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EDITORIAL. 01

20-11-2014 09:26

Projecto António Telmo. Vida e Obra. Ano II: O verdadeiro poder é servir

 

O Projecto António Telmo. Vida e Obra completa hoje um ano de vida. Dizemos vida e não existência, querendo com isso significar o entusiasmo que depositamos em quanto fazemos pela perpetuação da memória do nosso patrono, inventariando, estudando, publicando e divulgando a sua obra e o seu pensamento, no quadro mais vasto do movimento da Filosofia Portuguesa.

Nascido em resposta a circunstâncias as mais difíceis, o Projecto, estamos em crer, impôs-se pela seriedade, pelo rigor e pela perseverança com que procura concretizar as suas propostas.

A nossa página electrónica, onde temos vindo a publicar dezenas de escritos inéditos e de dispersos hoje quase esquecidos de António Telmo, está prestes a alcançar, no ano civil em curso, o patamar das 50.000 visitas.  

As Obras Completas de António Telmo, com um primeiro volume – A Terra Prometida – lançado em Junho e o segundo – Gramática Secreta da Língua Portuguesa precedida de Arte Poética – a sair da tipografia nas próximas horas, são hoje, contra ventos e marés por vezes insólitos, no seio da editora Zéfiro, uma realidade inquestionável a que o Projecto presta o necessário apoio institucional e científico. O terceiro volume encontra-se já em fase adiantada de preparação.

As Tardes Télmicas, levadas a cabo em parceria com a Câmara Municipal de Sesimbra, asseguram à actividade do Projecto uma programação regular, propiciadora do estudo da obra de António Telmo e dos autores que lhe estão próximos, bem como do território arrábido que foi também o de António Telmo.

O ano de 2014 ofereceu ainda ao Projecto António Telmo. Vida e Obra o ensejo de comemorar com dignidade e ambição o 20.º aniversário da morte de Agostinho da Silva, um dos quatro mestres de António Telmo. O ciclo Agostinho da Silva. 20 anos depois: um património télmico, pelos projectos de investigação que estimulou e pela inequívoca expressão nacional que adquiriu – e a sessão de apresentação dos livros Agostinho da Silva em Sesimbra e Cartas de Agostinho da Silva para António Telmo, no próximo dia 26, às 18:00, na Biblioteca Nacional, é disso mesmo um corolário, como o será também a sessão de 20 de Dezembro, na Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto, com a presença do Professor João Ferreira –, o ciclo, dizíamos, tem levado a vários distritos de Portugal a memória de uma herança com fortes traços de união: aqueles que, por quase três décadas, uniram Telmo a Agostinho.

Instituição associada ao recém-criado Instituto Fernando Pessoa, o Projecto António Telmo. Vida e Obra é hoje uma realidade irradiante congregando mais de duas dezenas de membros de norte a sul do país, e concitando o respeito de várias instituições que connosco têm estabelecido laços de parceria, às quais, reconhecidos, expressamos agora a nossa gratidão: as editoras Zéfiro e Licorne; o Centro de Estudos Bocageanos, a Fundação António Quadros, a revista de cultura libertária A IDEIA, o Clepul e a Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto; as Bibliotecas Municipais de Sesimbra, Setúbal e Redondo, a Biblioteca-Museu República e Resistência e o Museu Municipal de Sesimbra (e respectivas edilidades); e a Escola Secundária de Estremoz – dão bem a medida da credibilidade que o Projecto já granjeia, somente um ano depois de ter sido criado.

Uma palavra mais, de profunda gratidão, à família de António Telmo, na pessoa de Maria Antónia Victorino, membro honorário do Projecto António Telmo. Vida e Obra, pela confiança e pelo apoio dados a um grupo que saberá continuar a honrar a memória télmica, à margem das ambições que tendem a surgir quando o poder se institui organicamente. É neste espírito libertário de independência e de missão que o Projecto diariamente se alicerça, constrói e reinventa, porque, como muito bem diz o Papa Francisco, o verdadeiro poder é servir.     

DOS LIVROS. 25

18-11-2014 10:14


Propósito

 

O estudo, breve mas condensado, que apresentamos nas páginas seguintes, será talvez o germe de outro, cujas características determinamos nas linhas finais deste escrito. Dizemos propositadamente a palavra «germe». É que, meditado à medida que ia sendo escrito, este livro não obedece ao esquema construtivo habitual, não caminha das teses para as provas pelos argumentos: – é um livro mal escrito. Cremos, porém, que esse será o destino de todos os escritos que vierem a ser elaborados sobre Bergson e que pretendam interrogar para além do que foi definido pelos intérpretes. Não procurámos integrar o pensamento de Bergson dentro da história da filosofia; fizemos sempre por ver esse pensamento à luz da actualidade, isto é, das ideias actuais, das que se pensam hoje, ontem e amanhã. Convictos da importância da literatura, compreendendo neste termo tudo quanto habitualmente se compreende menos a filosofia, cruzámos constantemente a nossa interpretação com as formas da arte poética, no duplo intuito de animar a filosofia e de reintegrar a poesia no pensamento.

Efectivamente, só um critério artificial pôde estabelecer a dissociação entre a literatura e o pensamento, e se é bem certo que no início do processo se vêem agentes estranhos à associação espiritual dos artistas, hoje pode dizer-se que estes representam uma das forças activas que defendem tal dissociação. E é curioso que o bergsonismo, ao distinguir inteligência e intuição, tem servido de apoio à corrente de opinião que circula entre os escritores orgulhosos de não pensarem, de serem intuitivos, sensitivos, imaginativos. Manifestam assim um amargo desprezo pela ciência, que, no fundo, admiram e até temem, e opõem-lhe, como expressões de um valor superior, em que, afinal, não acreditam, as formas em que cai o espírito que perdeu o poder. Procurámos, por isso, interpretar o bergsonismo como uma filosofia que identifica por um lado pensamento e intuição, por outro lado ciência e imaginação. Só esta via, que percorre o caminho inverso da interpretação mais divulgada, se nos afigura fecunda. É evidente, porém, e como consequência do restabelecimento no conceito da primigénia relação da literatura com o pensamento, que muitos escritores têm de continuar a defender o critério oposto se quiserem que os seus livros persistam na admiração do público, embora para viverem apenas uma existência efémera, dependente da extensão da rede tecida pelo elogio mútuo.

Uma palavra sobre a «comédia». Falta neste opúsculo, um capítulo sobre «o riso e a significação do cómico» no pensamento de Bergson. Parece indesculpável num escrito que se chama Arte Poética, mas justifica-se dentro do método de investigação que nos conduziu de princípio a fim. Sobre a «comédia» escreveu o filósofo um livro de trezentas páginas, ao passo que deixou apenas, sobre as restantes formas literárias, algumas observações que, em geral, passam desapercebidas. Como o espírito que actua nos sonhos desenvolve numa trama significativa de imagens os acontecimentos insignificantes da vida de vigília, esquecendo ou desprezando quase sempre os que parecem mais importantes, assim nós procurámos ver o que Bergson calou nas entrelinhas e fixámos, por isso, o interesse sobre a alusão veloz, sobre a imagem fugitiva, cuja aparição, em Bergson, se dá permanentemente em figura comparativa. Aliás, uma interpretação de Le Rire, que não seguisse um método análogo, nada provavelmente viria acrescentar de novo e de positivo a quanto já tínhamos dito: – antes nos atiraria para zonas em que preferimos, por enquanto, não tocar. O riso oferece sempre o perigo de todos os corrosivos, como notou J. Paul Richter ao escrever: «Todas as definições são cómicas».

Fechado o parêntesis, diremos ainda a propósito da relação da literatura com o pensamento que a dificuldade que muitos sentem em estabelecê-la de modo positivo reside na concepção particular que formam da filosofia como uma actividade exclusivamente mental. Não é que ela seja isso e algo mais, – um complexo de raciocínio, sensitividade, imaginação. A distinção é muito mais funda. É a própria distinção entre filosofia especulativa e filosofia operativa. E é até o facto desta poder ter a sua expressão naquela que garante a hipótese de a poesia, o teatro, o romance poderem ser, por sua vez, formas distintas, mas convergentes, da mesma experiência secreta. Contra uma filosofia raciocinante, a que não corresponde nenhuma espécie de transmutação interior, e que constitui, afinal de contas, uma efémera evasão do mundo da acção, da qual sempre se regressa desiludido, sempre protestou Bergson. Mas poderia ter protestado igualmente contra as análogas formas de imaginação artística.

Cremos que o nosso essencial propósito fica assim assinalado. O leitor dirá, depois de ter lido esta meia centena de páginas, se também ficou esclarecido.            

 

António Telmo

 

 

(Publicado em Arte Poética, 1963)

INÉDITOS. 34

13-11-2014 11:14

Duas páginas sobre Verdade, Condição e Destino no Pensamento Português Contemporâneo, de José Marinho

 

O último livro de José Marinho, publicado meses depois da sua morte, Verdade, Condição e Destino no Pensamento Português Contemporâneo, para lá de um esperançoso optimismo, ancorado no contributo filosófico de alguns homens singulares, que permite confiar no destino de um pensamento que, em sucessivos fulgores, se vai aproximando da verdade, mostra como o mais puro e corajoso movimento do espírito português se embaraça e prende na condição da alma mística de um povo, capaz de levar a noção indeterminada de liberdade até á profecia, mas que tende cada vez mais a fixar-se no pior dos fanatismos – o fanatismo da razão. A razão é, sem dúvida, a condição da filosofia, a razão, como disse Leonardo Coimbra, que é sem descanso perante uma intuição inesgotável. É a condição, porque se a razão falece o espírito do homem é avassalado e perde-se num mar de sensações transcendentes que constitui o mundo da intuição. Uma razão, insegura da sua força, fecha-se, para poder subsistir, ou constitui-se à parte, para poder ponderar, da intuição e até da sensação. Por outro lado, não se interroga sobre si própria, une-se a si própria como um fiat instituído ab aeternum. Ficam assim criadas as condições para que se estabeleça definitivamente uma mística da razão, a mais temível e paradoxal das místicas, porque a razão é a própria negação de tudo quanto é místico. Para José Marinho, se bem o entendemos, reside a qui a relação crucial que nos define a nós povo português, se quisermos tirar todas as ilações, como um povo irremediavelmente perdido para a vida do espírito.

   

*

*      *

 

Os amigos de José Marinho ouviram-no repetidamente dizer nos últimos meses da sua vida que se voltasse a nascer na terra não queria nascer português. O seu último livro, Verdade, Condição e Destino no Pensamento Português Contemporâneo, só alguns meses depois da sua morte veio a ser publicado porque o editor receou, conforme carta escrita ao autor, fazê-lo sair em plena ditadura comunista. Este livro só de filosofia, um livro amável, como o próprio José Marinho o era para todos os conviventes pensassem o que pensassem, teve de esperar por Eanes para poder vir a ser lido por alguns portugueses.

É um livro eminentemente paradoxal, porque do país onde não queria voltar a nascer, do país mais anti-filosófico do planeta, José Marinho assenta sobre a própria negatividade a condição que define o destino de pensamento contemporâneo português para a verdade.

Fica-nos a impressão, após a leitura do livro, de que José Marinho, situável entre os pensadores místicos (…)[1]   

 

António Telmo



[1] António Telmo interrompeu aqui a escrita da frase. 

 

INÉDITOS. 33

11-11-2014 10:22


O grande adro de Arruda[1]

 

Acabei de ler, lentamente reflectindo, a sua carta e o seu admirável texto de aproximação católica ao Agostinho da Silva.

Digo aproximação a pensar numa frase que um dia me confidenciou o José Marinho: «Das igrejas só amo o adro.» Foi num adro, o da igreja de Arruda dos Vinhos, que se decidiu (no sentido da cápsula que se abre para libertar as sementes) o que vim a ser depois em participação no espírito ao longo da minha vida. Ali havia uma porta manuelina pela qual trepávamos brincando, por onde saíam e entravam o padre, um simpático velho alentejano, e as suas ovelhas, por onde entravam os caixões que se abriam lá dentro expondo o horror cadavérico de homens sem alma; e havia também o grande sino que eu fazia vibrar com uma pedra da fisga, simultaneamente contente e receoso do que me parecia um pecado contra a Igreja, mas um belo pecado pelo valor da pontaria e de produzir por mim próprio o divino som. Os jogos sucediam-se (pião, berlinde, botão, malha) ao longo do ano numa ordem litúrgica certa, que nenhum individualmente dos rapazes conhecia, mas que vinha não sabíamos de onde cumprindo-se sem erro ou desvio. Só saíamos do adro para caçar pássaros, colher espargos, procurar o trevo de quatro folhas ou encontrar ninhos. Dividíamo-nos em grupos que funcionavam como uma associação secreta. Ai do que dissesse a um de outro grupo em que árvore dos vastos campos se encontrava um dos muitos ninhos que eram propriedade do grupo. A fisga que leva a morte aos corações alados que são os pássaros, a caça aos ninhos, o espreitar dos cadáveres expostos, as pedradas no sino da igreja e também o jogo continham um elemento de mal que hoje me arrepia e espanta quando sinto saudades da infância subitamente despertadas por ouvir um pássaro cantar. O adro, os adros, a sensação de liberdade, os grandes adros como o de Arruda, onde se fazia o arraial de Agosto, onde conhecemos a nossa primeira namorada no meio de tanta gente alegre.

Não digo mais. Não é próprio de uma carta que responde a tão profundamente pensado escrito sobre o Agostinho da Silva e a uma carta de reflexão sobre o mistério do tempo vir com as minhas recordações só para dizer, com o José Marinho, que o importante não é entrar na igreja, mas sair dela, depois de nela ter estado. (…)

 

António Telmo

 


[1] Título da responsabilidade do editor. Dactiloscrito encontrado no espólio. Trata-se de um esboço ou projecto de uma carta destinada a um convivente de António Telmo não identificado no texto, que presumimos ter sido escrito em 2006 ou 2007, atento o contexto agostiniano e a referência pessoal a um terceiro, feita nos dois derradeiros períodos do original, que aqui se não transcrevem por razões de reserva da vida privada. Desconhecemos se chegou a ser enviada a carta de que este escrito, tão relevante no plano autobiográfico como no da ideação de António Telmo, parece ter sido uma versão preparatória.

 

VERDES ANOS. 09

09-11-2014 10:13

Das artes plásticas para a arte poética[1]

 

Líamos um estudo sobre Freud e o espírito perseguia uma ideia que supomos existir nos escritos do pensador austríaco, mas não aparece com nitidez provativa, quando deparámos com uma citação que satisfazia perfeitamente os nossos intentos. Era um estudo sobre «Freud e a Tradição Mística Hebraica», escrito por David Bakan e traduzido do inglês para o francês por P. Osusky e Dr. E. Risler. As linhas da citação tinham sido extraídas de um ensaio de Freud sobre «O Duplo Sentido Antitético das Palavras Primitivas», e eram as seguintes: «Abel» (nome de um filólogo estudado por Freud) cherche à expliquer le phénomene du renversement du son des mots par un redoublement, une reduplication de la racine. Nous aurions peine ici à suivre le philologue. Nous nous rappelerons le plaisir avec lequel les enfants jouent au renversement du son des mots, la fréquence avec laquelle l’élaboration du rêve se sert du renversement du matériel représentatif à diverses fins. Ce ne sont plus, dans ce cas, des lettres mais des images dont l’ordre se trouve inverti. Nous serions donc plutôt disposés à rapporter le renversement des sons à un facteur agissant à une profondeur plus grande[2]. (Os sublinhados são nossos). Estas últimas linhas aludiriam, sem dúvida, a uma importante lei psíquica, segundo a qual, no domínio do inconsciente, as palavras são anteriores às imagens e actuam sobre elas, – modificando-as, transmutando-as, condensando-as, deslocando-as, exercendo enfim uma acção que compreendem muito bem os poetas experientes de como os tropos alteram as imagens.

Como tínhamos em nosso poder as «Obras Completas» de Freud, na tradução espanhola de Luíz Lopez-Ballesteros y de Torres, ordenada e dirigida pelo Dr. Germain, dirigimo-nos imediatamente para o nosso quarto com o fim de ler todo o escrito de onde tinham sido tiradas aquelas linhas. Era muito possível que ali se encontrasse qualquer coisa de mais explicativo. Contudo, esperava-nos uma desilusão. Nem sequer o sentido das últimas palavras sublinhadas era o mesmo, conforme poderá o leitor verificar. O espanhol dizia assim: «Abel intenta explicar el fenómeno de la metatésis por una reduplicación de la raiz. En este punto no sería ya difícil seguir al filólogo. Recordamos lo aficionado que son los niños a invertir en sus juegos las palabras, y cuán frequentemente emplea la elaboración onírica la invasion de su material de representación para diversos fiens. (En esto ultimo caso no es el orden de sucesión de una serie de imágenes). Así, pues, nos inclinaríamos más bien a atribuir la metatésis a un factor de alcance más profundo.» Mais profundo, entenda-se, do que o redobro da raiz e não, como supuséramos, do que a elaboração de imagens.

Talvez que uma sugestão se tenha exercido, durante a leitura do texto francês, vinda da ideia que perseguíamos; não é menos verdade, contudo, que a expressão deste texto é equívoca. Além disso, um sinal de que não devemos confiar absolutamente nas traduções é dado pelos próprios exemplos citados. Compare o leitor as duas primeiras frases que num e noutro texto sublinhámos e repare como o seu sentido é oposto. Aqui, porém, vê-se logo que o tradutor espanhol foi quem se enganou.

Assim avisados dos erros fortuitos ou intencionais das traduções, gostaríamos de consultar o texto original de Freud e o texto em inglês de David Bakan. Uma razão fundamental nos leva a desconfiar que este último pudesse ter dado intencionalmente um sentido equívoco à sua tradução. É que uma das características da tradição hebraica a cujos princípios aquele autor pretende referir a doutrina de Freud consiste precisamente na importância conferida à palavra. Logo nas primeiras linhas do Génesis se lê: «Deus disse: Faça-se a luz!» A luz é um efeito da palavra divina, e portanto também o é todo o mundo das imagens, do sonho e da vigília. É esta uma relação que explica, por outro lado, a atitude hebraica para com os ídolos.

Sabe-se hoje que a tradição hebraica constitui um dos três elementos da tradição portuguesa[3]. Também o cristianismo, situado no vértice supremo do triângulo, não contradiz, mas, pelo contrário acentua a primordialidade do verbo, mais explícita no Evangelho de S. João. Ao autor destas linhas, dado o carácter sagrado e secreto da teologia, tem-no interessado muito mais ver se perscruta algo de correspondente na antropologia. Assim, não deixa de ser curioso e até útil ver como o problema das relações da palavra com a imagem se projecta no domínio artístico.

Para muita gente constitui um desgosto a pobreza exibida em relação a outros povos pelas artes plásticas portuguesas. Não temos pintores ou escultores como os franceses, os italianos, os espanhóis ou os holandeses. Estará aqui um dos motivos, talvez o menos significativo, do interesse criado à volta dos painéis de Nuno Gonçalves. Sem dúvida que, nos nossos dias, aparecem cada vez mais artistas plásticos. É-lhes dado até um lugar nas páginas literárias dos jornais e das revistas que sobreleva o da própria literatura. Cremos, porém, que tal acréscimo se deve explicar em função da influência que a cultura francesa exerce entre nós, influência que sempre dispensámos no domínio das artes poéticas. Por muita admiração que nos mereçam poetas como Rimbaud, Baudelaire ou Breton, bastará compará-los com alguns da era de Bruno, como Junqueiro, Eugénio de Castro ou António Nobre, para reconhecer a superioridade dos portugueses. Ligamos esta superioridade não só à índole da língua portuguesa, como também a uma natural e quase atávica mestria que possuímos dos segredos das palavras.

Utilizando a técnica do «salto»[4], arriscaremos agora uma hipótese: a de que a pintura modernista revela, em relação à pintura do passado, um sentido mais próximo daquele a que tende a arte poética. Perante certas pinturas picassinas, o apreciador, impedido de as referir a qualquer coisa de exterior e até a qualquer conteúdo simbólico, não sabe que dizer, sempre que prescinda dos lugares comuns dos críticos plásticos. Pelo contrário, nas pinturas imitativas ou representativas, que imitam figuras ou representam ideias, há sempre um ponto de referência. O tropo estabelece-se então na forma comparativa, e o apreciador satisfaz-se no fácil exercício intelectual que lhe fornece as palavras do seu juízo estético. Falta, porém, todo o ponto de apoio na arte pura dos modernistas e daqui o dizer-se que ela constitui uma arbitrariedade ao alcance de qualquer. Se isto é parcialmente verdadeiro naquelas manifestações de pintura dependentes dum processo automático no qual se transfere para outro, para alguém, que comunica através do artista, o momento negador da arbitrariedade, o mesmo não pode dizer-se daqueles quadros em que o espírito do pintor procede como um agente livre que exerce um poder. Não deve pôr-se o problema de saber se há artistas que cheguem a realizar mentalmente as formas objectivamente actuantes, porque mais importa reconhecer a possibilidade dessa realização. O facto de fixar na tela o que é uma palavra vivente já nos leva, porém, a pensar que o artista não teve resistência para conduzir o processo até ao fim. É também isto que se dá no poeta, com a variante de desviar para veículos verbais uma energia cujo potencial não foi capaz de suportar?     

Este problema preocupou Bergson e cremos ser nesse sentido que se deve interpretar a sua afirmação de que a arte é inferior à filosofia. Contudo, as palavras dos poetas são muito mais afins às energias livres do que as imagens em que o pintor as fixou. Podem conseguir-se mais surpreendentes efeitos, no domínio da vida interior, lendo uma poesia como a «Oração à Luz», com o espírito a mover-se nos ritmos das vogais e das consoantes, do que a contemplar uma tela. De resto, torna-se indispensável, e como indispensável sentimos, uma legenda, inscrita no quadro ou preparada por nós, para transmitir ao espírito o ímpeto da interpretação. Por outro lado, um pintor que tentasse traduzir a «Oração à Luz» em termos de plasticidade, dificilmente o faria por meio de figuras.

Concluindo: Os tropos alteram as imagens e toda a imagem é a fixação dum tropo. Tanto no domínio da arte como no da natureza. E já que aludimos a Bergson, dizemos que é este um dos aspectos menos atendidos da sua filosofia e que deveria ser relacionado com a Crítica da noção materialista da impenetrabilidade da matéria[5]. Tal relacionação levar-nos-ia demasiado longe. Preferimos ficar por aqui, confiantes agora de que o leitor terá compreendido a razão por que nos interessou tanto a frase de Freud. 

 

António Telmo



[1] Chave, 2.º ano, n.º 4, Lisboa, Fevereiro de 1965, p. 5.

[2] DAVID BAKAN, A «Tradição Mística Hebraica».

[3] V. Álvaro Ribeiro, «Filosofia Escolástica e Dedução Cronológica».

[4] Consiste esta técnica em estabelecer uma associação que altera subitamente o curso presente das relações mentais.

[5] V. Dados Imediatos da Consciência, pg. 67.

 

DOS LIVROS. 24

07-11-2014 11:59

«Teixeira de Pascoaes é um dos poetas do limiar do tempo, quando o terceiro ciclo da nossa história está prestes a fechar-se para dar lugar ao caldeamento de todas as formas residuais da Pátria. Está situado naquele ponto limite em que o passado e o futuro se cruzam mais uma vez com nitidez absoluta. Não esteve sozinho. Outros, tão videntes como ele (Guerra Junqueiro, Pessoa, Bruno, Leonardo, Régio), viram a mesma estrela.»

Teixeira de Pascoaes, o poeta da Natureza

 

Toda a reflexão sobre a saudade resulta necessariamente pobre se não passar por Pascoaes e não se detiver aí o tempo do pensamento.

É este, quanto a nós, o único senão da “antologia”, seguida de dois estudos de Pinharanda e Dalila[1], sobre a saudade, onde não avultam, como era devido, os textos mais significativos de Pascoaes. A saudade é um sentimento e não se ignora que ele por si só possa constituir objecto de reflexão, como objecto de reflexão tem sido, por exemplo, o amor, sem que necessariamente tenhamos de nos reportar a Camões, a Platão ou a Leão Hebreu. A verdade, porém, é que à saudade está referida a cosmovisão de um povo[2] e, antes e depois de Pascoaes, tudo quanto se disse ou escreve, diga ou escreva, ficará sempre aquém do seu primeiro apóstolo que nela viu a Virgem-Mãe do Evangelho da Pátria. Dir-se-á que o poeta exorbitou, que levou demasiadamente longe a translação de metáfora e que sempre permanecerá um núcleo irredutível – o sentimento, tal como cada um de nós o vive. Restringe-se assim ao plano da psicologia aquilo que o autor do Maranus alargou às esferas envolventes da cosmologia e da teologia. Saber se a saudade é um sentimento exclusivamente português e o galego não importa muito (importa tanto como discutir a nacionalidade de Espinoza, por exemplo), se não soubermos, como soube Pascoaes, encontrar-lhe as raízes na própria substância do mundo e a ideia no próprio pensamento transcendental.

O leonardino Delfim Santos, interpretando Pascoaes, observa que a saudade opera a inversão do tempo linear e causal, porque na saudade o futuro é o passado e o passado é o que dá sentido e conteúdo ao futuro”. Diríamos, desenvolvendo e aplicando, que a saudade é o sentimento da forma cíclica do tempo. Se a cor, a figura e o movimento das coisas criou a vista nos animais e no homem ou o perfume o olfacto, há na alma humana esse sentimento misterioso, órgão subtil de sensação, que apreende a natureza própria do tempo.

Pascoaes vai mais longe ainda. Se o tempo é um movimento serpentino que enquanto se desenvolve se envolve, dobrando-se e apoiando-se, em cada ciclo, sobre um só arquétipo, há que defini-lo por um centro, onde se cruzam o passado e o futuro, o invisível e o visível. Pela saudade, que é num só acto, desejo e lembrança, presença e ausência, a carne se faz espírito e o espírito se faz carne. Ela exprime, na forma de um sentimento, o contacto da alma com o centro misterioso do mundo, donde partem e onde convergem todas as direcções do ser. No Maranus é a Virgem-Mãe do novo Cristo. E Belém desta vez é no Marão.

Pascoaes vê naquele que foi iniciado nos “mistérios” da Saudade o “ser duplo”, uma espécie de “Jano Tetrafonte”, tornando senhor da rebis – a coisa dupla. No homem comum, a saudade é apenas um sentimento, mas o que inquieta, perturba e entusiasma o poeta é verificar que há um povo, o seu, a quem foi dada a graça sem o saber, do sentimento do centro do mundo. Tão espontaneamente como a vista foi dada aos homens de todo o mundo. Por isso defendeu a iniciação poética pela saudade e nela viu o carro de fogo capaz de nos transportar de novo ao Paraíso.

O homem comum não tem consciência dessa estranha vivência mnésica “não só referida a pessoas, mas também a coisas inanimadas” que lhe dá a alegria da presença com a dor da ausência num só acto psíquico, mas está nela e por ela está ligado, embora remotamente, de maneira reflexa e indirecta, ao centro do mistério do mundo. Só quando Maranus morrer, isto é, quando Portugal se perder em Eleonor, a Pátria Celeste de Sobolos rios que vão, só então a Saudade, a Presença Absoluta, se revelará em nós como a forma do próprio Paraíso.

 

* * *

 

Teixeira de Pascoaes é um dos poetas do limiar do tempo, quando o terceiro ciclo da nossa história está prestes a fechar-se para dar lugar ao caldeamento de todas as formas residuais da Pátria. Está situado naquele ponto limite em que o passado e o futuro se cruzam mais uma vez com nitidez absoluta[4]. Não esteve sozinho. Outros, tão videntes como ele (Guerra Junqueiro, Pessoa, Bruno, Leonardo, Régio), viram a mesma estrela.

Hoje quase não é lido. O saudosismo foi apressadamente catalogado como corrente literária, na medida em que fez escola, para ser esquecido no mar dos medíocres onde se perdem e afundam todas as correntes. O papel dos adversários do povo português é este. Não podem fazer outra coisa senão crítica literária ou o análogo. Servidos às vezes por espíritos lúcidos, mas minados de inveja, neles se apoiam, tentando em vão roer o Livro que, por ter sido escrito por todos nós, desde Pessoa a Pascoaes, é indestrutível. É um livro, como disse Régio, que tem as páginas em branco e os caracteres invisíveis. Não se pode catalogar.

 

António Telmo

 

 

(Publicado em História Secreta de Portugal, 1977)



[1] N. do C. - Dalila L. Pereira da Costa / Pinharanda Gomes, Introdução à Saudade (Antologia Teórica e Aproximação Crítica), Porto, Lello & Irmão - Editores, 1976. 

[2] Francisco da Cunha Leão, O Enigma Português.

[3] Ver nota pág. 133

[4] Era tão intenso em Pascoaes o sentimento deste limite que numa carta a Unamuno escreve: “Estamos a viver um momento decisivo, anterior a um novo fiat lux.” (Mário Garcia, Teixeira de Pascoaes, Braga, 1976).

 

DOS LIVROS. 23

05-11-2014 09:54

«Pensar o império sem referência ao centro do mundo tem como consequência necessária a subordinação da Igreja à Monarquia ou da Monarquia à Igreja. Mais tarde, como veremos, a ideia de Império aparecerá nas diferentes expressões do socialismo, o que constitui uma degradação sua, uma forma degenerada que, por grandiosa que se afigure, tem a fragilidade do barro.»

António Vieira e a ideia de Quinto Império

”A madrugada irreal do Quinto Império

Doira as margens do Tejo.”

 

A data de 1513, que marca o fim do ciclo heróico, pode também ser interpretada como o início da degradação da ideia de Império, no que esta ideia contém enquanto significa o domínio do mundo a partir do seu centro.

Dado que o Império passou a ser imaginado como um domínio conseguido pela força habilmente manejada no plano político a partir de qualquer ponto de periferia do mundo, perdeu-se a ideia dele como Quinto, embora alguns espíritos a tenham mantido acesa “no imenso espaço seu de meditar”. Um desses espíritos, o mais alto entre nós, foi António Vieira, mas a ideia, que ele animou do seu portentoso verbo, já não tinha correspondência na esfera política, onde se jogavam interesses cada vez mais reles pela progressiva subordinação de todas as categorias mentais à categoria económica.

A ideia de um Quinto Império era corrente na Idade Média. É uma outra maneira de ver “a comunicação entre o Oriente e o Ocidente”, que os Templários pretenderam assegurar não só no plano geográfico, interpretá-la como a formação do Quinto Império. Este não seria, porém, possível sem um real, efectivo contacto com o próprio Centro do Mundo.

Porquê Quinto?

António Vieira baseia-se numa interpretação que tinha sido dada às profecias bíblicas de Daniel dos cinco impérios sucessivos, entendendo neles o assírio, o persa, o grego, o romano e, por fim, na visão do jesuíta, o império português. A divisão do grande ciclo de tempo, que os hindus designam por Manvantara, em quatro fases ou ciclos distintos assume entre os gregos uma expressão dada pela sucessão simbólica dos quatro metais: oiro, prata, bronze e ferro. Em Daniel, que fala de uma mistura do ferro com barro nos pés da estátua, cujo conjunto exprime todo o Manvantara, aparece um quinto, significado na forma de uma pedra que derruba a estátua. Aparece assim o Quinto Império fora da série ou do conjunto formado pelos outros quatro. Se concebermos um ponto original que determina todo o Manvantara, o Quinto significará a reintegração de tudo quanto se manifestou durante os quatro períodos num ponto que os transcende e lhes é central, de acordo com a representação das cinco quinas do escudo ou das cinco chagas de Cristo, em que a quina ou a chaga do meio irradia na forma de um X para as outras quatro.

A impossibilidade do Quinto Império sem um real contacto com o Centro do Mundo (a possibilidade dele parece ter sido posta de lado no reinado de D. Manuel I, dadas as condições cada vez mais limitativas existentes na época) é o que torna irreal a visão de António Vieira. Ele vive em pleno ciclo sacerdotal. Ele mesmo é um sacerdote. Isso explica que visione, tal como Bandarra, uma monarquia universal sob a égide da Igreja, bem longe já da ideia de Dante que defendia a autonomia dos dois poderes sobre a terra, unificáveis somente num princípio central, imaginável pelo vértice superior de um triângulo, e que lhes é transcendente.

Pensar o império sem referência ao centro do mundo tem como consequência necessária a subordinação da Igreja à Monarquia ou da Monarquia à Igreja. Mais tarde, como veremos, a ideia de Império aparecerá nas diferentes expressões do socialismo, o que constitui uma degradação sua, uma forma degenerada que, por grandiosa que se afigure, tem a fragilidade do barro.

Sampaio Bruno, no Encoberto, vem interpretar a acção profética de António Vieira como uma manobra política ao serviço da Companhia. Isto não surpreende no mais alto representante do ciclo do povo e do iluminismo maçónico. Bruno é ainda um adversário do socialismo, mas acredita que a humanidade, dividida pelo mal, se movimenta espontaneamente para o uno, para o “homogéneo inicial”, conduzido por um obscuro instinto fraterno. Mais certo no seu juízo foi Fernando Pessoa reconhecendo a sinceridade visionária do grande jesuíta. A Clavis Prophetaram e a História do Futuro são a expressão de uma “alma verídica”. Nas condições do ciclo em que vivia não era possível, como o não foi a Bandarra, nem ao próprio Camões, na medida em que pretenderam iluminar de “forma e de visão” os políticos (a mediocridade de um D. João IV ou dos ministros de Afonso VI), imaginar a redenção da Pátria fora da égide do Catolicismo.

António Vieira representa assim a última tentativa grandiosa e verídica de fixar o tempo no ciclo sacerdotal. Estudioso de Kabbalah, a sua cabala política foi, na verdade, um insucesso. Viajou muito e viu “no céu amplo do desejo” realizada afinal a sentença bíblica: “Sicut credidisti, sic fiat tibo”, que tão lucidamente soube comentar.

 

António Telmo

 

 

(Publicado em História Secreta de Portugal, 1977)

 

DOS LIVROS. 22

03-11-2014 13:15

«O salazarismo constitui uma falsa vivência dos valores patrióticos, um socialismo positivista e plutocrata, uma paródia mnésica que encobriu sistematicamente o que de profundamente sério motivou as quedas e as asceses da evolução histórica do nosso povo.» 

Da "Introdução" à História Secreta de Portugal

 

Os livros começam a ler-se pelas primeiras páginas e muitas vezes o leitor fica por aí. Pensamos que, neste caso, não ficaria inutilmente, se conseguisse interpretar todo o sentido do horóscopo de Portugal, traçado pelo próprio punho do grande poeta. Pela nossa parte, temos reflectido tanto sobre o facto estranho de não se encontrar nele nenhuma data para além de 1978, que, dessa reflexão, saiu este livro.

Se 1978 é a última data assinalada, significará o termo da vida da Pátria ou aponta somente o fim de um ciclo astrológico, donde Portugal sairá para novos destinos?

É esta, à luz do horóscopo, a grande incógnita histórica do momento. Por outros caminhos, aparentemente menos quiméricos, poderá chegar-se a defrontar o mesmo dilema. Não se esqueça, porém, o leitor que estamos em 1977 e, considerando as grandes transformações do ser de Portugal nos últimos três anos, não deixe de ter em conta que o horóscopo foi traçado há quarenta anos por aquele homem excessivamente lúcido, que, então, disse:

 

“Cumpriu-se o mar e o Império se desfez.

Senhor, falta cumprir-se Portugal!”

 

Disse-o como se estivesse depois da queda do Império. Em 1930, ainda o Império se não tinha desfeito.

1978 não está ali somente como a última data assinalada. Regista-se também no horóscopo que, no dia 1 de Janeiro de 1978, Osíris (é como Pessoa designa o Sol) transitará da quarta casa para a quinta casa, depois de ter permanecido na primeira durante cento e um anos[1]. O que significa isto?

É a quarta casa o lugar dos antepassados, a morada subterrânea dos heróis, o Inferno do horóscopo, na designação comum dos astrólogos.

Se assim é, a entrada de Osíris nessa casa em 1877 e a sua permanência ali durante um século e um ano não podem senão significar a descida aos infernos de Portugal. Com efeito, estes cento e um anos marcam um período de extrema decomposição da Pátria, depois da morte prematura de D. Pedro V, em quem o povo, pressentindo a descida e a queda, pôs ainda o sinal da sua esperança. De então para cá, assistimos à mais pura manifestação da mediocridade política nos três últimos Braganças, a essa terrível desilusão que foi a República, obra do positivismo que tinha fatalmente de produzir Salazar e o que ele representou, que nos educou durante 48 anos e deu a geração do 25 de Abril e a sua política de cozinha, sob o nome pomposo de economia.

Afinal, a significação do horóscopo e da Mensagem é a mesma. Dir-se-á que não é a sua base astrológica e geomântica. Todavia, o poema não anuncia, como apressadamente se julga, a glória futura dos portugueses pela vinda do Rei-Messias. Toda a terceira parte da Mensagem é uma invocação e uma prece.

Não podia ser de outro modo. De uma descida aos infernos nunca há a certeza de voltar. Mas o terrível é que, sem essa descida, também não há a possibilidade de prosseguir. Este é um dos grandes sentidos da Mensagem e daí a exortação maçónica final: “Valete, Frates”.

É evidente que nada disto terá realidade à luz da história profana de Portugal, de uma história que, até essa, foi ultimamente banida do ensino. Necessita, para ser, do conhecimento da história fundamental. O salazarismo constitui uma falsa vivência dos valores patrióticos, um socialismo positivista e plutocrata, uma paródia mnésica que encobriu sistematicamente o que de profundamente sério motivou as quedas e as asceses da evolução histórica do nosso povo. Foi fácil a outros adversários de Portugal desmascarar com dois ou três slogans a relação entre o culto dos heróis e os interesses do regime, depois de terem sido chamados pelo mesmo Salazar e seu sucessor Caetano a ensinar nas nossas universidades que tudo na história se deve explicar pela economia e pela luta de classes. Ninguém vai supor que os dois chefes políticos, admiradores de Augusto Comte e de António Sérgio, se tenham enganado ao admitir no ensino e nos lugares dominantes da cultura a colaboração de todos aqueles que consideravam a economia a primeira das ciências.

Do ponto de vista positivista, o culto dos valores pátrios é uma forma persistente de sentimentalismo, cuja existência se reduz ou se estimula consoante os interesses políticos do momento. Sabe-se como o positivismo, do qual Teófilo Braga era o primeiro-ministro, se serviu desses valores, consagrando e celebrando certas efemérides para destruir a influência da Igreja que, pelos feriados e pelas festas, semanais ou solenes, dominava o horizonte ritual dos portugueses. A República, porém, não teria sido possível sem a difusão da doutrina positivista no mundo eclesiástico[2]. O reatamento das relações do Estado com a Igreja não alterou, apenas modificou, a vida mental dos portugueses. O culto a Camões e o culto a Santa Teresa do Menino Jesus[3] tinham exactamente o mesmo conteúdo sentimental. No fundo, a verdade era a economia, os grandes interesses financeiros, a aplicação da tecnologia ao domínio da natureza, a ordem social. Nestes termos, quando o regime muda, a revolução não pode ter outro efeito senão deixar tudo na mesma quanto ao essencial. Fala-se ainda em Pátria, mas ninguém já sabe o que ela é. Do ponto de vista economista, significa um grupo, que se foi progressivamente alargando até constituir uma nação, lutando contra a natureza e as outras nações, falando a mesma língua por imposição do mesmo interesse, que é o da subsistência animal. Esse grupo deu-se um sinal – a bandeira – e um domínio – o território. Mas até o território, a bandeira e a língua deixaram de ter razão de ser, logo que a economia descobre que, além de lutar contra as outras nações e contra a natureza, esse grupo está dividido em si mesmo por interesses de classe e que a obediência a chefes naturais, necessária quando era um pequeno grupo, também já não tem razão de ser e deve ser substituída pela obediência ao estrangeiro.

Sobre o raciocínio simples e falsamente evidente de que, se há uma classe que explora outra classe, esta é só uma em todos os países (idêntica em si como o uno de Platão), a ideia de terra natural deixou de ter qualquer sentido. Assim, de Teófilo Braga para Salazar e de Salazar, através de Caetano, para Vasco Gonçalves não houve oposição, mas o desenvolvimento da mesma ideia ou uma diferente aplicação das mesmas categorias mentais. E é por isso mesmo que o ensino da história, de regime socialista para regime socialista, se mantém dentro das mesmas directrizes programáticas[4].

 

António Telmo

 

 

(Publicado em História Secreta de Portugal, 1977)

 


[1] Se, no Horóscopo de Portugal, o sol sai da quarta casa em 1978, a verdade é que, do ponto de vista astrológico, isso não significa uma mutação no espírito que o rege. Essa mutação dar-se-á, sempre segundo o horóscopo, numa data situável entre 1980 e 1990, quando o sol transitar do signo da Balança, em que continuará ainda alguns anos depois da saída da quarta casa, para o signo do Escorpião, regido por Saturno.

[2]  Álvaro Ribeiro, Os Positivistas, Lisboa, 1969.

[3] Fernando Pessoa observava, referindo-se a este culto, que Santa Teresinha do Menino Jesus estava para os seus devotos um pouco acima de Deus.

[4] Ivan Illich, em Sociedade sem Escola, aponta o facto estranho de, em todo o mundo civilizado, o ensino ser o mesmo, qualquer que seja o regime político.

 

«OS MEUS PREFÁCIOS». 08

02-11-2014 14:19

Pelo menos na ordem do simbólico, conforme o desejo do poeta, 2 de Novembro, data votada à Saudade, é o dia do seu nascimento, que parece ter realmente ocorrido a 8 desse mesmo mês, no ano de 1877, em Amarante, na freguesia de São Gonçalo, numa casa da então Rua de São Pedro. António Telmo prefaciou, em 2002, o volume 21 das Obras de Teixeira de Pascoaes, publicadas pela editora Assírio & Alvim. Reunindo os títulos Londres. Cantos Indecisos. Cânticos, o livro tem edição de António Cândido Franco. É a Introdução télmica que agora oferecemos ao leitor, num dia que é de Pascoaes, e no rescaldo do Congresso "As Biografias no Pensamento Português dos Séculos XIX-XX, por ocasião dos 80 anos da publicação de São Paulo", iniciativa do CLEPUL de que o Projecto António Telmo. Vida e Obra foi parceiro.           

 

INTRODUÇÃO A LONDRES. CANTOS INDECISOS. CÂNTICOS, DE TEIXIERA DE PASCOAES[1]

 

Portugal e o seu arquétipo, tal como nos é possível concebê-lo através do que na sua situação geográfica é símbolo num espelho e também da sua história no que ela tem de secreta ou de fantástica, mas sobretudo através da língua onde os fonemas formam o arco que lança a flecha do sentido, é o que essencialmente conspira na poesia de Pascoaes para abater o espírito que nega.

Neste volume da Assírio & Alvim, aparece um longo poema sobre Londres, onde nos surpreende, por contraste com o espírito crepuscular ou outonal de Pascoaes, uma toada que lembra a de Cesário Verde, mais poeta da cidade do que do Ocidente (como queria Pessoa), pois só conhece o campo quando a ele vai em piquenique ou ao fim-de-semana acompanhado de uma mulher. Pascoaes visitou Londres e aí pernoitou durante vários dias por causa de uma jovem inglesa que conheceu no Porto e por quem se apaixonou como se ela fosse a aparição da sua mesma alma. Chamava-se Leonor Dogge ou Dagge, tenho visto o nome escrito das duas maneiras. Dogge lembra a marca de um automóvel hoje fora do mercado. Mas Leonor, pelo som e pela etimologia hebraica, é como um sol outonal todo oiro num ar quase líquido. Todas as jovens mulheres que o poeta amou chamavam-se Leonor e, como as de Camões que também amou uma Leonor ou como a Beatriz de Dante, eram luz pelo sorriso, sol pelos cabelos, céu diurno ou nocturno pelos olhos, humanas rosas. Henri Corbin fala-nos de uma cognitio matutina que é como o levantar da aurora perante o nosso espírito. Pode-se reconhecê-la nas canções camoneanas, mas em Pascoaes deve sim falar-se de uma cognitio vespertina com a estrela do terceiro céu a lucilar ao pôr do dia. Entre nós, o Sol não se sepulta no horizonte, mas casa-se com a terra porque se põe nela. O pôr do Sol também neste caso é um morrer. Os gregos viam-no afundar-se na noite que confundiam com o Oceano, a Ocidente para lá das colunas de Hércules, limite do mundo conhecido. Nas longínquas paragens para lá de onde acabava o mar mediterrâneo era a terra dos mortos, a entrada do tenebroso Hades, mas também o lugar das ilhas bem-aventuradas somente acessíveis aos heróis.

Sem a Ilha do Amor, que Camões imaginou mas Vénus realmente criou, os Descobrimentos teriam de ser interpretados como uma calamidade que se abateu sobre o mundo dos homens. Com os descobrimentos marítimos dos portugueses se inicia a fase final da Idade do Ferro, caracterizada por nela se fazer a Grande Mistura do Oriente e do Ocidente, dos povos e das raças, das especiarias e das espécies. Abre-se então o caminho a uma mutação radical na maneira de raciocinar, mutação que Francisco Bacon qualificou de Instauratio Magma, tendo para a nova ciência escolhido o seguinte emblema: uma caravela com todas as velas pandas passando as Colunas de Hércules à conquista do Novo Mundo. Jean Robin, a quem se devem estas indicações, não menciona os descobrimentos marítimos dos portugueses por de certo ignorar o mito da fundação de Lisboa por Ulisses. Para a interpretação deste mito, esse «nada que é tudo», tem grande interesse aquilo que nos diz em Le Royaume du Graal depois de ter mencionado Francisco Bacon: «René Guénon tem, a propósito das Colunas de Hércules (Estreito de Gibraltar), curiosíssimas reflexões, sublinhando que elas «marcam os limites do mundo conhecido», isto é, que constituem a fronteira que, por razões que seria importante procurar, não podia ser ultrapassada pelos navegadores».

«Segundo Dante – continua Jean Robin –, Ulisses é condenado porque passou esta passagem estreita onde Hércules pôs os seus sinais». Para Guénon, tal como o confidenciou a Denis Roban, a menção das Colunas de Hércules por Dante «parece certamente indicar que Ulisses seguiu uma via ilegítima e, se bem que aviste de longe a montanha do Purgatório, não pôde chegar lá, nem muito menos atingir o Paraíso Terrestre que se encontra no cimo dessa montanha».

As navegações dos portugueses, tendo como ponto de partida Lisboa, como que prolongam ainda mais além dos limites do mundo conhecido as navegações de Ulisses. O Velho do Restelo não é o que se tem julgado até agora. Ele condena, como Dante Ulisses, aqueles que, imitando Prometeu ou Ícaro, seguem uma via ilegítima. Releia o leitor as três últimas estrofes do Canto IV d’Os Lusíadas.            

A ideia de que o fim do ciclo se concretiza com os descobrimentos marítimos dos portugueses conjuga-se com uma muito antiga profecia, segundo a qual o termo desta humanidade seria um dia assinalado pelo afundamento da Ursa Maior e da Ursa Menor no oceano. Com efeito, tal afundamento deu-se com a passagem das naus pelo Equador. Foi também, todavia, nesse momento que se tornaram visíveis no céu as quatro estrelas do Cruzeiro do Sul. Como se explica que Dante soubesse dessas quatro estrelas duzentos anos antes de serem avistadas pelos portugueses? Veja-se o que escreve à saída do Inferno: «Uma suave cor de safira no Oriente, manifestando-se no aspecto sereno do céu puro até ao primeiro círculo, começava a deslumbrar meus olhos logo que saí da atmosfera morta que tanto afligira o meu olhar e o meu coração. O belo planeta que incita ao amor fazia sorrir todo o Oriente, velando os Peixes que o escoltavam. Voltei-me para o lado direito e fixei o meu olhar atento no outro pólo e vi quatro estrelas que nunca ninguém antes vira, excepto os primeiros homens. O céu parecia alegrar-se com a sua irradiação. Ó região do Norte, pobre viúva, que estás privada de as contemplar!»

Uma vez cumprido com os Descobrimentos o que quer que foi de terrível, nas palavras do Velho do Restelo de simultaneamente «alto e nefando», Portugal morre em Alcácer-Quibir e volve-se no Encoberto. Ao descobrimento seguiu-se o encobrimento. Por isso Pascoaes ama, no dia, a hora do Sol-pôr, no ano o Outono, a saudade na alma humana.

Portugal não deixou mais de ser o Encoberto. O que por aí se vê há quinhentos anos não é Portugal, mas a casca do que foi, o que encobre degradando, «uma apagada e vil tristeza» semelhante à que Pascoaes viu emanar de Londres na forma de fumo e nevoeiro. Mas a tristeza londrina não é a que ele vive em Amarante, nas margens do Tâmega, em São João de Gatão. Junto ao Tâmega, é a tristeza própria do puro anoitecer. Os Cantos Indecisos são indecisos porque neles o espírito não se decide nem pela noite nem pelo dia.

Teixeira de Pascoaes é o poeta do Novo Testamento da Pátria como Camões é o poeta do seu Velho Testamento. É, no fim do ciclo, quando o vasto dia do mundo se faz noite, o poeta português por excelência. Ele é que é «o do sentimento dum ocidental». Ouçamos Luís de Camões:

 

Eis aqui quase cume da cabeça

Da Europa todo o reino lusitano

Onde a terra se acaba e o mar começa.

 

Este acabar-se e este começar são, por assim dizer, eternos, no sentido de que sempre se está acabando a terra e sempre começando o mar. Não é, pois, que acabe a terra para que só fique o mar, como se tudo se dissolvesse no absoluto. O acento ali, naqueles três versos cruciais (como diria José Marinho, o filósofo do «insubstancial substante»), é posto em Portugal como mediação e o que caracteriza rigorosamente a «mediação» é ser ela o terceiro termo da uma tríade, terceiro que é o primeiro e o segundo e que não é nenhum deles. Assim como em Hegel que Fernando Pessoa, aos vinte e quatro anos, aproxima de Pascoaes pelo transcendentalismo panteísta com o seu movimento de espiritualização da matéria e de materialização do espírito.

Ibn Arabî deu-nos o melhor ensino do que seja propriamente a mediação pelo exemplo da linha que cinde e ao mesmo tempo une a sombra e a luz, quando no solo consideramos a projecção de um corpo exposto ao Sol. Sabemos que essa linha existe por um prestígio da imaginação, mas não sabemos se é a sombra que a traça ou se, pelo contrário, é a luz. Ela vai-se indefinindo à medida que o Sol declina até que a noite tudo absorva ou à medida que o Sol se eleva tudo dissolvendo no seu esplendor. Em Pascoaes, vemos Portugal caracterizado como «o país da penumbra», o «país crepuscular», cuja verdadeira natureza somente se surpreende no lento encobrir-se da luz que perdura na imaginação eternamente.

Voltemos a Londres.

Teixeira de Pascoaes veio dali doente, decepcionado com a inglesa, que a todas as manifestações de amor só sabia ou queria dizer: I don’t know, I don’t know. Uma alma vazia como a sua casa com que deparou ao chegar, duas janelas que eram dois olhos ocos.

Chegado a Portugal, mudou de vida. Deixou a advocacia e desistiu de casar. Seria para sempre solteiro como solteiros ficaram sempre outros dois imensos poetas, José Régio e Fernando Pessoa, que formam com ele a tripeça bandárrica onde vêm interrogar o demónio de Portugal todos os que se afastaram da mentalidade inferiorizante. Abandonou de todo a ideia de ser um homem prático. Meteu-se dentro de casa, no seu solar de São João de Gatão, donde só saía para sentir a natureza ou para vir ao Porto tratar dos negócios do espírito. A sua casa tinha nas janelas sentidos para o mistério do exterior; uma delas era como o olho de Shiva. A lama de Pascoaes continua lá.

Aquela viagem a Londres faz lembrar a de Dostoiévski. É num dos seus livros que encontramos a associação da cidade ao deus Baal, o Belzebu do cristianismo, o babilónico deus inimigo do deus de Abraão, que é o nosso deus. Ernst Jünger, referindo-se à experiência londrina do escritor russo, faz várias considerações que se poderiam aplicar aos versos londrinos do escritor português. Assim, por exemplo: «Dostoiévski apercebeu-se de que era Baal quem dominava nos bastidores da espectacularidade londrina, na margem do Tamisa; Baal que o apavorava e fascinava ao mesmo tempo…»

O Tamisa e o Tâmega! Que semelhança e que diferença! Talvez para agradar ao que julgo ter sido seu amigo, Aubrey Bell, um inglês que conviveu em Portugal e a quem dedica o poema, o nosso poeta, após ter descrito Londres e a sua tristeza infernal, termina inesperadamente pela sua exaltação. Mas já não é a cidade fantástica e tenebrosa que tem em mente. É o que ela evoca: Shakespeare e Byron, o rei Artur e o seu sonho da Ilha de Oiro e das Terras do Nascente; é, diz ele, a mesma «tristeza em Deus»; é a inevitável aproximação entre Byron e Camões pelo mar que em ambos ecoa, entre o rei Artur e D. Sebastião; e tudo envolto no mesmo nevoeiro. O Tâmega e o Tamisa! Uma metade igual, uma metade diferente! Quão perto e quão longe!

Não. Pascoaes engana-se e engana-nos. Não é a mesma tristeza e o mesmo nevoeiro. Em Londres há tudo o que o deus Baal traz consigo e o nevoeiro é a sua respiração feita de vapor, de ruído, de vício, de fumo e de uma dor imensa.   

A tristeza do Tâmega é a dos Cantos Indecisos, não a tristeza sórdida do Inferno, mas a de um mundo que sofre por haver nele Deus longe de Deus.

 

Numa gramática que em tempos escrevi para uso dos poetas e a que chamei Gramática Secreta da Língua Portuguesa, pondo no secreta a ideia de que a não destinava ao uso dos linguistas, mostrei a dada altura, uma altura a que cheguei interrogando e reflectindo e procurando saltar acima dos próprios joelhos, que é em ginástica o acto supremamente poético, mostrei, dizia eu, que a nossa língua tem como característica dominante o outonal dos fonemas e que, por isso, Teixeira de Pascoaes é o poeta supremamente representativo do génio divino que a formou por acção subtil na alma do povo das radiações que transformaram a matéria original latina. O «outonal dos fonemas» é uma expressão bárbara, mas explica-se quando nos lembramos de que o Outono é o entardecer do ano, como que o seu crepúsculo e que podem incluir-se nessa designação os fonemas que condensam luz e treva, yang e yin, numa só emissão de voz. Tais são as vogais fechadas de medo e remoto, a imensa variedade de ditongos e, sobretudo, as sílabas que terminam por m, n, l, e r como por exemplo nas palavras luar, oculto, ermo e sombra. Na língua portuguesa não há palavra terminada por consoante. Os linguistas consideram os indicados m, n, l e r semiconsoantes uns, semivogais outros.

Os exemplos apresentados são precisamente das palavras que Teixeira de Pascoaes escolheu para mostrar a natureza intraduzível de numerosas palavras portuguesas, onde naturalmente se destaca a palavra saudade. Mas em saudade o que é essencial não é só o ditongo da primeira sílaba com sua correspondência num sentimento outonal, é também a repetição do som d com sua correspondência num desejo que é lembrança e numa lembrança que é desejo. O que é a memória? Não é o ser e o seu espelhar-se na mesma alma? Também na palavra memória se evidencia um redobro. Aliás, o eco ou a ressonância aparecem noutras línguas a significar o acto de lembrar, como no grego por exemplo, donde nos vêm anamnese e reminiscência.          

As pessoas, quando conversam umas com as outras, não têm qualquer consciência das frases que proferem, só têm consciência de vagas intenções. Muito menos a têm das palavras e dos fonemas. Falam sem se lembrarem de si próprias falando. Se o tentassem fazer, ficariam bloqueadas. O filósofo (não o filósofo-poeta), que lida com conceitos e juízos, sabe porque emprega determinadas palavras e não outras e como as combina; mas o poeta, se o filósofo é também poeta enquanto filosofa, tem consciência igualmente dos fonemas, torna-os significativos, carregados de intenções mágicas, de energias supra-sensíveis. Assim em Pascoaes soberanamente. A tal ponto que é possível deduzir dos fonemas que escolhe toda a sua poesia, todo o seu pensamento, no que têm de genuíno e de universal, ao modo como Cuvier, a partir de um osso, era capaz de reconstituir todo o animal e Goethe toda uma catedral a partir de uma janela.

Os linguistas, submissos como são a Saussure e à escola francesa, não aceitam a correspondência entre as sequências sonoras e os significados como uma relação necessária, argumentando com a estatística, que não confirma essa relação. Avaliam qualidades pela quantidade. Claro que só para o poeta iluminado os fonemas são qualidades, como qualidades foram no momento intemporal da criação da língua pelo povo. Mas o povo não é o homem comum, a plebe. É o homem excepcional como totalidade.

Em Cantos Indecisos não há palavras em que se quebre a sequência dos sons outonais. E as imagens que transportam, pela metáfora, sentimentos e ideias em transfigurações pertencem a um mundo que morre para ressuscitar do outro lado da alma.

Fernando Pessoa, numa evidente alusão a Pascoaes, disse um dia haver poetas que, tendo uma vez escrito um poema excepcional e em tudo admirável (pensava, talvez, na Elegia do Amor), depois o repetem, mais ou menos modificado, em todos os poemas que vêm a escrever. Não é bem assim. Aliás, os três livros que compõem este volume destacam-se uns dos outros pelo conteúdo e pela forma. Mas é verdade que há nos versos de Pascoaes uma monotonia, se nisso pensarmos lembrando o suceder-se das ondas do mar, que pode adormecer ou enfadar quem não for capaz de viver em experiência, ou em sugestão dela, o que nelas se envolve e se desenvolve. As vivências de Pascoaes são de uma rara profundidade. Podemos suspeitar da sua veracidade como quando escreve por exemplo: «E ponho-me a gritar cingido de relâmpagos!»

Mas a inveracidade deste verso precisamente é contestada pela lenda que corre há muito entre a gente humilde de Amarante. Teixeira de Pascoaes, afirmam, subia ao alto da montanha; era um Moisés levantando os braços aos céus; e punha-se a gritar clamando pelos relâmpagos. Formava-se uma trovoada e ele aparecia envolvido em chamas.

Claro que o homem moderno já não se espanta com estas coisas. A tecnologia faz muito melhor. Todavia, mesmo que pudéssemos por momentos supor que o poeta fizesse o que dele se conta, que na realidade fosse um manipulador de energias cósmicas, o que valerá isso ao pé da palavra que ilumina a alma? Sim, o que é uma experiência real, ou o que é que tem de realidade uma experiência sem que a palavra a faça viver para o espírito e para a vida mental do homem. Estamos cansados de místicos, de ocultistas e de esotéricos que não sabem o que é a relação de um substantivo como um verbo. Uns são substancialistas: só há energia que é matéria; outros são insubstancialistas: só há energia que é espírito. O Espírito Santo é, como ensinou José Marinho, o Insubstancial substante.

 

O terceiro livro deste volume é composto por vinte e dois cânticos, tantos como as letras do alfabeto hebraico ou como as lâminas do arcano maior do Tarot. Claro que o autor dos Cânticos não deve ter pensado minimamente nisso. A relação pitagórica da matemática com a poesia só se aplica em raros casos. Como mostrou Guénon, é o caso de A Divina Comédia, concebida como foi por Dante na forma ascendente de uma catedral edificada sobre o Inferno e suspensa dos Céus. É também o caso da Mensagem. Como o mistério do número nove está intimamente associado ao mistério do amor pode dar que pensar o facto de a Ilha de Vénus aparecer no Canto Nono d’Os Lusíadas, ser todo esse canto e o seguinte. Mas não devemos abusar destas relações, pois corremos o risco de cair em plena fantasia, sem qualquer proveito para a inteligência do que estudamos.

De qualquer modo, estamos aqui nos Cânticos perante vinte e duas meditações tão essências para o conhecimento do mistério de Deus no homem e na natureza quanto são essenciais para o conhecimento da natureza e do homem no mistério de Deus as vinte e duas letras do alfabeto hebraico. Cada cântico tem seu nome que o singulariza, com excepção do primeiro e do último que recebem o nome geral de cantos. Por isso, propriamente só há vinte cânticos. Com o primeiro poema ou canto fecha-se a porta do passado, ouve-se ela bater para cá da noite e dos seus fantasmas; o último é uma porta que se abre para uma vida nova no mundo do espírito, novo estádio da alma que deve resultar da vivência em profundidade do que é posto a ser nos vinte cânticos.                     

Estamos já não muito longe dos livros em prosa. Conservou-se o ritmo, mas desapareceu a rima. A reflexão tomou conta do verso. O poeta-filósofo começa a dar lugar ao filósofo-poeta. Há cânticos que são mais filosofemas que poemas.

 

Os valiosos estudos da obra de Pascoaes que até agora têm vindo a ser feitos por pensadores da tradição portuguesa, os estudos de um Afonso Botelho, de um António Cândido Franco, de um Manuel Patrício, de um Paulo Borges ou de um Pedro Sinde, se obedeceram à preocupação de situar essa obra no quadro da nossa filosofia, nem sempre o fizeram de acordo com o conceito de filosofia portuguesa, e de tudo o que nela se implica, tal como foi formulado por Álvaro Ribeiro, o mestre entre nós dos que sabem. Com efeito, para o pensador da razão animada a filosofia é uma forma de literatura e depende por isso da inspiração individual. A inspiração individual, todavia, tem como condição o exercício da crença metódica e não da dúvida metódica que fatalmente reduz a filosofia à matemática e à mecânica. Se há método, há escola. Álvaro Ribeiro afirma, em dado momento, que não há uma, mas duas escolas de filosofia portuguesa. Não diz por meio de que pensadores se faz a divisão, mas não estará errado supor que estaria pensando em Sampaio Bruno e em Leonardo Coimbra. Eu vejo, quando evoco estes dois espíritos, a Igreja de João e a Igreja de Pedro perfilando-se no horizonte destacadas uma da outra, mas iluminadas pelo mesmo sol.

Pascoaes era amigo de Leonardo e forma ambos fundadores do movimento da Renascença Portuguesa. A revista, que lançou o movimento pela palavra escrita, recebeu o nome de Águia, a ave joanina. Leonardo Coimbra via no Regresso ao Paraíso (como Pessoa na Elegia do Amor) a suprema expressão poética da alma portuguesa, mas mais tarde, numa contundente depreciação do São Paulo, escreveu palavras de indignação contra o que lhe parecia um revoltante antipaulinismo de feição maniqueia.

A corrente de religiosidade portuguesa onde Pascoaes pôs a navegar o seu barco tem a remota origem em Prisciliano, mas foi com Sampaio Bruno que se revestiu de forma filosófica.

Deixei atrás, olhando o Tamisa e o Tâmega, a ideia de ser a tristeza, tal como a sente Pascoaes nas coisas e nos entes, a de um mundo que sofre por haver nele Deus longe de Deus. Toda a filosofia de Bruno e toda a poesia de Pascoaes podem sair daqui. Não é este o momento de o fazer, porque chegamos ao termo desta introdução. Direi, todavia, ainda o seguinte: são vários os exercícios possíveis de imaginação saudosa, aquela imaginação que ajuda a evolução da natureza pelo homem, mas o ponto de partida é sempre o mesmo: lembrar-se cada um de si próprio como de Deus que sofre por não ser Deus. Este ponto de partida só se encontra por uma demorada aprendizagem, não obstante ser um dado imediato da consciência.

                                                                                                                                                 

[Maio de 2002]        

 

António Telmo

 


[1] Teixeira de Pascoaes, Londres. Cantos Indecisos. Cânticos, Lisboa, Assírio & Alvim, 2002, pp. 7-19. 

 

INÉDITOS. 32

27-10-2014 09:52

Da saudade[1]

 

Como o espanto é para gregos (Platão, Aristóteles) o princípio da filosofia, o princípio da filosofia é para os portugueses a saudade. Mas a saudade implica espanto, o espanto de cada um se saber na sua essência mais íntima a substância amada e longínqua. Esta relação produz-se aparentemente através de uma imagem, e de alguém que amamos e que o tempo separou de nós. Na verdade, é de mim que me lembro com saudade, do que em mim é essencial que a separação daquele alguém revelou subitamente impossível de alcançar, e, no entanto, sentido como enigmaticamente próprio.

A separação que gera a saudade é um momento central de toda a nossa poesia lírica. “A alma gentil que te partiste tão cedo desta vida descontente” é a alma de Camões e não, como se julga correntemente, uma mulher que a morte levou. E é também essa mulher podendo funcionar como a imagem que desencadeia o sentimento. Teixeira de Pascoaes com a Elegia do Amor continua, desenvolve e aperfeiçoa o que está apenas indicado em Camões. Aqui, porém, a separação pela morte torna sensível em todas as coisas a presença da substância lembrada. Presença que nos reconduz a Camões pela “verdade que nas coisas anda, que mora no visível e no invisível”.

Não se entende como Sampaio Bruno tenha podido ver nascer em si a ideia de tempo puro, actualmente perdido, sem a saudade. Não chega a realidade do mal para levantar o pensamento d’A Ideia de Deus.

 

António Telmo



[1] Título da responsabilidade do editor.

 

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