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INÉDITOS. 35

27-11-2014 21:18

"Sou católico pelas festas"[1]

Um dia, durante um ágape, alguém ironizou estupidamente ao dizer que, pretendendo o Afonso Botelho ser um pensador católico, ou deixava de pensar ou deixava de ser católico, significando por esse modo que religião e filosofia são incompatíveis. O Afonso Botelho respondeu secamente:

“Sou católico pelas festas”.



[1] Título da responsabilidade do editor.

 

VOZ PASSIVA. 36

24-11-2014 10:44

António Telmo e o bilhar

Hernâni Matos 
 
Palavras proferidas na Homenagem a António Telmo
promovida pela Sociedade Recreativa Popular Estremocense no dia 23
de Agosto de 2014
 
À laia de justificação
 
Creio seguramente que, neste preciso instante e nesta sala, alguns dos presentes estarão a perguntar a si próprios:
 
- O que é que este sujeito está aqui a fazer? Ele não era amigo, nem tão pouco discípulo de António Telmo, não frequentava a Tertúlia do Café Águias de Ouro, não é jogador de bilhar, nem pertence ao Círculo António Telmo. Porque é que o fulano está aqui?
 
Passo a responder:
 
- Estou aqui pela razão exacta de não ser nenhuma dessas coisas. É que António Telmo não se esgotava no conjunto daquelas vertentes.
 
Ao longo da sua permanência em Estremoz, António Telmo teve escassa interacção comigo, mas foi quanto bastasse para eu perceber a consideração que nutria por mim, à qual naturalmente sempre correspondi, não por mera questão de cortesia, mas por reconhecer a sua grande envergadura intelectual e admirar o seu gosto pela autonomia e pela liberdade de pensamento. Foi essa força indomável e insubstituível do seu pensamento que me levou a vir hoje aqui, testemunhar o apreço que tenho pela sua vida e pela sua obra e dedicar-lhe com humildade as palavras que se seguem.
 
Falemos de bilhar
 
Na minha família existe há muito um intenso fascínio pelo jogo de bilhar.
 
Meu pai, alfaiate particular de António Telmo, tinha, tal como ele, o jogo na massa do sangue. Era exímio praticante de bilhar, exercício que praticava na Sociedade de Artistas Estremocense e no Café Alentejano.
 
Nos anos sessenta do século passado, aquele Café encerrava as portas às duas da madrugada, hora até à qual se podia jogar bilhar, xadrez e mahjong. Entre os seus parceiros destes jogos, estava o tenente Graça Gonçalves, combatente da 1ª Grande Guerra Mundial e dentista de profissão, em cuja morada actualmente resido. O seu consultório de tortura é hoje a minha pacífica sala de estar.
 
A minha memória do jogo de bilhar remonta aos quatro anos de idade. Nessa época, o meu tio paterno, recruta em Elvas, sempre que podia vinha passar o fim-de-semana connosco e levava-me a passear com ele. Escusado será dizer que o fascínio pelo bilhar, que ele também partilhava com o meu pai, o conduzia inevitavelmente ao Café Alentejano, onde existia então uma sala de jogo com duas mesas de bilhar. E foi nessas circunstâncias que, certo dia de Carnaval, trajado de lavrador, com farpela confeccionada pelo meu pai, me vejo ali a assistir a um jogo de bilhar. Os jogadores pertenciam à fina-flor das tacadas, pelo que o meu tio seguia entusiasmado a partida. Dali não resultaria mal nenhum, não se tivesse dado o caso de eu ter sido acometido por forte dor de barriga, que me levou a implorar-lhe:
 
Tio leve-me à retrete, que eu quero fazer cocó!
 
A resposta foi peremptória:
 
- Está sossegado rapaz, deixa-me lá acabar de ver esta jogada!
 
É claro que eu, gaiato de palmo e meio, obedeci ao meu tio. Os meus intestinos é que não, pelo que acabei por me borrar pelas pernas abaixo. Contrariado, o meu tio acabou por não ver o fim da jogada e lá teve de me levar para casa, a fim de a minha mãe me lavar. Nessa altura, eu já não tinha necessidade de evacuar, tinha era de ser evacuado urgentemente da sala de jogos, onde o chão e a atmosfera ficaram assinalados pelos meus intensos e infantis fedores fecais.
 
Eu morava então numa casa na rua da Misericórdia, que depois foi derrubada para ampliar o edifício dos Correios. O caminho ainda foi longo, pois tivemos que contornar a vetusta Igreja de Santo André, que ainda não tinha sido derrubada às ordens do Ditador, para ali erguer o mostrengo que é o actual Palácio da Justiça. Ao longo desse trajecto que parecia não ter fim, eu ia deixando marcas da minha passagem. Chegado a casa, o meu tio ouviu das boas e a minha mãe lá teve que me dar banho numa banheira da época, que era um avantajado alguidar de zinco, estrategicamente disposto na sala de arrumações. É pois compreensível que aquele jogo de bilhar tenha perdurado como forte registo da minha memória.
 
Mais tarde e já na juventude, o meu pai procurou iniciar-me nos jogos, entre eles o jogo de bilhar. Todavia, contrariando o adágio, filho de peixe não soube nadar, pelo que nunca passei dum péssimo jogador.
 
Na Universidade formei-me em Física, que grosso modo é uma espécie de râguebi da Ciência, onde só cabem os duros. Foi então que interiorizei a Física e a Matemática do bilhar, das quais passei testemunho ao Manuel, filho do António Telmo, de quem fui professor na Escola Secundária de Estremoz. Comigo, ele trabalhou as noções de momento linear e de momento angular de um corpo, a teoria das colisões, as leis da conservação e de variação do momento angular de um corpo, bem como o teorema da energia cinética. A aprendizagem do Manuel foi fácil, já que o terreno era fértil. Como opção de vida, o Manuel tornou-se seareiro numa área que também foi minha e, curiosamente, no bilhar seguiu também as minhas pisadas, que não as do pai.
     
Quanto a mim e como já disse, apesar de dominar a Física e a Matemática do bilhar, sempre fui péssimo praticante do “jogo de perícia e de saber que António Telmo tanto amava e de que foi praticante emérito”, como nos diz Armando Alves, seu amigo e companheiro de jogo.  
 
Pessoalmente, julgo que me faltam a perícia e o saber-fazer no jogo abordado por Camilo Castelo Branco em “Aventuras de Basílio Fernandes Enxertado”, por Eça de Queirós em “Os Maias” e por Alberto Pimentel em “O Lobo da Madragoa”.
 
A propósito do jogo do bilhar, existe um texto colhido em “Viagem a Granada”, onde António Telmo se entrevista a si próprio, dizendo a certa passo: “…o bom jogador tem de concertar entre si, antes de dar a pancada, mentalmente já se vê, cinco factores: a força com que a bola é impelida, o efeito que se dá na bola, a quantidade de volume a apanhar da bola que primeiro visamos tendo em conta as posições angulares, o ponto da tabela onde a nossa bola vai bater, e tudo isto numa apreensão sintética que implica uma concentração perfeita para que a jogada resulte”.
 
Mas o que é isto? Vindo lá de cima, onde António Telmo parece estar a jogar bilhar com o meu pai, estou a ouvir uma conversa onde o primeiro diz: 
 
- Amigo Matos, o seu rapaz é um artista das palavras, tal como você o foi dos fatos. Porém, a conversa já vai longa...
 
E agora António Telmo está a dirigir-se directamente a mim, proclamando:
 
- Oh Matos filho, são quase horas de almoço e todos estão fartos de o ouvir falar. Despache lá a conversa e depois vá “dar uma volta ao bilhar grande!”
 
É claro que não posso ficar indiferente a esta Mensagem, pelo que peço à Maria Antónia, amor da sua vida, que descerre o retrato de João Albardeiro que a Direcção da Sociedade Recreativa Popular Estremocense, em boa hora deliberou colocar aqui para assinalar e perpetuar a passagem de António Telmo por esta casa, da qual foi um animador incansável do jogo de bilhar e um notável jogador, cujas tacadas deleitaram quem o viu jogar. Casa onde ele soube também interpretar o simbolismo oculto do rico património azulejar das salas, que o levou a concluir estar em presença duma loja de São João.
 
Para o António Telmo, que nos está a ver e a ouvir lá em cima, peço uma calorosa salva de palmas.
 

DOS LIVROS. 26

20-11-2014 16:25


Etimologia Sagrada

 

Para um leitor mais interessado, a reflexão da gramática portuguesa pelos princípios da arte poética não ficará completa se não tentarmos ver como os valores dos fonemas formam os significados das palavras. Neste domínio, o risco de se cair na fantasia, esse falso duplo da imaginação, é tão grande que hesitámos em escrever sobre o assunto. Qualquer pessoa pode conduzir ou desviar uma palavra para o significado que lhe aprouver, considerando nela apenas a letra ou letras que lhe convêm. Todavia, é possível mostrar alguns pontos firmes, perante os quais a fantasia se quede para ceder o lugar à razão poética. 

Os tons e os sons do segundo triângulo (os sopros) imitam facilmente as naturezas sonoras e, por isso, a língua utiliza-os onomatopaicamente para formar palavras. É o caso de silvo, voo, seta, flecha, azagaia, vento, sopro, etc. Análoga relação se estabelece por meio do R em palavras significativas de vários movimentos: correr, carro, roda, corrupio, rio, rua, etc. O til (m-n) é também gerador de palavras onomatopaicas: som, tom, tambor, tímpano, sino, bombo

Outras letras, todavia, que exprimem ideias mais distantemente dos sons naturais e artificiais, não deixam de animar de sentido inúmeras palavras. Assim o N e o L.

Ninho, é o lugar interior da germinação dos ovos.

Certas formas isoladas e definidas na superfície homogénea do mar são designadas por vocábulos em que impera o N: navio, nau, nave, canoa, nadador

A nuvem, a neve e o nevoeiro ou a neblina sugerem a ideia de um elemento compacto, mais ou menos indiferenciado, uma espécie de germe esparso.

Para o L e de acordo com o seu valor temos, por exemplo, leve, ligeiro, ágil, alado, alto.

Poderíamos multiplicar os exemplos nestas e nas restantes letras, mas, em contrapartida, seria fácil apontar inúmeras palavras nas quais a relação procurada não é imediatamente evidente. Por outro lado, há, quase sempre, vários elementos significativos na mesma palavra que a põem em relação com sephiroth, triângulos e colunas diferentes. A unidade semântica deve formar-se com todos esses factores, à volta daquele que se oferece como dominante. O supérfluo foi considerado por Platão, no Crátilo, mero factor de embelezamento.

A multiplicidade de direcções na mesma palavra pode, mais uma vez, constituir o pretexto da fantasia para formar étimos vazios. O rigor que, do ponto de vista histórico-linguístico, falta a este tipo de etimologias deverá dar lugar a um rigor de outra espécie, que é o da própria razão poética.

A chave do problema é dada por Platão no Crátilo. Neste domínio, a razão poética tem como condição da própria actividade a inspiração. É assim que Sócrates, possesso do «daimon» de Eutyphron, desfia perante dois interlocutores atónitos centenas de etimologias falsas. A posição dos participantes no diálogo inverte-se. Sócrates de interrogador de Hermógenes passa a interrogado, como interrogadas são as pitonisas que proferem oráculos. Em certo momento adverte-o de que deve estar vigilante e que não deixe que tudo se explique por tudo. Quando o ritmo da interpretação das palavras se torna mais veloz e saltitante, declara que a inspiração de Eutyphron estava a chegar ao fim. Recebera esta inspiração por contacto com o adivinho, com quem estivera a conversar nessa manhã. Quando tivesse acabado, deveria purificar-se.

Os modernos intérpretes do Crátilo são, na generalidade, concordes em atribuir à ironia platónica estas etimologias, na verdade das quais o filósofo seria o último a acreditar. O principal argumento é a estupidez de Eutyphron, um adivinho de Atenas conhecidíssimo pelo seu fanatismo e que figura, nessa qualidade, noutro diálogo de Platão. Este, em consequência, não podia tomar a sério a inspiração provinda de semelhante espírito.

É um argumento de quem não leu o Fedro. Há, neste livro, uma passagem de exaltação da sabedoria das pitonisas, quando possessas, onde no entanto se diz que, fora dos momentos de inspiração, essas mulheres são seres completamente banais. Outras razões existem, contudo, para considerar destituída de qualquer fundamento a opinião dos modernos. Daremos algumas: 1 – Não se compreende uma ironia tão paciente e demorada, mantendo-se durante várias horas e repetindo-se em cada nova etimologia das várias centenas que Sócrates propõe; 2 – Várias dezenas de páginas teriam sido escritas para nada dizerem; 3 – Noutros diálogos e nos momentos mais sérios e solenes da reflexão filosófica, algumas das etimologias apresentadas no Crátilo servem de fundamento à doutrina que Platão quer transmitir. Ainda por cima, o seu discípulo Aristóteles também as utiliza: é o caso, por exemplo, da etimologia de éther (aei thein) transposta para o livro Do Céu a significar o movimento perpétuo e circular dos seres divinos.

Tudo se torna claro, deixando de haver oposição entre a linguística moderna e a sabedoria, quando admitirmos para cada língua duas espécies de genealogia: uma histórica e terrestre; outra que designamos por urânica. Todavia, já no tempo de Platão essa oposição tomava como hoje a forma de conflito: «os homens que, na Antiguidade, instituíram os nomes não tinham a opinião de que a inspiração, mania, fosse uma coisa vergonhosa e nem sequer um opróbrio. Pelo contrário, ligando a palavra mania à arte mais bela, àquela que permite predizer o futuro, chamavam-na pelo nome de manikê. Olhavam a inspiração como a mais bela coisa, desde que exprimisse um dom divino e, por isso, a denominavam assim. Os modernos, porém, que perderam o sentido do belo, introduziram na palavra um T e chamaram à arte divinatória mantikê. Compare-se a esta a arte dos homens que se dominam, dedicando-se a predizer o futuro por meio das aves e de outros signos; é uma arte, na verdade, que, por meio da reflexão, transmite à opinião dos homens, oiésis, inteligência e conhecimento, noús e historía. Eis por que tal forma de arte foi pelos antigos denominada oio-no-histikê. Hoje, os modernos designam-na por oiônistikê, com um o longo para tornar a palavra majestosa. Todavia, quanto mais perfeita e digna a arte do adivinho! Comparados os nomes e as funções do adivinho e do áugure, como é superior, pela beleza, a inspiração à dedução, a inspiração que provém do deus à ciência que vem dos homens!» (Fedro, 244 c – 244 d).

Perante uma palavra como noite, quem é capaz de sentir, como Pascoaes e Pessoa o fazem, a obscuridade vagamente luminosa do ditongo e a interioridade profundíssima do N? Quem, como o poeta italiano Julius Evola, sabe ver em «Narciso» a auto-reflexão expressa na própria figura gráfica do N – eu sou eu, a face diante da face – e também a morte e a queda, no fascínio das duas dentais sibilantes, deste modo aparecendo o nome a traduzir o próprio mito? 

Duas condições são, com efeito, necessárias nesta arte de formar etimologias pelos valores do diagrama principial: uma alteração da alma e uma lúcida embriaguez pela qual a razão poética organiza as formas da inspiração num sistema universal de pensamento. Em termos já familiares ao leitor, diremos finalmente que no Sócrates, interlocutor do Crátilo, se dá o encontro de Yesod e de Thiphereth.

 

António Telmo

 

(Publicado em Gramática Secreta da Língua Portuguesa, 1981) 

EDITORIAL. 01

20-11-2014 09:26

Projecto António Telmo. Vida e Obra. Ano II: O verdadeiro poder é servir

 

O Projecto António Telmo. Vida e Obra completa hoje um ano de vida. Dizemos vida e não existência, querendo com isso significar o entusiasmo que depositamos em quanto fazemos pela perpetuação da memória do nosso patrono, inventariando, estudando, publicando e divulgando a sua obra e o seu pensamento, no quadro mais vasto do movimento da Filosofia Portuguesa.

Nascido em resposta a circunstâncias as mais difíceis, o Projecto, estamos em crer, impôs-se pela seriedade, pelo rigor e pela perseverança com que procura concretizar as suas propostas.

A nossa página electrónica, onde temos vindo a publicar dezenas de escritos inéditos e de dispersos hoje quase esquecidos de António Telmo, está prestes a alcançar, no ano civil em curso, o patamar das 50.000 visitas.  

As Obras Completas de António Telmo, com um primeiro volume – A Terra Prometida – lançado em Junho e o segundo – Gramática Secreta da Língua Portuguesa precedida de Arte Poética – a sair da tipografia nas próximas horas, são hoje, contra ventos e marés por vezes insólitos, no seio da editora Zéfiro, uma realidade inquestionável a que o Projecto presta o necessário apoio institucional e científico. O terceiro volume encontra-se já em fase adiantada de preparação.

As Tardes Télmicas, levadas a cabo em parceria com a Câmara Municipal de Sesimbra, asseguram à actividade do Projecto uma programação regular, propiciadora do estudo da obra de António Telmo e dos autores que lhe estão próximos, bem como do território arrábido que foi também o de António Telmo.

O ano de 2014 ofereceu ainda ao Projecto António Telmo. Vida e Obra o ensejo de comemorar com dignidade e ambição o 20.º aniversário da morte de Agostinho da Silva, um dos quatro mestres de António Telmo. O ciclo Agostinho da Silva. 20 anos depois: um património télmico, pelos projectos de investigação que estimulou e pela inequívoca expressão nacional que adquiriu – e a sessão de apresentação dos livros Agostinho da Silva em Sesimbra e Cartas de Agostinho da Silva para António Telmo, no próximo dia 26, às 18:00, na Biblioteca Nacional, é disso mesmo um corolário, como o será também a sessão de 20 de Dezembro, na Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto, com a presença do Professor João Ferreira –, o ciclo, dizíamos, tem levado a vários distritos de Portugal a memória de uma herança com fortes traços de união: aqueles que, por quase três décadas, uniram Telmo a Agostinho.

Instituição associada ao recém-criado Instituto Fernando Pessoa, o Projecto António Telmo. Vida e Obra é hoje uma realidade irradiante congregando mais de duas dezenas de membros de norte a sul do país, e concitando o respeito de várias instituições que connosco têm estabelecido laços de parceria, às quais, reconhecidos, expressamos agora a nossa gratidão: as editoras Zéfiro e Licorne; o Centro de Estudos Bocageanos, a Fundação António Quadros, a revista de cultura libertária A IDEIA, o Clepul e a Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto; as Bibliotecas Municipais de Sesimbra, Setúbal e Redondo, a Biblioteca-Museu República e Resistência e o Museu Municipal de Sesimbra (e respectivas edilidades); e a Escola Secundária de Estremoz – dão bem a medida da credibilidade que o Projecto já granjeia, somente um ano depois de ter sido criado.

Uma palavra mais, de profunda gratidão, à família de António Telmo, na pessoa de Maria Antónia Victorino, membro honorário do Projecto António Telmo. Vida e Obra, pela confiança e pelo apoio dados a um grupo que saberá continuar a honrar a memória télmica, à margem das ambições que tendem a surgir quando o poder se institui organicamente. É neste espírito libertário de independência e de missão que o Projecto diariamente se alicerça, constrói e reinventa, porque, como muito bem diz o Papa Francisco, o verdadeiro poder é servir.     

DOS LIVROS. 25

18-11-2014 10:14


Propósito

 

O estudo, breve mas condensado, que apresentamos nas páginas seguintes, será talvez o germe de outro, cujas características determinamos nas linhas finais deste escrito. Dizemos propositadamente a palavra «germe». É que, meditado à medida que ia sendo escrito, este livro não obedece ao esquema construtivo habitual, não caminha das teses para as provas pelos argumentos: – é um livro mal escrito. Cremos, porém, que esse será o destino de todos os escritos que vierem a ser elaborados sobre Bergson e que pretendam interrogar para além do que foi definido pelos intérpretes. Não procurámos integrar o pensamento de Bergson dentro da história da filosofia; fizemos sempre por ver esse pensamento à luz da actualidade, isto é, das ideias actuais, das que se pensam hoje, ontem e amanhã. Convictos da importância da literatura, compreendendo neste termo tudo quanto habitualmente se compreende menos a filosofia, cruzámos constantemente a nossa interpretação com as formas da arte poética, no duplo intuito de animar a filosofia e de reintegrar a poesia no pensamento.

Efectivamente, só um critério artificial pôde estabelecer a dissociação entre a literatura e o pensamento, e se é bem certo que no início do processo se vêem agentes estranhos à associação espiritual dos artistas, hoje pode dizer-se que estes representam uma das forças activas que defendem tal dissociação. E é curioso que o bergsonismo, ao distinguir inteligência e intuição, tem servido de apoio à corrente de opinião que circula entre os escritores orgulhosos de não pensarem, de serem intuitivos, sensitivos, imaginativos. Manifestam assim um amargo desprezo pela ciência, que, no fundo, admiram e até temem, e opõem-lhe, como expressões de um valor superior, em que, afinal, não acreditam, as formas em que cai o espírito que perdeu o poder. Procurámos, por isso, interpretar o bergsonismo como uma filosofia que identifica por um lado pensamento e intuição, por outro lado ciência e imaginação. Só esta via, que percorre o caminho inverso da interpretação mais divulgada, se nos afigura fecunda. É evidente, porém, e como consequência do restabelecimento no conceito da primigénia relação da literatura com o pensamento, que muitos escritores têm de continuar a defender o critério oposto se quiserem que os seus livros persistam na admiração do público, embora para viverem apenas uma existência efémera, dependente da extensão da rede tecida pelo elogio mútuo.

Uma palavra sobre a «comédia». Falta neste opúsculo, um capítulo sobre «o riso e a significação do cómico» no pensamento de Bergson. Parece indesculpável num escrito que se chama Arte Poética, mas justifica-se dentro do método de investigação que nos conduziu de princípio a fim. Sobre a «comédia» escreveu o filósofo um livro de trezentas páginas, ao passo que deixou apenas, sobre as restantes formas literárias, algumas observações que, em geral, passam desapercebidas. Como o espírito que actua nos sonhos desenvolve numa trama significativa de imagens os acontecimentos insignificantes da vida de vigília, esquecendo ou desprezando quase sempre os que parecem mais importantes, assim nós procurámos ver o que Bergson calou nas entrelinhas e fixámos, por isso, o interesse sobre a alusão veloz, sobre a imagem fugitiva, cuja aparição, em Bergson, se dá permanentemente em figura comparativa. Aliás, uma interpretação de Le Rire, que não seguisse um método análogo, nada provavelmente viria acrescentar de novo e de positivo a quanto já tínhamos dito: – antes nos atiraria para zonas em que preferimos, por enquanto, não tocar. O riso oferece sempre o perigo de todos os corrosivos, como notou J. Paul Richter ao escrever: «Todas as definições são cómicas».

Fechado o parêntesis, diremos ainda a propósito da relação da literatura com o pensamento que a dificuldade que muitos sentem em estabelecê-la de modo positivo reside na concepção particular que formam da filosofia como uma actividade exclusivamente mental. Não é que ela seja isso e algo mais, – um complexo de raciocínio, sensitividade, imaginação. A distinção é muito mais funda. É a própria distinção entre filosofia especulativa e filosofia operativa. E é até o facto desta poder ter a sua expressão naquela que garante a hipótese de a poesia, o teatro, o romance poderem ser, por sua vez, formas distintas, mas convergentes, da mesma experiência secreta. Contra uma filosofia raciocinante, a que não corresponde nenhuma espécie de transmutação interior, e que constitui, afinal de contas, uma efémera evasão do mundo da acção, da qual sempre se regressa desiludido, sempre protestou Bergson. Mas poderia ter protestado igualmente contra as análogas formas de imaginação artística.

Cremos que o nosso essencial propósito fica assim assinalado. O leitor dirá, depois de ter lido esta meia centena de páginas, se também ficou esclarecido.            

 

António Telmo

 

 

(Publicado em Arte Poética, 1963)

INÉDITOS. 34

13-11-2014 11:14

Duas páginas sobre Verdade, Condição e Destino no Pensamento Português Contemporâneo, de José Marinho

 

O último livro de José Marinho, publicado meses depois da sua morte, Verdade, Condição e Destino no Pensamento Português Contemporâneo, para lá de um esperançoso optimismo, ancorado no contributo filosófico de alguns homens singulares, que permite confiar no destino de um pensamento que, em sucessivos fulgores, se vai aproximando da verdade, mostra como o mais puro e corajoso movimento do espírito português se embaraça e prende na condição da alma mística de um povo, capaz de levar a noção indeterminada de liberdade até á profecia, mas que tende cada vez mais a fixar-se no pior dos fanatismos – o fanatismo da razão. A razão é, sem dúvida, a condição da filosofia, a razão, como disse Leonardo Coimbra, que é sem descanso perante uma intuição inesgotável. É a condição, porque se a razão falece o espírito do homem é avassalado e perde-se num mar de sensações transcendentes que constitui o mundo da intuição. Uma razão, insegura da sua força, fecha-se, para poder subsistir, ou constitui-se à parte, para poder ponderar, da intuição e até da sensação. Por outro lado, não se interroga sobre si própria, une-se a si própria como um fiat instituído ab aeternum. Ficam assim criadas as condições para que se estabeleça definitivamente uma mística da razão, a mais temível e paradoxal das místicas, porque a razão é a própria negação de tudo quanto é místico. Para José Marinho, se bem o entendemos, reside a qui a relação crucial que nos define a nós povo português, se quisermos tirar todas as ilações, como um povo irremediavelmente perdido para a vida do espírito.

   

*

*      *

 

Os amigos de José Marinho ouviram-no repetidamente dizer nos últimos meses da sua vida que se voltasse a nascer na terra não queria nascer português. O seu último livro, Verdade, Condição e Destino no Pensamento Português Contemporâneo, só alguns meses depois da sua morte veio a ser publicado porque o editor receou, conforme carta escrita ao autor, fazê-lo sair em plena ditadura comunista. Este livro só de filosofia, um livro amável, como o próprio José Marinho o era para todos os conviventes pensassem o que pensassem, teve de esperar por Eanes para poder vir a ser lido por alguns portugueses.

É um livro eminentemente paradoxal, porque do país onde não queria voltar a nascer, do país mais anti-filosófico do planeta, José Marinho assenta sobre a própria negatividade a condição que define o destino de pensamento contemporâneo português para a verdade.

Fica-nos a impressão, após a leitura do livro, de que José Marinho, situável entre os pensadores místicos (…)[1]   

 

António Telmo



[1] António Telmo interrompeu aqui a escrita da frase. 

 

INÉDITOS. 33

11-11-2014 10:22


O grande adro de Arruda[1]

 

Acabei de ler, lentamente reflectindo, a sua carta e o seu admirável texto de aproximação católica ao Agostinho da Silva.

Digo aproximação a pensar numa frase que um dia me confidenciou o José Marinho: «Das igrejas só amo o adro.» Foi num adro, o da igreja de Arruda dos Vinhos, que se decidiu (no sentido da cápsula que se abre para libertar as sementes) o que vim a ser depois em participação no espírito ao longo da minha vida. Ali havia uma porta manuelina pela qual trepávamos brincando, por onde saíam e entravam o padre, um simpático velho alentejano, e as suas ovelhas, por onde entravam os caixões que se abriam lá dentro expondo o horror cadavérico de homens sem alma; e havia também o grande sino que eu fazia vibrar com uma pedra da fisga, simultaneamente contente e receoso do que me parecia um pecado contra a Igreja, mas um belo pecado pelo valor da pontaria e de produzir por mim próprio o divino som. Os jogos sucediam-se (pião, berlinde, botão, malha) ao longo do ano numa ordem litúrgica certa, que nenhum individualmente dos rapazes conhecia, mas que vinha não sabíamos de onde cumprindo-se sem erro ou desvio. Só saíamos do adro para caçar pássaros, colher espargos, procurar o trevo de quatro folhas ou encontrar ninhos. Dividíamo-nos em grupos que funcionavam como uma associação secreta. Ai do que dissesse a um de outro grupo em que árvore dos vastos campos se encontrava um dos muitos ninhos que eram propriedade do grupo. A fisga que leva a morte aos corações alados que são os pássaros, a caça aos ninhos, o espreitar dos cadáveres expostos, as pedradas no sino da igreja e também o jogo continham um elemento de mal que hoje me arrepia e espanta quando sinto saudades da infância subitamente despertadas por ouvir um pássaro cantar. O adro, os adros, a sensação de liberdade, os grandes adros como o de Arruda, onde se fazia o arraial de Agosto, onde conhecemos a nossa primeira namorada no meio de tanta gente alegre.

Não digo mais. Não é próprio de uma carta que responde a tão profundamente pensado escrito sobre o Agostinho da Silva e a uma carta de reflexão sobre o mistério do tempo vir com as minhas recordações só para dizer, com o José Marinho, que o importante não é entrar na igreja, mas sair dela, depois de nela ter estado. (…)

 

António Telmo

 


[1] Título da responsabilidade do editor. Dactiloscrito encontrado no espólio. Trata-se de um esboço ou projecto de uma carta destinada a um convivente de António Telmo não identificado no texto, que presumimos ter sido escrito em 2006 ou 2007, atento o contexto agostiniano e a referência pessoal a um terceiro, feita nos dois derradeiros períodos do original, que aqui se não transcrevem por razões de reserva da vida privada. Desconhecemos se chegou a ser enviada a carta de que este escrito, tão relevante no plano autobiográfico como no da ideação de António Telmo, parece ter sido uma versão preparatória.

 

VERDES ANOS. 09

09-11-2014 10:13

Das artes plásticas para a arte poética[1]

 

Líamos um estudo sobre Freud e o espírito perseguia uma ideia que supomos existir nos escritos do pensador austríaco, mas não aparece com nitidez provativa, quando deparámos com uma citação que satisfazia perfeitamente os nossos intentos. Era um estudo sobre «Freud e a Tradição Mística Hebraica», escrito por David Bakan e traduzido do inglês para o francês por P. Osusky e Dr. E. Risler. As linhas da citação tinham sido extraídas de um ensaio de Freud sobre «O Duplo Sentido Antitético das Palavras Primitivas», e eram as seguintes: «Abel» (nome de um filólogo estudado por Freud) cherche à expliquer le phénomene du renversement du son des mots par un redoublement, une reduplication de la racine. Nous aurions peine ici à suivre le philologue. Nous nous rappelerons le plaisir avec lequel les enfants jouent au renversement du son des mots, la fréquence avec laquelle l’élaboration du rêve se sert du renversement du matériel représentatif à diverses fins. Ce ne sont plus, dans ce cas, des lettres mais des images dont l’ordre se trouve inverti. Nous serions donc plutôt disposés à rapporter le renversement des sons à un facteur agissant à une profondeur plus grande[2]. (Os sublinhados são nossos). Estas últimas linhas aludiriam, sem dúvida, a uma importante lei psíquica, segundo a qual, no domínio do inconsciente, as palavras são anteriores às imagens e actuam sobre elas, – modificando-as, transmutando-as, condensando-as, deslocando-as, exercendo enfim uma acção que compreendem muito bem os poetas experientes de como os tropos alteram as imagens.

Como tínhamos em nosso poder as «Obras Completas» de Freud, na tradução espanhola de Luíz Lopez-Ballesteros y de Torres, ordenada e dirigida pelo Dr. Germain, dirigimo-nos imediatamente para o nosso quarto com o fim de ler todo o escrito de onde tinham sido tiradas aquelas linhas. Era muito possível que ali se encontrasse qualquer coisa de mais explicativo. Contudo, esperava-nos uma desilusão. Nem sequer o sentido das últimas palavras sublinhadas era o mesmo, conforme poderá o leitor verificar. O espanhol dizia assim: «Abel intenta explicar el fenómeno de la metatésis por una reduplicación de la raiz. En este punto no sería ya difícil seguir al filólogo. Recordamos lo aficionado que son los niños a invertir en sus juegos las palabras, y cuán frequentemente emplea la elaboración onírica la invasion de su material de representación para diversos fiens. (En esto ultimo caso no es el orden de sucesión de una serie de imágenes). Así, pues, nos inclinaríamos más bien a atribuir la metatésis a un factor de alcance más profundo.» Mais profundo, entenda-se, do que o redobro da raiz e não, como supuséramos, do que a elaboração de imagens.

Talvez que uma sugestão se tenha exercido, durante a leitura do texto francês, vinda da ideia que perseguíamos; não é menos verdade, contudo, que a expressão deste texto é equívoca. Além disso, um sinal de que não devemos confiar absolutamente nas traduções é dado pelos próprios exemplos citados. Compare o leitor as duas primeiras frases que num e noutro texto sublinhámos e repare como o seu sentido é oposto. Aqui, porém, vê-se logo que o tradutor espanhol foi quem se enganou.

Assim avisados dos erros fortuitos ou intencionais das traduções, gostaríamos de consultar o texto original de Freud e o texto em inglês de David Bakan. Uma razão fundamental nos leva a desconfiar que este último pudesse ter dado intencionalmente um sentido equívoco à sua tradução. É que uma das características da tradição hebraica a cujos princípios aquele autor pretende referir a doutrina de Freud consiste precisamente na importância conferida à palavra. Logo nas primeiras linhas do Génesis se lê: «Deus disse: Faça-se a luz!» A luz é um efeito da palavra divina, e portanto também o é todo o mundo das imagens, do sonho e da vigília. É esta uma relação que explica, por outro lado, a atitude hebraica para com os ídolos.

Sabe-se hoje que a tradição hebraica constitui um dos três elementos da tradição portuguesa[3]. Também o cristianismo, situado no vértice supremo do triângulo, não contradiz, mas, pelo contrário acentua a primordialidade do verbo, mais explícita no Evangelho de S. João. Ao autor destas linhas, dado o carácter sagrado e secreto da teologia, tem-no interessado muito mais ver se perscruta algo de correspondente na antropologia. Assim, não deixa de ser curioso e até útil ver como o problema das relações da palavra com a imagem se projecta no domínio artístico.

Para muita gente constitui um desgosto a pobreza exibida em relação a outros povos pelas artes plásticas portuguesas. Não temos pintores ou escultores como os franceses, os italianos, os espanhóis ou os holandeses. Estará aqui um dos motivos, talvez o menos significativo, do interesse criado à volta dos painéis de Nuno Gonçalves. Sem dúvida que, nos nossos dias, aparecem cada vez mais artistas plásticos. É-lhes dado até um lugar nas páginas literárias dos jornais e das revistas que sobreleva o da própria literatura. Cremos, porém, que tal acréscimo se deve explicar em função da influência que a cultura francesa exerce entre nós, influência que sempre dispensámos no domínio das artes poéticas. Por muita admiração que nos mereçam poetas como Rimbaud, Baudelaire ou Breton, bastará compará-los com alguns da era de Bruno, como Junqueiro, Eugénio de Castro ou António Nobre, para reconhecer a superioridade dos portugueses. Ligamos esta superioridade não só à índole da língua portuguesa, como também a uma natural e quase atávica mestria que possuímos dos segredos das palavras.

Utilizando a técnica do «salto»[4], arriscaremos agora uma hipótese: a de que a pintura modernista revela, em relação à pintura do passado, um sentido mais próximo daquele a que tende a arte poética. Perante certas pinturas picassinas, o apreciador, impedido de as referir a qualquer coisa de exterior e até a qualquer conteúdo simbólico, não sabe que dizer, sempre que prescinda dos lugares comuns dos críticos plásticos. Pelo contrário, nas pinturas imitativas ou representativas, que imitam figuras ou representam ideias, há sempre um ponto de referência. O tropo estabelece-se então na forma comparativa, e o apreciador satisfaz-se no fácil exercício intelectual que lhe fornece as palavras do seu juízo estético. Falta, porém, todo o ponto de apoio na arte pura dos modernistas e daqui o dizer-se que ela constitui uma arbitrariedade ao alcance de qualquer. Se isto é parcialmente verdadeiro naquelas manifestações de pintura dependentes dum processo automático no qual se transfere para outro, para alguém, que comunica através do artista, o momento negador da arbitrariedade, o mesmo não pode dizer-se daqueles quadros em que o espírito do pintor procede como um agente livre que exerce um poder. Não deve pôr-se o problema de saber se há artistas que cheguem a realizar mentalmente as formas objectivamente actuantes, porque mais importa reconhecer a possibilidade dessa realização. O facto de fixar na tela o que é uma palavra vivente já nos leva, porém, a pensar que o artista não teve resistência para conduzir o processo até ao fim. É também isto que se dá no poeta, com a variante de desviar para veículos verbais uma energia cujo potencial não foi capaz de suportar?     

Este problema preocupou Bergson e cremos ser nesse sentido que se deve interpretar a sua afirmação de que a arte é inferior à filosofia. Contudo, as palavras dos poetas são muito mais afins às energias livres do que as imagens em que o pintor as fixou. Podem conseguir-se mais surpreendentes efeitos, no domínio da vida interior, lendo uma poesia como a «Oração à Luz», com o espírito a mover-se nos ritmos das vogais e das consoantes, do que a contemplar uma tela. De resto, torna-se indispensável, e como indispensável sentimos, uma legenda, inscrita no quadro ou preparada por nós, para transmitir ao espírito o ímpeto da interpretação. Por outro lado, um pintor que tentasse traduzir a «Oração à Luz» em termos de plasticidade, dificilmente o faria por meio de figuras.

Concluindo: Os tropos alteram as imagens e toda a imagem é a fixação dum tropo. Tanto no domínio da arte como no da natureza. E já que aludimos a Bergson, dizemos que é este um dos aspectos menos atendidos da sua filosofia e que deveria ser relacionado com a Crítica da noção materialista da impenetrabilidade da matéria[5]. Tal relacionação levar-nos-ia demasiado longe. Preferimos ficar por aqui, confiantes agora de que o leitor terá compreendido a razão por que nos interessou tanto a frase de Freud. 

 

António Telmo



[1] Chave, 2.º ano, n.º 4, Lisboa, Fevereiro de 1965, p. 5.

[2] DAVID BAKAN, A «Tradição Mística Hebraica».

[3] V. Álvaro Ribeiro, «Filosofia Escolástica e Dedução Cronológica».

[4] Consiste esta técnica em estabelecer uma associação que altera subitamente o curso presente das relações mentais.

[5] V. Dados Imediatos da Consciência, pg. 67.

 

DOS LIVROS. 24

07-11-2014 11:59

«Teixeira de Pascoaes é um dos poetas do limiar do tempo, quando o terceiro ciclo da nossa história está prestes a fechar-se para dar lugar ao caldeamento de todas as formas residuais da Pátria. Está situado naquele ponto limite em que o passado e o futuro se cruzam mais uma vez com nitidez absoluta. Não esteve sozinho. Outros, tão videntes como ele (Guerra Junqueiro, Pessoa, Bruno, Leonardo, Régio), viram a mesma estrela.»

Teixeira de Pascoaes, o poeta da Natureza

 

Toda a reflexão sobre a saudade resulta necessariamente pobre se não passar por Pascoaes e não se detiver aí o tempo do pensamento.

É este, quanto a nós, o único senão da “antologia”, seguida de dois estudos de Pinharanda e Dalila[1], sobre a saudade, onde não avultam, como era devido, os textos mais significativos de Pascoaes. A saudade é um sentimento e não se ignora que ele por si só possa constituir objecto de reflexão, como objecto de reflexão tem sido, por exemplo, o amor, sem que necessariamente tenhamos de nos reportar a Camões, a Platão ou a Leão Hebreu. A verdade, porém, é que à saudade está referida a cosmovisão de um povo[2] e, antes e depois de Pascoaes, tudo quanto se disse ou escreve, diga ou escreva, ficará sempre aquém do seu primeiro apóstolo que nela viu a Virgem-Mãe do Evangelho da Pátria. Dir-se-á que o poeta exorbitou, que levou demasiadamente longe a translação de metáfora e que sempre permanecerá um núcleo irredutível – o sentimento, tal como cada um de nós o vive. Restringe-se assim ao plano da psicologia aquilo que o autor do Maranus alargou às esferas envolventes da cosmologia e da teologia. Saber se a saudade é um sentimento exclusivamente português e o galego não importa muito (importa tanto como discutir a nacionalidade de Espinoza, por exemplo), se não soubermos, como soube Pascoaes, encontrar-lhe as raízes na própria substância do mundo e a ideia no próprio pensamento transcendental.

O leonardino Delfim Santos, interpretando Pascoaes, observa que a saudade opera a inversão do tempo linear e causal, porque na saudade o futuro é o passado e o passado é o que dá sentido e conteúdo ao futuro”. Diríamos, desenvolvendo e aplicando, que a saudade é o sentimento da forma cíclica do tempo. Se a cor, a figura e o movimento das coisas criou a vista nos animais e no homem ou o perfume o olfacto, há na alma humana esse sentimento misterioso, órgão subtil de sensação, que apreende a natureza própria do tempo.

Pascoaes vai mais longe ainda. Se o tempo é um movimento serpentino que enquanto se desenvolve se envolve, dobrando-se e apoiando-se, em cada ciclo, sobre um só arquétipo, há que defini-lo por um centro, onde se cruzam o passado e o futuro, o invisível e o visível. Pela saudade, que é num só acto, desejo e lembrança, presença e ausência, a carne se faz espírito e o espírito se faz carne. Ela exprime, na forma de um sentimento, o contacto da alma com o centro misterioso do mundo, donde partem e onde convergem todas as direcções do ser. No Maranus é a Virgem-Mãe do novo Cristo. E Belém desta vez é no Marão.

Pascoaes vê naquele que foi iniciado nos “mistérios” da Saudade o “ser duplo”, uma espécie de “Jano Tetrafonte”, tornando senhor da rebis – a coisa dupla. No homem comum, a saudade é apenas um sentimento, mas o que inquieta, perturba e entusiasma o poeta é verificar que há um povo, o seu, a quem foi dada a graça sem o saber, do sentimento do centro do mundo. Tão espontaneamente como a vista foi dada aos homens de todo o mundo. Por isso defendeu a iniciação poética pela saudade e nela viu o carro de fogo capaz de nos transportar de novo ao Paraíso.

O homem comum não tem consciência dessa estranha vivência mnésica “não só referida a pessoas, mas também a coisas inanimadas” que lhe dá a alegria da presença com a dor da ausência num só acto psíquico, mas está nela e por ela está ligado, embora remotamente, de maneira reflexa e indirecta, ao centro do mistério do mundo. Só quando Maranus morrer, isto é, quando Portugal se perder em Eleonor, a Pátria Celeste de Sobolos rios que vão, só então a Saudade, a Presença Absoluta, se revelará em nós como a forma do próprio Paraíso.

 

* * *

 

Teixeira de Pascoaes é um dos poetas do limiar do tempo, quando o terceiro ciclo da nossa história está prestes a fechar-se para dar lugar ao caldeamento de todas as formas residuais da Pátria. Está situado naquele ponto limite em que o passado e o futuro se cruzam mais uma vez com nitidez absoluta[4]. Não esteve sozinho. Outros, tão videntes como ele (Guerra Junqueiro, Pessoa, Bruno, Leonardo, Régio), viram a mesma estrela.

Hoje quase não é lido. O saudosismo foi apressadamente catalogado como corrente literária, na medida em que fez escola, para ser esquecido no mar dos medíocres onde se perdem e afundam todas as correntes. O papel dos adversários do povo português é este. Não podem fazer outra coisa senão crítica literária ou o análogo. Servidos às vezes por espíritos lúcidos, mas minados de inveja, neles se apoiam, tentando em vão roer o Livro que, por ter sido escrito por todos nós, desde Pessoa a Pascoaes, é indestrutível. É um livro, como disse Régio, que tem as páginas em branco e os caracteres invisíveis. Não se pode catalogar.

 

António Telmo

 

 

(Publicado em História Secreta de Portugal, 1977)



[1] N. do C. - Dalila L. Pereira da Costa / Pinharanda Gomes, Introdução à Saudade (Antologia Teórica e Aproximação Crítica), Porto, Lello & Irmão - Editores, 1976. 

[2] Francisco da Cunha Leão, O Enigma Português.

[3] Ver nota pág. 133

[4] Era tão intenso em Pascoaes o sentimento deste limite que numa carta a Unamuno escreve: “Estamos a viver um momento decisivo, anterior a um novo fiat lux.” (Mário Garcia, Teixeira de Pascoaes, Braga, 1976).

 

DOS LIVROS. 23

05-11-2014 09:54

«Pensar o império sem referência ao centro do mundo tem como consequência necessária a subordinação da Igreja à Monarquia ou da Monarquia à Igreja. Mais tarde, como veremos, a ideia de Império aparecerá nas diferentes expressões do socialismo, o que constitui uma degradação sua, uma forma degenerada que, por grandiosa que se afigure, tem a fragilidade do barro.»

António Vieira e a ideia de Quinto Império

”A madrugada irreal do Quinto Império

Doira as margens do Tejo.”

 

A data de 1513, que marca o fim do ciclo heróico, pode também ser interpretada como o início da degradação da ideia de Império, no que esta ideia contém enquanto significa o domínio do mundo a partir do seu centro.

Dado que o Império passou a ser imaginado como um domínio conseguido pela força habilmente manejada no plano político a partir de qualquer ponto de periferia do mundo, perdeu-se a ideia dele como Quinto, embora alguns espíritos a tenham mantido acesa “no imenso espaço seu de meditar”. Um desses espíritos, o mais alto entre nós, foi António Vieira, mas a ideia, que ele animou do seu portentoso verbo, já não tinha correspondência na esfera política, onde se jogavam interesses cada vez mais reles pela progressiva subordinação de todas as categorias mentais à categoria económica.

A ideia de um Quinto Império era corrente na Idade Média. É uma outra maneira de ver “a comunicação entre o Oriente e o Ocidente”, que os Templários pretenderam assegurar não só no plano geográfico, interpretá-la como a formação do Quinto Império. Este não seria, porém, possível sem um real, efectivo contacto com o próprio Centro do Mundo.

Porquê Quinto?

António Vieira baseia-se numa interpretação que tinha sido dada às profecias bíblicas de Daniel dos cinco impérios sucessivos, entendendo neles o assírio, o persa, o grego, o romano e, por fim, na visão do jesuíta, o império português. A divisão do grande ciclo de tempo, que os hindus designam por Manvantara, em quatro fases ou ciclos distintos assume entre os gregos uma expressão dada pela sucessão simbólica dos quatro metais: oiro, prata, bronze e ferro. Em Daniel, que fala de uma mistura do ferro com barro nos pés da estátua, cujo conjunto exprime todo o Manvantara, aparece um quinto, significado na forma de uma pedra que derruba a estátua. Aparece assim o Quinto Império fora da série ou do conjunto formado pelos outros quatro. Se concebermos um ponto original que determina todo o Manvantara, o Quinto significará a reintegração de tudo quanto se manifestou durante os quatro períodos num ponto que os transcende e lhes é central, de acordo com a representação das cinco quinas do escudo ou das cinco chagas de Cristo, em que a quina ou a chaga do meio irradia na forma de um X para as outras quatro.

A impossibilidade do Quinto Império sem um real contacto com o Centro do Mundo (a possibilidade dele parece ter sido posta de lado no reinado de D. Manuel I, dadas as condições cada vez mais limitativas existentes na época) é o que torna irreal a visão de António Vieira. Ele vive em pleno ciclo sacerdotal. Ele mesmo é um sacerdote. Isso explica que visione, tal como Bandarra, uma monarquia universal sob a égide da Igreja, bem longe já da ideia de Dante que defendia a autonomia dos dois poderes sobre a terra, unificáveis somente num princípio central, imaginável pelo vértice superior de um triângulo, e que lhes é transcendente.

Pensar o império sem referência ao centro do mundo tem como consequência necessária a subordinação da Igreja à Monarquia ou da Monarquia à Igreja. Mais tarde, como veremos, a ideia de Império aparecerá nas diferentes expressões do socialismo, o que constitui uma degradação sua, uma forma degenerada que, por grandiosa que se afigure, tem a fragilidade do barro.

Sampaio Bruno, no Encoberto, vem interpretar a acção profética de António Vieira como uma manobra política ao serviço da Companhia. Isto não surpreende no mais alto representante do ciclo do povo e do iluminismo maçónico. Bruno é ainda um adversário do socialismo, mas acredita que a humanidade, dividida pelo mal, se movimenta espontaneamente para o uno, para o “homogéneo inicial”, conduzido por um obscuro instinto fraterno. Mais certo no seu juízo foi Fernando Pessoa reconhecendo a sinceridade visionária do grande jesuíta. A Clavis Prophetaram e a História do Futuro são a expressão de uma “alma verídica”. Nas condições do ciclo em que vivia não era possível, como o não foi a Bandarra, nem ao próprio Camões, na medida em que pretenderam iluminar de “forma e de visão” os políticos (a mediocridade de um D. João IV ou dos ministros de Afonso VI), imaginar a redenção da Pátria fora da égide do Catolicismo.

António Vieira representa assim a última tentativa grandiosa e verídica de fixar o tempo no ciclo sacerdotal. Estudioso de Kabbalah, a sua cabala política foi, na verdade, um insucesso. Viajou muito e viu “no céu amplo do desejo” realizada afinal a sentença bíblica: “Sicut credidisti, sic fiat tibo”, que tão lucidamente soube comentar.

 

António Telmo

 

 

(Publicado em História Secreta de Portugal, 1977)

 

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