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«OS MEUS PREFÁCIOS». 07

20-09-2014 14:27

PRÓLOGO A POR OUTRAS PALAVRAS, DE IVONE DE MOURA[1]

[Ferdinand de Saussure]

 

Este livro de recolha de expressões e de frases idiomáticas, com seu significado e suas aplicações, além da utilidade que, porventura, possua no domínio da aprendizagem da língua portuguesa por estrangeiros, gratifica quem pretenda surpreender a língua na originalidade do seu génio inventivo. Idiomático, com efeito, significa o que é próprio (do grego idios), no sentido de único ou original. A velha expressão de “frases idiomáticas” tem, todavia, o defeito, pelo destaque que produz no conjunto da língua, de fazer esquecer que toda ela é um idioma, como quem dissesse que numa língua só há de próprio as frases que se dizem idiomáticas, sendo o resto facilmente convertível nas formas faladas pelos outros povos. Idiomático significaria então o que é intraduzível e daí derivaria a utilidade de um dicionário de frases que, traduzidas palavra a palavra para outra língua, perdem o sentido que têm ou ficam até sem sentido nenhum. Por exemplo, se traduzirmos tanto me dá por tant me donne, nunca mais um francês saberá que está perante um ça m’est égal.

É famoso o texto de Teixeira de Pascoaes que dá por intraduzíveis algumas palavras da língua portuguesa, como, por exemplo, ermo e saudade. Como se sabe, o poeta identificava a saudade com o génio feminino do nosso povo. Compreende-se que ele destacasse algumas palavras para a natureza inconfundível do nosso sentimento e do nosso pensamento. A verdade é que todas as palavras, no plano poético em que Pascoaes as situa, são intraduzíveis. Isto é, não há nas outras línguas termos que lhes correspondam exactamente. Mais claramente impossível é dar noutras línguas o modo de dizer da nossa.

Dir-se-á que esse é o ponto de vista de um poeta e não dos linguistas. Poeta é o que faz a língua, linguista o que a ensina. Por outro lado, o poeta parece gozar do privilégio de autoridade, tanto mais se for verdadeiro o adágio de que “quem sabe faz, quem não sabe ensina”. O que é que ensinam os linguistas?

O mais notável de todos eles, porque estabeleceu os princípios que, aplicados ou desenvolvidos, deram toda a linguística do século XX, é, sem dúvida, o suíço Fernando Saussure. O primeiro desses princípios é o que diz que a relação entre o significado e o significante é convencional ou arbitrária. O mesmo conceito, argumenta ele, exprime-se nas diversas línguas por sequências sonoras diferentes, o que vem provar que entre o conceito e a sequência sonora (a palavra) que numa dada língua o significa, não há uma relação necessária. Dá como exemplo as palavras boi e boeuf. As diferenças fonéticas não alteram o conceito que o homem forma do animal e muito menos introduz um novo conceito. Ouvi contar a seguinte anedota. Numa universidade francesa, um aluno depois de ter ouvido o professor expor o argumento de Saussure, pôs toda a gente a rir com a seguinte observação : “Quer dizer” disse o aluno “entre o conceito e as palavras que o significam em duas ou mais línguas só haveria uma relação necessária se essas palavras fossem exactamente iguais”. Os outros riram-se mas era o aluno quem tinha razão. O argumento não é argumento porque afirma o que se pretende provar, é uma petição de princípio.

A ilusão de que é possível traduzir, transportando na tradução tudo o que foi dito, resulta da correspondência que facilmente se estabelece entre termos destituídos de alma, termos que são simples indicações de objectos e de movimentos, cuja associação constitui o que os psicólogos da linguagem designam pela expressão de linguagem prática : “Dê-me um cigarro!”, “Vou ao cinema”, etc. O verbo dar, por exemplo, enquanto designa o movimento simples de entregar, de passar para outro, corresponde mais ou menos a donner. “Eu dou o livro”. “Je donne le livre”. Em expressões como dar de sideu-se um acontecimento já o donner não serve. Fernando Saussure escolheu boi e boeuf. Poderia ter chegado à mesma conclusão comparando saudade e souvenir, por exemplo. O título do seu livro é amplamente ambicioso: Cours de Linguistique Général. Só que não há linguística geral, porque o pensamento, de que a língua é o domínio, não é uma matemática.

Toda a gente conhece a dificuldade que é falar uma língua, por exemplo, a francesa, pensando primeiro em português e fazendo, depois, a conversão mental da frase. Em psiquiatria regista-se o caso de uma pessoa esquecer completamente a língua mãe, mantendo, no entanto, a plena posse de outra língua que, anos atrás, aprendeu a falar correntemente. Isto mostra, ao mesmo tempo, que o que é possível ter por arbitrário é a relação entre a língua e o sangue. Neste sentido, observou Eduardo Sapir que a mesma língua pode ser falada por diferentes povos e o mesmo povo falar diferentes línguas.

A frase de Fernando Pessoa, tantas vezes referida, “Minha Pátria é a língua portuguesa” aparece frequentemente alterada em “A minha Pátria é a língua portuguesa”. Ele não poderia ter escrito a minha, com o artigo definido, porque também sua Pátria era a língua inglesa. Como se vê, não é intenção deste prefácio a apologia do nacionalismo, mas sim propor o verdadeiro universalismo que tem como imprescindível condição o reconhecimento das diferenças. É que cada língua é uma criação espiritual ou, como diria Fernando Pessoa, uma pátria espiritual. Se interpretarmos, com o estruturalismo, as línguas como mecanismos de fazer o pensamento, teremos ao mesmo tempo de lembrar o dizer de Leonardo Coimbra de que “a mecânica é o socorro de Deus enviado ao nada.” E então aprende-se a verdadeira relação da língua com o povo que a fala. O destino e a liberdade do povo é pela língua que se cumprem.

É de observar que, ao dizermos que uma língua é um mecanismo, não significa que a representemos pelo modelo das máquinas fabricadas pelo homem. O que são estas afinal? Uma imitação da natureza no que ela tem de exterior. Nelas, a força que as move actua por contacto. No ser vivo, mesmo que o entendamos como um mecanismo, a força actua por afinidade e por simpatia, por tal modo que a parte é homóloga do todo. Nos seres espirituais, aquela primeira relação inverte-se, é a máquina que cria o movimento. Compreenderemos isto se dissermos que o fim é a comunicação universal dos espíritos. Há dois planos que são difíceis à nossa comunicação : é o das inteligências inferiores à nossa e o das inteligências superiores à nossa. O pensamento é o movimento, que é como Álvaro Ribeiro interpreta La Pensée et le Mouvant de Bergson. A língua é uma criação espiritual criadora de pensamento.

A distância entre os homens não se vence pela uniformização linguística porque ela, a dar-se, seria o resultado de uma espécie de entropia bem mais perigosa do que a perda de energia física. Tudo quanto concorra à recuperação da energia espiritual pela valorização das línguas deve merecer a nossa melhor simpatia. Julgo ser esse o caso do livro que apresentamos.

 

António Telmo

 


[1] Por Outras Palavras: dicionário das frases idiomáticas mais usadas na língua portuguesa, recolha e organização de Ivone de Moura, Edições Ledo, Lisboa, 1995, pp. 5-8.

 

INÉDITOS. 26

19-09-2014 09:49

Sobre Linguística. 02[1]

[Benjamin Lee-Whorf]

 

É significativo que no nosso ensino escolar se tenha adoptado a “gramática” de Noam Chomsky e totalmente esquecido o trabalho de outros linguistas justamente celebrados no estrangeiro (no Brasil, através de Câmara Júnior). Refiro-me a Eduardo Sapir e a Benjamin Lee-Whorf. Tudo se explica quando se verifica que estes dois linguistas são os fundadores de uma escola cuja tese basilar é a seguinte: cada língua tem as suas próprias categorias lógicas. Embora seja possível estabelecer grupos de afinidade, a verdade é que não é possível, a partir de uma observação objectiva das formas de cada língua, adoptar como modelo explicativo a “estrutura” das línguas indo-europeias sem violentar a índole natural das línguas não-europeias.   


António Telmo
 

[1] Título da responsabilidade do editor.

 

INÉDITOS. 25

17-09-2014 12:23

Sobre Linguística. 01[1]

[Edward Sapir]

 

1978 é, entre outras coisas, assinalado pela instauração da “gramática generativa” no ensino oficial. “Tudo na natureza conspira” diz o conhecido e misterioso adágio poético e também no mundo político. O termo gramática generativa é a tradução fonética de “generative grammar” , pois em língua portuguesa dever-se-ia dizer “gerativa” ou “geratriz”. Primeiro sinal de desnacionalização. Vem da América do Norte onde a teorizou um judeu linguista – Noam Chomsky. Outro judeu, também nórdico, Jacobson, estabeleceu a moderna “teoria da comunicação”, que, com a “gramática generativa”, compõe a dupla directriz dos nossos programas de ensino da língua portuguesa. Assim, como diriam os políticos de esquerda, os dois imperialismos – o americano e o russo – actuam linguisticamente, através da Universidade, sobre este pobre e ínclito povo para o qual Fernando Pessoa indicou 1978 como a data mortal. Se a Pátria, como ele disse, é a língua, compreende o leitor quanto virá a ser decisiva esta alteração do programa de português nas nossas escolas.

No actual contexto do mundo humano, é impossível resistir ao domínio técnico e económico do bicórnio nórdico.

A única resistência ainda possível é a língua. Se conseguimos desarticulá-la, feri-la, aniquilá-la então nada mais resta e a invasão material far-se-á sem obstáculo.

Como então?

A “gramática generativa” parte do princípio de que há uma só estrutura para todas as línguas – a própria estrutura da mente humana. A gramática normativa de que o imperialismo jesuíta se serviu noutras circunstâncias históricas oferece o defeito de se impor de fora como um molde, enquanto que esta diz que a “norma” universal está nas próprias línguas, de que as próprias línguas são determinadas leis sempre as mesmas em movimento. Neste caso, distinguem-se umas das outras por acidente, senão por outras razões que o materialismo dialéctico estabelece.

Se assim é, não há que discutir. Aceitar e seguir em frente.

Só que…

Só que na América do Norte e no próprio império germânico-russo nem todos pensam assim. Os nossos universitários, que estão por detrás da reforma do ensino, conhecem muito bem a hipótese Sapir-Lee Whorf, quanto a nós a única doutrina linguística que, sem negar a unidade do género humano, a entende como uma verdadeira e coerente unidade porque levantada sobre os diferentes.  

 

António Telmo



[1] Título da responsabilidade do editor.

 

INÉDITOS. 24

15-09-2014 15:54

O muro[1]

A estrada, pela qual se sai de Estremoz para Borba, corre, em dado momento, ao lado do cemitério. Junto a uma árvore, há um pequeno espaço onde me pus com o meu carro. Para a direita, há uma berma coberta de verdura e, a alguns metros dessa berma, o muro do cemitério. Por cima do muro podemos ver um jazigo de mármore.

Vi, olhando para o muro, que ele de súbito tomava a aparência de um lago de 40 metros de largura e uns 100 de metros de comprimento. A água era de um cinzento azulado.

Vi depois que, segundo queria, via o muro ou via o lago. Fui lá nos dias seguintes e de novo verifiquei que eu comandava, segundo a minha intenção, a percepção a haver. Repetiu-se o mesmo no 5.º dia.

 

António Telmo



[1] Título da responsabilidade do editor.

 

INÉDITOS. 23

13-09-2014 13:09

Rafael Monteiro

Jantávamos no Café do Chagas. Lá para o fim da refeição, fosse por causa de uma leve embriaguez, fosse por uma razão menos visível, vi, enquanto ele me falava dos últimos acontecimentos políticos, que o seu rosto se modificou, tomando a forma de um chinês com barbicha e cabelo apanhado ao alto.

 

António Telmo

INÉDITOS. 22

10-09-2014 15:29

Definição[1]

Sou um homem frágil, indolente, medroso, mas sou, ao mesmo tempo, forte, aventureiro, corajoso. Entre um e outro é que me situo verdadeiramente. Meus erros devem-se a esta oscilação, a este vaguear da alma entre fronteiras: uma que traça o limite da desolação e a outra que é começo do lugar das longas planícies com montanhas ao fim. 

 

António Telmo

 

[1] Título da responsabilidade do editor.

 

INÉDITOS. 21

08-09-2014 09:28

Três seres distintos em mim[1]

 

                            30 de Outubro de 1977

Três seres distintos em mim. Seres ou formas: o Tó (ainda hoje alguns vêem em mim a criança e esta imagem que de mim fazem também ainda muitas vezes me identifico com ela); o António Telmo (meu nome literário e suporte do meu “centro magnético”; é completamente diferente do Tó), o António Vitorino (meu nome hereditário, que estabelece imediatamente uma relação com a família e a hereditariedade); e outros muitos de que tenho uma vaga consciência ou um vago sentimento. Há uma imagem criada na relação com o sexo; outra, que não é exactamente o António Telmo, relacionada com o “ocultismo”; outras que nascem conforme a situação em que me encontro: o professor, o convivente de café; o desportista; etc…

Sinto-me como os outros me pensam ou como sinto que os outros me pensam. Quando estou com o Rafael não sou o mesmo de quando estou com o Reis Marques ou o Francisco ou o Patrício ou os meus filhos ou a minha mulher.

No domínio do pensamento, divido-me entre o católico para quem o mundo é o que é e o maçon para quem há que fazer o mundo. Entre Leonardo Coimbra e Sampaio Bruno?

Como sair desta embrulhada? [António Telmo desenhou em seguida, nesta mesma linha, um delta, com um G inscrito ao centro, seguido de um ponto de interrogação] 

 

António Telmo



[1] Título da responsabilidade do editor.

 

VERDES ANOS. 07

04-09-2014 09:07

Traição dos «Clercs»[1]

 

Dirigem-se estas linhas àqueles que, sendo escritores por vocação irrecusável, reconhecem ao mesmo tempo que a literatura, tal como se encontra socializada, constitui um meio em que pode perder-se a essência ígnea que eles põem em movimento. Existem, efectivamente, homens para os quais escrever actua como um comando interior, mas que visam outra coisa que não se identifica com a literatura nem com qualquer das formas – místicas, políticas, religiosas, filosóficas –, por que é conhecida vulgarmente a manifestação do espírito. A situação desses homens é eminentemente problemática. Como resolvê-la?

Uma atitude indispensável é tomar as manifestações literárias no que elas são: qualquer coisa que não é mais nem menos do que o resto, que não goza, por mais espiritual ou intelectual que pareça, de nenhuma superioridade sobre as restantes formas de actividade humana. Ver na literatura o domínio em que o espírito eminentemente se revela, sentir isso na forma de admiração pelos génios alheios ou pelos próprios, eis o que caracteriza a disposição íntima do literato. Este sentimento ligado à impressão de que para escrever não faz falta pensar, pode ser uma das explicações da razão por que nos últimos anos tem aumentado tanto o número dos escritores. Não há adolescente que não se julgue um génio em potência; não há homem que, depois de ter recebido os aplausos do seu grupo ao primeiro livro publicado, não se creia um génio definitivo. Se perguntarmos, porém, o que é um livro de versos – até mesmo a Divina Comédia –, ou um romance – até mesmo As Afinidades Electivas, ou uma tragédia – até mesmo o Hamlet, verificamos que só por os referirmos a algo que não é literatura e que nada tem que ver com «talentos» e «génios» podem assumir um real interesse. Esse algo aponta para as raízes da vida, para a tremenda verdade do mistério essencial.

Outra atitude indispensável é a de guardar o anonimato. Assim se evitará o perigo ocasional do prestígio, que é o brilho do próprio nome actuando negativamente sobre o indivíduo que, em vez de o ter, dele é tido. Como se guarda, porém, o anonimato? Como guardá-lo? Melhor, como consegui-lo?

Numa época em que todos estamos socialmente identificados, os pseudónimos podem servir apenas como um processo de anonimato construído interiormente. Pelo pseudónimo somos anónimos para nós mesmos. A sua adopção actua como um processo mágico sobre quem o adoptou. Eu não sou eu e sou outro. Desde que se mantenha firmemente o intervalo, não atribuindo importância aos sucessos ou insucessos do nosso outro (e o facto de ser outro a tê-los favorece esta atitude de superioridade) realiza-se uma espécie de desdobramento que, sendo ainda meramente formal, constitui todavia um exercício libertador. A exacta vivência do pseudónimo transforma-o em heterónimo. No caso de Fernando Pessoa, a projecção e animação de alguns elementos constitutivos do seu ser preparou e acompanhou a desidentificação em relação à «pessoa aparente com que vivia física e socialmente».

A sociedade ilude-se quando julga que homem fica identificado desde que sejam fixadas com precisão as linhas de referência exteriores. O escritor deve, porém, tomar consciência desta impossibilidade e viver activamente por processos intelectuais o princípio em que radica a infinita possibilidade de se dar a si próprio formas diversas. Consciente da sua dignidade inominável, pode depois descer ao mundo literário sem perigo de ser contaminado.

Uma terceira atitude indispensável é a do segredo quanto à própria doutrina que defende. Deve apresentá-la de tal modo que a critiquem ali onde ela não está e que ignorem ali onde ela parece não estar. Isso fez também Fernando Pessoa, que defendeu ao mesmo tempo várias doutrinas nos campos político, religioso, filosófico –, mas que só pôde fazer isso porque de todas se serviu sem contradição para justificar e realizar aquela tal que, sendo doutrina, quando se apreende já é outra coisa.

Estas três atitudes, que se poderiam multiplicar em seis, nove ou mais, concentram-se numa directriz única essencial: a de manter um destaque em relação a nós e ao ambiente que escolhemos ou nos escolheram para actuar. Quer isto dizer que o escritor do tipo indicado é para literatos que escreve? Ou que da literatura se serve para levar longe a sua influência?        

O literato português, e falamos dele sempre de um modo geral e abrangendo nesse termo não só o poeta como o crítico, não só o romancista como o historiógrafo, não pode constituir o tipo de leitor que convém ao escritor que definimos. Esta cultura que passamos a examinar e que é a da dissociação da poesia e da prosa em termos tais que exprimem uma mentalidade definitivamente cindida e fechada. Observe-se, no exemplo mais alto, a incapacidade que poetas e romancistas de indiscutível valor mostram em transpor para o domínio da prosa reflexiva a problemática fundamental que os preocupou no romance ou no poema. Por outro lado, aquilo que predomina na crítica, no artigo, na notícia, no ensaio é uma prosa de tipo desportivo, com a preocupação dos valores adjectivos – coisa evidente para quem se der ao trabalho de comparar, nas respectivas publicações, os dois tipos de linguagem. Determinado escritor deve treinar-se ainda, neste livro mostra mais qualidades, é já uma promessa das nossas letras, é superior àquele e inferior a este, deve procurar outra profissão, etc., etc…. Tudo isto numa prosa mascarada em que se pensa tão-pouco que quem tem a paciência de a ler, semana após semana, jornal após jornal, chega, por vezes, a suspeitar que, se há quem pense, com certeza não escreve. Ao lado dos escritos de apreciação ou intercruzados com estes, temos, com carácter mais científico, aqueles em que friamente se situa o escritor estudado na época em que viveu ou vive, na escola a que pertenceu ou pertence, no meio social que o definiu ou define. Não será preciso procurar muito para encontrar algo nas folhas desportivas. Tudo, porém, muito respeitado porque se trata de «crítica» e de «sociologia».

Aos poetas consente a sociedade literata que se ocupem de «problemas metafísicos», porque a poesia e o romance pertencem ao reino da fantasia, do sonho e do irreal. A poesia é uma forma de deleite, de passatempo, de evasão. Tratar em prosa, e numa linguagem firme, positiva, em que o conceito domina a palavra, segredos como o do amor e da morte ou o da sedução feminina ou o da reminiscência activa, constitui um crime que deve ser apontado e logo esquecido, quando não for castigado pelos vários processos de crueldade social. É que a prosa vem a dar a consciência lúcida da realidade que, na poesia, no romance e no teatro fora conhecida por vias semiconscientes e segundo a categoria da espontaneidade – o que equivale a querer realizar o acto absurdo de trazer a noite para dentro do dia.

Neste panorama ou nesta ambiência nada há a esperar daqueles que, por este ou por aquele motivo que a psicologia mais superficial explica, deixaram a «poética» pela «crítica»; mas nada impede que por um acto de transcensão inferior os artistas que no domínio da espontaneidade são espíritos que vêem façam por pensar os mesmos temas em prosa, naquela prosa que se adequa ao seu conceito, e realizem assim sensivelmente o trânsito para o tipo de homem superior. Claro que o círculo perfeito supõe um terceiro termo, aquele que, para lá da espontaneidade e da lucidez, a ordem dos espíritos que podem define como operatividade.       

 

António Telmo



[1] Chave, 1.º ano, n.º 2, Lisboa, Maio de 1964, p. 8.

 

DOS LIVROS. 18

02-09-2014 09:06

De um caderno de apontamentos. 08

Voltei a ler A Estranha História de Peter Schlemhil, o que me levou a imaginar o que seria essa história se, em vez de ter vendido a sua sombra, Peter Schlemhil tivesse vendido a sua imagem. O diabo, uma vez fechado o negócio, dobrou várias vezes a sombra e recolheu-a num pequeno saco; faria o mesmo com a imagem projectada num espelho.

Quais seriam as consequências, não previstas pelo vendedor? Já sabia, antes de fechar o negócio, que deixaria de poder contemplar-se no espelho. Fora dos seus cálculos e bem mais importante é que se tornaria invisível, dado que não teria imagem para se reflectir nos olhos das outras pessoas. Ouviam-no e tocavam-no, mas não o viam. Isto lançou o pavor à sua volta. Como Peter Schlemhil, teria de fugir para onde nunca o tivessem conhecido. Mas não poderia comprar nada porque poria em pânico todo um mercado. Para comer teria de roubar, o que lhe era, aliás, muito fácil.

A única convivência possível seria com um poeta, um filósofo, um louco, desde que fossem verdadeiros. Também surgiria uma mulher por quem se apaixonaria, mas que se veria impedida de amar o que não tem imagem.

Etc., etc., etc..

Simbolismo: os espíritos que vivem entre nós invisíveis terão um drama semelhante? Vêem-nos e não podem ser vistos, só pelos outros sentidos podem ser contactados, dominantemente pelo ouvido. Não foi assim que Sampaio Bruno terá imaginado os anjos?

 

António Telmo

 

(Publicado em Viagem a Granada, 2005)

INÉDITOS. 20

29-08-2014 12:42

Infância e Conhecimento

 

Todos nós nascemos não para sermos os homens que somos; a natureza cria-nos para ser outra coisa; aquilo de que a criança é embrião ou desaparece completamente no homem feito, a que Fernando Pessoa chamou “cadáver adiado”, ou se reclui numa intimidade impenetrável; a educação, não só a do Estado mas também essa, desvia o que noutros tempos constituía o curso inevitável da natureza (a criança é o ser que cresce) e, em lugar de desenvolver esse embrião de poder e conhecimento, faz o pobre ser frágil que é o adulto – poltrão, vaidoso, cuja afirmação de si não é mais estúpido do que o esconder de uma radical insegurança. Ai de quem denunciar essa insegurança!

Pelo contrário, se a criança recebesse o ensino adequado à sua essência, adequado àquilo que ela é e não ao que a supõe o adulto, cada uma seria um príncipe, isto é, um ser que em si tem o seu princípio e do qual o Infante é o seu perfeito símbolo.

É evidente que ao falar-se no Reino da Criança, no reino político da criança tal como aparece anunciado no culto açoriano do Espírito Santo, só por ignorância se atribui um reino à criança tal como a vêem os adultos, sobretudo se esses adultos são poetas menores, como Afonso Lopes Vieira, ridicularizado por Fernando Pessoa e consagrado nas sebentas[1]. A criança é o ser que cresce: o adulto não cresce, move-se como um autómato ao impulso das impressões exteriores. O Infante é o ser que já não fala, tal como o Pai Rosacruz dos sonetos de Fernando Pessoa. À criança é ensinada a língua dos adultos que transporta uma falsa representação do mundo. Um dos aspectos dessa representação está em não ser a criança como uma potência mas como uma deficiência.

Essa potência só por excepcional sorte chegará um dia a ser acto. É possível que alguns tenham escapado à destruição do seu embrião de poder e de conhecimento. Não se contrapondo, porém, como fazem os poetas menores, a criança ao adulto, como o órgão do sonho e da fantasia ao órgão da realidade e da verdade. Há um novo mundo a descobrir, – o mundo verdadeiramente real – que nem a criança tem, porque é apenas o remoto embrião de conhecimento, nem o adulto onde esse embrião feneceu ou se recluiu. Quando uma criança diz que “a lua é uma fada” ou pinta um céu verde podemos ter a certeza de que começa já a exprimir-se segundo o ensino do adulto. Por isso, Picasso dizia que a arte infantil é uma criação dos adultos. Elas levam para os sonhos, enquanto dormem, as preocupações que pomos nos seus pequeninos corpos. Porque é no corpo que se exprime aquela potência de que falamos: aquela potência inquieta e livre, uma espécie de levitação da matéria, qualquer coisa de esse que busca o sol. E, por cima de tudo, o espanto sem angústia de um ser ainda sem suportes mentais, ainda há pouco emergido do grande mar da vida. Claro que a lua não é uma fada, nem a criança, ao dizê-lo, pensa que ela seja uma fada, tal como esta se representa na mente dos adultos. Mas que a lua é qualquer coisa que os adultos ignoram, isso, se o não sabe a criança, tem, pelo menos, em si a virtualidade de o saber.

Queremos, pois, dizer que Portugal só terá cumprido o mandamento que, primeiro, o instituiu como o guardião de Três Pátrias e, depois, compreendidas estas no caos do chão político, o materno a velar sobre nós, no dia em que se realizar no mundo o reino da Criança, isto é, o reino do Homem, segundo a Ordem de Melchisedek. Mas esta missão não diz respeito só a esta terra em que vivemos. Um povo não pode ter por fim apenas ser feliz, mas ajudar a evolução da humanidade. Não pode ter como ideal esta ou aquela forma de governação, em que todos estejam bem comidos, bem servidos e bem casados. Dia a dia, a humanidade decompõe-se; a mente dos homens, de Ocidente a Oriente e de Norte a Sul, construiu uma forma monstruosa de vida. Fuzilam-se pessoas como quem mata pardais. É aterrorizador pensar, como o fez Joseph de Maîstre e Sampaio Bruno, que por detrás deste mundo há um mundo invisível de demiurgos que se alimentam dos nossos cadáveres psíquicos. Não restará outro destino ao homem que traiu o plano para que foi criado: ajudar deus a redimir o mundo.

Confiemos em que Portugal não seja um nome de Deus em vão.

 

António Telmo



[1] No mesmo caderno de António Telmo, encontramos, em relação evidente com o presente texto, o apontamento que a seguir transcrevemos, que se lhe segue, mas que dele está separado por um escrito interpolado sem relação directa com a ideação em apreço. A posição de António Telmo parece situar-se na superação do dilema patenteado:

 

Posto assim o caso, haverá no leitor uma destas duas reacções: 1. É impossível que as “crianças” mandem nos adultos, constituam ministérios, uma delas seja Presidente da República, etc., etc… Deixá-los, a poetas e filósofos, escreverem estas coisas bonitas que o mundo continuará a pisar como sempre.2. Que bonito o reino da criança! Se os adultos quisessem ser de novo crianças como o mundo seria belo! Sim, porque deverão ser a imaginação, a fantasia e o sonho os governantes dos homens!

 

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