conta-nos António Telmo:

 

    Quando eu era criança, por volta dos treze anos, no adro da igreja, em Arruda dos Vinhos, ouvi dizer a um companheiro de brincadeira, no dia de Todos os Santos, que São Tiago só chegava no dia seguinte, porque era coxo. E o rapaz acrescentava, fazendo-me olhar para o céu estrelado, que a poeira luminosa da Estrada de Santiago que, na escola, nos ensinavam ser a Via Láctea, era levantada pelo pé do Santo, arrastando-o enquanto ia ficando mais longe dos outros.

    Sei hoje que São Tiago é o mesmo que São Jacob, aquele que lutou com o Anjo e saiu da luta, que venceu, a coxear. Compreendo agora que o rapaz, falando por tradição, o fazia coxo.

    O que aprendi naquele adro da igreja com os seus arraiais e a sucessão e jogos que jogávamos misteriosamente ordenada como uma liturgia do tempo! Ali começou para todos nós, no domínio da sensação e da imaginação, a aprendizagem do que é a verdadeira liberdade. O filósofo José Marinho, julgo que num dos seus aforismos, se não o ouvi da sua própria boca, dizia: «O que eu amo nas igrejas é o adro».

 

3. Paródico, episódico, picaresco, porém tocado, aqui e ali, pela sombra juvenil do conhecimento do mal, o apreciável conjunto de laudas inéditas dactilografadas que António Telmo dedicou a Arruda parece bem ser o começo de um livro – mais um! – que o filósofo deixou por acabar, e que poderá ter sido lavrado no início dos anos setenta. Ainda assim, e não obstante o carácter algo precário do texto esboçado naquela que presumo ser a sua primeira, inconclusa versão, o que chegou até nós é francamente admirável, por nos patentear um prosador notabilíssimo, num registo estilístico surpreendente, que irá tomar outros rumos no desenvolvimento da obra télmica – compare-se, a este propósito, as páginas simples sobre Arruda dos Vinhos com a elaboração densamente refinada dos Contos do filósofo, de factura, segundo suponho, bem mais tardia.

Transportados para a Arruda pacata e remansosa das décadas de 30 e 40, deparamo-nos com uma escrita límpida, singela, saudável, sem mácula de pretensão, cujos processos descritivos, narrativos e dialogais se impõem com mestria ao prazer do leitor, numa textura de palavras corredias, escorreitas, portadoras de uma fluidez luminosa e, por isso, visual.

Indo muito além do que, nos apontamentos recenseados na obra publicada em vida, e aqui revisitados, nos deu a conhecer do mágico decénio vivido em Arruda, António Telmo, neste memorial melancólico e burlesco, mostra-nos como o germe embrionário da sua inteireza grandiosa logo emerge desse fértil período virginal. Ali encontramos, por via da lembrança, a audácia de uma irreverência travessa, também concretizada na transgressão do pequeno delito, a par do ensimesmamento introspectivo ante o embate do mal e da dor, em que a autognose indispensável à condição filosófica se prenuncia já…



[1] Título da responsabilidade do editor.

[2] António Telmo cortou, no dactiloscrito, a parte do texto que a seguir se transcreve:

 

«Mas o pior, em Arruda, era quando havia um enterro e o caixão entrava na Igreja para ser benzido pelo padre. Interrompiam-se os jogos e as brincadeiras. Esgueirávamo-nos por entre as pernas dos presentes e ficávamos à volta do caixão, a poucos palmos de um rosto lívido sem sangue, que nos gelava o nosso e se metia cá dentro como uma imagem nítida que transportávamos para os sonhos. Por detrás da vila, a uns quinhentos metros e passado o rio da Pipa, um rio que eu amava embora fosse formado dos dejectos da população, havia uma pequena, abrupta elevação, com uma cruz de pedra em cima: chamava-se o Alto da Forca. Só uma vez passei perto da cruz e, por mais que olhasse e reflectisse, não consegui compreender como ali se podiam ter enforcado homens.   

Uma manhã, vinha saindo da escola, uma velha casa de esquina na parte baixa da vila, e andara alguns metros para além da porta, rua Direita acima, quando um homem que estava do outro lado da rua se aproximou de mim e começou a bater-me. Nunca entendi isto, mas fiquei sempre marcado pelo medo que tive.»

 

DOCUMENTA. 03

01-05-2014 10:57

[Eusébio e Cubillas]

 

Introdução

Pedro Martins

 

À ideia de viagem, sempre tão proverbial na vida e na obra de António Telmo, ajusta-se na perfeição o trajecto biográfico evidenciado pelas suas preferências clubísticas.  Adepto do Belenenses desde tenra idade – ao que se sabe, em lance de afirmação diferenciadora perante os seus dois irmãos, um benfiquista, o outro sportinguista –, o filósofo tornar-se-á, mais tarde, nos tempos áureos em que  Eusébio e Coluna pontificam no Sport Lisboa e Benfica, fervoroso simpatizante do clube da Luz. É possível que o aceso benfiquismo de Afonso Botelho e de António Quadros, seus amigos e condiscípulos no magistério filosofal de Álvaro Ribeiro e José Marinho, tenha influenciado a mudança de sentido de Telmo, que,  por um desses anos faustos dos encarnados, ao cruzar-se com Eusébio no Cinema Roma, em Lisboa, requesta um autógrafo ao pantera negra.

É neste contexto de retumbante entusiasmo que, com alguma naturalidade, surge a entrevista concedida pelo filósofo, faz exactamente hoje meio século, a O Benfica Ilustrado, suplemento mensal do jornal O Benfica, à época dirigido por Botelho. Muito longe da futilidade oca e ligeira que tantas e tantas vezes surpreendemos no periodismo desportivo, as palavras télmicas destacam-se pelo seu interesse e pela elevação de quem as profere: um filósofo é um filósofo!...

Telmo, na verdade, vinha de lançar o seu livro de estreia, Arte Poética, e encontrava-se então em Évora, onde fizera tropa e agora ensinava, na Escola Comercial e Industrial, em cuja equipa o surprendemos alinhando, conforme mostra uma fotografia datada de 1962. Tem junto a si a bola, à semelhança do que sucede numa outra imagem, fixada vinte anos antes, em 1942, em Arruda dos Vinhos, em que o jovem António Telmo enverga o jersey do clube local. Praticante de bom nível, o filósofo, aquando da sua primeira passagem por Évora, em 1952, para ali cumprir o serviço militar, terá mesmo chegado a suscitar o interesse do Lusitano local, por quem, uma década depois, conforme se infere da entrevista a'O Benfica Ilustrado, sofrerá a bom sofrer...

Parece que Peyroteo o trouxe ao colo nos anos infantes e remotíssimos – de 1929 a 1933 – em que viveu em Moçâmedes, Angola – mas é como portista, e não como sportinguista, que o adepto do futebol António Telmo Carvalho Vitorino poderá vir a ser lembrado. Aqui, desde há uns bons trinta anos, para seguir as pisadas do filho Manuel, também ele, desde muito cedo, torcedor pelo emblema da Invicta.

O portismo de António Telmo levá-lo-á a tomar parte, mediante convite de Jorge Nuno Pinto da Costa mediado por Pedro Baptista, numa importante jornada de celebração dos dragões: as "Noites do Tri". Foi em 1997, pelo meado de Junho, na cidade em que, com Sampaio Bruno e Leonardo Coimbra, nasceu a filosofia portuguesa de Álvaro Ribeiro e José Marinho, inigualados mestres tripeiros que as agruras do "exílio" irradiante hão-de trazer para Lisboa.

O chauffeur do presidente do Futebol Clube do Porto leva-o e trá-lo de volta a Estremoz. Pelo meio, na cidade da Virgem, por entre as nocturnas notas de Bach que o pianista Paulo Assis e a violinista Lina Turbonet fazem soar, o filósofo profere uma palestra subordinada ao tema "O clube é um mundo"; e tem também tempo para sugerir a mister António Oliveira que aprenda algo de kabbalah, «código velho com que os judeus tentam ainda decifrar o mundo e que pode ser-lhe útil para relançar o movimento que leve do "tri" ao "tetra"». Na verdade – e aqui releva o testemunho que colhi do próprio Telmo –, chega a propor-lhe que disponha em campo o onze azul e branco segundo os ditames das tríades sefiróticas (onze, e não apenas dez, são também as sephirot, se levarmos em conta Daath, ligando Hochmah e Binah no mundo de Aziluth...)!

O jornal O Jogo, que vimos seguindo, dá-nos conta, na sua edição de 13 de Junho desse ano de 1997, das analogias que o pensador estabeleceu entre o jogo e a filosofia. Dois dias antes, em evidente registo lúdico, afirma-se haver quem, na Invicta, espere de Telmo um novo livro, intitulado O Império de Jardel... 

Humano, porventura demasiado humano para alguns, este outro António Telmo. Mas, afinal, o mesmo de sempre. Quando, com António Quadros, acabado o ágape filosófico com os mestres, mãos nos bolsos, assobiando, sorridente, entrava no primeiro café onde se lhes deparasse uma mesa de matraquilhos...  

       

____________

 

Entrevista com António Telmo*

 

António Telmo publicou o seu primeiro artigo no Boletim de Língua Portuguesa.

Após um período em que colaborou nos jornais da capital (Diário de Notícias, Diário Ilustrado, Diário Popular, etc.) fez parte de um movimento de cultura portuguesa, veiculado pela Revista 57, de que foi um dos fundadores. Retirou-se, por necessidade profissional, para Beja, onde durante quatro anos exerceu o professorado no Ensino Técnico. Ali pensou «Arte Poética», livro que só pôde escrever em Évora, em cuja Escola Técnica encontrou aquela tranquilidade de espírito indispensável às criações do intelecto.

«Arte Poética», agora publicado, confirma e revela António Telmo como um dos mais esclarecidos, argutos e poderosos pensadores da moderna geração.

 

P. – Costuma ir ao futebol?

 

R. – Quando o Benfica joga em Évora, nunca falto, assim como nunca perco a oportunidade de o ver nos outros pontos do país.

 

P. – O que o leva lá?

 

R. – O Benfica, os seus jogadores admiráveis, as suas camisolas vermelhas, a sua glória! Devo, porém, dizer que, depois do Benfica, está o Lusitano. Encontro-me ligado a Évora pelo destino: – aqui fui soldado, aqui casei, aqui sou professor. Ainda há dias, sofri nas bancadas para que o Lusitano não descesse de Divisão. Tiveram, porém, de jogar «à Benfica»!

 

P. – Como interpreta a cada vez maior importância do futebol, como espectáculo, na vida do homem contemporâneo?

 

R. – Só posso dizer que as várias explicações que se costumam dar – económicas, sociológicas, políticas e até religiosas –, conquanto verdadeiras dos seus pontos de vista, não me convencem completamente. Há outra, que procuramos. O futebol actua como um anestésico, o futebol representa a luta mítica da luz com as trevas, o futebol entusiasma pela teatralização do heroísmo, o futebol é o substituto moderno das romarias – tudo isto é verdade, mas esta verdade não é tudo.

 

P. – Há reflexos do desporto no plano da cultura ou considera que há total separação?

 

R. – É curioso que a nossa cultura se subordina muito mais ao desporto do que este àquela. Dir-se-á que a mentalidade dos nossos homens cultos é uma mentalidade ridiculamente desportiva. Os escritores são estudados na crítica literária da mesma maneira que os atletas na crítica desportiva. Diz-se, por exemplo, de Domingos Monteiro o mesmo que se diz de Eusébio: – o nível mental a que sobe ou desce a inteligência num ou noutro caso é exactamente o mesmo. Comparam-se os poetas como se comparam os jogadores: – em função da prática, da habilidade, da técnica, dos estilos. Vejam-se algumas correspondências:

 

«Eusébio é superior a Rogério»

 

«Régio é superior a Torga»

 

«Neste jogo, Germano mostrou poder reconquistar o seu lugar na equipa do Benfica».

 

«Neste livro, Fulano (um escritor conhecido), que já não publicava há alguns anos, mostrou-se ainda de posse de todos os seus recursos estilísticos».

 

«Determinado jogador é já uma promessa do nosso futebol».

 

«Determinado escritor é já uma promessa das nossas letras».

 

Deve dizer-se, porém, que os críticos desportivos (que, aliás, escrevem muito melhor que os críticos literários) estão no seu papel. É que a cultura é o domínio do pensamento. Há, também, uma virilidade do espírito, que paira por cima do elogio e da crítica – que são os movimentos característicos da mentalidade feminina. Neste sentido, todos devemos concordar que desporto e cultura se separam por definição. Poderíamos ter levado ainda mais longe aquelas correspondências mentais, se tivéssemos recordado os programas de televisão em que são entrevistados desportistas e intelectuais.

 

P. – O que se oferece dizer sobre o ambiente cultural português?

 

R. – Que é um ambiente em que não se discutem ideias, mas se repetem opiniões, apesar de por ele ter passado o espírito de António Sérgio.

 

P. – Atendendo ao extraordinário desenvolvimento conseguido pelo Benfica no campo desportivo e ao grande número dos seus simpatizantes, acha que também no plano da cultura o Benfica poderia desempenhar papel relevante?

 

 R. – Seria interessante que fosse o Benfica a contribuir para a reforma da mentalidade que domina a nossa cultura, dizendo aos intelectuais: «O desporto é connosco; deixai de ser desportistas no plano da cultura; nós acertámos com os nossos valores; pomos sempre o melhor jogador no melhor lugar; isto é que vocês deveriam aprender connosco, a saber seleccionar os atletas, sem burocracias inúteis e perniciosas, sem cursos feitos para que triunfem os menos aptos. Mas não transferi os métodos que se usam no domínio da força física e da destreza física para o domínio do espírito. Este mede-se pelos frutos, é uma árvore cujas raízes mergulham no fundo imensurável da inteligência humana».

 

O Benfica, precisamente porque vive à parte da cultura, livre dos seus preconceitos e dos seus limites, poderia constituir o ponto de partida dum movimento intelectual imenso. Não é a mim, porém, a quem faltam todos os elementos de ordem concreta, que compete apontar os modos de realização desse movimento.    

 

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* Publicado em O Benfica Ilustrado, suplemento mensal do jornal O Benfica, n.º 80, 1 de Maio de 1964, Ano VII. 

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