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DOS LIVROS. 21

09-10-2014 16:03

ÁLVARO RIBEIRO, 33 ANOS DEPOIS

Oarística

 

“Cada idioma é um órgão invisível que pode ser configurado mediante sinais gráficos e tipográficos, mas que exerce também funções indiscerníveis pela análise literal ou gramatical. No âmbito de cada idioma vão dialogando os seres humanos, e realizam conhecimento ou ciência, na medida em que continuam a relação de espírito a espírito. Fácil será inferir, portanto, que o diálogo mais profundo, de maior alcance gnósico, sófico e pístico, tem a designação clássica de oaristo.”

A palavra oaristo deriva de oar, termo grego para companheira e para esposa, correspondente ao latino soror. Significa, pois, conversa íntima do homem com a mulher. Sendo que língua é o mesmo que diálogo e dado que o diálogo de maior alcance gnósico, sófico e pístico, mais profundo, é o oaristo, à linguística de Álvaro Ribeiro devemos dar o nome de oarística, fazendo coincidir no neologismo o conceito e a assonância de heurística, termo que designa a arte de encontrar, procurando. 

Tudo está orientado, no domínio do aperfeiçoamento da linguagem, segundo duas linhas de educação, a masculina e a feminina, para o supremo  acto de conhecimento que é o encontro do homem com a mulher. A identificação do acto sexual com o conhecimento (“E Adão conheceu Eva”), própria da Cabala, não deve deixar-nos julgar que a distinção de sexos é apenas física. Quando se diz ou escreve “acto sexual”, há que imaginar uma relação em que as almas também são sexuadas e só isso permite identificá-lo com o conhecimento. A carne é o envolvimento, a manifestação ou, talvez, a projecção no plano natural de uma alma sexuada e os órgãos de criação também são psíquicos. Analogia activa ou dado da observação profunda, isto explicará, do ponto de vista oarístico, a afirmação de que “cada idioma é um órgão invisível”, em cujo âmbito “vão dialogando os seres humanos”; vão dialogando, “e realizam conhecimento ou ciência, na medida em que continuam a relação de espírito a espírito “.

As almas encarnadas ou as “razões animadas” (“a razão é o espírito do homem”) buscam-se atraídas pelo amor, mas para se encontrarem na mais elevada e profunda comunicação é necessário que a língua não funcione como obstáculo, degradando o pensamento, para que o diálogo assuma a dignidade de relação sexual superior. Daqui o imperativo de uma educação linguística para o rapaz e para a rapariga, diferenciada até à puberdade, a necessidade de que o ensino seja uma oarística.

As doutrinas que explicam a existência de línguas como o resultado de uma evolução animal do grito ou do gemido para a palavra, do desejo para a razão, foram completamente destroçadas pela linguística do século XX. Álvaro Ribeiro teve de mostrar e demonstrar que a língua é um órgão invisível, um órgão do espírito. As palavras que os amantes trocam não são o acompanhamento dispensável de um acto puramente animal.

A língua portuguesa, por ser aquela em que escrevia, pensava, conversava e orava, por ser a língua que a mãe lhe ensinou, aparecia a Álvaro Ribeiro como um perpétuo socorro e é fácil avaliar a repulsa que sentia pela doutrinação gnóstica contra toda a palavra e todo o pensamento, dados nela por impedimentos ao conhecimento que identifica com o inefável. Imagine-se um mundo em que a palavra está ausente, um mundo sem logos, extático na contemplação abismática do próprio não-ser e que, subitamente, no grande silêncio cristalizado, uma palavra soa e mesmo que tenha apenas quatro letras como a palavra Deus eis que tudo estremece e se agita, despertando do sonho para o movimento, da estagnação sublime para a acção criadora. 

A oarística estuda os movimentos pelos quais os fonemas, as palavras e as frases atraem o pensamento durante o diálogo entre o homem e a mulher. Neste sentido, constitui-se na forma que a linguística do século XX recebe, quando a estudamos à luz da doutrina cabalista do amor. É possível este desenvolvimento porque o estruturalismo deve ser interpretado como uma adaptação da Cabala às exigências científicas dos anos em que foram publicados o Curso Geral de Linguística de Ferdinand Saussure e o livro sobre A Linguagem de Eduardo Sapir. Não é porque os linguistas mais famosos que desenvolveram e aplicaram os princípios dos dois fundadores do estruturalismo em linguística, como Roman Jacobson, Noam Chomsky, Benjamim Lee-Worf e Emílio Benveniste, tenham nomes judaicos. O modelo dado pela estrutura das sephiras é a forma ideal para que tendem as várias interpretações da fonética, da morfologia e da sintaxe, mas no modo como relacionam língua e pensamento, modo que vai até à identificação, devemos ver a reacção da Cabala recuperando-se da derrota que sofreu da linguística alemã, dominadora de todo o século XIX.

Com efeito, o descobrimento do sânscrito constituiu o instrumento indispensável para estabelecer a Gramática Comparada das línguas indo-germânicas, para abrir um abismo entre as línguas europeias e as línguas semitas e para substituir o mito cabalista do hebraico como língua primordial pelo mito pseudo-científico do indo-europeu. Ao mesmo tempo, foi fundada a Fonética em termos tais que por completo ficaram desacreditados os métodos da Themuria, da Notaria e da Guematria. Trataram Franz Bopp, os Schelegel e os Grim de mostrar que somente os fonemas, pela sua materialidade separável da significação e do pensamento, constituem o fenómeno linguístico, só eles podem constituir o objecto de um estudo rigorosamente científico. Para tanto, havia que os considerar em completa independência das letras ou gramas que os significam. A sintaxe, que relaciona forçosamente a língua com o pensamento, quase foi esquecida durante todo o século XIX.

Eduardo Sapir, fundador com Ferdinand Saussure do estruturalismo em linguística, leva até à evidência o facto de que as próprias interjeições e onomatopeias não podem ser explicadas como a expressão de reacções instintivas, mas, como verificamos pela comparação das diversas formas nas diversas línguas da mesma interjeição ou da mesma onomatopeia, são verdadeiras criações artísticas do génio fonético que as compõe em harmonia com um grande conjunto, em que tudo joga entre si, no grande e no pequeno. Mas Álvaro Ribeiro preferiu utilizar o argumento do mesmo linguista, destinado a mostrar que “a linguagem é um sistema funcional completo que pertence à constituição psíquica ou espiritual do homem”. Esse argumento é o seguinte : “Não há, a rigor, órgãos da fala. Há, apenas, órgãos que são incidentalmente utilizados para a produção da fala. Os pulmões, a laringe, a abóbada palatina, o nariz, a língua, os dentes e os lábios servem todos para esse fim ; mas não podem ser considerados órgãos primordiais da fala, do mesmo modo que os dedos não são órgãos de tocar piano nem os joelhos órgãos da genuflexão religiosa”. No desenvolvimento, Eduardo Sapir rebate a tese dos psicofisiologistas que defende a localização da fala no cérebro.

D’A Arte de Filosofar até às Memórias de um Letrado vão vinte e cinco anos. Nos dois livros, a refutação por Bergson da tese que localiza no cérebro o órgão da fala e o órgão do pensamento se segue à menção do argumento de Sapir. O cérebro é um órgão de acção, de atenção à vida, de escolha de direcções activas para imagens e palavras sem lugar físico. Nenhum cientista sério, observa o filósofo citando Ombredanne, aceita hoje a teoria da localização cerebral das palavras. O pensamento é uma actividade invisível que se incorpora em palavras, por um processo análogo ao descrito na Carta sobre a Santidade para a formação do sémen.

Língua é o mesmo que diálogo ; o que nos engana é o prestígio do monólogo e do monoideismo, possíveis porque há sempre outro imaginado em nós mesmos, e é essa a razão porque o lirismo no plano mental e o narcisismo no plano físico são possíveis. A moderna linguística, ao centrar o acto de comunicação na relação de um emissor com um receptor pela mensagem, e ao determinar em que condições a fonética, a morfologia e a sintaxe tornam possível esse acto, pôs o fundamento sobre o qual Álvaro Ribeiro estabeleceu a sua oarística. Sendo, pois, o diálogo uma relação de espírito a espírito, até quando o homem parece falar só, as doutrinas gnósticas que desvalorizam a palavra, julgando-a impeditiva com o pensamento que transporta e movimenta, da união inefável com que identificam o conhecimento, actuam como um obstáculo ao progresso da filosofia na república dos homens.

Língua e diálogo são o mesmo. Fora da relação de espírito a espírito não há língua, mas, diz-nos Álvaro Ribeiro, se os animais falassem diriam o mesmo que dizem os homens que comunicam entre si diariamente. Diálogo não é, pois, o mesmo que comunicação. Se o acto linguístico é, como o determina a moderna linguística, a relação de um emissor e de um receptor pela mensagem, a qualidade desta é que decide de tudo e tal qualidade é a resultante do encontro de dois verdadeiros espíritos. Por isso mesmo, o oaristo é o diálogo mais profundo, de maior alcance gnósico, sófico e pístico. Por isso mesmo, isto é, porque na conversa íntima entre o homem e a mulher há todas as condições para tornar actual o amor.

 

António Telmo

 

(Publicado em Viagem a Granada, 2005)

DOS LIVROS. 20

08-10-2014 09:43

Pinharanda Gomes, o Filósofo Autodidacta

 

 «Há, para além do natural e do social, do herdado e do partilhado, um jardim secreto onde ninguém entra, a não ser o próprio homem. Mesmo em Igreja, cada homem tem um modo de dialogar com o seu Deus, onde a igreja não entra: o fiel tem a sua vida de comunidade eclesial, onde a igreja entra e ensina; mas há, no íntimo do homem, um local onde só ele e Deus sabem o que importa. É a vida pessoal inalienável. É o miolo do sobrenatural»

Pinharanda Gomes

O Filósofo Autodidacta do andaluz Abuchafar Abentofail é a história de Hay Benyocdan, o misterioso mestre de Avicena, contada aqui como a de um homem abandonado, após ter nascido, numa ilha deserta de outros homens, cujo espírito atingiu os mais altos conhecimentos especulativos, tendo por primeira e única mestra a gazela que o amamentou. No plano do conhecimento instrumental, o seu itinerário foi em tudo semelhante ao que arqueólogos e historiadores imaginaram para a humanidade: progressiva entrada na civilização por sucessivos aperfeiçoamentos da adaptação ao meio, passando pelas fases que o raciocínio deduz para que a investigação no terreno as confirme. Há só uma diferença: a criança era de ascendência régia, se não divina, inconfundível com o antropóide imaginado pela arqueologia por evolução da matéria.

Teixeira Rego era um autodidacta como autodidacta é Pinharanda Gomes, que o biografou. Causou escândalo nos meios universitários coimbrões ter sido posto por Leonardo Coimbra na Faculdade de Letras da Universidade do Porto a ensinar algumas disciplinas fundamentais. Do ponto de vista universitário, um autodidacta é um analfabeto. Pinharanda Gomes nunca foi chamado a ensinar na Universidade, nem até na Universidade Católica, apesar da sua perfeita ortodoxia e da sua obra monumental. Também é certo que, na Universidade actual, não há nenhum Leonardo Coimbra.

O homem primitivo foi também imaginado por Teixeira Rego como um autodidacta. Aprendeu tudo por si próprio, até o falar, reagindo ao meio e reflectindo. Tivemos que esperar muitos milénios até que viesse a fundar a Universidade e a tornar-se um inimigo dos autodidactas, isto é, de si próprio. Todavia, pelo caminho que assim tomou, parece que se impediu, como veremos, de atingir conhecimentos tão altos como os de Hay Benyocdan.

Não se vê, pela leitura do livro de Pinharanda Gomes sobre Teixeira Rego, se o biógrafo aceita ou não a doutrina do biografado sobre as origens da humanidade. Deve, porém, tê-lo seduzido pelo que nela se envolve da doutrina de Moisés no Génesis. Teixeira Rego situa o antropóide, que descreve coberto de pêlos, feliz entre os outros animais e fruindo dos frutos, no centro do Paraíso. A descrição do homem primitivo não condiz, como se vê, com a de um homem feito à imagem e semelhança de Deus. Uma trapalhada, em que se enreda o seu pensamento e o do seu biógrafo.

Pior do que isto é quando vem dizer-nos que o antropóide perdeu o estado paradisíaco em que vivia por ter cometido um crime horrível, o de ter morto um animal e comido a sua carne. A palavra que, no Génesis, as traduções dizem designar a maçã significa de facto carne. Em consequência deste acto, caem-lhe os pêlos, transforma-se num homem mais à nossa imagem e semelhança e, de frugívoro que era, passa a carnívoro.

O desejo de se querer conciliar o ensino bíblico com o ensino científico, neste caso com o evolucionismo materialista, leva forçosamente a estes disparates. Pinharanda Gomes, enquanto expunha a doutrina de Teixeira Rego, deve ter pensado em Teillard de Chardin, pois não reagiu opondo-lhe qualquer objecção:

«O aparecimento da Nova Teoria do Sacrifício provocou surpresa e originais comentários. Basílio Teles, em seu rigorismo ascético, mostrava dificuldade em entender o emaranhado da floresta de enganos em que o amigo se metera. Bruno, afoito mas precavido, numa fase de ascensão para a ideia de Deus em sua transcendente pureza, evitou dar parecer, por andar molestado. Teófilo Braga, em seu positivismo, adianta que Teixeira Rego deveria ter descrito as três fases nutritivas da Religião: o mito do Éden, ou religião ctoniana; o mito da Serpente, ou o rio gelado; e o mito do Fruto Perdido (sic), ou da bebida fermentada. Não tinha que fazer isso, o autor do livro, para quem a Religião só surgiu após o Pecado Original, sendo, por isso, uma das provas da queda. Segundo a lógica, Rego estava mais certo do que Teófilo: só há Religião por ser necessário re-ligar algo que se cindiu. Só há Renascença por importar nascer de novo.»

Será isso. Só há religião por ser necessário re-ligar algo que se cindiu. Mas, no passar do antropóide ao selvagem e do selvagem ao homem, cindiu-se alguma coisa do divino? A Religião é uma Renascença, um nascer de novo em quê? No antropóide?

Terá reparado Pinharanda Gomes num dos textos de Teixeira Rego que escolheu para figurar no fim do livro, onde ele chama a atenção para “a serpente e esse alimento proibido que foi a causa da civilização e da ciência, esse alimento que foi a origem de todo o mal mas que foi também a origem de todo o bem”? E, se reparou, terá recordado ao mesmo tempo as palavras de Jesus Cristo no Evangelho aos discípulos, “sois Deuses”, que repetem as palavras da serpente no Paraíso?

Não podemos saber se reparou, porque os autodidactas, crescendo e aprendendo sozinhos na sua ilha, têm segredos. É pena, porém, que não tenha explicado melhor o silêncio de Sampaio Bruno sobre o livro do “discípulo amado”. “A ideia de Deus em sua transcendente pureza” era assim tão oposta ao mistério redentor da Encarnação que levasse o filósofo a preferir calar-se, “por andar molestado”, a ter de dizer “não” a uma doutrina que punha nocomer carne a origem de todo o mal e de todo o bem?

Teixeira Rego exerce sobre Pinharanda Gomes um fascínio irresistível. Sente-se irmanado com ele no seu autodidactismo. Protesta. Diz que Teixeira Rego não foi um autodidacta. Teve como mestres Basílio Teles e Sampaio Bruno, assim como ele, Pinharanda Gomes, teve Álvaro Ribeiro e José Marinho… e a Igreja, onde floresceu o seu espírito à semelhança do de Hay Benyocdan naquela ilha paradisíaca donde não precisou de sair para conhecer todo o Universo e, através dele, Deus.

Protesta e tem razão para protestar. No domínio da cultura exterior ao mistério, não há autodidactas. Isso é o que nos querem fazer acreditar instituições que, por fortes e legítimas razões do Estado, têm o monopólio do ensino, no direito que têm de só elas poderem conferir diplomas.

Se tivéssemos de considerar autodidactas Teixeira Rego e, com ele, nobilíssimos espíritos como Eudoro de Sousa e Amorim de Carvalho e tantos mais, porque não passaram da instrução primária ou de alguns anos do Liceu, não obstante terem escrito magníficos livros, então teríamos de aplicar igual critério a todos os escritores. Não se ensina nas Faculdades de Letras para fazer poetas, dramaturgos, filósofos, mas professores e bibliotecários. Ninguém é preso por se apresentar como escritor, mas pode sê-lo se exercer a medicina ou o magistério sem diploma. Ou sê-lo-á um dia?

Houve, porém, uma excepção: a Faculdade de Letras de Leonardo Coimbra. Ali se fizeram escritores filósofos; ali se ensinava, não para que o aluno obtivesse licença para ganhar dinheiro, mas para que pudesse vir a compreender o grande mistério do homem, do mundo e de Deus. Por isso mesmo a calaram. Agostinho da Silva, Sant’Anna Dionísio, Casais Monteiro, Eugénio Aresta, José Marinho, Álvaro Ribeiro ali nasceram de novo. E não foi Pinharanda Gomes discípulo dos dois últimos e, portanto, não se formou, através deles, na gloriosa Escola de Leonardo Coimbra?

Pinharanda Gomes protesta, mas sabe que isso não é o essencial. Ele sabe que o essencial é ser um perfeito autodidacta, isto é, um homem capaz de pensar por si próprio, mesmo quando ensinado por outros, mesmo quando esses outros são Álvaro Ribeiro, José Marinho ou Orlando Vitorino. Como Hay Benyocdan, aquilo que sempre fez e faz é procurar o segredo de salvar a sua própria existência e a dos outros pelo que aprende na sua ilha, orando e interrogando, na sua ilha que, para ele, tem sido a Igreja, cercada pelo mar revolto da humanidade inquieta, onde se viu estar após ter nascido. No andaluz, a ilha é a cifra de um centro iniciático, não de uma organização religiosa, mas de algo que lhe anda intimamente ligado.

E é pelo que nela vê e aprende que se pôs a estudar Teixeira Rego e outros muitos. Tudo ali está porque não conhece mais nada nem precisa de conhecer. A filosofia portuguesa que tanto ama aparece-lhe como uma árvore gigantesca no centro da ilha, mas desgarrada. Avistam-se barcos à deriva, feitos da madeira que os ventos da heresia lhe arrancaram. Sulcam o grande mar da humanidade portuguesa, uns mais próximos, outros mais distantes. Teixeira Rego é um desses barcos. Buscam, em vão, outros portos onde possam atracar. O mais belo de todos, o de Leonardo Coimbra, andou sempre próximo, temendo rochedos e feras para atracar. Um dia, o timoneiro teve a coragem de desembarcar e descobriu que onde havia feras e rochedos estava o Paraíso.

É assim que Teixeira Rego lhe aparece como um católico que se ignora e por isso se diz agnóstico, como alguém que vive fascinado pelo Mistério da Encarnação, de Deus envolvido connosco, e que procura entendê-lo pelo espiritismo, pelo ocultismo, pela teosofia, por tudo quanto lhe proporcione explicar a misteriosa relação do espírito com a matéria. Pinharanda não gosta dos maniqueus, que põem uma espada flamejante entre os dois, deixando a pobre matéria abandonada, sem socorro, consumindo-se no seu exílio de Deus. Não é exílio uma palavra que significa fora da ilha? E não sabemos já o que é a ilha para o nosso filósofo autodidacta?

O regresso de Leonardo Coimbra à Igreja foi tardio. Álvaro Ribeiro, que o conhecia bem, comparou um dia o itinerário espiritual do mestre ao de Huysmans que passou pelo ocultismo, pela teosofia, pela cabala antes de se converter. Mas não foi só Leonardo a cultivar as ciências proibidas. Já o vimos para Teixeira Rego. Pascoaes terá percorrido caminhos análogos. O que é espantoso observar é que, entre os homens da Renascença, os dois que mais parecem ligados ao ocultismo, Sampaio Bruno e Fernando Pessoa, são os únicos que o refutaram.

Sampaio Bruno, para quem a existência e a intervenção dos anjos são factos positivos, não gosta do espiritismo que denuncia como uma prática grosseira geradora de sombrias miragens, troça de Papus, repele o lema idealista da analogia do microcosmos com o macrocosmos, considera ilegítima e ímpia a sistematização matemático-cabalista de Wronski; Fernando Pessoa, que só admira Sampaio Bruno entre os seus contemporâneos, segue-o no trilho, atacando espiritistas, ocultistas e maçons menores.

Os dois, e também Teixeira de Pascoaes, sabiam que é no mundo intermediário que tudo se decide, mas que a maioria das suas manifestações não ajudam o homem. Sabiam, sobretudo, que não está lá quem decide. Por não saber isto ou não querer sabê-lo, Teixeira Rego mete-se “no emaranhado de uma floresta de enganos”, entrelaçando ciência da época e ocultismo. O materialismo, fortalecido pela ciência, e a ciência, fortalecida pelo positivismo, dominavam os espíritos. Para homens religiosos, sem Igreja por se terem decepcionado com os modos de intervenção social do clero, o ocultismo aparecia a abrir caminhos para o sobrenatural. Fenómenos parapsicológicos pareciam provar que havia outro mundo intimamente ligado a este. Só muito tarde Leonardo Coimbra descobriu que esse outro mundo não era o que procurava. Como se vê pela Razão Experimental, pratica a observação, a experimentação e a correlação dos fenómenos espiritistas, aplica aos seu estudo o método científico, que se lhe impunha pelo superior grau de certeza conseguido no estudo dos fenómenos físicos. Viria a combater a ciência, já para o tarde, com A Rússia de Hoje e o Homem de Sempre, não porque a dialéctica científica lhe aparecesse agora errada, mas por cousar na antropolatria.

A posição de Sampaio Bruno perante a ciência é bem diferente. Vê nela uma disciplina teológica, mas não a aceita tal como é dada. A noção de inércia, que funda todo o mecanicismo e que Leonardo Coimbra integra na sua cosmologia para afirmar a proximidade de Deus, refuta-a demoradamente, assim como o correlativo cálculo de probabilidades e a noção de zero, sobre que assenta toda a matemática moderna, não pitagórica. Não há inércia; há energia. Não há probabilidade, há angelogia. Não há o nada, há o pleno. O movimento é a espontânea reacção nascida de sucessivas rupturas: pela primeira produziu-se o mundo intermediário; pela segunda, o mundo físico. Tudo, porém, converge para “a transcendente pureza de Deus”.

Mas Pinharanda Gomes prefere a todos Leonardo Coimbra e já sabemos porquê. Ele não ama os desinsulados e tem bons motivos para isso.

Há cinco razões, segundo Abd El-Kader, que impedem o espírito, comparado a um espelho, de receber a verdade. Descreve assim a quarta: “existência de um véu interposto entre o espírito e a verdade, véu que pode interpretar-se como uma crença recebida anteriormente, muitas vezes na infância, por via de imitação, e recebida com uma aceitação favorável; um tal obstáculo mete-se entre o espírito e a verdade, impedindo-o de a receber, repelindo o que seja diferente do que aprendeu por imitação.”

Abd El-Kader era perfeitamente ortodoxo dentro do islamismo. É o aviso de um homem sério. Será, talvez, assim. Mas há mais quatro razões e a terceira delas é a que se define pela “orientação do espírito numa direcção que não é a que leva à verdade desejada”.

Voltamos de novo a pôr o problema do autodidacta. É ele por si só capaz de encontrar a verdadeira direcção? Abd El-Kader dá uma quinta e última razão que é o desenvolvimento da terceira: “a quinta razão, diz ele, é a ignorância da direcção que se deve seguir para obter o que se procura (com efeito, quem procura alguma coisa não pode encontrá-la se não tiver na memória as regras das ciências que conduzem ao objecto desejado, por tal modo que a representação e a ordenação destas regras no seu espírito lhe permitam, segundo um processo secreto bem conhecido dos sábios, encontrar a direcção que leva à verdade)”.

Porque será que, neste escrito, já nos apareceram dois muçulmanos a ensinar portugueses? Não escreveu Pinharanda Gomes dois monumentais volumes a pôr na ordem muçulmanos e judeus? Os primeiros, desde que o Corão os criou, já estão meio convertidos ao cristianismo; os segundos é de tradição que, no dia em que reconheçam Cristo como o Messias, será a redenção de toda a humanidade. Entretanto, vamos conversando uns com os outros a ver se nos entendemos.

Um dia, Hay Benyocdan encontrou onde vivia outro solitário, que tinha fugido de uma ilha próxima, povoada pela humanidade do Corão. Aquele tinha atingido a perfeita visão de Deus, mas não aprendera a língua dos homens. Era como um anjo que só por gestos e símbolos comunica a sua divina ciência. Asal, o novo habitante da ilha, ensinou-o a falar com palavras e, depois, ouviu-o. Espantado com a sua sabedoria, instou com ele para que viesse até à outra ilha ensinar e acordar os seus habitantes adormecidos pela religião e pelos prazeres do mundo. Foi e só encontrou hostilidade. Uns ficaram ainda mais arreigados aos seus hábitos; alguns, mais abertos ao que ouviam, tornavam-se piores porque a sabedoria do autodidacta era veneno que os tresloucava. Os dois filósofos regressaram à ilha, persuadidos por experiência de que a prática exterior da religião era o único caminho que convinha àquela gente. Teixeira Rego, com um gesto displicente, obteve mais tarde e quando quis um diploma que lhe permitia ensinar em qualquer Universidade. Foi-lhe tão fácil obtê-lo como a Hay Benyocdan aprender a falar. Infelizmente, a generalidade dos homens só aceita quem fala a sua própria linguagem.

Pinharanda Gomes nunca quis frequentar a Universidade. Ou o querem como filósofo autodidacta ou, se não o querem, que passem muito bem.

 

António Telmo

 

(Publicado em Viagem a Granada, 2005)

VERDES ANOS. 08

06-10-2014 09:23

Notas sobre Teixeira Rego[1]

Teixeira Rego é, como Bruno, de quem aliás muito significativamente foi amigo, um pensador obscuro. Pertence ao grupo inumerável daqueles que o positivismo combateu e quis fazer esquecer, embora, por um curioso mas frequente mal-entendido, seja em geral considerado um positivista. A ilusão ou engano de que há pensamento claro e expressão clara – criada e prestigiada pelo iluminismo e pelo positivismo que este preparou, continuada –, ilusão ou engano que sustém a existência de certas seitas pensantes e actuantes, tornou difícil o entendimento do que etimologicamente significa obscuridade do pensamento e do estilo. Entre a coerência de sons, que caracteriza a chamada expressão clara, coerência sempre dependente de uma palavra obscura, e a simpatia de significações que se estabelece nas zonas recônditas e cognitivas da alma humana, não há oposição apolínea de luz e treva, mas gradação especulativa, sem termo, pelo menos sentido, de comparação. Teixeira Rego foi um pensador obscuro, quer dizer, alguém inteligente, alguém que primeiro soube toda a verdade do lugar-comum de que o pensamento só vale enquanto profundo.

Consideremos nele, além do pensador, ou a par dele, o professor, o conversador e o escritor.

Ensinou na extinta Faculdade de Letras do Porto, ali onde ressoava a palavra persuasiva de Leonardo Coimbra. Aí mestrou as disciplinas de História das Religiões, Grego Elementar, História da Literatura Portuguesa e Filologia Portuguesa. Possuía conhecimentos vastíssimos que lhe permitiam ensinar os mais variados assuntos. Houve discípulos que, durante conversas fora das aulas, souberam entrever que pensador se escondia no professor que, na Faculdade, preleccionava somente. Esta Faculdade, a de Letras do Porto, foi criada com o fim de continuar o ensino da Renascença Portuguesa. Só Teixeira Rego, entre os professores que nela ensinaram Literatura, cumpriu tal fim.

Infelizmente nós, os leitores de hoje, dispomos de poucas e breves publicações suas. Ao publicar, fê-lo em revistas e jornais, na «Águia», no «Dionisos», no «Diário de Notícias», no «Primeiro de Janeiro», tendo depois reunido em volumes, intitulados, um de «Nova Teoria do Sacrifício», quase toda a sua colaboração na «Águia», dois de «Estudos e Controvérsias», grande número de artigos dispersos, versando sobre linguística, estilística, literatura, arqueologia, religião, etc. Existe também uma «Pequena Antologia Clássica», em que recolhe textos de autores antigos e recentes, textos que se podem encarar como versões e repercussões literárias da teoria do pecado original. De resto, a meditação do problema do mal, da sua origem e do seu fim, é o que motiva e orienta fundamentalmente o seu pensamento.

De passagem, observemos que a sua colaboração na «Águia» pode fazer luz sobre o autêntico espírito do movimento significado naquele símbolo. Terá de ter em conta as figuras de fundo, de ponderar e meditar a sua acção, quem, no intuito de uma apreensão aprofundada, se proponha estudar qualquer movimento literário ou não literário, de irrecusável efectividade. Assim, lendo neste sentido Teixeira Rego, muito se nos revela sobre as autênticas causas e os verdadeiros fins da Renascença Portuguesa. A teoria da «renascença», que adquiriu superior expressão poética em Pascoais e Fernando Pessoa, recebe em Teixeira Rego o tratamento especulativo que nos permite hoje entrelaçar os nomes do «movimento» e da «revista» em significativo monograma.

Vejamos agora a acusação de positivista, a que já nos referimos, e de ateu, que em geral pronunciam aqueles que falam ou escreveram sobre Teixeira Rego, acusação que, a ser verdadeira, anularia o que acabamos de dizer. Admitamos e concordemos, porém, com o seu inegável materialismo.

A confusão entre materialismo e ateísmo é exterior à filosofia, embora penetrasse no domínio do senso comum por intermédio de professores chamados de filosofia. Se o senso comum fosse, de facto, o bom-senso, toda a gente veria que nada tem que ver uma coisa com outra. Vemos Teixeira Rego preocupado em descobrir os segredos da matéria, mas essa interpretação visa alcançá-la no grau em que já não aparece como sinal negativo de Deus.

A acusação de positivismo parece-nos derivar da sua oposição à metafísica. Tal oposição não traz, porém, o sinal do positivismo. O problema que obsidiava o pensador era o problema do mal. Várias vezes dá a entender que a metafísica, visando separar o espírito das suas condições psíquicas e somáticas, contribui assim para o aumento da dor no mundo do homem e da natureza, contrariando a evolução natural dos seres. Representa, com efeito, a metafísica, sempre uma acção violenta contra a natureza, que, hoje, se encontra referida particularmente a cada ser. E, reflexamente, atribui-lhe a origem de todos os nossos males. Há, porém, que distinguir cuidadosamente entre mal e sofrimento, entre malefício e corrupção, a fim de evitar que, por inversão e subversão dos termos, se dêem novos malefícios.

Não nos surpreende a incompreensão que aqui referimos para com o inteligente, obscuro pensador. Raramente não atinge os homens superiores. Atinge-os, com o propositado esquecimento, pois se vemos citados e elogiados hoje, em trabalhos feitos por linguistas e outros especialistas, homens como Leite de Vasconcelos, Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Adolfo Coelho, filólogos talentosos mas sem génio, raramente lemos o nome de Teixeira Rego. Vemos frequentemente os homens superiores acusados de defenderem teses e assumirem posições que toda a vida combateram. Assim acontece ao pensador que ousa e sabe pensar na sua língua, mas apresenta nas línguas diversas dos diversos leitores o que foi pensado na origem. Na língua dos positivistas se exprimiu demasiadamente o autor da «Nova Teoria do Sacrifício».

Todavia, o seu estilo, correcto, sóbrio, sombrio e grave, menos descritivo do que narrativo, lembra o dos ingleses, particularmente o do americano Edgar Pöe. Profunda, se entrevê, em Teixeira Rego, intérprete original e representante da nossa tradição atlântica, a influência dos pensadores da ilha, como, aliás, acontece também com o autor das «Notas do Exílio». Com eles e também com Max Müller adquiriu aquele saber filológico, para o qual possuía excepcionais dons. Temos, por isso, de encará-lo mais cingidamente neste aspecto.

Para Teixeira Rego, a filologia era fundamentalmente uma arte de decifrar. Quem escreve, inscreve, grava, grifa, cifra, porque o escrito nunca é expressão e pressupõe sempre o oral e o auditivo, numa gradação em que apreendemos o conceito de personalidade e tradição. Descobrir a personalidade e a tradição que se escondem e se revelam ou velam repetidamente, constituiu o fim da investigação literária de Teixeira Rego. Assim aconteceu com o problema da personalidade de Bernardim Ribeiro, que ele dizia ser a de Cristóvão Falcão, apoiando a tese de Delfim Guimarães, como também a do filósofo Leão Hebreu. Estes três seriam heterónimos do judeu Abarnabel, nome que é anagramático de «Bernardim».

O problema dos heterónimos que, como é sabido, tem ocupado para com Fernando Pessoa os modernos investigadores da literatura, relaciona-se com o problema dos pseudónimos. Se, no caso de Fernando Pessoa, este houvesse sido considerado também um heterónimo, diversa teria sido a posição do problema. De resto, personalidade é conceito somente vivo e fecundo dentro de uma teoria evolucionista e, por isso, não nos surpreendem as posições a este problema dadas pelos passadistas.

Evolucionista, Teixeira Rego, da nossa literatura, pôde apresentar uma visão só comparável à de Teófilo Braga. Não copiou, para isso, os métodos lá de fora, nem as fórmulas de decifração que utilizou podem ser aprendidas em qualquer manual estrangeiro de interpretação literária. Os seus estudos de literatura, na sua brevidade e sucintez valem, por isso, muito mais do que muito trabalho extenso. A divisão da história da nossa literatura em períodos paralelos aos que dividem a história da literatura francesa, falsamente embandeirada de universal, não se coaduna nem explica os actos pelos quais evolui o génio do povo. Demonstrou Teófilo Braga que na história da língua e da literatura, no campo evolutivo das formas políticas, na arte e nas ideias, combinam-se sempre dois elementos – um, íntimo, orgânico, criador, outro, exterior, mecânico e separativo. Do primeiro, a apreensão da evolutiva forma somente se alcança por entre dificuldades e erros. Aqueles que não querem errar, porque temem o perigo, preferem fazer história, à sombra protectora do universal fictício, embora, no plano da sentimentalidade subjectiva se mostrem contra os inimigos da pátria, os quais, por vezes, se chamam por um nome derivado deste vocábulo. O bosquejo de «História da Literatura Portuguesa», que Teixeira Rego publicou na «História de Portugal» de Damião Peres, é, na orientação, comparável à «História da Literatura» de Teófilo Braga. Cremos que isto já sugira ao leitor uma ideia deste trabalho.

Impossível referirmo-nos aqui a tudo o que o pensador português escreveu. Não deixamos contudo de observar que essa obra segue um movimento unitário, emerge de uma doutrina única. É a própria doutrina pensada e atingida na meditação audaz e concentrada do cosmos, do homem e de Deus. Alguns elementos demos que pretendem ser introdutórios. Terminamos estas notas, com o desejo e a esperança de que tenham, porventura, a virtude de levar alguém a ler e a estudar a infelizmente restrita obra do filólogo esquecido e do filósofo desconhecido que foi Teixeira Rego.  

 

António Telmo     

 


[1] Diário de Notícias, Lisboa, 29 de Setembro de 1955.

 

DISPERSOS. 12

02-10-2014 09:39

A caça à baleia[1]

 

20 anos atrás, ainda se caçava a baleia no mar de Sesimbra. Para se poder assistir, assinava-se um termo de compromisso:

– Responsabilizo-me pela minha morte.

Isto de uma criatura de Deus se responsabilizar pela própria morte só no mar, onde toda a gente é livre, livre como os longos horizontes e o infinito que há neles.

Eu fui dos que assistiram a uma caçada à baleia. Um barco a motor, do tamanho dum cacilheiro, um canhão à proa, toda a tripulação atenta ao grito que vinha do cesto da gávea lá no alto do mastro:

– Baleia a bombordo!

– Baleia a estibordo!

E o barco mudava de rumo para onde a voz o mandava, um rumo que incidia no vértice dum ângulo de que ele era uma das linhas e a outra o esfumegar constante da baleia. Encontravam-se matematicamente no vértice desse ângulo, barco e baleia.

A tripulação parava de respirar, olhos postos na grande massa escura que aparecia, desaparecia, reaparecia, grande força rítmica como a do próprio mar obedecendo à energia misteriosa que faz as marés. O profeta Jonas comparou a baleia ao abismo. No ventre desse abismo esteve três noites e três dias, tantos como Cristo nos infernos. A baleia é, de facto, a força do abismo em movimento.

Ao meu lado estava um pescador, de agudo perfil hebreu, que, devo dizê-lo, me estava a interessar muito mais do que a baleia. Sentia, não sei porquê, que esse homem, repassado de mar e tempestade, estava ali completamente indiferente ao êxito da caçada.

– Já caçou muitas baleias? Perguntei-lhe.

– A minha mulher, senhor. Gorda como uma baleia, que me engoliu em vida como ao profeta Jonas e me faz andar aqui a arranjar sustento para os filhos.

Aquele homem era um humorista, sério como todos os humoristas, humorista como todos os portugueses que pelo riso se vingam da rotina miserável dos dias. Ao ouvi-lo, nem sequer reparei que a baleia se tinha escapado, antes que o arpão partisse, mergulhando na profundidade das ondas, para não mais aparecer. Era só mar de novo, extenso e interminável, que o homem do cesto da gávea perscrutava a bombordo e a estibordo, de olhar atento e veloz como o de uma ave de rapina…

 

António Telmo



[1] Título da responsabilidade do editor. A crónica foi escrita entre 1971 e 1972, talvez ainda em Sesimbra, ou já no Redondo, consoante resulta do teor do caderno em que foi encontrada na espólio de António Telmo. Daqui se infere que o relato se reporte a factos ocorridos pelo meado do século XX. Saiu a lume em O Sesimbrense em 1 de Junho de 2013.

 

DOS LIVROS. 19

30-09-2014 11:58

Esotérico e exotérico

 

Esotérico é relativo a exotérico. Não são opostos, como vulgarmente se entende. Estão assim como o interior em relação ao exterior, pois só há exterior por haver interior e só há interior por haver exterior. Exterior não é, porém, o mesmo que exotérico ; só é exotérico aquele exterior em que vive o interior e dele recebe a forma. Ou, por outras palavras, só é exotérico o exterior enquanto nele se revela o esotérico. Consiste a revelação em, mostrando, ocultar de novo. Não se deve dizer, pois, que Shakespeare ou Camões escreveram livros esotéricos.

A revelação do esotérico, por isso mesmo que é revelação, faz-se através de formas superiores, como as da arte ou as da religião, desde que estejam de acordo com o que de sua essência são. Tudo quanto é apresentado como esotérico por isso mesmo que é apresentado como tal não é esotérico. Apresentando-se independentemente daquelas formas, é o “material” de que se serve o espírito inferiorizante para edificar a sua Babel. Uma comédia de Shakespeare, com o seu enredo de conflitos aparentemente banais, é exotérica ; um romance de Alan Cardec, por mais que nos fale de “astral”, de “perispírito” ou de “reencarnação”, não é exotérico.

Daqui se infere que, para atingir o esotérico, é condição necessária a aprendizagem da filosofia ou, por outras palavras, da arte de pensar a intuição e a imaginação. Só pela filosofia pode haver compreensão das formas superiores de arte ou de religião do exotérico para o esotérico. Mas as pessoas não querem pensar ou porque são indolentes ou porque não se dispõem a aprendê-lo, por excesso de orgulho ou por falta de interesse. É verdade que é difícil. Bem mais fácil é acreditar em qualquer espiritismo ou em qualquer teosofismo com a auto-suficiência de quem conhece os mistérios do sobrenatural e não é, no entanto, capaz de compreender uma página de Hegel.

O esoterismo, neste último sentido, tornou-se contrário do que é. Se o seu modo de revelação é o artístico (a religião também é uma arte), a sua democratização é a sua negação.

Este fenómeno social de democratização do indemocratizável é próprio de todas as épocas de decadência. A do império romano é nitidamente exemplar. Freud explicou aquilo de que estamos falando pela relação das fezes com o dinheiro ou com o oiro. A magia, a astrologia e as demais ciências ocultas são nas bocas dos porcos uma porcaria. As pérolas foram devoradas por eles e expulsas na forma de fezes.

Um exemplo que faz ver a degenerescência dos homens com suficiente evidência é o da missa cristã na televisão. Podemos estar felizes. A mensagem cristã chega a todos os lares entre anúncios da pasta de dentes e anúncios de preservativos. Há quem tenha televisão na casa de banho. Eis um belo mundo sem discriminações!

Há quem confunda o império de Satan com o império do Espírito Santo. E, no entanto, se ambos estão anunciados para o fim dos tempos, é bem difícil distingui-los. Perante a Matéria todos somos iguais, perante o Espírito todos somos diferentes. Ali somos iguais e não nos entendemos uns com os outros ; aqui somos diferentes e entendemo-nos uns com os outros.

 

(Publicado em Viagem a Granada, 2005)

António Telmo

VOZ PASSIVA. 31

28-09-2014 15:38

As Encruzilhadas de Deus de José Régio

Eduardo Aroso

                                                                                                       

As Encruzilhadas de Deus, título de uma das obras mais profundas de José Régio, tem logo o condão de nos fazer pensar se as encruzilhadas de Deus não serão muito provavelmente as encruzilhadas dos homens! Que os homens tenham encruzilhadas é natural; que Deus as tenha, é assunto complexo. Creio que com este título Régio lança-nos no mistério do ser, e não no homem «cadáver adiado que procria», mas no homem no nevoeiro mais baixo e pesado da encarnação. No hermetismo «o que está em cima é como o que está em baixo», melhor dizendo, o que está em baixo corresponde, ou deve corresponder, ao que está em cima. Não sabemos o que estaria na mente de José Régio quando deu o título ao seu livro As Encruzilhadas de Deus. Seja como for, a obra fala do dilema de sempre do homem religioso. Aliás, num livro seu intitulado Confissões de um Homem Religioso, o poeta anda sempre à volta do tema, nomeadamente nos capítulos «a ausência de fé», «os graus de Deus» e «a vocação mística».

Durante a sua vida física Régio movimentou-se num triângulo ou numa tripeça que assentava em três locais: em Vila do Conde onde nasceu, em Coimbra, onde estudou e escreveu uma parte significativa da sua obra e em Portalegre onde exerceu a docência. No seu livro intitulado «Fado», se este não representa propriamente as encruzilhadas de Deus, faz parte sem dúvida das encruzilhadas da sua vida, um mosaico poético que canta não só essas três cidades, como outras paisagens geográficas e humanas do Portugal que via e sentia, ao mesmo tempo que o poeta sabe de um «Portugal de todo o mundo», título do primeiro poema «Meus avós que o mar levou,/ Rasgaram águas sem fim./ Neto sou de quem n-o sou!/ Se canto, é que o mar que entrou/ faz ondas dentro de mim…».

Se recorrermos à expressão «pensamento situado», poderíamos também falar de um Régio poeta situado, tanto no espaço que foi o seu neste mundo, e para isso bastaria lermos Fado, como na sua condição de homem religioso, se lermos, por exemplo, Filho do Homem ou A Chaga do Lado, obra esta que António Quadros comenta da seguinte forma «a situação de José Régio na cultura portuguesa é tal que num livro como A Chaga do Lado vem pôr em causa, não apenas a posição espiritual do seu autor, como também o próprio sentimento profundo dessa cultura nas suas relações com a religião».

Como não poderia deixar de ser, é em Coimbra que Régio se integra no movimento Presença, nos anos 20, na companhia de Edmundo de Bettencourt, João Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca, entre outros, onde surgem as inevitáveis polémicas. Tomemos apenas a seguinte, aliás uma das mais habituais e que, diga-se, ainda hoje permanece. Mas dêmos a palavra ao poeta: «Pelo que me toca, nunca pude aceitar qualquer arte-pela-arte que não fosse um livre e peculiar meio de expressão do humano; e do integral humano, embora a cada artista possa não caber senão uma parte. Não creio no futuro de quaisquer tentativas de arte desumanizada – por mais em voga que possa estar esta em certas épocas de crise, sendo até sinal de tal crise. Se, de facto, aceito aprovativamente a fórmula arte-pela-arte, é porque, atribuindo um específico independente de qualquer outro, creio que ela a si mesmo se basta. Mas sempre arte-pela-arte foi para mim sinónimo de arte viva».

António Telmo em Arte Poética diz-nos que «na introdução que escreveu para os seus Poemas de Deus e do Diabo, - o indefinível e o definido -, José Régio defende-se dos critérios que têm pretendido diminuir o valor da sua poesia, quando o acusam de se alhear dos problemas sociais para se entregar a uma constante reflexão da intimidade. José Régio faz-nos então ver que mistério é o do homem nas suas ramificações profundas e independentemente de qualquer compromisso social». Também, por exemplo, um Vergílio Ferreira viria a escrever sobre este assunto, na clara radicalidade da sua assumida condição humana individual da arte que se basta a si, para não morrer em si e poder assim chegar aos outros. Na verdade, as desejáveis preocupações de assistência social e humanitária não se podem confundir com aquilo que é mais singular e sagrado no ser humano: o seu pensamento e a sua arte.

«Sei que não vou por aí» eis o verso de ordem que a sociedade retirou habilmente do poeta. E não só pela necessidade ocasional, bem ao gosto de muitos, como por certos critérios de fazedores de antologias mais ou menos ministeriais. Nem sempre vemos o que queremos ver, mas o que podemos ver, ou então o que mais nos interessa. Ou seja, o poeta, do «Sei que não vou por aí», longe de ser procurado na sua inteireza, como é, ou pelo que é, surge como a excelência da citação. Infelizmente muitos poetas em Portugal têm servido apenas para citação ocasional.

Por certo que o que nos traz aqui é um Régio mais alto e complexo. Não é apenas o poeta do académico e do social, mas aquele do permanente conflito entre fé e razão. Ao considerarmos a sua natureza do divino e do humano, ou do transcendente e imanente, é bem de ver a lógica natural de uma certa aproximação ao movimento da filosofia portuguesa. No capítulo «o labirinto», do livro Confissão de um Homem Religioso, diz-nos que «durante anos vivi numa espécie de labirinto quanto a vida religiosa. Isto não é só porque em mim se digladiavam a razão e os sentimentos obscuros, profundos, mas também porque a própria razão se contraditava a si mesma, usando de argumentos contrapostos uns aos outros, e se contrariavam os próprios sentimentos profundos e me atraíam a posições opostas ou diversas».

Régio foi de algum modo atraído ao movimento da filosofia portuguesa. Elogiou a Faculdade de Letras do Porto como base para uma universidade reformada e moderna, referindo as suas amizades vindas algumas de tempos mais recuados. Fala de Leonardo Coimbra como «poderosa personalidade» à volta da qual todos gravitavam, filósofo que aliás interrogou Régio num exame, tendo-lhe atribuído uma boa classificação. Nesse ambiente, como sabemos, cresceram José Marinho, Álvaro Ribeiro, Delfim Santos, Casais Monteiro e Santana Dionísio, entre outros. Cabe aqui referir um episódio que atesta bem a personalidade do poeta, conforme as suas palavras: «Uma vez, José Marinho, com quem eu mantinha um estreito convívio que me foi muito fecundo, pois me ajudou a desenvolver-me sem me alterar, ofereceu-me esse belo livro injustamente mal conhecido que é A Alegria, a Dor e a Graça com a seguinte dedicatória: Ao Reis Pereira (eu ainda não era o José Régio) do Mestre para o futuro discípulo. E eu escrevi ao lado, a lápis, esta coisa ingénua e pretensiosa: O Reis Pereira não quer ser discípulo senão de si mesmo.» Ora, o sucedido mostra-nos por um lado uma certa faceta do poeta e por outro que José Régio sempre esteve mais próximo da poesia do que dos trilhos da filosofia propriamente dita.

Assim, seguindo rumo até à cidade do Mondego, escreveria mais tarde «nem o prestígio de Leonardo nem a perspectiva de camaradagem de estes meus amigos me desviaram da opção por Coimbra». Deste modo, passaria na rota da grande maioria dos poetas portugueses, numa época em que surge o movimento Presença, criando o ambiente literário que o poeta desejava. Todavia, há que dizê-lo, dele depois se afastaria, desse ambiente académico que ao poeta já não preencheria verdadeiramente a alma, pois, ele próprio o diz «Creio ter sido durante esses anos de Coimbra que a minha religiosidade se manifestou mais superficialmente». Todavia surgem nesse tempo Poemas de Deus e do Diabo, Sonetos de Biografia, Romance da Cabra Cega e vários poemas de As Encruzilhadas de Deus, obra que seria concluída em Portalegre.

Podemos dizer que As Encruzilhadas de Deus existem em toda a obra do poeta e não apenas no livro que tem este título. Mas é neste que a sua poesia tem porventura o seu Getsmani, ou seja, a não recusa da matéria, do sensível, daquilo que amarra o homem, mas também o pode libertar, se quisermos, do erro como meio de salvação. E nisto podemos ver a antítese do nirvana oriental. Teria sido interessante que Antero tivesse conhecido Régio, ou vice-versa, porque essa tensão do nirvana anteriano com as preocupações sociais e políticas do mesmo Antero fariam um bom diálogo com os contrários de Régio, a tal «razão que se contraditava a si mesma» e «os próprios sentimentos profundos» que o «atraíam a posições opostas ou diversas». A assunção do corpo, como instrumento sagrado para transmutação ou retorta para alquimia é um dos traços que distinguem a via do discípulo ocidental do discípulo oriental, e foi a luta que, enquanto poeta, Régio sempre travou em si. Este cume é atingido no «Poema da Carne-Espírito», quando escreve «Sonho-te! Para te humilhar/ E me vingar da tua ausência,/Nesse instante supremo, estrídulo e vulgar,/ Em que o delírio atinge o cúmulo da urgência. (…) Evadir-me-ei, então, por sei lá bem que espaços,/ Cego de raiva e de ternuras loucas,/ Eu, com duas cabeças, quatro pernas, quatro braços,/ E só uma língua em duas bocas! (…) O não te desejar é impossível/ Porque tu sabes, sempre moça e eterna amante,/ Pairar!, virgem suprema!, inatingível e intangível…,/ Prostituída a cada instante.»

Todavia, encontramos também em Régio uma necessidade e quiçá redenção dir-se-ia pela mediação, na figura da mulher Eva e de modo mais elevado no feminino transcendente ou Virgem Maria. No primeiro caso, escreve o poeta «Mulher, como o universo/ Cabe nos seis centímetros de um verso,/ Em ti, nossos sentidos,/ Os conhecidos e os desconhecidos,/ Sentem caber, reunida, a natureza inteira./ Nesses regatos, nessas sombras, nesses altos, nessas praias, /Meu corpo, quando desmaias,/ Não escutes os meus gritos!/ A ti, Deus ensinou-te a resolver os meus conflitos. (…) Compreenderás/ Que em toda a terra há céu atrás!/ Alma e corpo em um só, então, um Eu maior/ Transponha, Deus lho ensina!, / A síntese do amor, /Este abismo que sempre há-de permanecer/ Entre estes pobres dois: eu homem, tu mulher…» Mas é na excelsa figura da Mãe de Jesus que o poeta encontra uma mediação superlativa ainda que na imagem de uma «Nossa Senhora de madeira/ Arrancada a um Calvário de Capela» (…) «“Porque choras, Mulher?” – docemente a repreendo./ Mas à minh’alma, então, chega de longe a sua voz/ Que eu bem entendo: -“Não é por Ele”... / “Eu sei! Teus filhos somos nós».

No que falei há pouco de um dos traços da poesia de Régio, o da não recusa da matéria, do sensível, daquilo que amarra o homem, mas também o pode libertar, cabe aqui citar de novo António Telmo em Arte Poética ao dizer que «o movimento da filosofia deverá consistir, pois, não em fugir para um mundo suprassensível, mas em tomar consciência da imensa força na qual vivemos e somos, - em encontrar o dissolvente universal.» Ora, este assumir a condição mais difícil do ser humano em trânsito, a sua passagem neste mundo, traz-nos ainda as palavras do filósofo de Estremoz que amava Sesimbra, ditas numa conferência na Faculdade de Psicologia de Lisboa, 1996 «Também (...) a gnose hebraico-portuguesa se distingue da gnose oriental valorizando a palavra sobre o silêncio, procurando no silêncio, não o pensamento que se torna inefável, mas o pensamento que se transforma em palavras que iluminem a treva em que vivemos».

Se tempo houvesse, agora e aqui, alargaríamos a nossa análise, partindo do outro lado da obra de Régio, de traços irónicos, lúdicos e até humorísticos, para chegarmos a uma poesia de ascese feita oração, que fere benignamente esse silêncio – repito que fere benignamente - para iluminar a treva do poeta e do próprio mundo, ao mesmo tempo que nessa ascese surge a nota dissonante de certo sentimento de culpa entranhado não só no poeta, como em todo o nosso inconsciente, fruto de momentos históricos que todos conhecemos.

Caros amigos, não venho dizer nada que já não tenha sido falado, nada que já não se saiba, mas apenas recordar um poeta português tão caro a António Telmo e Álvaro Ribeiro, entre outros. A sua poesia que teve que lutar para não se perder no efémero de cada época, na chamada “intervenção”, conduz-nos para a poesia enquanto caminho e matéria de transmutação e redenção pessoal, nesse andar no caminho quando «Deus esconde a Sua face». Neste sentido importa sobremaneira a poesia como profecia, anunciando o que ao Homem falta colher da «árvore da vida». Assim, penso que a propósito dos tempos que vivemos, onde para além da patologia do «politicamente correto» se pretende impingir também o «literariamente correcto», e o «artisticamente correcto» (basta ver os apadrinhamentos oficiais), e para concluir estas minhas palavras, nada melhor do que um contraponto no tempo, de António Carlos Carvalho para José Régio, ou vice-versa, do presente para o passado, ou o contrário, o que dá no mesmo. Diz António Carlos Carvalho na introdução da obra A Profecia dos Papas de S. Malaquias «O fim da profecia não é, não anuncia, o fim da História – em termos de exegese judaica da Bíblia. Aliás, segundo o Zohar, quando a profecia se cala, o céu fala pela voz dos sábios, à falta de sábios o sentido das coisas é revelado nos sonhos, e à falta de sonhos pode-se tê-lo no piar dos pássaros… ou então o espírito profético continua vivo nas crianças e nos loucos…» Palavras estas que se irmanam com as de José Régio quando escreve «na crise espiritual deste nosso mundo moderno em que todos os mais permanentes princípios morais, religiosos, até estéticos (independentemente da sua cor) tantas vezes são atropelados ou se representam por letra morta, - ainda é talvez nos desgraçados, nos miseráveis, nos repelidos, nos malfadados, nos ignorados, nestes e não nos felizes superficiais, não nos príncipes de quaisquer poderes, não nos reconhecidos e constituídos valores sociais de qualquer ordem, que melhor perdura o eterno germe da redenção do homem; que sobrevive a mais autêntica virtualidade da Graça».

Nesta pátria desgraçada que é Portugal (se é que ainda há pátria), com esta graça ficamos ou a esperança paraclética que sopra sempre onde lhe apraz, sejam quais forem os desmandos dos homens, e permanece por todos os tempos, além das estatísticas e planos previsíveis.

 

Biblioteca Municipal de Sesimbra, 25 de Maio de 2013

INÉDITOS. 28

26-09-2014 09:39

Presumível esboço de uma carta para Max Hölzer[1]

 

Sobre o que me diz de uma coincidência das suas interpretações de Fernando Pessoa, cada vez estou vendo melhor que é possível dizer a verdade sem a experiência dela, apontar a realidade sem verdadeiramente a conhecer. É isto, parece-me, que produz a ilusão do conhecimento teórico. Donde ver na sua e na minha interpretações mais uma “confluência” do que uma “concordância”. Partimos, suponho eu, de planos diferentes da consciência e encontramo-nos num ponto, que considerado por outrem parece ter a mesma origem. O enigma está em saber como é dado àqueles que apenas são capazes de uma interpretação teórica falar com relativo acerto de um plano prático de que creio não têm nenhuma experiência.

Parece-me por exemplo (este parecer é apenas como uma suspeita) que os poemas de Fernando Pessoa ele próprio, poemas que começam pela fixação ou determinação dum fenómeno natural (a brisa, os montes ao longe, o sol nulo dos dias vãos, a onda que enrolada torna, etc.) constituem a expressão dos “exercícios práticos” que Pessoa fazia, de exercícios de “rappel”. Será assim?  

 

António Telmo



[1] Título da responsabilidade do editor.

 

VOZ PASSIVA. 30

23-09-2014 10:32

Pr´Além!

Teresa David

 

 

Distinto Mestre,

A sede

de Acordar

está em todos

Os Seres!

 

E Nunca

se perde

o Fruto Divino

nem

o Seu Cântico!

 

Amanhece-Nos

Embala-Nos

nas Alegorias

e nas

Fontes!

 

Sussurra-Nos

nas

Pontes

dos Dias!

 

Inclina

O Seu

Rosto

Sonhado

na Luz

da Nossa

Estrela!

 

Apenas,

Vivermos

A Paz

Magna

Confia-Nos

A Dádiva

Altíssima

Lúcida!

 

Que Só

Perto

O Esperto

Intenso

Firmamento

Nos

Desprenda!

 

Por Tudo

e Todos

no

Jardim

Intacto

e Profundo

Clamemos

O Novo Mundo!

 

Um Grande Coração

Justo

que Nos

Chama!

 

Chama

lisa

solenemente

Pristina

que Nos

Adivinha!

 

Vinha

de Júbilo

e Paixão

de

Grinalda

Vivaz:

Essa Benigna

Memória

que Nos converte

no tenaz

Mistério!

 

Querido Mestre,

no Verdecer do Inesquecível

Aconchegado

Sempre

e

com a

Benção

de Equinócio Repousado

sobre o brilho do

Nosso

Mar,

O Poema Universal,

Criação,

Lê-se

na Língua Invisível

da Eternidade!

 

                                                                                 Quintinha, 21 de Setembro de 2014

INÉDITOS. 27

23-09-2014 10:27

Sobre Linguística. 03[1]

[Noam Chomsky] 

 

O mais famoso discípulo de Eduardo Sapir é Benjamin Lee-Whorf. Pouco falado em Portugal, diríamos mesmo totalmente esquecido a favor de Jacobson, cuja teoria da comunicação começa a comandar os programas de ensino do texto literário, e de Noam Chomsky e da sua “gramática generativa”, também adoptada nesses programas, Benjamin Lee-Whorf é, todavia, o linguista que estabeleceu os princípios capazes de trazerem ao estudo de uma língua, como o português, a objectividade e a verdade reveladoras do que uma língua é singular, distinto e, por assim dizer, único. A “gramática generativa” é um método de redução. Como se sabe, Chomsky adopta o postulado cartesiano de que o pensamento do homem é por toda a parte o mesmo, que sempre opera através dos mesmos mecanismos, das mesmas categorias mentais e das mesmas combinações, de tal modo que as diversas, múltiplas línguas e idiomas não fazem mais do que exprimir essa constante de fundo. Benjamin Lee-Whorf, no seguimento de Boas e de Sapir, pretende mostrar o contrário. Embora admita a existência de grupos por afinidades dos seus elementos, considera o método de redução uma violência que esquece ou destrói processos singulares de pensamento, estruturas viventes verbais singulares.

 

António Telmo



[1] Título da responsabilidade do editor.

 

VOZ PASSIVA. 29

21-09-2014 12:00

Os Cadernos de Filosofia Extravagante foram uma criação de António Telmo, que aliás escreveu o texto de apresentação do seu primeiro número, lançado em Março de 2009, na Biblioteca Municipal de Sesimbra. Desta publicação saíram, até ao presente, quatro volumes: Universalidades (Serra d’Ossa, 2009); Singularidades (Serra d’Ossa, 2010); António Telmo (Zéfiro, 2011); e Interiores (Zéfiro, 2012).

O quinto volume, Confluências, que tinha a sua data de lançamento designada para 30 de Novembro de 2013, viu a respectiva pré-maqueta ser entregue, para paginação, ao editor, há quase um ano, em 17 de Outubro. Três dias antes daquela data, a entidade responsável pela edição dos Cadernos anunciava o cancelamento da respectiva sessão, alegando, para o efeito, “atrasos na produção” do volume. O facto mereceu da parte de três membros do Projecto António Telmo. Vida e Obra os esclarecimentos públicos que, em nome da verdade, e perante as evidências, então se impunham, demonstrando estes, nomeadamente, que tais atrasos de modo algum poderiam ser imputados quer ao principal responsável pela coordenação editorial dos Cadernos, quer à editora Zéfiro.  

De lá para cá, quase dez meses volvidos, nada mais foi publicamente anunciado quanto à edição deste quinto volume de uma publicação que se destina a perpetuar a memória de António Telmo e a promover a difusão da Filosofia Portuguesa. O tempo, esse grande mestre, encarregou-se enfim de esclarecer o que, porventura, tivesse ficado ainda pouco claro.

Fiel aos propósitos que o regem, o Projecto António Telmo. Vida e Obra publica hoje um artigo, da autoria de António Carlos Carvalho, sobre Meyrink e o Golem, destinado ao quinto volume dos Cadernos, onde a importância do escritor austríaco na obra e no pensamento de António Telmo é bem visível. Outros escritos sobre António Telmo de membros do nosso projecto se seguirão, sempre na secção VOZ PASSIVA. É o caso de um ensaio de Eduardo Aroso, que aqui será publicado na próxima semana. 

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Meyrink e «O Golem»

António Carlos Carvalho

[Gustav Meyrink]

 

«Prefiro a todos os livros que nos chegam do estrangeiro os de Gustav Meyrink, um romancista quase desconhecido que Jorge Luis Borges traduziu para a Argentina e que constitui a melhor versão actual de H. Corneille-Agrippa, autor de um famoso tratado de filosofia oculta escrito no século XVI» -- excerto de uma entrevista de António Telmo publicada em «Teoremas de Filosofia», nº 3, 2001 e depois reproduzida em «O Mistério de Portugal na História e n’Os Lusíadas».

Quando li esta declaração do nosso Amigo sorri interiormente, num sorriso de cumplicidade. Afinal não era só eu a ter um «fraquinho» por Meyrink e pelos seus estranhos textos. Além de Borges, Telmo confessava assim o seu fascínio por aquele autor. Fascínio, no mínimo, insólito para quase todos, porque poucos conhecem, ainda hoje, Meyrink.

E isso apesar de estarem publicadas por cá estas obras dele: «O Golem» (Vega, 1990?), «A Noite de Walpurgis» (Estampa, 1991), «O Cardeal Napellus» (Presença, 2007) «Babinski: o Salteador de Praga» (Imprensa Canalha, 2007) e também a sua introdução ao «Tratado da Pedra Filosofal», de Tomás de Aquino (Fim de Século, 2000).

Lá fora estão publicadas «Na Fronteira do Além», «História do Alquimista», «O Dominicano Branco», «O Rosto Verde» e «O Anjo à Janela do Ocidente». 

Vejamos então alguns traços biográficos deste autor. Embora seja geralmente considerado um escritor de Praga, a verdade é que nasceu em Viena, em 1868 e veio a morrer em Starnberg, Baviera, em 1932. Era filho ilegítimo de um aristocrata, o barão Karl von Hemmingen, e de uma actriz judia, Maria Meyer (Meyrink é nome literário que adoptou).

Entre 1882 e 1902, foi banqueiro em Praga mas em 1891, na sequência de uma vida dissoluta, sofreu um colapso nervoso e esteve à beira do suicídio -- mais tarde contou que foi salvo por um opúsculo que lhe meteram por baixo da porta e que falava sobre espiritismo, ocultismo, magia. Em vez de se matar, decidiu dedicar-se a estudar esses mundos desconhecidos, com uma imensa ânsia de saber, uma sede insaciável por tudo o que ultrapassava os limites da existência comum.

Estudou também o Yoga e as doutrinas orientais, integrou-se em grupos ocultistas e espíritas, contactou sociedades secretas, praticou a alquimia. Corriam rumores de que dirigia os assuntos do banco de acordo com a orientação de um espírito-guia…

Em 1902 acabou por se retirar do mundo das finanças, dedicando-se em exclusivo às suas pesquisas espirituais e à escrita como ficcionista. A sua obra (cinco romances e quatro colectâneas de contos) será consagrada a revelar alegoricamente, sob a forma da chamada «literatura fantástica», as vias e os meios para se obter um estado superior de consciência. Meyrink acreditava que não somos um eu individual e autónomo mas sim a manifestação de um deus ou demónio, um demiurgo, preexistente e eterno. Dizia ter visões que o levaram a pensar em imagens e não em palavras -- «esse poder da visão foi a própria causa que me fez tornar escritor».

Para ele, a vida normal era sono, só o homem desperto, acordado, graças à ciência esotérica, conseguia romper o jugo da animalidade e fazer ascender a sua consciência aos planos superiores da existência.

Todos esses temas atravessam as suas obras e transformam-nas em universos estranhos, por vezes assustadores -- mas perfeitamente de acordo com a Praga do seu tempo enquanto herdeira de séculos em que gozou da fama de cidade dos alquimistas, dos feiticeiros, dos pesquisadores das ciências ocultas.

No mínimo, Praga era então uma cidade estranha, onde tudo poderia acontecer e onde se respirava uma espécie de antevisão de tempos futuros terríveis. Meyrink e Kafka viveram em Praga na mesma época mas não chegaram a conhecer-se, embora Kafka reconhecesse o talento de Meyrink ao conseguir reproduzir brilhantemente as atmosferas de certas partes da cidade. Em contrapartida, Max Brod, o grande amigo de Kafka, conheceu Meyrink e admirou-o, embora estranhasse o mundo em que ele vivia: tinha como amigos um coleccionador de moscas mortas e um vendedor de livros raros que só os vendia com a aprovação de um corvo cujas asas já tinham muito poucas penas…         

[Gustav Meyrink na juventude]

 

Em 1904, Meyrink regressou a Viena mas por pouco tempo: os seus escritos anti-militaristas obrigaram-no a exilar-se na Suíça em 1905-6 e depois instalou-se na Baviera. Traduziu as obras de Dickens enquanto escrevia «O Golem», o seu primeiro romance, publicado em 1915, que se tornou logo num êxito -- chegou a ser adaptado duas vezes para cinema por Paul Wegener e uma outra por Julien Duvivier.

Meyrink escreveu o que podemos chamar uma recriação muito pessoal da lenda do Golem de Praga -- a qual, aliás, tem diversas versões e recupera lendas muito mais antigas, que nada têm a ver com Praga mas utilizam o tema do Golem.

Sintetizando muito (Moshe Idel escreveu um grosso volume sobre o Golem, que vale a pena ler atentamente), podemos dizer que a lenda do Golem de Praga convoca a figura exemplar e extraordinária do rabi Judah Loew ben Bezalel (o chamado Maharal de Praga), do século XVI, autor de textos fundamentais sobre o pensamento judaico e grande defensor da sua comunidade perante os ataques recorrentes de anti-semitismo que ali ocorriam. Então reza a lenda que, num período de maior risco para a vida da comunidade, o rabi teria recorrido a uma medida extrema: criar um ser gigantesco, dotado de enorme força -- mas incapaz de falar --, feito a partir do barro e animado graças a um antigo ritual kabbalístico e ao poder do Nome de Deus (ou, noutra versão, da palavra «verdade») inscrito na sua testa. O Golem (palavra que só aparece uma vez, no Salmo 139, 16), e que significa «embrião», matéria-prima informe) executa a sua missão, defende os judeus do ghetto de Praga e o rabi transforma-o novamente em barro, apagando as letras do nome. Noutras versões, o Golem deixa de obedecer às ordens do rabi, faz inúmeros desmandos e o rabi é então obrigado a destruí-lo, ficando o seu bairro guardado no sótão da sinagoga Velha-Nova de Praga.

Na recriação de Meyrink, o Golem continua a manifestar-se periodicamente de 33 em 33 anos, num quarto sem portas e os traços do Golem são os do próprio protagonista do romance…

Claro que o Maharal nunca teve nada a ver com esta história mas a lenda associou-o irremediavelmente a esta narrativa duradoura que ultrapassou as fronteiras do ghetto e da própria cidade.

Obviamente, o essencial da lenda -- uma história exemplar com múltiplas leituras possíveis -- tem a ver com a criação que o Homem pode e deve fazer e quais os seus limites. Enquanto co-criadores, somos chamados a colaborar na obra da Criação do Mundo que Deus deixou voluntariamente inacabada para que sejamos nós a assumir essa tarefa. Mas até onde podemos ir? Ou será que tudo nos é permitido?

Sabemos bem das reservas que António Telmo colocava relativamente ao chamado mundo da cibernética e dos computadores. Assim, será interessante saber que Gershom Scholem, um estudioso que Telmo tanto admirava, quando nos anos 60 soube que o Instituto Weizmann de Rehovot tinha criado o primeiro computador de Israel, sugeriu que lhe fosse dado o nome de Golem Alef, isto é, Golem nº 1... Depois, no discurso de inauguração do computador, em 17 de Junho de 1965, Scholem afirmou que o Golem de Rehovot poderia muito ser a réplica do Golem de Praga e que, aliás, «o novo Golem parece ser capaz de aprender e de se aperfeiçoar, o que revela a superioridade dos Kabbalistas modernos.» O discurso do velho sábio estava carregado de ironia e terminava com uma recomendação ao Golem e ao seu criador, a de crescerem em paz e não destruírem o mundo…

Muito mais tarde, em 2000, Charles Mopsik viria a comentar: «O Golem é menos o paradigma da máquina humanizada, da matéria tornada animada e programada, do que o símbolo do desconhecimento do homem acerca das suas próprias intenções e dos seus verdadeiros desejos», «não sabemos o que queremos e é por causa disso que programamos imperfeitamente os Golem que criamos constantemente».

(Nesta altura em que os computadores parecem querer tomar conta de tudo, e em que os laboratórios modernos prosseguem inexoravelmente a tarefa de criar robôs cada vez mais parecidos connosco, talvez seja também conveniente lembrar que a ideia do robô nasceu igualmente em Praga, com o escritor checo Karel Capek e a sua comédia utópica «R.U.R.» em 1920 -- outro contemporâneo de Meyrink e de Kafka, que um dia confessou: «Enquanto escrevia, fui tomado por um medo terrível, queria prevenir contra a produção em massa e de repente a angústia tomou conta de mim e compreendi que isso se arriscava a tornar-se realidade, que o meu aviso não serviria para nada, que tal como eu, enquanto autor, conduzira as forças desses engenhos obtusos aonde queria, alguém um dia poderia erguer esse estúpido homem-massa contra o mundo e contra Deus.») 

Mas voltemos a «O Golem» de Gustav Meyrink, em que a lenda aparece referida em pouco mais de uma dezena de páginas, a par de alusões ao «Zohar», à Kabbalah, ao poder das letras, ao Talmude, ao Messias, ao Tarot e à Luz -- título, aliás, do capítulo 10 do romance.

Jorge Luis Borges contou que os seus estudos de Kabbalah tiveram como ponto de partida a leitura de «O Golem» de Meyrink e uma longa conversa com G. Scholem. Anos depois dedicou-lhe um poema, precisamente intitulado «O Golem».

No caso de António Telmo, é fácil perceber as afinidades que encontrou no universo de Meyrink e, nomeadamente, em «O Golem»: também os seus contos são histórias simbólicas, irónicas, portadoras de mensagens enigmáticas; as visões iluminam-no; as cartas de jogar estão carregadas de significado e o jogo é sempre mais do que um simples jogo; o Tarot é um universo simbólico fundamental para ambos.

E depois, não o esqueçamos, temos as afinidades entre textos de Meyrink e ensinamentos de Álvaro Ribeiro, o mestre de Telmo:

Em «O Golem», cap. 10 «Luz», p. 119, podemos ler:

«-- Já que estamos a falar de cartas, senhor Zwakh, costuma jogar o Tarot?

-- Claro. Desde pequeno…

-- Nesse caso, espanta-me que proteste por causa de um livro que contém toda a  Kabala, quando o teve nas mãos tantas vezes.

-- Eu? Nas mãos? Eu? -- Zwakh agarrou-se à cabeça.

-- Sim, você! Nunca lhe ocorreu que o baralho de Tarot possui 22 arcanos -- tantos como as letras do alfabeto hebraico? (…) Há algo que talvez não saiba: é que palavra Tarot possui o mesmo significado que o hebraico Torá, que quer dizer “a Lei“».

E agora consultemos o vol. III dos «Dispersos e Inéditos» de Álvaro Ribeiro, texto «Kabala», págs. 485 a 492, fragmento de um livro talvez a fazer. Lemos:

«A cabala é a matemática das letras. Sua prática provém da mais alta Antiguidade, pois é inerente à arte da escrita, que a engloba. (…) A operação fundamental da cabala é a permutação das letras na palavra inteira, o anagrama, já que grama significa letra, donde gramática. O processo mais simples é o de inverter a ordem das letras e de ler a palavra em sentido inverso. Simples, sérios e famosos exemplos desta espécie foram as permutações de AVE para EVA, de AMOR para Roma. Na cabala hebraica é também célebre a permutação ROTA -- TORÁ -- TARÓ. (…) A cabala hebraica completa-se com o Taró que, pelo seu carácter de jogo, simboliza o tempo, o movimento e a história. Cada uma das 22 letras do “alfabeto” hebraico é tida por um símbolo, concretizado pelo desenho, que aparece na ordem benéfica ou maléfica dos acontecimentos humanos. É próprio de cada sorte servir de sortilégio, e por isso os jogos podem ser interpretados com função jocosa, profética e divinatória, segundo os costumes dos povos».

Eis o grande jogo das afinidades -- das letras, dos pensamentos, dos homens. Pelo menos, de alguns.

 (Apontamento final: um habitante de Praga que sobreviveu ao genocídio nazi conta que, quando os alemães ocuparam a cidade, decidiram destruir a sinagoga onde supostamente a massa novamente informe do Golem teria sido guardada e que para eles representava a memória de uma «raça» inferior. Estavam prestes a executar essa tarefa quando subitamente, no silêncio da sinagoga, se ouviram os passos de um gigante que caminhava sobre o telhado. Então viram a sombra de uma mão gigantesca que entrava pela janela e se projectava no soalho… Aterrorizados, largaram as ferramentas e fugiram dali em pânico…)

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