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INÉDITOS. 39

20-01-2015 19:34

Cadáveres adiados que procriam[1]

 

É interessante e até divertido observar que aquilo pelo qual nós julgamos ser diferentes dos outros, quando pronunciamos a palavra eu, afirmando com ela a nossa singularidade, é precisamente aquilo pelo qual lhes somos iguais. Há um fundo comum a todos nós, formado de vaidade e outras misérias, transmitido de pais para filhos, no qual se incorporou, ao nascer, a nossa verdadeira individualidade, «essa parcela da mente divina», para falar como o poeta iniciado mantuano que guiou Dante pelos Infernos. É esse fundo comum que nós afirmamos sempre que dizemos eu para nos distinguirmos dos outros.

É ao que alguns esoteristas chamam a falsa personalidade. Fabricámo-la ao longo da vida sobre os elementos herdados, reagindo à circunstância por sucessivas adaptações, com o fim de nos protegermos contra a hostilidade ambiente.

O verdadeiro indivíduo fica oculto, mas o que é perturbante é que fica também oculto de nós mesmos, chegando até, no pior dos casos, a deixar de ser. A esses, em que o verdadeiro indivíduo morreu, chamou Fernando Pessoa «cadáveres adiados que procriam». No rosto de cada um deles pode ver-se a decomposição da alma que precede a do corpo, deixando de si o suficiente para simular o espírito que já não têm. Com alguma atenção podemos ver que já estão mortos. Eu nunca vi um camponês sem feição, isto é, de rosto incaracterístico, mas o mundo humano que passa pela televisão aparece-me muitas vezes.

 
António Telmo


[1] Título da responsabilidade do editor.

 

INÉDITOS. 38

18-01-2015 18:33

Da Ciência[1]

 

O homem medíocre caracteriza-se pelo medo constante do imprevisível e daí, no ilustrado analfabeto que é o burguês civilizado, a inabalável confiança na Ciência, que admira e à qual está intimamente agradecido porque lhe permite ter automóvel, televisão e frigorífico, mas sobretudo porque funciona para ele como a grande redutora do mistério que o perturba e inquieta. Nada há, para ele, que a Ciência não possa e saiba explicar. Deus será uma vaga ideia remota de que falam livros que nos vêm da época da ignorância humana e as religiões, tão antigas como a treva em que vivemos, como as lendas e a crendice popular. Pelo sim pelo não, alguns vão à missa, porque na Igreja está um Deus socializado, em relação ao qual a religião estabeleceu formas inócuas de convivência, que porventura lhes garantam a comodidade e o bem-estar na outra vida, se for caso dessa vida existir.

A Ciência é assim com inicial maiúscula o órgão de conhecimento da burguesia. Mas, se Deus puder vir a ser contado, pesado e medido, só então se torna indubitável para ela a sua existência. De vez em quando, porém, nasce um extravagante genial, que traz a inquietação que se julgara ter expurgado de uma vez para sempre, e que de novo acorda os outros homens para o sentido do mistério. Um Fernando Pessoa ou um Álvaro Ribeiro não se podem ignorar como ninguém pode ignorar Shakespeare, porque souberam escrever as palavras que fazem ver. Como neutralizá-los? Há dois processos: um é o de lhes calar o nome, como se eles não tivessem existido, mas como, mais tarde ou mais cedo, isso se torna impossível de manter, recorrem ao outro processo que é o de tomá-los como objectos da Ciência, estudando-os como se de plantas ou de animais se tratassem ou, quando muito, de fenómenos psicológicos ou parapsicológicos.    

 
António Telmo


[1] Título da responsabilidade do editor.

 

POEMAS. 08

15-01-2015 16:12

Leibnitz

 

Se olho o mundo, segundo a regra e o rito

E me lembro de mim vendo-me a olhá-lo

E no eu olhá-lo ele subsisto inscrito,

…………………………………………..

Negarei que sou cristão perante o galo

Que anuncia o renascer do meu corpo aflito?

 

Tu e o teu Templo hás-de levantá-lo

Sobre o instante roubado ao Infinito.

“A pedra é um espírito instantâneo”

Em que o acto interno com o externo é simultâneo.

Nela pousei a cabeça estonteada.

 

Aqui é a terrível casa de Deus.

Mas entre a terra e os infinitos céus

Descem e sobem anjos uma escada.

            

António Telmo

DOS LIVROS. 31

13-01-2015 20:49

De um caderno de apontamentos. 09

 

Thomé Nathanael é o nome daquele antiquário de Estremoz que alguns dos leitores dos meus livros chegaram a pensar que existia realmente com loja posta numa das ruas daquela cidade. Existe, mas não desse modo. Se não existisse, como seria possível falar dele?

Eu tirei-o das letras do meu nome e pu-lo a ser como se fosse a essência da minha alma, o amigo um dia anunciado da minha essência. Thomé Nathanael é, com efeito, anagrama de António Telmo, mas possui virtudes que em mim são imperfeitas, como se patenteia pelos dois agás que o constituem, dois sopros ou modos de vida espiritual unificados pelo divino El da última sílaba do nome.

Os diálogos que fizestes o favor de ouvir, páginas atrás, resultam da confrontação daqueles dois espíritos no espelho da alma do sábio em coisas antigas. Thomé é o cristão gnóstico à semelhança do Apóstolo, tal como a sua imagem interior se compõe a nossos olhos através da leitura do Evangelho segundo São Thomé e sobretudo de O Canto da Pérola. Nathan é o judeu cabalista. Ambos olham a mesma estrela. São distintos, mas harmoniosos entre si pela comum origem persa das suas doutrinas. Daqui, como portugueses, participarem do mesmo entusiasmo perante Luís de Camões, cuja lira e os seus sete sons essenciais vibram no divino El.

 

António Telmo

 

(Publicado em Congeminações de um Neopitagórico, 2006/2009)

DOS LIVROS. 30

11-01-2015 21:57

As Tradições Heterodoxas da Filosofia Portuguesa

 

É necessário sujeitar-se ao perigo de errar. Não se alcança a verdade sem a experiência do erro. Devemos, por conseguinte, falar do direito de procurar e de errar. Eu reclamo a liberdade para a conquista da verdade.

João Paulo II

 

Quem leu O Papa ou A Inquisição Espanhola, livros de José de Maistre, traduzidos para português por esse inquieto e subtil pensador católico de filosofia portuguesa que é Pinharanda Gomes, não deixará de perturbar-se quando souber que o famoso Conde era um «encoberto»: dentro da própria Maçonaria formava parte de um Colégio secreto, ignorado dos outros irmãos. Disso nos dá notícia Emílio Dermenghem, na introdução a La Franc-Maçonnerie, Mémoire au Duc de Brunswisck, par Joseph de Maistre, escrito que julgaríamos impossível, se não tivesse sido encontrado entre as obras do filósofo com outros documentos de convergente interesse, guardados nos arquivos das lojas do Sul de França. «Dés 1774», escreve Dermenghem, «Joseph de Maistre (né en 1753) faisait partie de la loge des Trois Mortiers où il était  grand orateur, substitut des généraux et maître symbolique. Mais la Maçonnerie vulgaire était un enfantillage, comme il écrivit le 9 décembre 1793 à son ami Vignet, et ses réunions mondaines finissaient par le lasser quand il fut conquis par la Réforme écossaisse. Le 4 septembre 1778, il entre en effet, avec quinze autres frères, à la loge de la Sincérité et il fait, en même temps, partie, sous le surnom de Josephus a Floribus, d’un groupe três secret de quatre initiés supérieurs, le collège particulier de Chambéry, dont les autres membres étaient son ami Salteur (a Cane), le Chevalier de Ville (a Castro) et le bourgeois Marc Rivoire (a Leone Alto). Ces collèges, placés dans les diferents chefs-lieux du rite écossais, étaient formés par la classe secrète ds Grands Profès, chevaliers maçons de l’ordre bienfaisant de la Cité Sainte, ‘dernier grade em France – disait Willermoz – du regime rectifié’. Cette classe était ‘répandue en petit nombre et partout inconnue’. Son existence même était ‘cachée depuis son origine à tous les chevaliers qui n’ont pas encore été reconnus dignes et capables d’y étre admis avec fruit’. On voit à quel rang Joseph de Maistre s’était élevé dans la hierarchie oculte.» (F. Rieder et Cie., Éditeurs, Paris, 1925, p. 14)

O abandono da Maçonaria vulgar correspondeu à descoberta do «martinismo», em cujos «mistérios», teóricos e práticos, Joseph de Maistre foi iniciado pelo citado Willermoz, discípulo, como Saint-Martin, de Pascoal Martins e, por morte deste, seu continuador na chefia da Ordem. É a formação martinista do autor de Os Serões de São Petersburgo que para nós tem interesse, obrigados como somos a ter em linha de conta o que Álvaro Ribeiro escreveu sobre filosofia e tradição portuguesa: «A tradição portuguesa, a esperança de que o Cristianismo reintegrará o Homem e a Natureza no Reino de Deus, durante o século XVIII passa a exprimir-se em termos diferentes dos que ficaram estabelecidos na nomenclatura da teologia católica e da filosofia aristotélica. A obra de Pascoal Martins, vertida maravilhosamente na cultura da Europa Central, dá-nos uma síntese, ainda hoje admirável, das tradições peninsulares.» (A Arte de Filosofar, Portugália – Lisboa, 1955, pág. 142).

Neste mesmo capítulo sobre A Tradição Portuguesa, diz-nos Álvaro Ribeiro ter sido «Sampaio Bruno o pensador que mais inteligentemente no-la revelou». Com efeito, em O Encoberto, depois de ter estudado a influência de Saint-Martin na Revolução Francesa, ao expor a doutrina esotérica pela tríade de Liberdade, Igualdade, Fraternidade, escreve assim:

«O ternário sagrado! Saint-Martin, seu inventor e promotor!»

«Mas, sem embargo de sua peculiar originalidade, cumpre não esquecer que Saint-Martin começara por ser discípulo d’outrem, d’um desses homens extraordinários que gravam a sua personalidade na sua época; e esse homem era português, «misterioso português», consoante (realista, romanescamente) se compraz em lhe chamar o biógrafo crítico do philosophe inconnu, o sr. Matter. Português-judeu, cristão-novo, «de raça oriental e de origem insólita, mas tornado cristão à laia como assim se tornavam os gnósticos dos primeiros séculos». Quem?»    

«Quanto mais se estuda Saint-Martin, com o tratado de seu mestre, Da Reintegração, à vista, tanto mais se sente, em toda a sua profundidade, a influência do teurgista de Portugal sobre o mais célebre dos seus discípulos de Bordéus.»

O tratado de Pascoal Martins, Da Reintegração, é, de seu título completo, Tratado da Reintegração de Todos os Seres nos seus Princípios Primitivos. Está traduzido por Manuel Joaquim Gandra na Colecção Esfinge das Edições 70.

Não se deduz de tudo isto que haja um exclusivo de identidade entre a tradição portuguesa e o martinismo. Este terá sido durante o século XVIII e para a Europa Central a expressão oportuna dessa tradição. Mas a relação pode constituir o fio que nos conduza à cabala pelo judaísmo, à gnose pelo cristianismo, à sabedoria sufi pelo islamismo. «Três tradições concorrem na formação do pensamento português: a judaica, a cristã e a islâmica.» A filosofia portuguesa terá por fim realizar a sua síntese católica. Porquê a filosofia portuguesa?

A História de Portugal cinde-se em dois períodos radicalmente distintos. Sobretudo através da Pátria e da Mensagem, os nossos poetas, prolongando neste ou naquele sentido o ensino de O Encoberto, os nossos filósofos, tiveram disso perfeita consciência e o correspondente saber. O primeiro período, de um só rei para três Repúblicas – a judaica, a cristã e a islâmica –, vai até D. João III; com D. João III e o estabelecimento da Inquisição em Portugal tem início o segundo período. A tese de Sampaio Bruno é, porém, que foi no segundo período que se deu o maior avanço no aperfeiçoamento dos espíritos, cada vez mais próximos, de vinténio para vinténio, da era messiânica. O segredo deste contrassenso terá sido o aparecimento na história do cristão-novo. Deste ponto de vista, o estabelecimento da Inquisição foi providencial. É certo que os aspectos negativos ou sinistros da nossa sociabilidade se devem à especial complexão dessa criatura híbrida pela qual se define o cristão-novo: os judeus e os muçulmanos que não puderam ou não quiseram partir para o exílio, ao verem-se de repente obrigados a praticarem outra religião, aterrorizados com a destruição das suas mesquitas e sinagogas, tiveram de fingir o fanatismo, de cultivar a hipocrisia e a traição, de praticar a denúncia ou então tiveram de viver em medo e inquietação constantes o seu criptojudaísmo ou o seu criptoislamismo. O ateísmo é também, em certos casos, um dejecto desta situação. A astúcia e o espírito diplomático, a capacidade de falar ou de pensar em duas línguas e o subtil sentido da metáfora ou da ironia são, entre outros, os seus produtos superiores. Esta última é a da nobreza espiritual sufi ou sefardi.

Toda a psicologia do cristão-novo converge para o dar como o elemento activo capaz de realizar a síntese entre duas religiões, a antiga dos seus pais e a nova dos dominadores, isto no caso evidentemente de não ter sido corrompido pela hipocrisia, pela cobardia ou pelo ódio. (...)

 

António Telmo   

 

(Publicado em Filosofia e Kabbalah, 1989)

DOS LIVROS. 29

08-01-2015 21:57

O Adamastor

 

Foi muito aplaudida na revista Colóquio, julgo que pelo António Cândido Franco, a ideia, que lancei em Filosofia e Kabbalah e noutros lugares, de ser a palavra Adamastor, quase só pela simples troca de suas letras, interpretável como Adão astral. O achado não teria qualquer importância, se de achado se trata, se não pudesse dar lugar ao entendimento daquilo que talvez representasse, no espírito do poeta, o tenebroso gigante.

Desde já, há que pensá-lo como uma forma do mundo intermediário ou subtil ou, como se prefere dizer por via de um estrangeirismo, do «mundo imaginal».Vimos como Thetys, a rainha do Oceano que esposou Gama, e Thétis, «das águas a princesa» por quem se apaixonou o Titan, dificilmente se distinguem pelo nome. Parecem ser dois aspectos da mesma entidade feminina. É o que nos leva a conjecturar que o Adamastor será, no segredo do Poeta, a forma astral do Gama, a projecção do seu ser violento no mundo imaginal, a figura do que nele era impulso e desejo incontrolado. Ora, como, por outro lado, Gama é o avatar poético de Camões, tanto faz dizer que a aparição do Titan é Gama como a forma astral de Adão ou Luís de Camões como a mesma forma astral.

Eu sei que esta ideia é muito difícil de admitir, por isso mesmo se deve insistir nela pois, como dizia Sócrates no Crátilo, «as coisas belas são difíceis».

A aparição do Adamastor acontece de noite. É a aparição de um fantasma, uma criação da fantasia que põe perante os olhos do avatar do Poeta a forma horrível do seu próprio ser. É uma fantasia criada a partir de uma «nuvem escura», a matéria subtil da alma tenebrosa, irmã da noite. É na treva que se dão as transformações que depois aparecem à luz do dia. De olhos vendados é que se viajam as viagens de descobrimento. Se, enquanto o corpo se desloca no espaço, a alma permanece ligada às formas de percepção habituais, se não procura ver porque se fez treva, ir de continente para continente ou de mar para mar é não sair do mesmo, é levar consigo todo o peso oco do seu não-ser. 

 

António Telmo

 

(Publicado em Luís de Camões, 2010)

DOS LIVROS. 28

06-01-2015 08:56

Taprobana Ilha do Paraíso  

 

Taprobana é uma ilha ao Sul da Índia. Taprobana é uma palavra feia, que tendemos a ler como Trapobana, associando-a automaticamente a trapos. Dir-se-ia que o Poeta a foi buscar por exigência de rima. Todavia, esconde-se aqui um grande segredo.

Taprobana é a Ilha do Ceilão, o lugar que no Oriente se diz ser o lugar do Paraíso. Daí que «passar além da Taprobana» significa realmente «passar além do Paraíso, do lugar onde o homem e a mulher viviam antes da Queda».

Ir além da própria origem, eis tudo. Para compreender, devemos distinguir entre Pequenos Mistérios e Grandes Mistérios. A Maçonaria é o que hoje nos resta como base de elucidação desta obscuridade. As igrejas cristãs também o poderiam ser, mas, infelizmente, ou não têm teólogos ou, se os têm, não prestam atenção a estes aspectos da sabedoria milenária.

Mas falemos de Luís de Camões, poeta católico. Ele sabia superiormente do assunto, embora não o entendessem assim os Inquisidores que o obrigaram, já velho e doente, a deslocar-se a um centro paroquial onde passava pela humilhação de estudar, com alguns rapazes, as noções elementares do catecismo.

Passemos, porém, esta matéria perigosa.   

A que corresponde na Maçonaria a celebração dos Pequenos Mistérios? Têm início no grau de Aprendiz e cumprem-se no grau de Mestre (aquele ao qual os Fiéis de Amor, aqui «os varões assinalados», chamavam o Terceiro Céu), quando o peregrino atinge definitivamente o Oriente.

Todavia, o que é que tudo isto significa?

«O que é o número três na realidade?» perguntava Fernando Pessoa pela voz de Alberto Caeiro. Embora aqui o três seja menos significativo do que o nove (como se verá adiante).

Aquilo que na realidade se cumpre nos Pequenos Mistérios é a teatralização da regeneração psíquica, pela qual nos libertamos das escórias que se acumulam em volta da nossa alma e não nos deixam ser o que somos. Somos recebidos na Câmara do Meio, onde, se o rito for vivido como ritmo, reconquistaremos a forma original antes da Queda.

Da horizontal passa-se então à vertical, do esquadro ao compasso. No círculo brilha agora equidistante de todos os seus pontos o centro que é o Meio, «el mezzo di nostra vita» como ensinou Dante. Têm início os Grandes Mistérios pelos quais se cumpre a ascensão aos mundos informais ou angélicos.

Luís de Camões no Canto IX situa a consumação dos Pequenos Mistérios, cujo início equivale ao momento em que as naus se apartam da Ocidental praia lusitana.

 

Portugueses somos do Ocidente

Irmos buscando as Terras do Oriente

 

Mas o Oriente encontrado não foi a Índia, foi a Ilha do Amor, o lugar do Paraíso, a Taprobana que não vem nos mapas.

Também no rito maçónico, as viagens partem do Ocidente buscando o Oriente.

No terceiro grau, onde findam os Pequenos Mistérios, o número simbólico por excelência, como sabem os iniciados, é o 9.

No canto X (9+1=10) d’Os Lusíadas assistimos à subida da montanha, por um caminho difícil e árduo e esta ascensão começa ao anoitecer, quando os jasmins, libertos enfim do calor do dia, abrem felizes as suas pétalas.

No canto IX, a Aurora é o tempo da união amorosa.

No canto X, a Noite é o tempo da dádiva suprema do Amor por intermédio da deusa Tethys.

 

António Telmo  

 

(Publicado em Luís de Camões, 2010) 

INÉDITOS. 37

30-12-2014 13:34

Escrito no período do Redondo (1971-1973), e dedicado a Armando Carmelo, seu inseparável e dedicado companheiro durante a "gesta revolucionária" do processo de fundação da Escola Preparatória local, este poema inédito de António Telmo reflecte obviamente um acontecimento do quotidiano...

[Houve um tremor de terra em Ascoli]

 

                                                 ao Carmelo                            

 

“Houve um tremor de terra em Ascoli

Numa paisagem lívida de neve”

Aqui no campo verde lembro-me de ti

Skiando nos Alpes, branca e leve.

A luz lúcida do sol de Ascoli

Brilha sobre o manto lúcido da neve.

 

Saem das casas sombras em pavor

Só as crianças são reais.

Ainda há criadas que têm seu senhor

Ainda há sombras que mandam nas demais.

Treme a terra funda com fragor

Mas os raios do sol são irreais.

 

Contigo irei ter em meu ski

Aos Alpes que só conheço pelo mapa

Houve um tremor de terra em Ascoli

Porque alguém que tem capa e sempre escapa

Invocou os espíritos ali

Onde os três pés da terra se afundam na lava

E a palavra dita soa sinistra e cava

Por sobre a mesa de neve de Ascoli. 

 

António Telmo

POEMAS. 07

23-12-2014 12:10


[Com Maria Antónia e Anahi, em Brasília]

 

[A família é de noite quando se dorme]


A família é de noite quando se dorme

Todos num sono só, juntos lá onde

De Deus se toca a sua sombra informe

Onde de nós secreto Deus se esconde.

E como há crianças a dormir, o esplendor

Diurno dos seus olhos brilha puro

Num magnífico ponto interior

Que é o reflexo de Deus no escuro.

Mas amanhã há Sol. Vamos passear sós

Na manhã tão nítida e clara, nesta manhã de Abril

Vamos trazê-la para dentro de nós

E levá-la para o sono obscuro e vil

Tão límpida como uma gargalhada infantil.

 

António Telmo

 

INÉDITOS. 36

19-12-2014 10:18

Escrito no Redondo, no início da década de 70, quando António Telmo ali fundou a Escola Preparatória local, o poema inédito que hoje publicamos foi lido em público, pela primeira vez, pelos Jograis U... Tópico, no passado dia 13, na primeira parte do recital "Os poemas e os poetas de António Telmo", e constitui-se como preciosa peça autobiográfica.

[António Telmo na varanda da Oca, em Brasília, na segunda metade da década de 60]

 

Dostoiewskiana

 

Pus o meu ser no prego

No dia em que arranjei um emprego:

Professor de Filosofia.

A esmola que se dá a um cego

Em paga da luz que não teve ou perdeu

É mais do que a que se me deu

Para não ensinar o que sabia.

Para não ensinar o que pensava

E o que o meu génio me dizia.

 

Aristotélico, pregaram-me à cadeira.

Pitagórico, mandaram-me à fava.

Puseram coisa onde havia ideia.

Epicurista, deram-me um horário

E um reitor felizmente hebdomadário

Arrumado como a página dum jornal.

 

Não faz mal! Não faz mal! Não faz mal!

Se pus meu ser no prego

No dia em que arranjei um emprego,

Se foi essa a minha sorte,

Hei-de levantá-lo

Com o dinheiro da morte.

 

António Telmo

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