INÉDITOS. 46
O estudo do espólio de António Telmo permitiu já identificar o propósito do filósofo de, na segunda metade da década de 90, escrever um novo estudo sobre Camões, face ao silêncio -- ao sacer esto -- que, com a excepção honrosíssima de Agostinho da Silva, se havia abatido sobre o Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões. Dessa tentativa chegaram até nós algumas páginas que vão integrar Luís de Camões seguido de Páginas Autobiográficas, III Volume das Obras Completas de António Telmo, a sair a lume em Junho próximo, com a chancela da Zéfiro. É uma dessas páginas que agora antecipamos aos nossos leitores. O diálogo admirativo que o filósofo então mantém com a obra, ao tempo acabada de sair, de Moisés Espírito Santo, Os Mouros Fatimidas e as Aparições de Fátima, não tem apenas o mérito de nos permitir situar cronologicamente estes textos camoninos e todos os mais que integram o respectivo caderno manuscrito. Mostram também um livre-pensador religioso aberto ao diálogo com tendências de pensamento que não são exactamente as suas, e que por certo escapam àquele cânone pretensamente ortodoxo que certas correntes reaccionárias, abusivamente propensas à associação com o movimento da Escola Portuense, pretendem impor. A este propósito, verificamos com satisfação que a publicação da obra, incluindo a inédita, de António Telmo vem causando notório e perplexo incómodo a algumas pessoas, que julgavam poder transportar o seu pensamento a um qualquer redil doméstico. Estamos em crer que isto é saudável, porque nos mostra uma obra viva e vivaz, merecendo por isso a maior atenção. Fora das nossas preocupações ficará apenas a grosseria epigonal do insulto que se surpreende num ou noutro daqueles que não querem ver.
Sobre o Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões[1]
Eu compreendo o silêncio que se fez à volta do meu livro Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões. É certo que houve uma excepção, a do homem mais inteligente do Portugal de então, o celebrado e célebre e inspirado Agostinho da Silva num breve escrito publicado logo após a saída do livro num jornal da tarde e mais tarde recolhido em Considerações e em Obras Completas simultaneamente. Como poderia dar na cabeça de alguém a ideia de fazer do catolicíssimo Camões um persa da linhagem espiritual de Zaratustra e de Mani?
Todavia, assim é, sem prejuízo da tese de Fiama Hasse Pais Brandão que faz dele um cabalista ou da tese de Sampaio Bruno que o associa a Dante como um “Fiel de Amor”. É que, como já ensinava o filósofo do Encoberto, da Pérsia descem as três correntes da gnose hebraica, da gnose cristã e da gnose shiita (que não devem confundir-se com os três fanatismos que são o talmudismo, o catolicismo e o islamismo), correntes essas vindas das altas montanhas e que confluem em Portugal formando um lago onde, como na Ilha do Amor, vogam os cisnes de Vénus. Um livro recente, Fátima e os Fatimidas[2] de Moisés Espírito Santo mostra como em Portugal, com as chamadas invasões árabes, se instalou a gnose shiita no seu aspecto popular. Os sefarditas portugueses [foram] uma implantação que ficou guardada pelos Templários acusados de cumplicidade com a mesma gnose por influência dos ismaelitas do velho da montanha. A gnose cristã dominou desde o século IV por meio de Prisciliano. Há ainda no Algarve Ibn Ramana [a] que[m] Asín Palacios assinala a afinidade com Prisciliano.
António Telmo
[1] Título da responsabilidade do editor.
[2] Rigorosamente, o título do livro de Moisés Espírito Santo a que António Telmo se refere é Os Mouros Fatimidas e as Aparições de Fátima. A primeira edição, com a chancela do Instituto de Sociologia e Etnologia das Religiões da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, data de 1995. A referência a este livro permite situar cronologicamente os diversos escritos do caderno de onde o presente texto provém.