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INÉDITOS. 24

15-09-2014 15:54

O muro[1]

A estrada, pela qual se sai de Estremoz para Borba, corre, em dado momento, ao lado do cemitério. Junto a uma árvore, há um pequeno espaço onde me pus com o meu carro. Para a direita, há uma berma coberta de verdura e, a alguns metros dessa berma, o muro do cemitério. Por cima do muro podemos ver um jazigo de mármore.

Vi, olhando para o muro, que ele de súbito tomava a aparência de um lago de 40 metros de largura e uns 100 de metros de comprimento. A água era de um cinzento azulado.

Vi depois que, segundo queria, via o muro ou via o lago. Fui lá nos dias seguintes e de novo verifiquei que eu comandava, segundo a minha intenção, a percepção a haver. Repetiu-se o mesmo no 5.º dia.

 

António Telmo



[1] Título da responsabilidade do editor.

 

INÉDITOS. 23

13-09-2014 13:09

Rafael Monteiro

Jantávamos no Café do Chagas. Lá para o fim da refeição, fosse por causa de uma leve embriaguez, fosse por uma razão menos visível, vi, enquanto ele me falava dos últimos acontecimentos políticos, que o seu rosto se modificou, tomando a forma de um chinês com barbicha e cabelo apanhado ao alto.

 

António Telmo

INÉDITOS. 22

10-09-2014 15:29

Definição[1]

Sou um homem frágil, indolente, medroso, mas sou, ao mesmo tempo, forte, aventureiro, corajoso. Entre um e outro é que me situo verdadeiramente. Meus erros devem-se a esta oscilação, a este vaguear da alma entre fronteiras: uma que traça o limite da desolação e a outra que é começo do lugar das longas planícies com montanhas ao fim. 

 

António Telmo

 

[1] Título da responsabilidade do editor.

 

INÉDITOS. 21

08-09-2014 09:28

Três seres distintos em mim[1]

 

                            30 de Outubro de 1977

Três seres distintos em mim. Seres ou formas: o Tó (ainda hoje alguns vêem em mim a criança e esta imagem que de mim fazem também ainda muitas vezes me identifico com ela); o António Telmo (meu nome literário e suporte do meu “centro magnético”; é completamente diferente do Tó), o António Vitorino (meu nome hereditário, que estabelece imediatamente uma relação com a família e a hereditariedade); e outros muitos de que tenho uma vaga consciência ou um vago sentimento. Há uma imagem criada na relação com o sexo; outra, que não é exactamente o António Telmo, relacionada com o “ocultismo”; outras que nascem conforme a situação em que me encontro: o professor, o convivente de café; o desportista; etc…

Sinto-me como os outros me pensam ou como sinto que os outros me pensam. Quando estou com o Rafael não sou o mesmo de quando estou com o Reis Marques ou o Francisco ou o Patrício ou os meus filhos ou a minha mulher.

No domínio do pensamento, divido-me entre o católico para quem o mundo é o que é e o maçon para quem há que fazer o mundo. Entre Leonardo Coimbra e Sampaio Bruno?

Como sair desta embrulhada? [António Telmo desenhou em seguida, nesta mesma linha, um delta, com um G inscrito ao centro, seguido de um ponto de interrogação] 

 

António Telmo



[1] Título da responsabilidade do editor.

 

VERDES ANOS. 07

04-09-2014 09:07

Traição dos «Clercs»[1]

 

Dirigem-se estas linhas àqueles que, sendo escritores por vocação irrecusável, reconhecem ao mesmo tempo que a literatura, tal como se encontra socializada, constitui um meio em que pode perder-se a essência ígnea que eles põem em movimento. Existem, efectivamente, homens para os quais escrever actua como um comando interior, mas que visam outra coisa que não se identifica com a literatura nem com qualquer das formas – místicas, políticas, religiosas, filosóficas –, por que é conhecida vulgarmente a manifestação do espírito. A situação desses homens é eminentemente problemática. Como resolvê-la?

Uma atitude indispensável é tomar as manifestações literárias no que elas são: qualquer coisa que não é mais nem menos do que o resto, que não goza, por mais espiritual ou intelectual que pareça, de nenhuma superioridade sobre as restantes formas de actividade humana. Ver na literatura o domínio em que o espírito eminentemente se revela, sentir isso na forma de admiração pelos génios alheios ou pelos próprios, eis o que caracteriza a disposição íntima do literato. Este sentimento ligado à impressão de que para escrever não faz falta pensar, pode ser uma das explicações da razão por que nos últimos anos tem aumentado tanto o número dos escritores. Não há adolescente que não se julgue um génio em potência; não há homem que, depois de ter recebido os aplausos do seu grupo ao primeiro livro publicado, não se creia um génio definitivo. Se perguntarmos, porém, o que é um livro de versos – até mesmo a Divina Comédia –, ou um romance – até mesmo As Afinidades Electivas, ou uma tragédia – até mesmo o Hamlet, verificamos que só por os referirmos a algo que não é literatura e que nada tem que ver com «talentos» e «génios» podem assumir um real interesse. Esse algo aponta para as raízes da vida, para a tremenda verdade do mistério essencial.

Outra atitude indispensável é a de guardar o anonimato. Assim se evitará o perigo ocasional do prestígio, que é o brilho do próprio nome actuando negativamente sobre o indivíduo que, em vez de o ter, dele é tido. Como se guarda, porém, o anonimato? Como guardá-lo? Melhor, como consegui-lo?

Numa época em que todos estamos socialmente identificados, os pseudónimos podem servir apenas como um processo de anonimato construído interiormente. Pelo pseudónimo somos anónimos para nós mesmos. A sua adopção actua como um processo mágico sobre quem o adoptou. Eu não sou eu e sou outro. Desde que se mantenha firmemente o intervalo, não atribuindo importância aos sucessos ou insucessos do nosso outro (e o facto de ser outro a tê-los favorece esta atitude de superioridade) realiza-se uma espécie de desdobramento que, sendo ainda meramente formal, constitui todavia um exercício libertador. A exacta vivência do pseudónimo transforma-o em heterónimo. No caso de Fernando Pessoa, a projecção e animação de alguns elementos constitutivos do seu ser preparou e acompanhou a desidentificação em relação à «pessoa aparente com que vivia física e socialmente».

A sociedade ilude-se quando julga que homem fica identificado desde que sejam fixadas com precisão as linhas de referência exteriores. O escritor deve, porém, tomar consciência desta impossibilidade e viver activamente por processos intelectuais o princípio em que radica a infinita possibilidade de se dar a si próprio formas diversas. Consciente da sua dignidade inominável, pode depois descer ao mundo literário sem perigo de ser contaminado.

Uma terceira atitude indispensável é a do segredo quanto à própria doutrina que defende. Deve apresentá-la de tal modo que a critiquem ali onde ela não está e que ignorem ali onde ela parece não estar. Isso fez também Fernando Pessoa, que defendeu ao mesmo tempo várias doutrinas nos campos político, religioso, filosófico –, mas que só pôde fazer isso porque de todas se serviu sem contradição para justificar e realizar aquela tal que, sendo doutrina, quando se apreende já é outra coisa.

Estas três atitudes, que se poderiam multiplicar em seis, nove ou mais, concentram-se numa directriz única essencial: a de manter um destaque em relação a nós e ao ambiente que escolhemos ou nos escolheram para actuar. Quer isto dizer que o escritor do tipo indicado é para literatos que escreve? Ou que da literatura se serve para levar longe a sua influência?        

O literato português, e falamos dele sempre de um modo geral e abrangendo nesse termo não só o poeta como o crítico, não só o romancista como o historiógrafo, não pode constituir o tipo de leitor que convém ao escritor que definimos. Esta cultura que passamos a examinar e que é a da dissociação da poesia e da prosa em termos tais que exprimem uma mentalidade definitivamente cindida e fechada. Observe-se, no exemplo mais alto, a incapacidade que poetas e romancistas de indiscutível valor mostram em transpor para o domínio da prosa reflexiva a problemática fundamental que os preocupou no romance ou no poema. Por outro lado, aquilo que predomina na crítica, no artigo, na notícia, no ensaio é uma prosa de tipo desportivo, com a preocupação dos valores adjectivos – coisa evidente para quem se der ao trabalho de comparar, nas respectivas publicações, os dois tipos de linguagem. Determinado escritor deve treinar-se ainda, neste livro mostra mais qualidades, é já uma promessa das nossas letras, é superior àquele e inferior a este, deve procurar outra profissão, etc., etc…. Tudo isto numa prosa mascarada em que se pensa tão-pouco que quem tem a paciência de a ler, semana após semana, jornal após jornal, chega, por vezes, a suspeitar que, se há quem pense, com certeza não escreve. Ao lado dos escritos de apreciação ou intercruzados com estes, temos, com carácter mais científico, aqueles em que friamente se situa o escritor estudado na época em que viveu ou vive, na escola a que pertenceu ou pertence, no meio social que o definiu ou define. Não será preciso procurar muito para encontrar algo nas folhas desportivas. Tudo, porém, muito respeitado porque se trata de «crítica» e de «sociologia».

Aos poetas consente a sociedade literata que se ocupem de «problemas metafísicos», porque a poesia e o romance pertencem ao reino da fantasia, do sonho e do irreal. A poesia é uma forma de deleite, de passatempo, de evasão. Tratar em prosa, e numa linguagem firme, positiva, em que o conceito domina a palavra, segredos como o do amor e da morte ou o da sedução feminina ou o da reminiscência activa, constitui um crime que deve ser apontado e logo esquecido, quando não for castigado pelos vários processos de crueldade social. É que a prosa vem a dar a consciência lúcida da realidade que, na poesia, no romance e no teatro fora conhecida por vias semiconscientes e segundo a categoria da espontaneidade – o que equivale a querer realizar o acto absurdo de trazer a noite para dentro do dia.

Neste panorama ou nesta ambiência nada há a esperar daqueles que, por este ou por aquele motivo que a psicologia mais superficial explica, deixaram a «poética» pela «crítica»; mas nada impede que por um acto de transcensão inferior os artistas que no domínio da espontaneidade são espíritos que vêem façam por pensar os mesmos temas em prosa, naquela prosa que se adequa ao seu conceito, e realizem assim sensivelmente o trânsito para o tipo de homem superior. Claro que o círculo perfeito supõe um terceiro termo, aquele que, para lá da espontaneidade e da lucidez, a ordem dos espíritos que podem define como operatividade.       

 

António Telmo



[1] Chave, 1.º ano, n.º 2, Lisboa, Maio de 1964, p. 8.

 

DOS LIVROS. 18

02-09-2014 09:06

De um caderno de apontamentos. 08

Voltei a ler A Estranha História de Peter Schlemhil, o que me levou a imaginar o que seria essa história se, em vez de ter vendido a sua sombra, Peter Schlemhil tivesse vendido a sua imagem. O diabo, uma vez fechado o negócio, dobrou várias vezes a sombra e recolheu-a num pequeno saco; faria o mesmo com a imagem projectada num espelho.

Quais seriam as consequências, não previstas pelo vendedor? Já sabia, antes de fechar o negócio, que deixaria de poder contemplar-se no espelho. Fora dos seus cálculos e bem mais importante é que se tornaria invisível, dado que não teria imagem para se reflectir nos olhos das outras pessoas. Ouviam-no e tocavam-no, mas não o viam. Isto lançou o pavor à sua volta. Como Peter Schlemhil, teria de fugir para onde nunca o tivessem conhecido. Mas não poderia comprar nada porque poria em pânico todo um mercado. Para comer teria de roubar, o que lhe era, aliás, muito fácil.

A única convivência possível seria com um poeta, um filósofo, um louco, desde que fossem verdadeiros. Também surgiria uma mulher por quem se apaixonaria, mas que se veria impedida de amar o que não tem imagem.

Etc., etc., etc..

Simbolismo: os espíritos que vivem entre nós invisíveis terão um drama semelhante? Vêem-nos e não podem ser vistos, só pelos outros sentidos podem ser contactados, dominantemente pelo ouvido. Não foi assim que Sampaio Bruno terá imaginado os anjos?

 

António Telmo

 

(Publicado em Viagem a Granada, 2005)

INÉDITOS. 20

29-08-2014 12:42

Infância e Conhecimento

 

Todos nós nascemos não para sermos os homens que somos; a natureza cria-nos para ser outra coisa; aquilo de que a criança é embrião ou desaparece completamente no homem feito, a que Fernando Pessoa chamou “cadáver adiado”, ou se reclui numa intimidade impenetrável; a educação, não só a do Estado mas também essa, desvia o que noutros tempos constituía o curso inevitável da natureza (a criança é o ser que cresce) e, em lugar de desenvolver esse embrião de poder e conhecimento, faz o pobre ser frágil que é o adulto – poltrão, vaidoso, cuja afirmação de si não é mais estúpido do que o esconder de uma radical insegurança. Ai de quem denunciar essa insegurança!

Pelo contrário, se a criança recebesse o ensino adequado à sua essência, adequado àquilo que ela é e não ao que a supõe o adulto, cada uma seria um príncipe, isto é, um ser que em si tem o seu princípio e do qual o Infante é o seu perfeito símbolo.

É evidente que ao falar-se no Reino da Criança, no reino político da criança tal como aparece anunciado no culto açoriano do Espírito Santo, só por ignorância se atribui um reino à criança tal como a vêem os adultos, sobretudo se esses adultos são poetas menores, como Afonso Lopes Vieira, ridicularizado por Fernando Pessoa e consagrado nas sebentas[1]. A criança é o ser que cresce: o adulto não cresce, move-se como um autómato ao impulso das impressões exteriores. O Infante é o ser que já não fala, tal como o Pai Rosacruz dos sonetos de Fernando Pessoa. À criança é ensinada a língua dos adultos que transporta uma falsa representação do mundo. Um dos aspectos dessa representação está em não ser a criança como uma potência mas como uma deficiência.

Essa potência só por excepcional sorte chegará um dia a ser acto. É possível que alguns tenham escapado à destruição do seu embrião de poder e de conhecimento. Não se contrapondo, porém, como fazem os poetas menores, a criança ao adulto, como o órgão do sonho e da fantasia ao órgão da realidade e da verdade. Há um novo mundo a descobrir, – o mundo verdadeiramente real – que nem a criança tem, porque é apenas o remoto embrião de conhecimento, nem o adulto onde esse embrião feneceu ou se recluiu. Quando uma criança diz que “a lua é uma fada” ou pinta um céu verde podemos ter a certeza de que começa já a exprimir-se segundo o ensino do adulto. Por isso, Picasso dizia que a arte infantil é uma criação dos adultos. Elas levam para os sonhos, enquanto dormem, as preocupações que pomos nos seus pequeninos corpos. Porque é no corpo que se exprime aquela potência de que falamos: aquela potência inquieta e livre, uma espécie de levitação da matéria, qualquer coisa de esse que busca o sol. E, por cima de tudo, o espanto sem angústia de um ser ainda sem suportes mentais, ainda há pouco emergido do grande mar da vida. Claro que a lua não é uma fada, nem a criança, ao dizê-lo, pensa que ela seja uma fada, tal como esta se representa na mente dos adultos. Mas que a lua é qualquer coisa que os adultos ignoram, isso, se o não sabe a criança, tem, pelo menos, em si a virtualidade de o saber.

Queremos, pois, dizer que Portugal só terá cumprido o mandamento que, primeiro, o instituiu como o guardião de Três Pátrias e, depois, compreendidas estas no caos do chão político, o materno a velar sobre nós, no dia em que se realizar no mundo o reino da Criança, isto é, o reino do Homem, segundo a Ordem de Melchisedek. Mas esta missão não diz respeito só a esta terra em que vivemos. Um povo não pode ter por fim apenas ser feliz, mas ajudar a evolução da humanidade. Não pode ter como ideal esta ou aquela forma de governação, em que todos estejam bem comidos, bem servidos e bem casados. Dia a dia, a humanidade decompõe-se; a mente dos homens, de Ocidente a Oriente e de Norte a Sul, construiu uma forma monstruosa de vida. Fuzilam-se pessoas como quem mata pardais. É aterrorizador pensar, como o fez Joseph de Maîstre e Sampaio Bruno, que por detrás deste mundo há um mundo invisível de demiurgos que se alimentam dos nossos cadáveres psíquicos. Não restará outro destino ao homem que traiu o plano para que foi criado: ajudar deus a redimir o mundo.

Confiemos em que Portugal não seja um nome de Deus em vão.

 

António Telmo



[1] No mesmo caderno de António Telmo, encontramos, em relação evidente com o presente texto, o apontamento que a seguir transcrevemos, que se lhe segue, mas que dele está separado por um escrito interpolado sem relação directa com a ideação em apreço. A posição de António Telmo parece situar-se na superação do dilema patenteado:

 

Posto assim o caso, haverá no leitor uma destas duas reacções: 1. É impossível que as “crianças” mandem nos adultos, constituam ministérios, uma delas seja Presidente da República, etc., etc… Deixá-los, a poetas e filósofos, escreverem estas coisas bonitas que o mundo continuará a pisar como sempre.2. Que bonito o reino da criança! Se os adultos quisessem ser de novo crianças como o mundo seria belo! Sim, porque deverão ser a imaginação, a fantasia e o sonho os governantes dos homens!

 

DISPERSOS. 11

21-08-2014 00:10

QUATRO ANOS DEPOIS: ANTÓNIO TELMO, SEMPRE!

[António Telmo em 1996, durante uma visita ao Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa]

 

Numa carta para Álvaro Ribeiro, datada de 8 de Dezembro de 1966 – a primeira que escreve ao mestre depois de, em Fevereiro desse ano, haver chegado a Brasília –, António Telmo dá-lhe conta de, «levado na onda» – entenda-se: sob a forte influência pessoana de Agostinho da Silva, que anos antes havia publicado Um Fernando Pessoa e amplamente contribuíra para a divulgação do poeta de Mensagem em terras de Vera Cruz –, haver já redigido um livro sobre Fernando Pessoa, mais lhe afirmando estar a tentar pensar muito diferentemente do que fizera «durante a Arte Poética». Não sabemos que destino terá tido esse livro que Telmo escreveu no Brasil, mas parece realmente ser outro que não aquele que, mais tarde, em escrito ainda inédito, datado de «Belém de Cachoeira, 7. 3. 68», Agostinho da Silva lhe irá prefaciar, escrito esse que este ano sairá a lume no número 73/74 da revista de cultura libertária A IDEIA. Pelo menos, dois livros escritos no Brasil, e que se terão perdido irremediavelmente, ajudam a desfazer a ideia, algo apressada, e hoje em absoluto infundada, de que esses anos na América do Sul se não traduziram em obra. Na verdade, depois de “Arte poética e surrealismo”, artigo recentemente republicado nesta página com comentário de António Cândido Franco, saído a lume no n.º 8/9 (Inverno [Dezembro] 1965) da revista Espiral, dirigida por António Quadros, e até ao seu regresso à Europa, Telmo limita-se a publicar dois artigos na revista Panorama: “Caçando com cão”, que mais tarde incluiria em Filosofia e Kabbalah; e “Cabral e o novo Oriente”, que hoje publicamos, no dia em que se completam quatro anos sobre a sua partida, acompanhado do comentário de Miguel Real. Escreve ainda, em Brasília, "Os heterónimos de Fernando Pessoa", artigo que apenas virá a publicar em Portugal, n'O Sesimbrense, em 1973. Precisamente radicado num Fernando Pessoa que já bem conhecia (e a este ponto de partida não será estranha a influência de Agostinho de Silva, aliás manifesta em grande parte do artigo), e evidenciando a busca de novos caminhos, é possível que este último escrito condense, em súmula, as teses do livro sobre Pessoa, que em Dezembro de 1966 se encontrava já «numa gaveta». Certo será apenas o anúncio de um pensador que procura reinventar-se ao dealbar da sua maturidade, através de um ensaio a que também não faltam preciosas referências autobiográficas, como a do encontro marcante com Ariano Suassuna, vulto maior da cultura brasileira há bem pouco desaparecido...

 

Cabral e o novo Oriente[1]

 

A Europa jaz, posta nos cotovelos.
De Oriente a Ocidente jaz, fitando,
E toldam-lhe românticos cabelos
Olhos gregos lembrando.

O cotovelo esquerdo é recuado,
O direito é em ângulo disposto;
Aquele diz Itália onde é pousado,
Este diz Inglaterra onde, afastado,
A mão sustenta, em que apoia o rosto.

Fita, com olhar esfíngico e fatal
O Ocidente futuro do passado.

O rosto com que fita é Portugal.

 

Fernando Pessoa  

           

 

O que mais se discute, no círculo dos historiadores, é se foi ou não intencional o descobrimento do Brasil por Pedro Álvares e há da parte de muitos portugueses, de quase todos, e também de muitos brasileiros, a busca de argumentos que para sempre eliminem da rota das caravelas o acaso dos ventos ou das correntes ou da sorte. Bem sabemos que outro será o entendimento das razões e intenções políticas dos descobridores, quer se atribua o achado do Brasil ao acaso, quer se o atribua à ciência. Todavia, se com Fernando Pessoa pensarmos que «Deus era o capitão da frota», nasce-nos a tentação irresistível de identificar as correntes e os ventos do mar com os ventos e as correntes do Alto. O acaso só existe para quem não admite uma outra e diferente sabedoria, sem a qual a nossa, matemática e geométrica, nem sequer existiria e, por isso, talvez fosse preferível estudar em que medida parece não haver vontade quando o espírito que quer actua nas regiões do inconsciente. E então o Brasil seria o nosso filho concebido em mistério divino, enquanto os outros povos do mundo por nós descobertos seriam os nossos filhos humanos.

Ora, como aquilo que pertence ao domínio do inconsciente não pode ser apreendido pelos métodos habituais dos historiadores, seguiremos a linha indicada pelo Poeta, confiantes também nos acasos do pensamento, que é como tem vindo alguma fama e como tem havido algum valor nos escritores que pensam para cá dos Pirenéus e para lá de Descartes. Convida-se, pois, o leitor a ler outra vez o poema que serve de epígrafe a este escrito e a seguir depois comigo – na senda das analogias, dos símbolos, das simetrias, na esperança de haver mais, para além dos limites do nosso espírito.

 

*

 

A Europa é vista como um Jano, de dúplice rosto como convém: a Grécia que assimila, lembrando, a sabedoria do Oriente, e Portugal que fita o Ocidente futuro do passado. E, uma vez que o passado é tudo quanto a Grécia lembra, no lugar do futuro para onde Portugal olha irá nascer um novo Oriente. É um fenómeno que se designa em certas tradições por inversão dos pólos. De facto, o movimento cultural iniciado pela Grécia, ao contacto sobretudo com a Ásia Menor, é de sinal nórdico, com a Inglaterra e a Alemanha, protestantes e puritanas, a ritmarem o passo da civilização europeia, levando a todos os pontos do espaço a técnica, a economia e a moral, e projectando-se ainda pelo lado do Norte no continente americano para construir os Estados Unidos, esse assombro de todos os calvinistas a quem o Cristo-Mamon não assistiu. O que há na lembrança da Grécia, e que a Itália aproveitou para dar ao cristianismo a forma superior da catolicidade, veio encontrar-se na Península Ibérica com visões de fenícios, árabes, celtas, judeus e outros elementos da alquimia étnica, mas essa corrente mediterrânica de sentido atlântico e de substrato africano, não obstante tanto sonho e tanto risco e até tanta manobra política, deixou-se por tal modo correr em leitos ínvios e obscuros que com alguma razão se chegou um dia a dizer que a Espanha e Portugal não eram mais que colónias culturais dos Homens do Norte, título muito significativo dum livro de Ángel Ganivet.

O Brasil, futuro por acaso ou não do passado do Oriente, por índios e bandeirantes confundido com uma grande ilha, a ilha do Paraíso e da Nova Luz, se é verdade a notícia de Jaime Cortesão, está, e aqui é que é surpreendente observar, exactamente em correspondência simétrica no continente americano com Portugal no continente europeu. A América Central representa, com esse misterioso México de toiros e rostos sombrios, o que os Pirenéus são, com bascos e catalães ritmando as marés da invasão europeia; no Norte, como já se disse, estão os Estados Unidos, assombrosa precipitação de tudo quanto forjaram ingleses, alemães e outros puritanos; em baixo, no Sul, está o Brasil, envolvido por povos de língua de língua castelhana, rosto virado para o Atlântico, como quem se volta para fazer o que não foi feito, invertendo o sentido da corrente. Assim, um e outro continente têm dentro de si os elementos dispostos da mesma maneira, o que a mim me parece outra vez o acaso a suscitar novas reflexões.

Estando no fim a civilização europeia, uma vez realizadas todas as possibilidades contidas nos germes do seu ciclo nórdico, e estando no fim como se compreende pela anterior meditação das direcções simbólicas e também observando quanto acontece no mundo, onde já ninguém se entende por falta de uma metafísica ou por excesso de metafísicas que acabam por ser metafísica nenhuma, o Brasil e com ele os povos de língua espanhola que têm estado à espera preparam-se, sem o saberem, para iniciar o novo ciclo, que simbolicamente se pode entender como a viagem do Sol pelo Sul.

Há, no entanto, alguns brasileiros que, protestando embora contra os americanos (curiosamente, americanos são só os do Norte), nada mais desejam no fundo que ter o que aqueles têm – técnica, dinheiro e poder –, e são esses que lamentam ter sido o Brasil colonizado por portugueses e o restante da América do Sul por espanhóis e não por ingleses ou alemães. De facto, existe esse perigo. Existe o perigo de que o Brasil, esquecido das suas raízes mediterrânicas e ibéricas, com medo da fome e da miséria, se deixe absorver, e, sem ter a coragem de pensar uma solução económica própria, vá sendo dominado por quanto lhe está a ser proposto, e um dia poderá vir a ser imposto, pelos «homens do Norte».

A verdade é, porém, que o brasileiro é inadaptável ao tipo de vida americano. A sua filosofia não é, como a alemã, uma filosofia da vontade. Também a nossa não é. Quando um problema nos perturba, não procuramos órgãos exteriores que o resolvam e o «deixa para lá!» é a expressão de uma atitude íntima a que o homem se deve amoldar para que venha o destino, que entre nós não significa nada grego, mas a providência dos anjos, e tudo encaminhe para onde Deus quiser. O brasileiro não diz «não tem importância!» mas «não há problema!» e di-lo sempre a propósito de tudo, como se tivesse definitivamente encontrado a fórmula da verdade e da perfeita comunicação social. Tudo quanto implica uma certa resistência à livre actividade do homem é designado por negócio: a morte, por exemplo, é um grande negócio, que não é mole não, e em que se não deve pensar muito porque há quem por nós tenha a solução.

   

[1968, arredores de Brasília: António Telmo, à direita na fotografia, vestindo uma camisa de xadrez, escuta Agostinho da Silva, que profere uma palestra sobre o Espírito Santo]

 

Pascoais tentou uma filosofia portuguesa à base da saudade. Fez dela o eros cosmogónico, o segredo dos segredos, o arcano e a alma do mundo. Quem quiser pensar uma filosofia brasileira terá também que ter em conta o ócio, que sobretudo na Baía se diz moleza, de modo a ver como inclui um conceito susceptível de ser desenvolvido numa teologia, numa cosmologia, e até, principalmente, numa economia. O ócio é tão produtivo como o trabalho, na medida em que não cria novas estruturas de problemas que suscitam mais trabalho e assim indefinidamente. É qualquer coisa na alma como o judo ou a luta da capoeira no corpo. À dureza do opositor oferece-se a moleza ágil e astuciosa da alma ou do corpo e o outro – natureza, vida ou tempo – acaba por tornar-se dócil ou dúctil nas nossas mãos ou nas nossas ideias. «É preciso dar tempo ao tempo!», dizemos nós, portugueses.

Dever-se-á, todavia, observar que ócio não é o mesmo que preguiça. Corresponde a assumir a actividade do espírito, não como negócio, mas como uma energia livre e ágil, que pode ou não ser acompanhada do movimento do corpo. No português é, em geral, acompanhada do movimento do corpo, mas até para este se inventa um barco que o leve ao acaso dos ventos e das correntes. Estrangeiros criam sistemas filosóficos que são como máquinas, em que a vontade motriz encontra as rodas e as correias e outros intermediários mecânicos pelos quais possa chegar a actuar sobre as várias naturezas. Entre nós as ideias são barcos e a realidade que atravessamos é líquida e não sólida.        

 

*

 

Os portugueses que chegam ao Brasil para lá viver ficam em breve confusos ao verificarem que, não obstante certa simpatia fraternal, recebem também vários sinais de que os brasileiros nada querem ou querem muito pouco da nossa cultura, cujas raízes são também as da deles, e só depois de alguma reflexão vêm a descobrir que esse é um fenómeno próprio dos povos que foram colonizados. Com a independência política, conseguida sempre com o apoio duma terceira potência, vem o desejo de independência cultural e, para isso, vemo-los recorrerem a uma influência estranha, no caso brasileiro a da cultura francesa. E quando Sampaio Bruno diz com alguma ironia que os brasileiros leem os escritores franceses por quererem ir directamente às fontes, sem terem de passar pelo seus intermediários portugueses, não deixa de assinalar o que aqui deixo dito, embora faça recair as culpas de termos visto durante dois séculos o Brasil fugir à nossa influência nos próprios portugueses, incapazes de colonizar pelo espírito porque se tinham reduzido de há muito à miserável condição de colónia cultural francesa. E quando não é francesa, é alemã ou inglesa ou qualquer outra coisa.

Se, em vez de termos divulgado no Brasil escritores como Eça de Queirós e outros que o seguem de perto ou de longe, escritores estrangeiros muito bem traduzidos em língua portuguesa, tivéssemos feito o que está sendo feito com Fernando Pessoa e outros, que não têm equivalente no mundo – um Pascoais, um Domingos Monteiro, um Sampaio Bruno –, e não têm equivalente porque escrevem em língua portuguesa sem pensar previamente noutra língua, ver-se-ia o brasileiro dizer, como eu ouvi dizer a Ariano Suassuna a propósito do autor da Mensagem, que ele era o maior poeta brasileiro de todos os tempos.

No entanto, com esta cisão entre as duas culturas não é só a portuguesa que perde. Perde também a brasileira. Sem Portugal, o Brasil é um povo sem Idade Média, vindo directamente da Idade Primitiva, e os nacionalistas brasileiros, que querem fugir ao perigo dos Estados Unidos, são levados a imitar aquela personagem de um romance de Lima Barreto, o pobre Policarpo Quaresma de triste fim, lutando contra todas as ameaças de domínio estrangeiro em nome da cultura indígena, hoje amargamente encurralada no Parque do Xingu. Se há algo de positivo no idealismo do Quixote criado por Lima Barreto, a verdade é que o Brasil não é só isso, é também Canudos e o seu sebastianismo nascido ao contágio de António Vieira, de Agostinho da Silva, de Ferreira de Castro e de todos os bandeirantes, que se misturaram com esses índios e também com os negros da África, para que o Brasil fosse também Macunaíma.

 

António Telmo

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Comentário

Miguel Real       

ANTÓNIO TELMO

1 9 6 8

 

1. O ANÚNCIO

O artigo de António Telmo intitulado “Cabral e o Novo Oriente”, publicado na revista Panorama em Setembro de 1968, ainda que cronologicamente anterior ao grosso da sua obra (recorde-se que Arte Poética foi publicado em 1963, mas a sua restante obra começou a ser publicada a partir de 1977, com a 1ª edição de História Secreta de Portugal), exprime já as ideias-mestras do autor.

Autor de obra tardia (o o autor possui já 50 anos quando publica História Secreta de Portugal), amadurecida pela experiência da passagem de dois anos e meio como professor de Língua e Literatura Latinas e de Literatura Portuguesa na Universidade de Brasília, a convite de Eudoro de Sousa e Agostinho da Silva, e meio ano em Granada, o artigo acima referido evidencia já a maturidade conceptual de quem possui uma visão própria do mundo (corroborada pela publicação de Arte Poética cinco anos antes), mas ainda não a explicitou pormenorizadamente em obra escrita.

É este o estatuto do artigo da revista Panorama: o anúncio da existência encoberta de um grande pensador a haver, cujas ideias-chave se encontram já firmadas, mas não ainda delineadas em pormenor.

 

2. – IDEIAS-CHAVE CONTIDAS NO ARTIGO

a. – O reconhecimento da influência dominante de Fernando Pessoa através da transcrição do poema da Mensagem, da interpretação deste segundo a proposta providencialista do poeta e da proposta cultural de substituição da leitura pela elite cultural brasileira da obra de Eça de Queirós pela de Fernando Pessoa;

b. – Neste sentido, Pedro Álvares Cabral não teria descoberto o Brasil por acaso, antes guiado pelo “acaso” da mão de Deus. Se as outras terras e os outros povos foram descobertos pela “vontade” dos portugueses, o Brasil e os ameríndios foram-no por via do “querer” “que actua nas regiões do inconsciente. E então o Brasil seria o nosso [de Portugal] filho concebido em mistério divino, enquanto os outros povos do mundo por nós descobertos seriam os nossos filhos humanos”;

c. – Separação, na história do pensamento europeu, entre os pensadores do Norte (França, Inglaterra, Alemanha) e os “pensadores que pensam para cá dos Pirenéus e para lá de Descartes” (o racionalismo cienticista e positivista protestante e puritano) – influência de Agostinho da Silva, que, em Um Fernando Pessoa e Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa, publicados uma dezena de anos antes, distinguia claramente o catolicismo medieval, verdadeira filosofia comunitária e emotiva do português, do individualismo e racionalismo frio da dos povos do Norte. O duplo racionalismo platónico e aristotélico continuaria vivo na Europa do Norte, contra o franciscanismo e o espiritualismo do Sul da Europa, tese posteriormente defendida por Eduardo Lourenço em Nós ou a Europa (1984);

d. – No Brasil, cabo da América, terra “simétrica” de Portugal, cabo da Europa, território de fusão de influências ocidentais e orientais, permaneceria o espírito medieval português; o México representaria os nossos Pirenéus e a América do Norte, por antonomásia designada o todo da América, o Norte da Europa;

e. – No Brasil residiria, assim, o futuro de Portugal, que é como quem diz, o futuro da Europa, e, porque a Europa é figurada no poema em análise como “cabeça” do mundo, no Brasil residiria o futuro do Mundo;

f. – Antitético do “negócio”, no Brasil residiria a futura terra do “Ócio”, isto é, a Terra sem Mal dos tupis ou as nossas medievais “Ilhas Afortunadas”. Numa expressão posterior de Telmo, o Quinto Império. A filosofia do Ócio seria, assim, a correspondente brasileira da filosofia da saudade portuguesa de Teixeira de Pascoaes;

g. – Uma elite desenraizada pela atracção da mentalidade americana, que é, como se viu, a mentalidade da Europa do Norte, prossegue a visão do mundo desta região. Leitora de Eça de Queirós, desqualifica as raízes da identidade cultural portuguesa. O Brasil deveria ter substituído a leitura obrigatória de Eça no vestibular pela leitura obrigatória de Fernando Pessoa (“o maior poeta brasileiro de todos os tempos”, segundo Ariano Suassuna), de Pascoaes, de Bruno e de Domingos Monteiro (prosador e poeta transmontano, cuja obra foi muito apreciada entre as décadas de 1940 e 60);

h. – O Brasil encontrar-se-ia dividido, assim, entre a imitação da Europa do Norte, da qual gostaria de ter sido colonizada, hoje prosseguida pela mentalidade técnica, mercantil e individualista da América do Norte, e um nacionalismo excessivo e desorientado, que, desdenhando Portugal, busca raízes na sua origem ameríndia (os tupis e guaranis), do qual Telmo dá como exemplo a personagem Policarpo Quaresma, do romance Triste Fim (1911), de Lima Barreto, que desejava substituir a língua portuguesa pela língua tupi como idioma oficial do Brasil. Porém, esta raiz mais funda do Brasil, a cultura do povo ameríndio, encontra-se hoje totalmente aniquilada, circunscrita a uma espécie de reserva constituída por não mais de 250 000 tupis no Parque do Xingu (reserva de índios na Amazónia);

i. – Finalmente, seria necessário, mais do que recuperar o indianismo, resgatar Canudos e António Conselheiro e “o seu sebastianismo nascido ao contágio de António Vieira, de Agostinho da Silva, de Ferreira de Castro e de todos os bandeirantes, que se misturaram com esses índios e também com os negros da África para que o Brasil fosse também Macunaíma” (Macunaíma – 1928 -, romance modernista de Mário de Andrade que explicita uma nova representação social do índio brasileiro, contraposta à imagem romântica do índio expressa por José de Alencar nos romances Guarani – 1857 – e Iracema - - 1865. Neste sentido, a imagem realista, sem deixar de ser fantasiosa, do índio brasileiro – dedicado ao ócio, sem planos racionais de vida, vivendo por emoções fragmentárias e desencontradas… - apresentada por Mário de Andrade, seria mais valorizada por Telmo do que a imagem nativista e romântica patenteada por José de Alencar).

 

3. – CONCLUSÃO

Mais do que um António Telmo esotérico e cabalista, encontramos no artigo de 1968 da revista Panorama um António Telmo providencialista.

 

Colares, 15 de Agosto de 2014.

 


[1] Panorama: revista portuguesa de arte e turismo, n.º 27, 4.ª série, Setembro de 1968, pp. 45-49.

 

INÉDITOS. 19

21-08-2014 00:00

QUATRO ANOS DEPOIS: ANTÓNIO TELMO, SEMPRE!

[António Telmo com os seus filhos, Anahi e Manuel, em Santana, Sesimbra, em 1970]

 

Sonhos

 

Sexta-feira, 27 de Outubro de 2006

Na grande cozinha-sala em minha casa com a minha Maria Antónia e a minha filha Anahí. Entrando não sei por onde, talvez pela chaminé, apareceu voejando por cima de nós um lindo pássaro azul que identifiquei na altura com um Guarda-Rios, ou como os franceses o designam, por um Martin-Pêcheur. No sonho só me lembrava do pêcheur e com algum esforço.

O pássaro desceu e recebi-o na mão direita em concha, com grande espanto de todos nós e também alegria. Disse então que ia libertá-lo pela janela.

Mas transformou-se num lindo livro azul com as letras em ouro e que continha uma grande sabedoria. Afinal não me podia desfazer dele, porque devia lê-lo.

Deu-se outra metamorfose. Sempre na minha mão transformou-se num gatinho. O Tejo rosnou e as duas gatas olharam-no com ódio felino. Saí para a rua. O gato agora era um lindo menino de três ou quatro anos com uns calçõezitos, muito tranquilo. Havia outros rapazes mais velhos. Um deles disse que a criança morava ali perto. Disse o nome da rua e o número da porta.

Desfez-se o encanto e eu acordei.

 

Nota: Quando tentava lembrar-me do sonho, identifiquei, já acordado, o pássaro com um “colibri”, tal como os conhecera e observara no Brasil, alimentando-se de flores, sem cessarem de bater as asas até à invisibilidade. Observava-os a três palmos de distância.

 

António Telmo                                               

VOZ PASSIVA. 28

19-08-2014 12:57

António Telmo

(Na ara do tempo)

Eduardo Aroso

 

Sangrar o pinheiro

Ao calor de Agosto.

A resina escorre

De cima abaixo,

De manhã ao sol-posto.

O pensamento é que define

As estrias por onde passa

As camadas que atravessa.

A loucura de a beber

É para saber entranhas do dia,

E metamorfoses da morte,

Enquanto o Anjo da Vida

Sorri do esforço e da porfia.

 

Agosto de 2014

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