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DISPERSOS. 12

02-10-2014 09:39

A caça à baleia[1]

 

20 anos atrás, ainda se caçava a baleia no mar de Sesimbra. Para se poder assistir, assinava-se um termo de compromisso:

– Responsabilizo-me pela minha morte.

Isto de uma criatura de Deus se responsabilizar pela própria morte só no mar, onde toda a gente é livre, livre como os longos horizontes e o infinito que há neles.

Eu fui dos que assistiram a uma caçada à baleia. Um barco a motor, do tamanho dum cacilheiro, um canhão à proa, toda a tripulação atenta ao grito que vinha do cesto da gávea lá no alto do mastro:

– Baleia a bombordo!

– Baleia a estibordo!

E o barco mudava de rumo para onde a voz o mandava, um rumo que incidia no vértice dum ângulo de que ele era uma das linhas e a outra o esfumegar constante da baleia. Encontravam-se matematicamente no vértice desse ângulo, barco e baleia.

A tripulação parava de respirar, olhos postos na grande massa escura que aparecia, desaparecia, reaparecia, grande força rítmica como a do próprio mar obedecendo à energia misteriosa que faz as marés. O profeta Jonas comparou a baleia ao abismo. No ventre desse abismo esteve três noites e três dias, tantos como Cristo nos infernos. A baleia é, de facto, a força do abismo em movimento.

Ao meu lado estava um pescador, de agudo perfil hebreu, que, devo dizê-lo, me estava a interessar muito mais do que a baleia. Sentia, não sei porquê, que esse homem, repassado de mar e tempestade, estava ali completamente indiferente ao êxito da caçada.

– Já caçou muitas baleias? Perguntei-lhe.

– A minha mulher, senhor. Gorda como uma baleia, que me engoliu em vida como ao profeta Jonas e me faz andar aqui a arranjar sustento para os filhos.

Aquele homem era um humorista, sério como todos os humoristas, humorista como todos os portugueses que pelo riso se vingam da rotina miserável dos dias. Ao ouvi-lo, nem sequer reparei que a baleia se tinha escapado, antes que o arpão partisse, mergulhando na profundidade das ondas, para não mais aparecer. Era só mar de novo, extenso e interminável, que o homem do cesto da gávea perscrutava a bombordo e a estibordo, de olhar atento e veloz como o de uma ave de rapina…

 

António Telmo



[1] Título da responsabilidade do editor. A crónica foi escrita entre 1971 e 1972, talvez ainda em Sesimbra, ou já no Redondo, consoante resulta do teor do caderno em que foi encontrada na espólio de António Telmo. Daqui se infere que o relato se reporte a factos ocorridos pelo meado do século XX. Saiu a lume em O Sesimbrense em 1 de Junho de 2013.

 

DOS LIVROS. 19

30-09-2014 11:58

Esotérico e exotérico

 

Esotérico é relativo a exotérico. Não são opostos, como vulgarmente se entende. Estão assim como o interior em relação ao exterior, pois só há exterior por haver interior e só há interior por haver exterior. Exterior não é, porém, o mesmo que exotérico ; só é exotérico aquele exterior em que vive o interior e dele recebe a forma. Ou, por outras palavras, só é exotérico o exterior enquanto nele se revela o esotérico. Consiste a revelação em, mostrando, ocultar de novo. Não se deve dizer, pois, que Shakespeare ou Camões escreveram livros esotéricos.

A revelação do esotérico, por isso mesmo que é revelação, faz-se através de formas superiores, como as da arte ou as da religião, desde que estejam de acordo com o que de sua essência são. Tudo quanto é apresentado como esotérico por isso mesmo que é apresentado como tal não é esotérico. Apresentando-se independentemente daquelas formas, é o “material” de que se serve o espírito inferiorizante para edificar a sua Babel. Uma comédia de Shakespeare, com o seu enredo de conflitos aparentemente banais, é exotérica ; um romance de Alan Cardec, por mais que nos fale de “astral”, de “perispírito” ou de “reencarnação”, não é exotérico.

Daqui se infere que, para atingir o esotérico, é condição necessária a aprendizagem da filosofia ou, por outras palavras, da arte de pensar a intuição e a imaginação. Só pela filosofia pode haver compreensão das formas superiores de arte ou de religião do exotérico para o esotérico. Mas as pessoas não querem pensar ou porque são indolentes ou porque não se dispõem a aprendê-lo, por excesso de orgulho ou por falta de interesse. É verdade que é difícil. Bem mais fácil é acreditar em qualquer espiritismo ou em qualquer teosofismo com a auto-suficiência de quem conhece os mistérios do sobrenatural e não é, no entanto, capaz de compreender uma página de Hegel.

O esoterismo, neste último sentido, tornou-se contrário do que é. Se o seu modo de revelação é o artístico (a religião também é uma arte), a sua democratização é a sua negação.

Este fenómeno social de democratização do indemocratizável é próprio de todas as épocas de decadência. A do império romano é nitidamente exemplar. Freud explicou aquilo de que estamos falando pela relação das fezes com o dinheiro ou com o oiro. A magia, a astrologia e as demais ciências ocultas são nas bocas dos porcos uma porcaria. As pérolas foram devoradas por eles e expulsas na forma de fezes.

Um exemplo que faz ver a degenerescência dos homens com suficiente evidência é o da missa cristã na televisão. Podemos estar felizes. A mensagem cristã chega a todos os lares entre anúncios da pasta de dentes e anúncios de preservativos. Há quem tenha televisão na casa de banho. Eis um belo mundo sem discriminações!

Há quem confunda o império de Satan com o império do Espírito Santo. E, no entanto, se ambos estão anunciados para o fim dos tempos, é bem difícil distingui-los. Perante a Matéria todos somos iguais, perante o Espírito todos somos diferentes. Ali somos iguais e não nos entendemos uns com os outros ; aqui somos diferentes e entendemo-nos uns com os outros.

 

(Publicado em Viagem a Granada, 2005)

António Telmo

VOZ PASSIVA. 31

28-09-2014 15:38

As Encruzilhadas de Deus de José Régio

Eduardo Aroso

                                                                                                       

As Encruzilhadas de Deus, título de uma das obras mais profundas de José Régio, tem logo o condão de nos fazer pensar se as encruzilhadas de Deus não serão muito provavelmente as encruzilhadas dos homens! Que os homens tenham encruzilhadas é natural; que Deus as tenha, é assunto complexo. Creio que com este título Régio lança-nos no mistério do ser, e não no homem «cadáver adiado que procria», mas no homem no nevoeiro mais baixo e pesado da encarnação. No hermetismo «o que está em cima é como o que está em baixo», melhor dizendo, o que está em baixo corresponde, ou deve corresponder, ao que está em cima. Não sabemos o que estaria na mente de José Régio quando deu o título ao seu livro As Encruzilhadas de Deus. Seja como for, a obra fala do dilema de sempre do homem religioso. Aliás, num livro seu intitulado Confissões de um Homem Religioso, o poeta anda sempre à volta do tema, nomeadamente nos capítulos «a ausência de fé», «os graus de Deus» e «a vocação mística».

Durante a sua vida física Régio movimentou-se num triângulo ou numa tripeça que assentava em três locais: em Vila do Conde onde nasceu, em Coimbra, onde estudou e escreveu uma parte significativa da sua obra e em Portalegre onde exerceu a docência. No seu livro intitulado «Fado», se este não representa propriamente as encruzilhadas de Deus, faz parte sem dúvida das encruzilhadas da sua vida, um mosaico poético que canta não só essas três cidades, como outras paisagens geográficas e humanas do Portugal que via e sentia, ao mesmo tempo que o poeta sabe de um «Portugal de todo o mundo», título do primeiro poema «Meus avós que o mar levou,/ Rasgaram águas sem fim./ Neto sou de quem n-o sou!/ Se canto, é que o mar que entrou/ faz ondas dentro de mim…».

Se recorrermos à expressão «pensamento situado», poderíamos também falar de um Régio poeta situado, tanto no espaço que foi o seu neste mundo, e para isso bastaria lermos Fado, como na sua condição de homem religioso, se lermos, por exemplo, Filho do Homem ou A Chaga do Lado, obra esta que António Quadros comenta da seguinte forma «a situação de José Régio na cultura portuguesa é tal que num livro como A Chaga do Lado vem pôr em causa, não apenas a posição espiritual do seu autor, como também o próprio sentimento profundo dessa cultura nas suas relações com a religião».

Como não poderia deixar de ser, é em Coimbra que Régio se integra no movimento Presença, nos anos 20, na companhia de Edmundo de Bettencourt, João Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca, entre outros, onde surgem as inevitáveis polémicas. Tomemos apenas a seguinte, aliás uma das mais habituais e que, diga-se, ainda hoje permanece. Mas dêmos a palavra ao poeta: «Pelo que me toca, nunca pude aceitar qualquer arte-pela-arte que não fosse um livre e peculiar meio de expressão do humano; e do integral humano, embora a cada artista possa não caber senão uma parte. Não creio no futuro de quaisquer tentativas de arte desumanizada – por mais em voga que possa estar esta em certas épocas de crise, sendo até sinal de tal crise. Se, de facto, aceito aprovativamente a fórmula arte-pela-arte, é porque, atribuindo um específico independente de qualquer outro, creio que ela a si mesmo se basta. Mas sempre arte-pela-arte foi para mim sinónimo de arte viva».

António Telmo em Arte Poética diz-nos que «na introdução que escreveu para os seus Poemas de Deus e do Diabo, - o indefinível e o definido -, José Régio defende-se dos critérios que têm pretendido diminuir o valor da sua poesia, quando o acusam de se alhear dos problemas sociais para se entregar a uma constante reflexão da intimidade. José Régio faz-nos então ver que mistério é o do homem nas suas ramificações profundas e independentemente de qualquer compromisso social». Também, por exemplo, um Vergílio Ferreira viria a escrever sobre este assunto, na clara radicalidade da sua assumida condição humana individual da arte que se basta a si, para não morrer em si e poder assim chegar aos outros. Na verdade, as desejáveis preocupações de assistência social e humanitária não se podem confundir com aquilo que é mais singular e sagrado no ser humano: o seu pensamento e a sua arte.

«Sei que não vou por aí» eis o verso de ordem que a sociedade retirou habilmente do poeta. E não só pela necessidade ocasional, bem ao gosto de muitos, como por certos critérios de fazedores de antologias mais ou menos ministeriais. Nem sempre vemos o que queremos ver, mas o que podemos ver, ou então o que mais nos interessa. Ou seja, o poeta, do «Sei que não vou por aí», longe de ser procurado na sua inteireza, como é, ou pelo que é, surge como a excelência da citação. Infelizmente muitos poetas em Portugal têm servido apenas para citação ocasional.

Por certo que o que nos traz aqui é um Régio mais alto e complexo. Não é apenas o poeta do académico e do social, mas aquele do permanente conflito entre fé e razão. Ao considerarmos a sua natureza do divino e do humano, ou do transcendente e imanente, é bem de ver a lógica natural de uma certa aproximação ao movimento da filosofia portuguesa. No capítulo «o labirinto», do livro Confissão de um Homem Religioso, diz-nos que «durante anos vivi numa espécie de labirinto quanto a vida religiosa. Isto não é só porque em mim se digladiavam a razão e os sentimentos obscuros, profundos, mas também porque a própria razão se contraditava a si mesma, usando de argumentos contrapostos uns aos outros, e se contrariavam os próprios sentimentos profundos e me atraíam a posições opostas ou diversas».

Régio foi de algum modo atraído ao movimento da filosofia portuguesa. Elogiou a Faculdade de Letras do Porto como base para uma universidade reformada e moderna, referindo as suas amizades vindas algumas de tempos mais recuados. Fala de Leonardo Coimbra como «poderosa personalidade» à volta da qual todos gravitavam, filósofo que aliás interrogou Régio num exame, tendo-lhe atribuído uma boa classificação. Nesse ambiente, como sabemos, cresceram José Marinho, Álvaro Ribeiro, Delfim Santos, Casais Monteiro e Santana Dionísio, entre outros. Cabe aqui referir um episódio que atesta bem a personalidade do poeta, conforme as suas palavras: «Uma vez, José Marinho, com quem eu mantinha um estreito convívio que me foi muito fecundo, pois me ajudou a desenvolver-me sem me alterar, ofereceu-me esse belo livro injustamente mal conhecido que é A Alegria, a Dor e a Graça com a seguinte dedicatória: Ao Reis Pereira (eu ainda não era o José Régio) do Mestre para o futuro discípulo. E eu escrevi ao lado, a lápis, esta coisa ingénua e pretensiosa: O Reis Pereira não quer ser discípulo senão de si mesmo.» Ora, o sucedido mostra-nos por um lado uma certa faceta do poeta e por outro que José Régio sempre esteve mais próximo da poesia do que dos trilhos da filosofia propriamente dita.

Assim, seguindo rumo até à cidade do Mondego, escreveria mais tarde «nem o prestígio de Leonardo nem a perspectiva de camaradagem de estes meus amigos me desviaram da opção por Coimbra». Deste modo, passaria na rota da grande maioria dos poetas portugueses, numa época em que surge o movimento Presença, criando o ambiente literário que o poeta desejava. Todavia, há que dizê-lo, dele depois se afastaria, desse ambiente académico que ao poeta já não preencheria verdadeiramente a alma, pois, ele próprio o diz «Creio ter sido durante esses anos de Coimbra que a minha religiosidade se manifestou mais superficialmente». Todavia surgem nesse tempo Poemas de Deus e do Diabo, Sonetos de Biografia, Romance da Cabra Cega e vários poemas de As Encruzilhadas de Deus, obra que seria concluída em Portalegre.

Podemos dizer que As Encruzilhadas de Deus existem em toda a obra do poeta e não apenas no livro que tem este título. Mas é neste que a sua poesia tem porventura o seu Getsmani, ou seja, a não recusa da matéria, do sensível, daquilo que amarra o homem, mas também o pode libertar, se quisermos, do erro como meio de salvação. E nisto podemos ver a antítese do nirvana oriental. Teria sido interessante que Antero tivesse conhecido Régio, ou vice-versa, porque essa tensão do nirvana anteriano com as preocupações sociais e políticas do mesmo Antero fariam um bom diálogo com os contrários de Régio, a tal «razão que se contraditava a si mesma» e «os próprios sentimentos profundos» que o «atraíam a posições opostas ou diversas». A assunção do corpo, como instrumento sagrado para transmutação ou retorta para alquimia é um dos traços que distinguem a via do discípulo ocidental do discípulo oriental, e foi a luta que, enquanto poeta, Régio sempre travou em si. Este cume é atingido no «Poema da Carne-Espírito», quando escreve «Sonho-te! Para te humilhar/ E me vingar da tua ausência,/Nesse instante supremo, estrídulo e vulgar,/ Em que o delírio atinge o cúmulo da urgência. (…) Evadir-me-ei, então, por sei lá bem que espaços,/ Cego de raiva e de ternuras loucas,/ Eu, com duas cabeças, quatro pernas, quatro braços,/ E só uma língua em duas bocas! (…) O não te desejar é impossível/ Porque tu sabes, sempre moça e eterna amante,/ Pairar!, virgem suprema!, inatingível e intangível…,/ Prostituída a cada instante.»

Todavia, encontramos também em Régio uma necessidade e quiçá redenção dir-se-ia pela mediação, na figura da mulher Eva e de modo mais elevado no feminino transcendente ou Virgem Maria. No primeiro caso, escreve o poeta «Mulher, como o universo/ Cabe nos seis centímetros de um verso,/ Em ti, nossos sentidos,/ Os conhecidos e os desconhecidos,/ Sentem caber, reunida, a natureza inteira./ Nesses regatos, nessas sombras, nesses altos, nessas praias, /Meu corpo, quando desmaias,/ Não escutes os meus gritos!/ A ti, Deus ensinou-te a resolver os meus conflitos. (…) Compreenderás/ Que em toda a terra há céu atrás!/ Alma e corpo em um só, então, um Eu maior/ Transponha, Deus lho ensina!, / A síntese do amor, /Este abismo que sempre há-de permanecer/ Entre estes pobres dois: eu homem, tu mulher…» Mas é na excelsa figura da Mãe de Jesus que o poeta encontra uma mediação superlativa ainda que na imagem de uma «Nossa Senhora de madeira/ Arrancada a um Calvário de Capela» (…) «“Porque choras, Mulher?” – docemente a repreendo./ Mas à minh’alma, então, chega de longe a sua voz/ Que eu bem entendo: -“Não é por Ele”... / “Eu sei! Teus filhos somos nós».

No que falei há pouco de um dos traços da poesia de Régio, o da não recusa da matéria, do sensível, daquilo que amarra o homem, mas também o pode libertar, cabe aqui citar de novo António Telmo em Arte Poética ao dizer que «o movimento da filosofia deverá consistir, pois, não em fugir para um mundo suprassensível, mas em tomar consciência da imensa força na qual vivemos e somos, - em encontrar o dissolvente universal.» Ora, este assumir a condição mais difícil do ser humano em trânsito, a sua passagem neste mundo, traz-nos ainda as palavras do filósofo de Estremoz que amava Sesimbra, ditas numa conferência na Faculdade de Psicologia de Lisboa, 1996 «Também (...) a gnose hebraico-portuguesa se distingue da gnose oriental valorizando a palavra sobre o silêncio, procurando no silêncio, não o pensamento que se torna inefável, mas o pensamento que se transforma em palavras que iluminem a treva em que vivemos».

Se tempo houvesse, agora e aqui, alargaríamos a nossa análise, partindo do outro lado da obra de Régio, de traços irónicos, lúdicos e até humorísticos, para chegarmos a uma poesia de ascese feita oração, que fere benignamente esse silêncio – repito que fere benignamente - para iluminar a treva do poeta e do próprio mundo, ao mesmo tempo que nessa ascese surge a nota dissonante de certo sentimento de culpa entranhado não só no poeta, como em todo o nosso inconsciente, fruto de momentos históricos que todos conhecemos.

Caros amigos, não venho dizer nada que já não tenha sido falado, nada que já não se saiba, mas apenas recordar um poeta português tão caro a António Telmo e Álvaro Ribeiro, entre outros. A sua poesia que teve que lutar para não se perder no efémero de cada época, na chamada “intervenção”, conduz-nos para a poesia enquanto caminho e matéria de transmutação e redenção pessoal, nesse andar no caminho quando «Deus esconde a Sua face». Neste sentido importa sobremaneira a poesia como profecia, anunciando o que ao Homem falta colher da «árvore da vida». Assim, penso que a propósito dos tempos que vivemos, onde para além da patologia do «politicamente correto» se pretende impingir também o «literariamente correcto», e o «artisticamente correcto» (basta ver os apadrinhamentos oficiais), e para concluir estas minhas palavras, nada melhor do que um contraponto no tempo, de António Carlos Carvalho para José Régio, ou vice-versa, do presente para o passado, ou o contrário, o que dá no mesmo. Diz António Carlos Carvalho na introdução da obra A Profecia dos Papas de S. Malaquias «O fim da profecia não é, não anuncia, o fim da História – em termos de exegese judaica da Bíblia. Aliás, segundo o Zohar, quando a profecia se cala, o céu fala pela voz dos sábios, à falta de sábios o sentido das coisas é revelado nos sonhos, e à falta de sonhos pode-se tê-lo no piar dos pássaros… ou então o espírito profético continua vivo nas crianças e nos loucos…» Palavras estas que se irmanam com as de José Régio quando escreve «na crise espiritual deste nosso mundo moderno em que todos os mais permanentes princípios morais, religiosos, até estéticos (independentemente da sua cor) tantas vezes são atropelados ou se representam por letra morta, - ainda é talvez nos desgraçados, nos miseráveis, nos repelidos, nos malfadados, nos ignorados, nestes e não nos felizes superficiais, não nos príncipes de quaisquer poderes, não nos reconhecidos e constituídos valores sociais de qualquer ordem, que melhor perdura o eterno germe da redenção do homem; que sobrevive a mais autêntica virtualidade da Graça».

Nesta pátria desgraçada que é Portugal (se é que ainda há pátria), com esta graça ficamos ou a esperança paraclética que sopra sempre onde lhe apraz, sejam quais forem os desmandos dos homens, e permanece por todos os tempos, além das estatísticas e planos previsíveis.

 

Biblioteca Municipal de Sesimbra, 25 de Maio de 2013

INÉDITOS. 28

26-09-2014 09:39

Presumível esboço de uma carta para Max Hölzer[1]

 

Sobre o que me diz de uma coincidência das suas interpretações de Fernando Pessoa, cada vez estou vendo melhor que é possível dizer a verdade sem a experiência dela, apontar a realidade sem verdadeiramente a conhecer. É isto, parece-me, que produz a ilusão do conhecimento teórico. Donde ver na sua e na minha interpretações mais uma “confluência” do que uma “concordância”. Partimos, suponho eu, de planos diferentes da consciência e encontramo-nos num ponto, que considerado por outrem parece ter a mesma origem. O enigma está em saber como é dado àqueles que apenas são capazes de uma interpretação teórica falar com relativo acerto de um plano prático de que creio não têm nenhuma experiência.

Parece-me por exemplo (este parecer é apenas como uma suspeita) que os poemas de Fernando Pessoa ele próprio, poemas que começam pela fixação ou determinação dum fenómeno natural (a brisa, os montes ao longe, o sol nulo dos dias vãos, a onda que enrolada torna, etc.) constituem a expressão dos “exercícios práticos” que Pessoa fazia, de exercícios de “rappel”. Será assim?  

 

António Telmo



[1] Título da responsabilidade do editor.

 

VOZ PASSIVA. 30

23-09-2014 10:32

Pr´Além!

Teresa David

 

 

Distinto Mestre,

A sede

de Acordar

está em todos

Os Seres!

 

E Nunca

se perde

o Fruto Divino

nem

o Seu Cântico!

 

Amanhece-Nos

Embala-Nos

nas Alegorias

e nas

Fontes!

 

Sussurra-Nos

nas

Pontes

dos Dias!

 

Inclina

O Seu

Rosto

Sonhado

na Luz

da Nossa

Estrela!

 

Apenas,

Vivermos

A Paz

Magna

Confia-Nos

A Dádiva

Altíssima

Lúcida!

 

Que Só

Perto

O Esperto

Intenso

Firmamento

Nos

Desprenda!

 

Por Tudo

e Todos

no

Jardim

Intacto

e Profundo

Clamemos

O Novo Mundo!

 

Um Grande Coração

Justo

que Nos

Chama!

 

Chama

lisa

solenemente

Pristina

que Nos

Adivinha!

 

Vinha

de Júbilo

e Paixão

de

Grinalda

Vivaz:

Essa Benigna

Memória

que Nos converte

no tenaz

Mistério!

 

Querido Mestre,

no Verdecer do Inesquecível

Aconchegado

Sempre

e

com a

Benção

de Equinócio Repousado

sobre o brilho do

Nosso

Mar,

O Poema Universal,

Criação,

Lê-se

na Língua Invisível

da Eternidade!

 

                                                                                 Quintinha, 21 de Setembro de 2014

INÉDITOS. 27

23-09-2014 10:27

Sobre Linguística. 03[1]

[Noam Chomsky] 

 

O mais famoso discípulo de Eduardo Sapir é Benjamin Lee-Whorf. Pouco falado em Portugal, diríamos mesmo totalmente esquecido a favor de Jacobson, cuja teoria da comunicação começa a comandar os programas de ensino do texto literário, e de Noam Chomsky e da sua “gramática generativa”, também adoptada nesses programas, Benjamin Lee-Whorf é, todavia, o linguista que estabeleceu os princípios capazes de trazerem ao estudo de uma língua, como o português, a objectividade e a verdade reveladoras do que uma língua é singular, distinto e, por assim dizer, único. A “gramática generativa” é um método de redução. Como se sabe, Chomsky adopta o postulado cartesiano de que o pensamento do homem é por toda a parte o mesmo, que sempre opera através dos mesmos mecanismos, das mesmas categorias mentais e das mesmas combinações, de tal modo que as diversas, múltiplas línguas e idiomas não fazem mais do que exprimir essa constante de fundo. Benjamin Lee-Whorf, no seguimento de Boas e de Sapir, pretende mostrar o contrário. Embora admita a existência de grupos por afinidades dos seus elementos, considera o método de redução uma violência que esquece ou destrói processos singulares de pensamento, estruturas viventes verbais singulares.

 

António Telmo



[1] Título da responsabilidade do editor.

 

VOZ PASSIVA. 29

21-09-2014 12:00

Os Cadernos de Filosofia Extravagante foram uma criação de António Telmo, que aliás escreveu o texto de apresentação do seu primeiro número, lançado em Março de 2009, na Biblioteca Municipal de Sesimbra. Desta publicação saíram, até ao presente, quatro volumes: Universalidades (Serra d’Ossa, 2009); Singularidades (Serra d’Ossa, 2010); António Telmo (Zéfiro, 2011); e Interiores (Zéfiro, 2012).

O quinto volume, Confluências, que tinha a sua data de lançamento designada para 30 de Novembro de 2013, viu a respectiva pré-maqueta ser entregue, para paginação, ao editor, há quase um ano, em 17 de Outubro. Três dias antes daquela data, a entidade responsável pela edição dos Cadernos anunciava o cancelamento da respectiva sessão, alegando, para o efeito, “atrasos na produção” do volume. O facto mereceu da parte de três membros do Projecto António Telmo. Vida e Obra os esclarecimentos públicos que, em nome da verdade, e perante as evidências, então se impunham, demonstrando estes, nomeadamente, que tais atrasos de modo algum poderiam ser imputados quer ao principal responsável pela coordenação editorial dos Cadernos, quer à editora Zéfiro.  

De lá para cá, quase dez meses volvidos, nada mais foi publicamente anunciado quanto à edição deste quinto volume de uma publicação que se destina a perpetuar a memória de António Telmo e a promover a difusão da Filosofia Portuguesa. O tempo, esse grande mestre, encarregou-se enfim de esclarecer o que, porventura, tivesse ficado ainda pouco claro.

Fiel aos propósitos que o regem, o Projecto António Telmo. Vida e Obra publica hoje um artigo, da autoria de António Carlos Carvalho, sobre Meyrink e o Golem, destinado ao quinto volume dos Cadernos, onde a importância do escritor austríaco na obra e no pensamento de António Telmo é bem visível. Outros escritos sobre António Telmo de membros do nosso projecto se seguirão, sempre na secção VOZ PASSIVA. É o caso de um ensaio de Eduardo Aroso, que aqui será publicado na próxima semana. 

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Meyrink e «O Golem»

António Carlos Carvalho

[Gustav Meyrink]

 

«Prefiro a todos os livros que nos chegam do estrangeiro os de Gustav Meyrink, um romancista quase desconhecido que Jorge Luis Borges traduziu para a Argentina e que constitui a melhor versão actual de H. Corneille-Agrippa, autor de um famoso tratado de filosofia oculta escrito no século XVI» -- excerto de uma entrevista de António Telmo publicada em «Teoremas de Filosofia», nº 3, 2001 e depois reproduzida em «O Mistério de Portugal na História e n’Os Lusíadas».

Quando li esta declaração do nosso Amigo sorri interiormente, num sorriso de cumplicidade. Afinal não era só eu a ter um «fraquinho» por Meyrink e pelos seus estranhos textos. Além de Borges, Telmo confessava assim o seu fascínio por aquele autor. Fascínio, no mínimo, insólito para quase todos, porque poucos conhecem, ainda hoje, Meyrink.

E isso apesar de estarem publicadas por cá estas obras dele: «O Golem» (Vega, 1990?), «A Noite de Walpurgis» (Estampa, 1991), «O Cardeal Napellus» (Presença, 2007) «Babinski: o Salteador de Praga» (Imprensa Canalha, 2007) e também a sua introdução ao «Tratado da Pedra Filosofal», de Tomás de Aquino (Fim de Século, 2000).

Lá fora estão publicadas «Na Fronteira do Além», «História do Alquimista», «O Dominicano Branco», «O Rosto Verde» e «O Anjo à Janela do Ocidente». 

Vejamos então alguns traços biográficos deste autor. Embora seja geralmente considerado um escritor de Praga, a verdade é que nasceu em Viena, em 1868 e veio a morrer em Starnberg, Baviera, em 1932. Era filho ilegítimo de um aristocrata, o barão Karl von Hemmingen, e de uma actriz judia, Maria Meyer (Meyrink é nome literário que adoptou).

Entre 1882 e 1902, foi banqueiro em Praga mas em 1891, na sequência de uma vida dissoluta, sofreu um colapso nervoso e esteve à beira do suicídio -- mais tarde contou que foi salvo por um opúsculo que lhe meteram por baixo da porta e que falava sobre espiritismo, ocultismo, magia. Em vez de se matar, decidiu dedicar-se a estudar esses mundos desconhecidos, com uma imensa ânsia de saber, uma sede insaciável por tudo o que ultrapassava os limites da existência comum.

Estudou também o Yoga e as doutrinas orientais, integrou-se em grupos ocultistas e espíritas, contactou sociedades secretas, praticou a alquimia. Corriam rumores de que dirigia os assuntos do banco de acordo com a orientação de um espírito-guia…

Em 1902 acabou por se retirar do mundo das finanças, dedicando-se em exclusivo às suas pesquisas espirituais e à escrita como ficcionista. A sua obra (cinco romances e quatro colectâneas de contos) será consagrada a revelar alegoricamente, sob a forma da chamada «literatura fantástica», as vias e os meios para se obter um estado superior de consciência. Meyrink acreditava que não somos um eu individual e autónomo mas sim a manifestação de um deus ou demónio, um demiurgo, preexistente e eterno. Dizia ter visões que o levaram a pensar em imagens e não em palavras -- «esse poder da visão foi a própria causa que me fez tornar escritor».

Para ele, a vida normal era sono, só o homem desperto, acordado, graças à ciência esotérica, conseguia romper o jugo da animalidade e fazer ascender a sua consciência aos planos superiores da existência.

Todos esses temas atravessam as suas obras e transformam-nas em universos estranhos, por vezes assustadores -- mas perfeitamente de acordo com a Praga do seu tempo enquanto herdeira de séculos em que gozou da fama de cidade dos alquimistas, dos feiticeiros, dos pesquisadores das ciências ocultas.

No mínimo, Praga era então uma cidade estranha, onde tudo poderia acontecer e onde se respirava uma espécie de antevisão de tempos futuros terríveis. Meyrink e Kafka viveram em Praga na mesma época mas não chegaram a conhecer-se, embora Kafka reconhecesse o talento de Meyrink ao conseguir reproduzir brilhantemente as atmosferas de certas partes da cidade. Em contrapartida, Max Brod, o grande amigo de Kafka, conheceu Meyrink e admirou-o, embora estranhasse o mundo em que ele vivia: tinha como amigos um coleccionador de moscas mortas e um vendedor de livros raros que só os vendia com a aprovação de um corvo cujas asas já tinham muito poucas penas…         

[Gustav Meyrink na juventude]

 

Em 1904, Meyrink regressou a Viena mas por pouco tempo: os seus escritos anti-militaristas obrigaram-no a exilar-se na Suíça em 1905-6 e depois instalou-se na Baviera. Traduziu as obras de Dickens enquanto escrevia «O Golem», o seu primeiro romance, publicado em 1915, que se tornou logo num êxito -- chegou a ser adaptado duas vezes para cinema por Paul Wegener e uma outra por Julien Duvivier.

Meyrink escreveu o que podemos chamar uma recriação muito pessoal da lenda do Golem de Praga -- a qual, aliás, tem diversas versões e recupera lendas muito mais antigas, que nada têm a ver com Praga mas utilizam o tema do Golem.

Sintetizando muito (Moshe Idel escreveu um grosso volume sobre o Golem, que vale a pena ler atentamente), podemos dizer que a lenda do Golem de Praga convoca a figura exemplar e extraordinária do rabi Judah Loew ben Bezalel (o chamado Maharal de Praga), do século XVI, autor de textos fundamentais sobre o pensamento judaico e grande defensor da sua comunidade perante os ataques recorrentes de anti-semitismo que ali ocorriam. Então reza a lenda que, num período de maior risco para a vida da comunidade, o rabi teria recorrido a uma medida extrema: criar um ser gigantesco, dotado de enorme força -- mas incapaz de falar --, feito a partir do barro e animado graças a um antigo ritual kabbalístico e ao poder do Nome de Deus (ou, noutra versão, da palavra «verdade») inscrito na sua testa. O Golem (palavra que só aparece uma vez, no Salmo 139, 16), e que significa «embrião», matéria-prima informe) executa a sua missão, defende os judeus do ghetto de Praga e o rabi transforma-o novamente em barro, apagando as letras do nome. Noutras versões, o Golem deixa de obedecer às ordens do rabi, faz inúmeros desmandos e o rabi é então obrigado a destruí-lo, ficando o seu bairro guardado no sótão da sinagoga Velha-Nova de Praga.

Na recriação de Meyrink, o Golem continua a manifestar-se periodicamente de 33 em 33 anos, num quarto sem portas e os traços do Golem são os do próprio protagonista do romance…

Claro que o Maharal nunca teve nada a ver com esta história mas a lenda associou-o irremediavelmente a esta narrativa duradoura que ultrapassou as fronteiras do ghetto e da própria cidade.

Obviamente, o essencial da lenda -- uma história exemplar com múltiplas leituras possíveis -- tem a ver com a criação que o Homem pode e deve fazer e quais os seus limites. Enquanto co-criadores, somos chamados a colaborar na obra da Criação do Mundo que Deus deixou voluntariamente inacabada para que sejamos nós a assumir essa tarefa. Mas até onde podemos ir? Ou será que tudo nos é permitido?

Sabemos bem das reservas que António Telmo colocava relativamente ao chamado mundo da cibernética e dos computadores. Assim, será interessante saber que Gershom Scholem, um estudioso que Telmo tanto admirava, quando nos anos 60 soube que o Instituto Weizmann de Rehovot tinha criado o primeiro computador de Israel, sugeriu que lhe fosse dado o nome de Golem Alef, isto é, Golem nº 1... Depois, no discurso de inauguração do computador, em 17 de Junho de 1965, Scholem afirmou que o Golem de Rehovot poderia muito ser a réplica do Golem de Praga e que, aliás, «o novo Golem parece ser capaz de aprender e de se aperfeiçoar, o que revela a superioridade dos Kabbalistas modernos.» O discurso do velho sábio estava carregado de ironia e terminava com uma recomendação ao Golem e ao seu criador, a de crescerem em paz e não destruírem o mundo…

Muito mais tarde, em 2000, Charles Mopsik viria a comentar: «O Golem é menos o paradigma da máquina humanizada, da matéria tornada animada e programada, do que o símbolo do desconhecimento do homem acerca das suas próprias intenções e dos seus verdadeiros desejos», «não sabemos o que queremos e é por causa disso que programamos imperfeitamente os Golem que criamos constantemente».

(Nesta altura em que os computadores parecem querer tomar conta de tudo, e em que os laboratórios modernos prosseguem inexoravelmente a tarefa de criar robôs cada vez mais parecidos connosco, talvez seja também conveniente lembrar que a ideia do robô nasceu igualmente em Praga, com o escritor checo Karel Capek e a sua comédia utópica «R.U.R.» em 1920 -- outro contemporâneo de Meyrink e de Kafka, que um dia confessou: «Enquanto escrevia, fui tomado por um medo terrível, queria prevenir contra a produção em massa e de repente a angústia tomou conta de mim e compreendi que isso se arriscava a tornar-se realidade, que o meu aviso não serviria para nada, que tal como eu, enquanto autor, conduzira as forças desses engenhos obtusos aonde queria, alguém um dia poderia erguer esse estúpido homem-massa contra o mundo e contra Deus.») 

Mas voltemos a «O Golem» de Gustav Meyrink, em que a lenda aparece referida em pouco mais de uma dezena de páginas, a par de alusões ao «Zohar», à Kabbalah, ao poder das letras, ao Talmude, ao Messias, ao Tarot e à Luz -- título, aliás, do capítulo 10 do romance.

Jorge Luis Borges contou que os seus estudos de Kabbalah tiveram como ponto de partida a leitura de «O Golem» de Meyrink e uma longa conversa com G. Scholem. Anos depois dedicou-lhe um poema, precisamente intitulado «O Golem».

No caso de António Telmo, é fácil perceber as afinidades que encontrou no universo de Meyrink e, nomeadamente, em «O Golem»: também os seus contos são histórias simbólicas, irónicas, portadoras de mensagens enigmáticas; as visões iluminam-no; as cartas de jogar estão carregadas de significado e o jogo é sempre mais do que um simples jogo; o Tarot é um universo simbólico fundamental para ambos.

E depois, não o esqueçamos, temos as afinidades entre textos de Meyrink e ensinamentos de Álvaro Ribeiro, o mestre de Telmo:

Em «O Golem», cap. 10 «Luz», p. 119, podemos ler:

«-- Já que estamos a falar de cartas, senhor Zwakh, costuma jogar o Tarot?

-- Claro. Desde pequeno…

-- Nesse caso, espanta-me que proteste por causa de um livro que contém toda a  Kabala, quando o teve nas mãos tantas vezes.

-- Eu? Nas mãos? Eu? -- Zwakh agarrou-se à cabeça.

-- Sim, você! Nunca lhe ocorreu que o baralho de Tarot possui 22 arcanos -- tantos como as letras do alfabeto hebraico? (…) Há algo que talvez não saiba: é que palavra Tarot possui o mesmo significado que o hebraico Torá, que quer dizer “a Lei“».

E agora consultemos o vol. III dos «Dispersos e Inéditos» de Álvaro Ribeiro, texto «Kabala», págs. 485 a 492, fragmento de um livro talvez a fazer. Lemos:

«A cabala é a matemática das letras. Sua prática provém da mais alta Antiguidade, pois é inerente à arte da escrita, que a engloba. (…) A operação fundamental da cabala é a permutação das letras na palavra inteira, o anagrama, já que grama significa letra, donde gramática. O processo mais simples é o de inverter a ordem das letras e de ler a palavra em sentido inverso. Simples, sérios e famosos exemplos desta espécie foram as permutações de AVE para EVA, de AMOR para Roma. Na cabala hebraica é também célebre a permutação ROTA -- TORÁ -- TARÓ. (…) A cabala hebraica completa-se com o Taró que, pelo seu carácter de jogo, simboliza o tempo, o movimento e a história. Cada uma das 22 letras do “alfabeto” hebraico é tida por um símbolo, concretizado pelo desenho, que aparece na ordem benéfica ou maléfica dos acontecimentos humanos. É próprio de cada sorte servir de sortilégio, e por isso os jogos podem ser interpretados com função jocosa, profética e divinatória, segundo os costumes dos povos».

Eis o grande jogo das afinidades -- das letras, dos pensamentos, dos homens. Pelo menos, de alguns.

 (Apontamento final: um habitante de Praga que sobreviveu ao genocídio nazi conta que, quando os alemães ocuparam a cidade, decidiram destruir a sinagoga onde supostamente a massa novamente informe do Golem teria sido guardada e que para eles representava a memória de uma «raça» inferior. Estavam prestes a executar essa tarefa quando subitamente, no silêncio da sinagoga, se ouviram os passos de um gigante que caminhava sobre o telhado. Então viram a sombra de uma mão gigantesca que entrava pela janela e se projectava no soalho… Aterrorizados, largaram as ferramentas e fugiram dali em pânico…)

«OS MEUS PREFÁCIOS». 07

20-09-2014 14:27

PRÓLOGO A POR OUTRAS PALAVRAS, DE IVONE DE MOURA[1]

[Ferdinand de Saussure]

 

Este livro de recolha de expressões e de frases idiomáticas, com seu significado e suas aplicações, além da utilidade que, porventura, possua no domínio da aprendizagem da língua portuguesa por estrangeiros, gratifica quem pretenda surpreender a língua na originalidade do seu génio inventivo. Idiomático, com efeito, significa o que é próprio (do grego idios), no sentido de único ou original. A velha expressão de “frases idiomáticas” tem, todavia, o defeito, pelo destaque que produz no conjunto da língua, de fazer esquecer que toda ela é um idioma, como quem dissesse que numa língua só há de próprio as frases que se dizem idiomáticas, sendo o resto facilmente convertível nas formas faladas pelos outros povos. Idiomático significaria então o que é intraduzível e daí derivaria a utilidade de um dicionário de frases que, traduzidas palavra a palavra para outra língua, perdem o sentido que têm ou ficam até sem sentido nenhum. Por exemplo, se traduzirmos tanto me dá por tant me donne, nunca mais um francês saberá que está perante um ça m’est égal.

É famoso o texto de Teixeira de Pascoaes que dá por intraduzíveis algumas palavras da língua portuguesa, como, por exemplo, ermo e saudade. Como se sabe, o poeta identificava a saudade com o génio feminino do nosso povo. Compreende-se que ele destacasse algumas palavras para a natureza inconfundível do nosso sentimento e do nosso pensamento. A verdade é que todas as palavras, no plano poético em que Pascoaes as situa, são intraduzíveis. Isto é, não há nas outras línguas termos que lhes correspondam exactamente. Mais claramente impossível é dar noutras línguas o modo de dizer da nossa.

Dir-se-á que esse é o ponto de vista de um poeta e não dos linguistas. Poeta é o que faz a língua, linguista o que a ensina. Por outro lado, o poeta parece gozar do privilégio de autoridade, tanto mais se for verdadeiro o adágio de que “quem sabe faz, quem não sabe ensina”. O que é que ensinam os linguistas?

O mais notável de todos eles, porque estabeleceu os princípios que, aplicados ou desenvolvidos, deram toda a linguística do século XX, é, sem dúvida, o suíço Fernando Saussure. O primeiro desses princípios é o que diz que a relação entre o significado e o significante é convencional ou arbitrária. O mesmo conceito, argumenta ele, exprime-se nas diversas línguas por sequências sonoras diferentes, o que vem provar que entre o conceito e a sequência sonora (a palavra) que numa dada língua o significa, não há uma relação necessária. Dá como exemplo as palavras boi e boeuf. As diferenças fonéticas não alteram o conceito que o homem forma do animal e muito menos introduz um novo conceito. Ouvi contar a seguinte anedota. Numa universidade francesa, um aluno depois de ter ouvido o professor expor o argumento de Saussure, pôs toda a gente a rir com a seguinte observação : “Quer dizer” disse o aluno “entre o conceito e as palavras que o significam em duas ou mais línguas só haveria uma relação necessária se essas palavras fossem exactamente iguais”. Os outros riram-se mas era o aluno quem tinha razão. O argumento não é argumento porque afirma o que se pretende provar, é uma petição de princípio.

A ilusão de que é possível traduzir, transportando na tradução tudo o que foi dito, resulta da correspondência que facilmente se estabelece entre termos destituídos de alma, termos que são simples indicações de objectos e de movimentos, cuja associação constitui o que os psicólogos da linguagem designam pela expressão de linguagem prática : “Dê-me um cigarro!”, “Vou ao cinema”, etc. O verbo dar, por exemplo, enquanto designa o movimento simples de entregar, de passar para outro, corresponde mais ou menos a donner. “Eu dou o livro”. “Je donne le livre”. Em expressões como dar de sideu-se um acontecimento já o donner não serve. Fernando Saussure escolheu boi e boeuf. Poderia ter chegado à mesma conclusão comparando saudade e souvenir, por exemplo. O título do seu livro é amplamente ambicioso: Cours de Linguistique Général. Só que não há linguística geral, porque o pensamento, de que a língua é o domínio, não é uma matemática.

Toda a gente conhece a dificuldade que é falar uma língua, por exemplo, a francesa, pensando primeiro em português e fazendo, depois, a conversão mental da frase. Em psiquiatria regista-se o caso de uma pessoa esquecer completamente a língua mãe, mantendo, no entanto, a plena posse de outra língua que, anos atrás, aprendeu a falar correntemente. Isto mostra, ao mesmo tempo, que o que é possível ter por arbitrário é a relação entre a língua e o sangue. Neste sentido, observou Eduardo Sapir que a mesma língua pode ser falada por diferentes povos e o mesmo povo falar diferentes línguas.

A frase de Fernando Pessoa, tantas vezes referida, “Minha Pátria é a língua portuguesa” aparece frequentemente alterada em “A minha Pátria é a língua portuguesa”. Ele não poderia ter escrito a minha, com o artigo definido, porque também sua Pátria era a língua inglesa. Como se vê, não é intenção deste prefácio a apologia do nacionalismo, mas sim propor o verdadeiro universalismo que tem como imprescindível condição o reconhecimento das diferenças. É que cada língua é uma criação espiritual ou, como diria Fernando Pessoa, uma pátria espiritual. Se interpretarmos, com o estruturalismo, as línguas como mecanismos de fazer o pensamento, teremos ao mesmo tempo de lembrar o dizer de Leonardo Coimbra de que “a mecânica é o socorro de Deus enviado ao nada.” E então aprende-se a verdadeira relação da língua com o povo que a fala. O destino e a liberdade do povo é pela língua que se cumprem.

É de observar que, ao dizermos que uma língua é um mecanismo, não significa que a representemos pelo modelo das máquinas fabricadas pelo homem. O que são estas afinal? Uma imitação da natureza no que ela tem de exterior. Nelas, a força que as move actua por contacto. No ser vivo, mesmo que o entendamos como um mecanismo, a força actua por afinidade e por simpatia, por tal modo que a parte é homóloga do todo. Nos seres espirituais, aquela primeira relação inverte-se, é a máquina que cria o movimento. Compreenderemos isto se dissermos que o fim é a comunicação universal dos espíritos. Há dois planos que são difíceis à nossa comunicação : é o das inteligências inferiores à nossa e o das inteligências superiores à nossa. O pensamento é o movimento, que é como Álvaro Ribeiro interpreta La Pensée et le Mouvant de Bergson. A língua é uma criação espiritual criadora de pensamento.

A distância entre os homens não se vence pela uniformização linguística porque ela, a dar-se, seria o resultado de uma espécie de entropia bem mais perigosa do que a perda de energia física. Tudo quanto concorra à recuperação da energia espiritual pela valorização das línguas deve merecer a nossa melhor simpatia. Julgo ser esse o caso do livro que apresentamos.

 

António Telmo

 


[1] Por Outras Palavras: dicionário das frases idiomáticas mais usadas na língua portuguesa, recolha e organização de Ivone de Moura, Edições Ledo, Lisboa, 1995, pp. 5-8.

 

INÉDITOS. 26

19-09-2014 09:49

Sobre Linguística. 02[1]

[Benjamin Lee-Whorf]

 

É significativo que no nosso ensino escolar se tenha adoptado a “gramática” de Noam Chomsky e totalmente esquecido o trabalho de outros linguistas justamente celebrados no estrangeiro (no Brasil, através de Câmara Júnior). Refiro-me a Eduardo Sapir e a Benjamin Lee-Whorf. Tudo se explica quando se verifica que estes dois linguistas são os fundadores de uma escola cuja tese basilar é a seguinte: cada língua tem as suas próprias categorias lógicas. Embora seja possível estabelecer grupos de afinidade, a verdade é que não é possível, a partir de uma observação objectiva das formas de cada língua, adoptar como modelo explicativo a “estrutura” das línguas indo-europeias sem violentar a índole natural das línguas não-europeias.   


António Telmo
 

[1] Título da responsabilidade do editor.

 

INÉDITOS. 25

17-09-2014 12:23

Sobre Linguística. 01[1]

[Edward Sapir]

 

1978 é, entre outras coisas, assinalado pela instauração da “gramática generativa” no ensino oficial. “Tudo na natureza conspira” diz o conhecido e misterioso adágio poético e também no mundo político. O termo gramática generativa é a tradução fonética de “generative grammar” , pois em língua portuguesa dever-se-ia dizer “gerativa” ou “geratriz”. Primeiro sinal de desnacionalização. Vem da América do Norte onde a teorizou um judeu linguista – Noam Chomsky. Outro judeu, também nórdico, Jacobson, estabeleceu a moderna “teoria da comunicação”, que, com a “gramática generativa”, compõe a dupla directriz dos nossos programas de ensino da língua portuguesa. Assim, como diriam os políticos de esquerda, os dois imperialismos – o americano e o russo – actuam linguisticamente, através da Universidade, sobre este pobre e ínclito povo para o qual Fernando Pessoa indicou 1978 como a data mortal. Se a Pátria, como ele disse, é a língua, compreende o leitor quanto virá a ser decisiva esta alteração do programa de português nas nossas escolas.

No actual contexto do mundo humano, é impossível resistir ao domínio técnico e económico do bicórnio nórdico.

A única resistência ainda possível é a língua. Se conseguimos desarticulá-la, feri-la, aniquilá-la então nada mais resta e a invasão material far-se-á sem obstáculo.

Como então?

A “gramática generativa” parte do princípio de que há uma só estrutura para todas as línguas – a própria estrutura da mente humana. A gramática normativa de que o imperialismo jesuíta se serviu noutras circunstâncias históricas oferece o defeito de se impor de fora como um molde, enquanto que esta diz que a “norma” universal está nas próprias línguas, de que as próprias línguas são determinadas leis sempre as mesmas em movimento. Neste caso, distinguem-se umas das outras por acidente, senão por outras razões que o materialismo dialéctico estabelece.

Se assim é, não há que discutir. Aceitar e seguir em frente.

Só que…

Só que na América do Norte e no próprio império germânico-russo nem todos pensam assim. Os nossos universitários, que estão por detrás da reforma do ensino, conhecem muito bem a hipótese Sapir-Lee Whorf, quanto a nós a única doutrina linguística que, sem negar a unidade do género humano, a entende como uma verdadeira e coerente unidade porque levantada sobre os diferentes.  

 

António Telmo



[1] Título da responsabilidade do editor.

 

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