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VOZ PASSIVA. 140

09-01-2024 15:25

De Miguel Real, publicamos hoje a sua recensão do livro A Glória da Invenção. Uma Aproximação ao Pensamento Iniciático de António Telmo, de Pedro Martins e Risoleta C. Pinto Pedro, recentemente dado à estampa no número 353, de 13 de Dezembro, do jornal portuense As Artes Entre as Letras.  


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António Telmo

Descida aos infernos

Miguel Real

 

De um modo genérico, o topos literário da “descida aos infernos” ou catábase foi vivenciado  por três autores portugueses no século XX não presentes no importante artigo de A. Rosado Fernandes, “Catábase ou a descida aos infernos” (Coimbra, Humanitas, vol. XLV, 1993): António Telmo (1927-2010), que a pensou; José Régio (1901-1969), que, com uma vida regular em Portalegre, apenas a dramatizou em duas peças de teatro, Jacob e o Anjo e Benilde ou a Virgem Mãe, e Luís Pacheco (1925-2008), que a experimentou em vida (cf. António Cândido Franco, O firmamento é negro e não azul. A Vida de Luiz Pacheco, Lisboa, Quetzal, 2023, cp. 12); do ponto de vista coletivo, ou de grupo, Orpheu, revista de 1915 que tinha por projeto extrair a Arte do inferno (a vida normal republicana e positivista), Fernando Pessoa, o próprio, esotérico, que teorizou e poetizou a “descida aos infernos”, e Mário de Sá-Carneiro que a viveu em Paris, suicidando-se.

Vem esta brevíssima introdução a propósito da publicação de A Glória da Invenção. Uma Aproximação ao Pensamento Iniciático de António Telmo (2023, Sintra, Zéfiro Ed.), de Pedro Martins e Risoleta C. Pinto Pedro, ambos fundadores e mentores do “Projeto António Telmo”, consultável na Internet. Uma palavra de louvor para a perseverança, a disciplina e o rigor entusiasmante de Pedro Martins, que, após a morte de Telmo, deitou mão ao seu espólio e tem vindo a publicar na Zéfiro a sua Obra Completa, indo já em dez volumes. Para falar verdade, não fosse a ousadia de Pedro Martins, António Telmo estaria hoje duplamente morto (desculpem a brutalidade da frase): estaria morto o seu corpo e estaria morto o seu espírito vazado nos livros que publicara desde 1963, data do seu primeiro livro, o dificílimo e extraordinariamente heterodoxo Arte Poética. Com o livro ora publicado, Telmo pode repousar em paz, passou doravante a ter um livro sintético do seu pensamento e da sua obra. Certamente que durante muitos anos não será publicada outra interpretação sintética do seu pensamento tão perfeita como esta. Em 2015, Pedro Martins lançara Um António Telmo. Marranismo, Kabbalah e Maçonaria (Zéfiro Ed.), onde se sublinha o primeiro capítulo, “Teoria do Marranismo”, mas, sem dúvida, Glória de Invenção supera-o. O ideal seria o leitor ler os dois livros para poder mergulhar profundamente na obra de A. Telmo.

Com efeito, a catábase ou a descida aos infernos permite a Telmo evidenciar a experiência mais profunda do sagrado, dos seus rituais propiciatórios e dos seus diversos planos: a religião, a magia, o gnosticismo, a cabala e o misticismo.

Telmo recusa a separação dicotómica e até contraditória entre Razão e Poesia que o Ocidente proclama desde o Renascimento, e, usando de uma dialética superior, engloba a poesia na própria razão e, ao modo de Paul Ricoeur (A Metáfora Viva, 1975), valoriza a metáfora como síntese de ambos os planos de conhecimento: “a metáfora garante a mediação entre a experiência iniciática e a sua expressão literária ou filosófica” (p. 32). Num plano superior, pensar é, assim, pensar por metáforas e não segundo uma lógica dedutiva ou indutiva. A esta dupla divisão civilizacional, Telmo acrescenta uma outra, constitutivamente portuguesa: a divisão entre um fundo cultural judaico e a afirmação cristã, o marranismo. Para Telmo, “o Marrano é o ser dividido entre dois credos: o antigo [judaico], de súbito interdito aos ancestros; e o novo [cristão], que lhe foi imposto [por D. Manuel I] de modo abrupto” (p. 31). Neste sentido, um vago judaísmo permanece no subconsciente cultural e religioso dos portugueses, e pensar é quebrar a barreira cristã do consciente e fundi-la com o antigo judaísmo. Este processo é o que Telmo designa por Filosofia (cultural), não a concebendo senão como um processo operacional que provoca efeitos comportamentais no filósofo, uma espécie de metanoia transformadora (“uma transmutação interior”, p. 37) para um caminho ético de perfeição. Este é, como o leitor já adivinha, um processo gnóstico, que, além de exigir rituais específicos (Maçonaria), exige igualmente o antigo conhecimento da Cabala (a Tradição) judaica (cf. Filosofia e Kabbalah, Zéfiro, 2013). Como escrevem os autores, o que Telmo propõe é, de certo modo, “é um comércio estreito e fecundo entre a via da filosofia clássica e a tradição iniciática” (p. 37). É justamente o que Telmo faz, apresentando a história de Portugal em “três ciclos”: ciclo Heroico ou dos Reis, ciclo do Clero e ciclo do Povo (cf. desenvolvimento em Horóscopo de Portugal, Zéfiro, 2017), bem como, aplicando a metáfora, numa análise ao Mosteiro dos Jerónimos, como templo iniciático da viagem do Gama à Índia: Jerónimos, os Lusíadas em pedra; os Lusíadas, os Jerónimos em livro, uma ideia fabulosa de Telmo que já está gravada a letras de ouro na cultura portuguesa.

Ora a “glória da invenção” consiste, justamente, … não, não dizemos, reenviamos o leitor para a pág. 43, lá está tudo esclarecido.

Porém, A Glória da Invenção possui outro supremo atrativo: os 10 sonetos intercalados no texto e escritos por Risoleta Pinto Pedro, que, obedecendo ao espírito da Arte Poética de Telmo, criadora de metáforas, faz a união, melhor, a ponte entre a poesia e a filosofia. A filosofia de Telmo sintetizado em 10 sonetos, cumprindo a tradicional função desta forma poética, eminentemente lírica, inventada no Renascimento para cantar o Amor, o que une, enlaça, o que funde, praticado por Camões, Bocage, Antero, Florbela e tantos outros mais. São composições delicadas, não improvisadas, muito menos espontâneas, cada palavra escolhida com uma pinça, porventura substituída uma e outra vez para criar a adequação ao todo do soneto, diligenciando nos dois primeiros quartetos o leito formal do rio donde correrá a conclusão como rápidos perturbadores e agitadores das águas os dois tercetos finais. Se o texto em prosa revela a grande sabedoria télmica de Pedro Martins, os 10 sonetos de Risoleta espelham a beleza do livro

Em conclusão, António Telmo é aqui apresentado como o grande pensador português do Hermetismo pós-25 de Abril, prosseguindo o caminho iniciado no século XX pelo portuense Sampaio Bruno e pelo lisboeta Fernando Pessoa.

 
 

VOZ PASSIVA. 139

09-01-2024 15:06

Publicamos hoje o artigo com que Risoleta C. Pinto Pedro colaborou no mais recente número de Praça Velha, da Guarda, revista cultural editada pela edilidade local. A sessão de lançamento deste número, já o 45, em que a hermenêutica de António Telmo surge em destaque, teve lugar no Museu da Guarda, no passado dia 23 de Novembro, com a apresentação a cargo do Arcipreste da Guarda e Manteigas, o Reverendíssimo Pároco Doutor Henrique Manuel Rodrigues dos Santos. 

 

A Literatura Galaico-Portuguesa enquanto cifra de um património imaterial oculto*

Risoleta C. Pinto Pedro

 

RESUMO

Pretende-se, com este texto, chamar a atenção para a origem imaterial do nosso património e território, origem de que a primeva poesia nacional conhecida como cantigas d’amigo dá testemunho, através de sinais escritos e sonoros apenas apercebidos por uma subtil hermenêutica alinhada com o mistério, e na senda da tradição iniciática de que o filósofo António Telmo é voz eminente.

Assim, sentimo-nos tentados a afirmar que os cancioneiros onde estão registadas as cifradas notações musicais e poéticas das cantigas galaico-portuguesas, estão, para essas músicas cantadas, como o território está para a nação, esta para a língua, e a língua para o génio nacional, que é poético e é a origem deste desejo de ser, de nascer e de criar.

 

Actualmente já se começa a encarar com a mesma importância do material, o património imaterial, mas… e a história? Quando começa uma nação? Apenas quando adquire um território? Não será assim, pois sabemos da existência de nações sem território, como é o caso dos curdos. No nosso caso, quando começou a nação? Segundo alguns, antes, muito antes do território, o qual teria sido apenas a materialização de um desejo colectivo revelado pelo surgimento de uma língua, que já existia enquanto potência ainda antes dos sons. Segundo Platão, as ideias precedem as coisas. Numa certa concepção da Língua que se situa nesta ordem de ideias, alguns autores e pensadores da língua portuguesa ligados a uma filosofia nacional e a uma teoria da língua não alinhada com as concepções materialistas, defendem que antes do povo e do território já existia a língua, de modo que não podemos afirmar que seja o latim a origem da nossa, mas que terá sido uma ferramenta para a língua portuguesa se ir materializando em som e imagem e assim evoluindo, uma espécie de enraizamento indispensável à existência nesta dimensão. Assim, estando para além do tempo e do espaço, difícil não lhe é voar sobre tempo e espaço e corporizar-se em odores, ritmos e melodias sem deixar de ser a Língua, dado que a essência não é corruptível, pois não está acessível à corrupção. Como tal, sinto-me à vontade para falar de poesia e de música, inserindo-as numa temática sobre história e património, uma vez que a nossa poesia começou como música, e que António Telmo, ilustre conterrâneo desta nobre revista, pois natural de Almeida e uma das figuras de eleição da região, foi um importante estudioso, hermeneuta e investigador das origens simbólicas da nossa literatura primeva, os cancioneiros galaico-portugueses.

Assim, tratarei da literatura galaico-portuguesa enquanto cifra do carácter iniciático de uma nação, ou da «ondulação das letras da doçura». O que passarei a explicar.

Uma hermenêutica não condicionada é indispensável para compreender o modo como nasceu a literatura portuguesa. Se algumas explicações têm sido, do ponto de vista académico, relativamente consensuais, como o facto de esta poesia, normalmente designada como poesia galaico-portuguesa, ter como base, ora cânticos religiosos, ora de trabalho, algumas das suas características passam completamente ao lado quer de uma, quer de outra explicação. Não significa que tenhamos de as pôr de lado, mas a sua abrangência não é total. Alguns hermeneutas têm-se debruçado sobre elas, trazendo à luz, não a explicação, mas o mistério. O que é o princípio da clareza, para cuja compreensão é sempre necessário partir da obscuridade. Isto significa que esta poesia vela mais do que revela. Toda a poesia (e a criação em geral, sendo-o verdadeiramente, pela sua natureza equívoca, geradora de significados múltiplos), é terreno propício à ocultação, a única que permite o verdadeiro ver, mais no sentido de descortinar. Ver, não como exercício de captação de imagem exterior e nítida, mas da imaginação do que se encontra escondido. É desse destreinado, desprezado e oculto “sentido” que necessitamos, para conseguirmos ler, como hermeneutas, o importante património que é a nossa literatura tradicional. Como veremos.

A poesia trovadoresca medieval, apresentando uma vertente satírica, outra amorosa, ora se aproxima, ora se afasta da arte poética provençal. É autóctone a que se apresenta mais musical, a mais rítmica, a mais repetitiva ou paralelística, como se costuma designar. De todas, são as cantigas d’amigo, as que são postas na boca de uma mulher, que mais se articulam com esta categoria, mas também entre as de amor (assim são designadas as do amor masculino) podemos encontrar as de influência autóctone, ou opostamente, as de estrutura mais reflexiva e quase argumentativa, próximas da arte provençal. O mesmo se passa com as satíricas. Mas é nas de amigo que queremos demorar-nos, por serem, apesar de aparentemente mais populares e simples, as mais misteriosas, as que vão requisitar, para a sua hermenêutica, o exercício do tal “sentido” de que falávamos atrás.

Pela musicalidade aproximam-nos do jogo e do prazer, mas se a sua génese se encontra na música, pois na realidade foram compostas para serem tocadas, cantadas e dançadas, e isso pode ser comprovado pelas partituras encontradas nos pergaminhos Vindel e Sharrer, preciosos registos patrimoniais cujas ilustrações acompanham este trabalho, outra dimensão nos arrasta para um nível que exige de nós pensamento profundo, interrogação e espanto. Essa dimensão é a da irregularidade, a do paradoxo e a da metáfora, quando esta nos surpreende mais do que esperaríamos. Os hermeneutas do mistério, sendo algumas destas vozes da filosofia portuguesa, alertam-nos para a importância destes sinais de irregularidade, como um dedo que aponta. Porque existe um ocultar, um cifrar, tem de existir um re-velar, isto é, um duplo ocultar que seja um factor de perplexidade e atenção.

Camões viria a chamar essa mesma atenção para o exercício do amor como uma transformação, e estas cantigas que outra coisa não são, senão de amor, veremos de que tipo, são o transporte do leitor de uma dimensão para outra, de uma leitura literal para a hermenêutica de um objecto artístico, e novamente o afirmo, cifrado. Arte oculta tendo como chave a metáfora. Chave que não abre, mas cria no leitor o desejo de entrar. Este desejo não pode ser satisfeito, mas a luz da chave aponta uma janela, um cortinado, uma luz velada, um vulto, uma névoa, um movimento, um som, uma música, um labirinto.

Talvez por isso tenha sido este o título escolhido por Fiama Hasse Pais Brandão para o seu livro O Labirinto Camoniano e outros Labirintos, onde recolhe artigos vários em que vai transmitindo a sua pesquisa sobre Camões, embora tenha estudado, na mesma perspectiva, outros autores, como Rodrigues Lobo e António Ferreira, bem como os romances pastoris, apoiando-se na sua própria investigação, mas também na de «homens verdadeiramente curiosos e investigadores, sobretudo do século passado [XIX]» (1), e que ainda assim não conseguiram «endireitar de vez as extraordinárias distorções ou omissões que se repetem ainda hoje» (1), sendo uma das maiores ameaças ao património, a qualquer património, a repetição banalizada de visões distorcidas, ainda que oficializadas, que espalham e querem fazer passar por verdade, o que o não é ou será apenas uma parte muito superficial. É esta visão do labirinto que Fiama apresenta sobre a obra de Camões, o que António Telmo igualmente faz, recuando também até às cantigas de amigo. Uma poeta e um filósofo, a união quase perfeita. No entanto, ainda que idóneos e esforçados, não foram ainda suficientes, porque os dicionários e outras importantes publicações e vozes do sistema se lhes têm fechado. E, como se não bastasse, por vezes vilipendiado. Muito pouco universal se tem mostrado a Universidade. Nem todos têm a coragem de percorrer o labirinto das interrogações, mais fácil lhes é seguir o trilho do engano com roupagens sistémicas e falsamente académicas de certeza.

Acompanhemos, então, um pouco da investigação sobre o segredo e a cifra nas cantigas de amigo, elaborada por António Telmo e presente em mais do que uma das suas obras.

Como muito bem explica, tudo se prende com uma doutrina secreta «que vem de longe (pelo menos desde a fundação da nacionalidade), cujo momento fundamental e decisivo se deve situar na queda dos Templários» (2), que continuaram a existir a coberto da Ordem de Cristo, em Portugal, onde estaria a verdadeira e oculta sede. Esta realidade, impossível pela sua natureza, de ser encontrada em documentos, só em palavras cobertas como é a linguagem do manuelino ou a poesia dos trovadores, poderia ser desvelada. Como na de outros poetas, tais como Rodrigues Lobo e Camões, considerado este o último fiel do amor, essa requintada e oculta ordem de cavalaria.

Se falámos há pouco da dificuldade em encontrar sinais de confirmação em documentos, uma excepção existe. Trata-se, paradoxalmente, das declarações aos inquisidores, nomeadamente de um Frei João da Ordem de S. Bento, que segundo António Telmo, terá fornecido informações sobre aspectos e objectos do rito e das vestes dos neófitos e dos iniciados. Os mesmos que vão ser encontrados repetidamente nas cantigas de amigo, com os temas da camisa e da corda:

«Fez-me tirar a corda da camisa»

«E vai lavar camisas/Eno alto»

«Quando eu vi esta cinta que ele me deixou/ Chorando com gran coita, e me lembrou/ a corda da camisa»

Considera o hermeneuta, com toda a justeza, que a repetição quase obsessiva de temas não se prende com falta de imaginação, mas com o apontar para determinadas cifras, assim lhes descortinando um sentido. É o caso da impressionante semelhança, quase a rondar o plágio, entre a cantiga de D. Dinis “Levantou-se a velida” e a de Pero Meogo “Levantou-se a louçana”.

Isso voltará a acontecer no Renascimento, e não é difícil encontrar o mesmo tipo de semelhança entre poemas de Camões e de Petrarca, como tive oportunidade, há anos, de comparar. A tese da primitividade do momento literário ou da falta de imaginação criadora atribuída ao momento trovadoresco de que falávamos, ainda mais difícil seria de aceitar aqui.

Tenhamos em mente o poema de D. Dinis “Ai flores, ai flores do verde pino”, sobre o qual António Telmo afirma que «o refrão é para ser ouvido cantado pelo coro de anjos no grande silêncio do mundo». 

Recordemos o refrão «Ai Deus, e u é?» e assinalemos esta marca acima distinguida, do cantar. Por isso são cantigas.  A arte de trovar medieval em seus versos desvendando «até ao íntimo dos íntimos».

O texto que acompanha o Cancioneiro da Biblioteca Nacional (3) é uma Arte de Trovar e nele se fala em coplas ou cobras, que são as estrofes. Copla é a abreviatura de cópula, e entre os vários significados, apresenta o seguinte:

«Tudo o que serve para ligar, cadeia, corrente, encadeamento, sucessão de palavras.»

Isto leva-nos a recordar as citações, acima contidas, sobre a corda.

Mas a corda também é capaz do movimento serpentino da cobra, a qual, por sua vez, se encontra ligada à ideia de encadeamento, sucessão de palavras.

Este encadeamento podemos encontrá-lo não só nos vários significados, mas dentro do mesmo poema; também de poema para poema e de poeta para poeta. Uma espécie de Ouroboros. Basta pensarmos no poema de D. Dinis e no do galego Aira Nunes de Santiago “Bailemos”.

António Telmo chama a atenção para a importância do «equívoco», na Arte de Trovar, entre «cobra [colúbra], o animal ondulante» e «cobra [copúla], forma versejada».

Este equívoco, a que António Telmo, enquanto personagem Thomé num magnífico diálogo entre Thomé e Nathan (4) chama «confusão» derivada das cantigas de amigo paralelísticas, é mais do que uma questão de linguística, trata-se de uma questão filológica, a única que poderá aproximar-nos «do verdadeiro motivo por que o processo de desenvolvimento verbal de uma forma poética foi associado ao movimento próprio das serpentes» (4).

Essas que silvam, assim acompanhando, acrescento eu, do seu silvado som, a dança sinuosa e sibilina do movimento paralelístico das palavras, dos versos, da música e dos corpos na dança.

O filósofo vai discorrer sobre isto em termos profundos e complexos que aqui não cabem, e por isso remeto para a leitura dos “Diálogos de Thomé e Nathan”, na página 83 das “Congeminações de um Neopitagórico” (4).

Neste diálogo ele cita, a propósito do tema, o belga Charles-André Gilis:

«A fluidez relativa dos sons e das letras é fundamental na pronunciação das fórmulas sagradas. Não acontece seguramente por acaso que as três letras Alif, Wâw e Yâ, que são entre todas as mais fluidas, revistam no esoterismo islâmico uma função axial, […] as letras da doçura e da misericórdia. Observa-se também que a qualidade sensível ao éter é o som e que, segundo Kanade, o som é propagado por ondulações, vaga após vaga, ou onda após onda».

Letra após letra, verso após verso.

Fazendo o paralelismo destas «letras de doçura e de misericórdia» com o refrão do nosso cantar «Ai Deus y u é?», pretende assim, para além da sugestão da «forma ondulada» destas cantigas como o «deslizar da cobra que é como o do som, propagando-se pelo éter vaga após vaga, onda após onda», ir mais além e mostrar, nos diálogos, que a própria «terminação em é das fórmulas de invocação divina é uma constante nos ritos dos homens antigos. Lembra-te de Evoé. O próprio nome de Deus termina, na língua dos meus pais [Nathan é judeu], pela mesma vogal I H V H (y é u é). Podes ver que o y u é de D. Dinis lembra estranhamente o santo nome de Deus ao qual faltasse uma letra, precisamente o primeiro é. Não corresponderá esse vazio à saudade do Amigo, por que o coro brada?».

Genial. Se non è vero è ben trovato.

Afirma o mesmo Nathan, o judeu, a Thomé, o cristão, ambos facetas ou polaridades da alma de António Telmo, que pretende este estar «ensaiando um caminho sinuoso que nos leve a ver em D. Dinis e, através dele, na poesia dos trovadores medievais a expressão dissimulada de qualquer coisa como a gnose dos primeiros cristãos dissidentes de Roma, entre os quais os cátaros ou os albigenses». Caminho em que não é seguido por Nathan, porque «olhando em volta, podemos dizer que, hoje, assistimos ao triunfo do que havia de pior na doutrina e na prática das primeiras seitas gnósticas».

Ao que responde Thomé, reabilitando a serpente, com o auxílio de Dalila Pereira da Costa, que vê nela o «animal imortal, sábio e oracular». Também a ideia de regeneração, pela renovação periódica da pele, está associada à serpente. Fernando Pessoa associa-a à «Grande Obra». Finalmente, com Eva, a indicação do «caminho da liberdade e da sabedoria pelo conhecimento do bem e do mal».

Prolonga-se, mas não se detém Nathan na sinuosidade destas incursões, regressando ao dedilhar das «dezasseis cordas do canto de D. Dinis que porei a vibrar nos teus ouvidos com as cordas do alaúde. Como compreenderás, falando em cordas, não me afasto muito da tua teoria que vê cobras nas coplas».

Nestes termos, continua analisando, símbolo a símbolo, o cantar do rei, enquanto cifra de uma ordem iniciática, relação de que, embora não seja central para o nosso tema, recomendo a leitura, até pela sua aproximação metafísica bem estruturada e bem documentada, a Dante e a Camões.

De toda a sua exemplificação, retiro que «o bailado é um rito», e a propósito disto não podemos esquecer as bailias. Por outro lado, neste rito «só era qualificado quem amasse amigo», que nesta sinuosa cadeia de associações seria o «daimon», o «amigo da sua alma», no sentido que lhe era atribuído pelos antigos. Assim, há que ler este amigo das cantigas medievais, de um modo mais metafórico e menos literal que aquele comummente tomado, ou pelo menos há que o ler de modo não exclusivamente literal, e a própria forma, silvada, paralelística, ondulada, encadeada e dançada, participa da cifra que aponta para muito mais além, mais alto e mais profundo. Que não nos contentemos com a pequenez mental.

Por outro lado, é como se esta poesia, pela sua própria estrutura simbólica ondulante, contivesse em si a música, sendo a notação musical uma redundância, dada a sua natureza. O território que regista aquilo cuja existência vai muito mais além.

Espero ter, pelo menos indiciado, com a ajuda de quem mais sabe, que não apenas a nossa literatura nasce com a música, o ritmo e o movimento, mas contém em si tudo isso, pela sua origem sagrada e ritual.

Termino manifestando o desejo de ter desassossegado o leitor, não com certezas, mas com dúvidas que o levem à sua própria investigação e aprofundamento deste tema apaixonante que é a génese, natureza e desígnio da poesia trovadoresca peninsular ou ibérica.

 

Risoleta C. Pinto Pedro

risoletacpintopedro@gmail.com

(Texto redigido segundo a ortografia anterior ao Acordo.)

 

BIBLIOGRAFIA

(1) Hasse Pais Brandão, Fiama. O labirinto camoniano e outros labirintos : temas de literatura e de história portuguesas .  2ª ed.  Lisboa. Teorema. 2007.

(2) Telmo, António. O horóscopo de Portugal e escritos afins. Pref. Eduardo Aroso; org. e notas Pedro Martins; transcrição Diana Vaz Ribeiro, Pedro Martins; fot. Filipe Nobre Gomes, Maria do Céu Costa. - 1ª ed. – Sintra, Zéfiro, 2017. (Volume VII das Obras completas de António Telmo).

(3) [Cancioneiro da Biblioteca Nacional]. [1525-1526]. Cota do exemplar digitalizado: COD-10991.

(4) Telmo, António. “Diálogos de Thomé e Nathan”, “Congeminações de um Neopitagórico”, in A Aventura Maçónica. Pref. de Risoleta C. Pinto Pedro. Org. e notas de Pedro Martins. Sintra, Zéfiro, 2018. (Volume IX das Obras Completas de António Telmo).

 

*Artigo publicado na revista Praça Velha, n.º 45, Câmara Municipal da Guarda, 2023.

DISPERSOS. 21

20-11-2023 11:10

Publicamos hoje um disperso télmico que se encontrava esquecido e omisso da sua bibliografia. Foi expressamente escrito por António Telmo para o catálogo da exposição Souvenir, do seu amigo, o escultor açoriano Carlos Dutra, que esteve patente, de 14 de Julho a 12 de Setembro de 2008, na Biblioteca Pública e Arquivo Regional João José da Graça, na cidade da Horta, de onde Dutra é natural.  

 

 

Carlos Dutra é nome de escultor[1]

 

Carlos Dutra é nome de escultor. O ritmo sonoro de Dutra e de Pedra é o mesmo. Os dois nomes, o do escultor e o da pedra, diferem em especial pelo U de um e pelo E do outro. A vogal U aparece em palavras nocturnas, enquanto que a vogal E vemo-la brilhar em Primavera, em amarelo, em estrela. Carlos indica contenção pelo C, suavidade e movimento pela combinação do R com o L, infinitude pelo S. Carlos Dutra recebeu estes dois nomes em 1959 na ilha do Faial, quando as almas ainda não tinham recuperado do medo causado pelo vulcão dos Capelinhos.

Os Açores são formados por nove grandes pedras envoltas em terra e minério que emergiram à superfície das águas para receberem a luz do Sol e se encherem de vida. A escultura de Carlos Dutra prolonga o mesmo movimento. Vem dele como a onda do mar. Está programada nos seus dois nomes. A pedra arrancada à intimidade da obscura terra brilha agora ao Sol em múltiplas formas, as formas que a bela imaginação do escultor criou para o mundo dos homens.

Esta exposição tem por divisa a palavra souvenirSouvenir é o que vem de baixo, da profundidade da alma à consciência. O traço entre o sous e o venir distingue os dois planos.
Tudo assim se conjuga e harmoniza e é por isso, com estes ritmos na alma, que devemos olhar as múltiplas expressões da pedra que Dutra nos oferece neste lugar. 

 

António Telmo 



[1] Nota do editor – O título é da nossa responsabilidade.

 

EDITORIAL. 31

20-11-2023 10:21

Com 2027 no horizonte

 

O Projecto António Telmo. Vida e Obra completa hoje dez anos de existência.

Nestes dez anos, contribuímos decisivamente para a concretização do projecto das Obras Completas de António Telmo, em curso de publicação na Zéfiro, ao qual temos dado todo o apoio institucional e científico. Após a edição dos dez volumes já disponíveis, compreendendo já, entre éditos e inéditos, grande parte da obra do nosso patrono, será de crer que até 2027, ano do centenário de António Telmo, essa publicação esteja completa.

Por outro lado, com a criação da Colecção Thomé Nathanael – Estudos Sobre António Telmo, igualmente editada pela Zéfiro, e na qual foram já publicados três títulos, temos propiciado o estudo da vida, da obra e do pensamento do filósofo da razão poética.

De resto, o mais recente título desta colecção, A Glória da Invenção – Uma aproximação ao pensamento iniciático de António Telmo, de Pedro Martins e Risleta C. Pinto Pedro, conheceu no passado sábado o seu quarto lançamento, que teve lugar no Museu Berardo Estremoz, numa sessão promovida pelo Projecto em parceria com a edilidade estremocense e que contemplou ainda uma mesa-redonda sobre a presença marcante e duradoura que foi a de António Telmo na cidade de Estremoz, congregando os seus amigos nesta cidade, à semelhança do que em 7 de Outubro último já acontecera no Convento dos Remédios, em Évora. Seguir-se-á, seguramente, uma ida ao Redondo, no primeiro trimestre de 2024. O Projecto está de novo na estrada.

A pouco mais de três anos do centenário de António Telmo, novos e aliciantes projectos se perspectivam. Procuraremos dar-lhes corpo, com o total apoio e o estímulo inexcedível que sempre temos recebido da família do filósofo, a quem saudamos e expressamos a nossa gratidão, na pessoa de Maria Antónia Vitorino.  

 

ERRATA. 01

16-11-2023 15:14

Recebemos de Carlos de Almeida Roque um pedido de correcção da nota biográfica de seu pai, Ernâni Roque, com que, em Correspondência. 35, de 20 de Janeiro de 2017, havíamos introduzido o leitor à publicação da sua correspondência para António Telmo, de quem foi amigo muito próximo.

Cabe-nos publicamente agradecer a Carlos de Almeida Roque a chamada de atenção para as incorrecções que ali existiam e apresentar-lhe as nossas desculpas pelo sucedido.

O texto, na sua versão corrigido, já se encontra publicado e pode ser lido AQUI.

 

VOZ PASSIVA. 138

06-11-2023 16:51

Guerra Junqueiro na visão de Pinharanda Gomes, José Marinho e António Telmo

Eduardo Aroso

 

Tua carne de fluidos e metais

É a carne-embrião do mundo todo,

Das águas e das rochas e do lodo,

Que foram nossas mães e nossos pais!

Por isso lanças para nós teu grito,

Por isso voam para nós teus ais!

 

Oração à Luz

 

No ano em que se comemora o centenário de Guerra Junqueiro (1850-1923) e o mainstream nacional pouco ou nada se importa com isso, só um punhado de portugueses ainda o sente como um (a par de Pascoaes), dos últimos poetas da natureza, se apenas nos quisermos situar neste seu timbre. Das suas facetas pouco conhecidas, do que hoje se chama científico, mesmo de insólito e de outro género, deixo para aqueles que bem se adentram nesses campos, tal é o caso do Prof. Joaquim Fernandes. Por isso louvemos, na admiração ao poeta, também os que se esforçam por recordar aquele que, de Freixo de Espada à Cinta, tinha sempre a sua pena em riste quando exprimia o seu republicanismo de veia portuguesa, ou a pena como puro arado, ou círio ardente, quando escrevia, por exemplo, Oração ao Pão e Oração à Luz. Odes onde a narrativa nunca deixa cair ou esmorecer a exaltação da poesia, versos em que as forças naturais parecem conjugar-se para que o poeta as desoculte e as cante. Junqueiro assim no-las mostra, em carne viva, na dureza da rocha que é sentida como anjo que um dia há-de ser, mas ainda petrificado, ou na seiva de uma planta que não é tão distante do sangue da águia que cruza os céus. O poema só não é pagão no melhor sentido do termo (dir-se-ia aquele incarnado por Pessoa), porque é repassado da nossa tradição hebraico-cristã. Poema onde qualquer inerte ou não inerte pode ser altar, na aparente rudeza do chão e o gorjeio de uma ave lançada como hossana, tudo repassado cosmologicamente pela mão do Criador.   

Quando se diz de Junqueiro, a par de Pascoaes, ser dos últimos poetas da natureza, trata-se da natureza que é invocada e responde, ao invés dos poetas que, muito embora o sejam de boa estirpe, a evocam ou simplesmente a fotografam, num acto compulsivo característico de uma época de turistas sempre de máquina na mão, pelo que, nessa ânsia, não se demoram o tempo mínimo para sequer nela se concentrarem e senti-la.

No texto introdutório de Oração ao Pão, Oração à Luz (magnífica edição gráfica da Lello Editores, 1997), Pinharanda Gomes (1939-2019), numa apreciação global do poeta, fala-nos do seu proverbial anticlericalismo (ou talvez não) perante «intelectuais católicos que se limitaram a assumir o pré-conceito face a Junqueiro e se lhe encomiam a obra poética, lhe limitaram o mérito por causa das arremetidas do seu espiritualismo combativo». Considerando a sociedade daquele tempo, parece ter sido necessário tanta arremetida, pois acrescenta ainda Pinharanda: «Viveram-se dias difíceis, em que os cristãos, e de modo especial o clero, se orientaram não tanto para os desafios sacrificiais da Escritura, mas para as promessas e estratégias do Ministério do Reino e do Ministério da Justiça e dos Negócios Eclesiásticos». Na verdade, o gume que há na pena junqueirina é tão-só o ímpeto «para acordar a santidade adormecida dos crentes e dos seus pastores». No que diz respeito sobretudo em Oração ao Pão, Oração à Luz, «Junqueiro é um criador de oração e, diremos, um promotor da poesia para a oração, para uma poesia assumida de modo querigmático e de alcance soteriológico». E se mais nos adiantássemos logo veríamos que, por exemplo, em Os Simples, para além da moldura rústica que os preenche, repassa-os dir-se-ia um cristianismo franciscano, de vidas singelas, naquele jeito comovedor com que Eça de Queiroz finaliza o seu genial conto O Suave Milagre, quando a criança inocente, doente, «erguendo as suas pobres mãozinhas que tremiam e embrulhada em negros trapos» pede à mãe, desgrenhada, para ver Jesus e este, «abrindo devagar a porta e sorrindo» diz: «aqui estou».

José Marinho (1904-1975) também não ficou indiferente a Junqueiro. Num dos seus escritos sobre o poeta, diz-nos que: «o íntimo pensamento de Junqueiro exprime-se num contraste que, de diversos modos, caracteriza outros homens representativos do seu, do nosso e de outro tempo». Esta simples afirmação faz-nos ver de imediato o contraste que há, por exemplo, em A Velhice do Padre Eterno e Oração ao Pão, Oração à Luz. Para Marinho, na compreensão dos poemas de Junqueiro há que atentar «onde existe a presença intencional do poeta e naqueles onde essa presença intencional não existe». Desocultando a sua poesia, continua: «é muito difícil escrever hoje sobre Guerra Junqueiro como sobre os homens verdadeiramente grandes do nosso país. O grande torna-se pequeno na falsa perspectiva do juízo dos medíocres. E onde a mediocridade se faz juízo e crítica não há perdão para a grandeza. Tem esta de ser medida por baixo estalão. (…) Nós devemos agradecer a Junqueiro ter levado ao limite a sátira contra o catolicismo e contra as formas degradadas da vida religiosa» e até como ele «desmentiu os seus veementes sarcasmos da juventude. Devemos agradecer-lho porque os livros sagrados frisam bastante explicitamente a necessidade de o catolicismo entrar de vez em quando em purgação. (…) Sem dúvida, a mais profunda tradição de Junqueiro vai passar para Teixeira de Pascoaes». José Marinho lançou esta sentença de vera tradição, a que corre nas veias da filosofia portuguesa, neste caso tradição poética. Afirmação de tal ordem certeira que figuras destacadas do pensamento português da segunda metade do século XX se ocuparam profundamente da linha poética aurífera do poeta do Marão.

 António Telmo (1927-2010), voltou mais a sua atenção para Régio, Pascoaes e Pessoa, não esquecendo um Eugénio de Castro ou até um Carlos Queirós. Mesmo assim, na obra Viagem a Granada, o filósofo de Razão Poética como que irmana Sampaio Bruno e Junqueiro como pedras-angulares do século XX. Ouçamo-lo: «Sampaio Bruno e Guerra Junqueiro representam, de facto, o binómio que, por irradiação, virá formar, no século XX, o hexagrama central do pensamento português, no diálogo sucessivamente renovado com a poesia. Leonardo Coimbra e Teixeira de Pascoaes, José Marinho e Fernando Pessoa, Álvaro Ribeiro e José Régio não teriam podido ser o que foram sem o fulgor nascido do encontro daqueles dois». Acrescenta que neles (em Bruno e Junqueiro), «está a força propulsora, pela fascinação da Ideia, do criacionismo, do saudosismo e do futurismo que marcaram a doutrinação dos que se lhe seguiram, por vários modos trazendo ao domínio do pensamento a religião da Pátria».

Em História Secreta de Portugal (a ler e reler), capítulo VIII, António Telmo, tratando da ocultação da natureza como «um dos fenómenos mais significativos do fim de um ciclo» fala-nos do moderno «sentimento fotográfico da paisagem» incarnado por Alberto Caeiro que «parece ter pretendido, entre outras coisas, resgatar a natureza de um romantismo que a personifica e macula de alma e sentimento». Diz Telmo que em Caeiro «a revelação é imediata sem passagem pelo negativo».  E adverte para «o fascínio da imagem que imobiliza o espírito». A invocação da natureza, com todos os medos e outros obstáculos em Pascoaes «chama e atrai a coisa invocada, mas ao mesmo tempo põe um certo espaço entre ela e quem a invoca, como se as próprias palavras invocatórias, projectando-se, criassem também o lugar da aparição. O poeta está dentro do círculo». (…) Teixeira de Pascoaes é um dos poetas do limiar do tempo, quando o terceiro ciclo da nossa história está prestes a fechar-se. (…) Outros, tão videntes como ele (Guerra Junqueiro, Pessoa, Bruno, Leonardo, Régio), viram a mesma estrela».  

Se Telmo se debruçou essencialmente na obra de Pascoaes, no legado de Junqueiro apontado por Marinho, o filósofo de Estremoz parece ter lançado luz sobre dois poetas da natureza de linhas diferentes, Pascoaes e Caeiro, ao mesmo tempo que nos mostra por uma subtil hermenêutica que a tradição que Pascoaes ainda incarna, parece ter ficado em suspenso. Suspensão, intervalo ou interregno como o Portugal por cumprir? Poderíamos apontar outros dois ou três grandes poetas do século XX, próximos também da natureza, que a entrelaçaram e exorbitaram, com imagens de elevada poesia e ritmos pessoais, mas sem aquela ventura e força de alma ungida por um fatum escatológico, que tomam conta do poeta para o que mais importa do transcendente.

 

Outubro de 2023

CORRESPONDÊNCIA. 65

14-10-2023 18:17

Carta de Max Hölzer para António Telmo de 7 de Setembro de 1977 

 

Mon cher António Telmo − [i]

 

Ce temps, après mon retour, a continué d’être identique à tous ces processus dans lesquels vous m’avez bien trouvé engagé – mais ça ne va pas, visiblement, sans certaines difficultés qui consistent, entre autres plus grâves, aussi en « rechutes » de la santé – ainsi que votre lettre m’est parvenue à un moment où je ne pouvais pas vous répondre immédiatement. Je vous en remercie de tout cœur. Et pourquoi ne pas avouer qu’elle était – plutôt est une joie pour moi (et en ce moment, même une certaine  « consolation » éssayait de se répandre en moi…), et surtout que cette compréhension vient de vous. Pardonnez-moi, donc, que je ne vous réponds qu’aujourd’hui, et que ces lignes ne vous joignent qu’après votre retour à Borba. Je dois tracer une ligne nette, moi, entre l’enseignement que je veux transmettre, et un tel « écrit », même « articulé en onze points » : là où nous sommes en générale dans notre travail, tout mélange avec les expressions d’autres courants devait être évité, parce que la connection [sic} ne peut se faire authentiquement à partir de la « source » commune, c’est-à-dire, à partir d’une certaine «réalisation » − qui voit par expérience le sens du courant transmis par G. Si vous trouvez une certaine connexion, si vous, comme vous me dites, avez pu en profiter, j’en suis très content, et tout-à-fait d’accord, mais je ne peux pas attendre le même des autres. Moi, j’en pense, pour moi, comme vous. (Bien entendu, il y a des points dans cet « écrit » qui reflètent très superficiellement et sommairement l’enseignement, qui donnent des « mots » et des concepts seulement, et dans un raccourci indéfensable… : mais c’est un texte « mélangé », pour des lecteurs « mélangés » aussi. Reste un malaise )

Je suis sûr que vous me comprendrez, et je ne veux pas ternir votre « joie » qui se doit à tout ce merveilleux que j’ai cité, que j’essayais d’évoquer – et qui est destiné à vous.

7.9.77



[i] A data vem no final da carta.

 

DOCUMENTA. 10

14-10-2023 17:11

A 21 de Março de 2009 era lançado, com a chancela da editora Serra d´Ossa, na Biblioteca Municipal de Sesimbra, Universalidades, o primeiro número dos Cadernos de Filosofia Extravagante, revista de que António Telmo foi mentor e da qual viriam ainda a sair mais cinco números, dois dos quais com a chancela da editora Zéfiro.

Graças a João Augusto Aldeia, membro do nosso Projecto, é hoje possível publicar, da sua autoria, algumas fotos, que cremos estarem inéditas, desse lançamento e dos momentos que o antecederam.

Paulo Santos, Pedro Martins e António Telmo na Rua Jorge Nunes, em Sesimbra 

António Telmo e António Reis Marques junto à entrada da Biblioteca Municipal de Sesimbra

António Telmo, António Reis Marques e Maria José Albuquerque junto à entrada da Biblioteca Municipal de Sesimbra

António Telmo, Anahi Braia Vitorino e Maria do Resgate Almadanim na Sala Polivalente da Biblioteca Municipal de Sesimbra 

 

VOZ PASSIVA. 137

11-10-2023 10:25

Aproximações ao pensamento poético de António Telmo - notas iniciáticas

Francisco Soares

 

 

 

‘‘language was not a

mere string of words. It had a suggestive power well beyond the immediate

and lexical meaning. Our appreciation of the suggestive magical power of

language was reinforced by the games we played with words through riddles,

proverbs, transpositions of syllables, or through nonsensical but musically arranged words...”

(Ngugi wa Thiong’o, Decolonizing the mind, 1986)

 

 

 

Nota pessoal

António Telmo viveu em Moçâmedes (Namibe), cerca de cinco anos, na primeira infância. Nesses casos é comum que o sol do deserto sul africano fique para sempre dentro da cabeça das crianças. 

Conheci-o pessoalmente em Portugal e nunca falámos disso. O que na sua obra me interessa é a definição de pensamento poético e a consequente Arte Poética - mítica, heterodoxa, cabalística e intimista (numa aceção muito particular). Andando com ela, experimento um caminho diferente do que os meus leitores habitualmente percorrem nestes ensaios. 

Não me interessei nunca por filósofos e poetas que não conheceram nem experimentaram a vida, a surpresa, o desafio de peito aberto ao perigo. Acho que falsificam a vida, logo a verdade. São filósofos de chinelas e poetas de pantufas. Não querem sentir a temperatura sequer. Mas agora me despeço do sátiro. Usarei palavras sérias.

 

Começo pelo jogador, pelo caçador, pela experiência do perigo e do faro. Refiro-me a que António Telmo era jogador exímio (de cartas, snooker e bilhar), a par de caçador intuitivo e doutrinado. Por isso vou seguir atrás dele, eu, minha pessoa, ao mesmo tempo cão e macaco. Porque era António Telmo um notável contista? O que vou ler-vos procura uma resposta. 


Abro parêntesis para uma nota confessional. Entre os pensadores mais elevados do movimento da Filosofia Portuguesa, identifico-me bastante mais com José Marinho, procuro seguir “a via iniciática de olhos bem abertos”. Está na base do anarquismo místico e da monarquia poliglótica esta postura. São duas emanações de que o nosso evocado e invocado me parecia dar nota subtil: anarquismo místico e monarquia poliglótica. Torno minhas as palavras do arqueólogo Manuel Calado: “se tivesse de definir as posições políticas do António Telmo, eu diria que ele foi, sem o assumir, um libertário”. Percebo, talvez mal, que Telmo nunca tenha explicitado isso: era demasiado restritivo para um verdadeiro libertário do pensamento. 

Fecho parêntesis para uma última nota: o texto a seguir é uma continuidade do que fui lendo. Uma prossecução criativa, por um processo de que também falamos adiante. 

 

Arte poética

Também na caça e nas cartas houve silêncios, intuições e mestres (irmãos mais antigos). Aos pés do Mestre as duas colunas do Trono, sendo Leonardo o Trono, Marinho e Álvaro as colunas (porque um se nomeia pelo apelido e outro pelo nome próprio? Não consigo intuir). Álvaro Ribeiro, o aristotélico, e José Marinho, o neoplatónico. 

“Os dois defendiam, porém, o valor da imaginação e da intuição, e ensinavam que o princípio da filosofia é a ideia de Deus.” Experimentada? “A ideia é vivência da qual nenhuma imagem pode ser a alegoria” – diz Telmo que segundo Leonardo Coimbra.

 

A teoria poética (de criação, pensamento e leitura) de António Telmo vai, portanto, alicerçar-se na imaginação e na intuição, tendo sempre como sombra tutelar e alimento “a ideia de Deus”, ou seja, “o princípio”, a cabeça, a Arka. E trazendo-nos sempre o marulhar obscuro e estruturante dos ritmos, das vibrações sonoras, marimbas e flautas.

Sendo a sua uma poética libertária do conhecimento e o conhecimento sendo poético, pelo peso de ouro que liberta as visões e os escravos, “a analogia é o método ocultista de conhecimento, ao pretender pensar o invisível pelo visível, encontrar a espécie e o género”. É o que faz a arte poética através da palavra.

 

O que é a palavra? Palavra como captação, palavra enquanto energia e trânsito.

Cito o nosso recordado e relembrado António Telmo: “as palavras, como forças de incorporação e de subtilização, atuam no plano mental, substantivando e verbalizando as energias.”

 

Como lavrar a palavra?

Essas palavras poéticas existem por ritmos, como tudo na vida, desde o imensurável ínfimo à relação inédita com o superior imensurável que é a transcendência. Por esse “tudo na vida”, ritmado, a poesia serve a recordação, a lembrança, a saudade. Do mais ínfimo acidente ou pormenor, elas nos levam para algo extraordinário: a presentificação.

 

O uso doutrinado dos ritmos ativa as imagens do pensamento e do movimento, organizadas por uma gestalt holística. “Dupla é, pois, a função do ritmo: – de invocação e de sugestão” (Arte poética, p. 40). As oscilações rítmicas articulam a poesia, a palavra-verbo, com as energias subtis e fundamentais cujas variações, mínimas, estruturam a vida no universo-multiverso e, portanto, no nosso corpo-memória, que é a sinédoque do mundo animado.

Essa articulação é uma concordância dinâmica, simultânea à nobreza da perceção da música dos mundos. A simpatia de que fala Telmo, penso que se sustenta no acordo rítmico, na oscilante e contínua vibração que perpassa por nós todos, aqui, por exemplo.

 

Há que pensar ainda o ritmo sonoro, das alternâncias entre sons e pausas, e o da luz, ou das alternâncias, aparentemente contrastivas, do luminoso e do obscuro. Ou seja, levar em conta o ritmo das imagens a par e de cordo com o dos sons, ambos articulados pela verbalização, no alentado sentido ‘télmico’ da palavra. A verbalização, simultaneamente, apaixona e ativa.

 

Matéria e memória, a poesia deriva “daquela preexistência visionária” que é a verdadeira origem da única Poesia. “A oposição adâmica de um nome a um ser torna-o exterior a nós, mas designá-lo pelo verbo equivale a captar por dentro a energia interior que nele se manifesta, a vê-lo interiormente, como se fosse uma emanação do nosso próprio ser.” (Arte poética, p. 35) Neste apurado sentido ascético e sensível, o poeta é um possesso e um visionário, inspirado e fantasmático, ativando potências e potenciando o que parecia acidental por reconhecimento, ou nobreza na via da máscara, da pessoa. O nobre poeta, o único poeta verdadeiro, aquele que não é de papel, conhece, por relação, o que se esconde e o que se mostra, seu ouvido interno captando o marulhar das águas primordiais ao mesmo tempo em que alumbra.

 

A palavra-verbo incorpora, por tanto, a imagem. A imagem pode ser a pedra filosofal: o poeta lhe dará música. “As imagens são dispositivos de captação de energias subtis”. (Arte poética, p. 44) Alquímicas palavras.

A analogia é também um complexo de imagens, ou, se preferirmos, uma imagem composta e complexa. Importa, portanto, considerar, a relação entre a palavra-verbo e a imagem – na esteira do que ele próprio fez ao longo da vida.

 

Entretanto, “superior à analogia é, para Bergson, a visão direta, ou a consciência direta”.

O que pode ser a consciência direta? A morte viva. A morte vivida em nós ao mesmo tempo que a vida.

“Não significa isso que queiramos propor uma poesia filosófica, mas temos de dizer uma filosofia poética.” – ou seja: ativa e meditativa, secreta e patente no mesmo passo. Criatividade inesperada, atenção dinâmica. Ir por aí. Verso, inverso e converso.

        

“Todas as manhãs” acordava antes de nascer o sol, procurava um lugar isolado para meditar: “harmonizar a luz refletida do sol com a minha essência.” Repito uma pergunta antiga: o que fazer?

A negação do mundo intermediário, da sua realidade, existência e objetividade, pela sua conexão com a fantasia, a mística, a intuição e o irracional, teria como consequência, a tornar-se completamente vitoriosa, a ruína da poesia e da filosofia e a suspensão do movimento essencial da alma que aspira à verdade. Esqueçamo-la, como quem vê uma figura envolta em mantos a sumir-se na poeira do caminho longe. Esqueça esse homem. Mate-o. Harmonize a luz refletida do sol e a sua essência caminhando.

 

A leitura

Ler é colhêr, com acento circumFlexo. O ato criativo é, simultaneamente, emergência e imersão, movimento que supera a nítida perceção do mesmo e do outro, como se a própria vida compusesse um oxímoro. Suportamos, carreamos, levamos, transportamos, neste mundo vivo, por intuição e perceção, o outro mundo, que está aqui, no meio de nós, connosco, reunidos em seu Nome, o que não conseguimos dizer nunca.

“Há uma constante nas sete bizarras interpretações, o serem todas de desvendamento do que está à vista e que por estar à vista ninguém vê.” Portanto ninguém nomeia (O livro das minhas invenções).

 

Como ler? – ao “realizar em nós um estado de vivência interna da natureza”, a Obra presente, a partir da qual sentimos a natureza como o «Todo Um»”, o “Caos-Mundo”, o único multiverso. A leitura anuncia, denuncia e constitui aquela 

 

 

Mágica serpente que infinitamente se devora a si própria (Arte poética, p. 70).

 

 

A experiência da serpente é também a experiência da colheita, a leituria. A compreensão da Obra enquanto manifestação e transmutação da Alma ou pela Alma, sob o sopro do Espírito, de que só nos apercebemos errante, fugidio, depois de ele passar, quando as folhas tremem ou vibram e nem sabemos bem porquê, sopro subtil que já se não vê, mas opera.

 

Perguntam-me os fantasmas que há em mim: então mas o ritmo, as imagens? Acho que nos falam da fixação e do movimento, poesia-relação que, animada, aviva “o sistema ósseo, o sistema nervoso e o sistema sanguíneo sempre postos em correspondência com determinadas formas do mundo subtil e psíquico.” (Arte poética, p. 71).

 

Em Antero de Quental, a imagem não é vivência ou símbolo, mas alegoria. O exemplo mais alto de filosofia poética é o de Leonardo Coimbra, aliás o pensador mais odiado por Sérgio e por Salazar. Nele, a ideia é a flor enorme que abre na floresta esplendorosa da imaginação; a ideia é vivência da qual nenhuma imagem pode ser a alegoria. E o ritmo estrutura a prosa por uma prosódia que propaga, aconchega e toca, obscura, por em, comunicante.

 

Nessa poética, e gnose, da leitura, a interpretação nunca perde o sentido do nome e do verbo, da etimologia e da filologia.

 

Por exemplo a sua recomposição do episódio do Adamastor a partir da bizarra etimologia do nome do Titan: Adão Astral. Intertextualiz0:

As três estrofes finais do Canto IV de Os Lusíadas, por essas e por outras, contendo as últimas imprecações do Velho do Restelo, que são a outra face da moeda em que está o Adamastor. Faz-nos pensar, esta leitura.

 

O Velho (Ancião?) invoca a sua Lei, a Lei justa, para condenar o Titanismo, dando como exemplo negativo o de Prometeu, roubando o fogo do céu para o meter no coração do homem. Fogo de altos desejos que move o coração onde arde. Faéton, que roubou o carro alto do pai (Apolo, o Sol) e Ícaro procurando atingir o Céu voando para fora do labirinto da vida, são segundo e terceiro exemplo do que não se deve fazer, cometimentos que vêm na esteira do pecado original de Adão, seduzido por Eva, seduzida pela serpente, a colher o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal.

Altos e nefandos são, segundo o Velho, tais cometimentos. Paradoxalmente, altos e nefandos.

 

Todavia, a Nova Lei que veio ou virá substituir a Velha Lei, é a da Graça e traz em si o movimento para o Amor. As imprecações do Adamastor coincidem com as do Velho. O Amor é sempre adolescente.

O Velho do Restelo como o Velho Testamento, em contraposição com os desvendadores do futuro. Uma sabedoria respeitável e ressequida contraposta à aventura do perigo e da experiência.

O Amor é a invenção por analogias e osmoses, avivando em nós a vocação de religar, unir, reunir, apaixonarmo-nos.

Aqui se manifesta o que vinha oculto no meu texto: o Amor, o que religa. Nessa exata medida, pitagórico e religioso.

Outros dois exemplos ainda para a ativação da teoria da leitura de António Telmo. O superior: O Bateleur. Não nos assustemos: o inferior (o que vem de baixo para cima): a interpretação da fotografia, depois da última lição de Leonardo Coimbra, na introdução inédita à Filosofia e Cabala. Por arrastamento, no mesmo texto, a interpretação do fresco de Rafael: A Escola de Atenas.

  

Fui

Falei do que me interessa. O caminho que percorri, lacunar e voluntário ao mesmo tempo que inesperado, acaba aqui, dando sinal de “onde o infinito se recolhe em si”. 

 

 

(o sítio Voz passiva: António Telmo Vida e Obra foi muito consultado para compor este texto. Além dele, dois livros do autor foram várias vezes lidos: Arte poética e Le Bateleur. Outros também, mas menos vezes - com particular intensidade, entretanto, Filosofia e Kabbalah Seguida de "Álvaro Ribeiro e a Gnose Judaica" e Outros Estudos)

 

DOCUMENTA. 09

04-10-2023 10:07

João Augusto Aldeia, membro do Projecto António Telmo. Vida e Obra e investigador de História local, descobriu recentemente, num arquivo de gravações de som de trabalhos que realizou para o jornal O Sesimbrense, de que durante vários anos, e até há bem pouco, foi Director, um ficheiro áudio com a gravação da intervenção de António Telmo durante a sessão de lançamento da edição da Zéfiro de Congeminações de um Neopitagórico, que se realizou na Biblioteca Municipal de Sesimbra, em 9 de Maio de 2009.

A notícia então publicada por João Augusto Aldeia na edição de Maio de 2009 de O Sesimbrense oferece-nos um excelente retrato da sessão:

Apresentamos agora aos nossos leitores a transcrição integral da intervenção de António Telmo, na qual se optou por se manter, tanto quanto possível, as marcas da oralidade. Trata-se de um documento relevante para o conhecimento da vida e da obra do filósofo. A João Augusto Aldeia, a nossa gratidão pela cedência desta gravação.

   

Da esquerda para a direita: António Telmo, Maria José Albuquerque (Directora da Bblioteca Municipal de Sesimbra), Pedro Sinde e Alexandre Gabriel

 

Bem, como é da praxe, eu começo por agradecer os sucessivos elogios que foram feitos à minha pobre pessoa, talvez com uma reflexão, uma reflexão breve que faça com que esses elogios não me façam mal.

Eu, realmente, sou uma pessoa afortunada. Sou uma pessoa afortunada. Cheio de êxitos. Os meus livros são lidos. Há pessoas que escrevem nos blogues saudações ao António Telmo. Já tive várias homenagens. Não chego aos calcanhares do Saramago, mas enfim… [risos] É entre os pequenos… é entre os pequenos que sou notado. Mas isso deve-se, isso deve-se a que eu tenho no meu horóscopo, na casa décima, planetas que dão necessidade de aventura às pessoas. Eu, por exemplo, tenho a Lua no alto do Céu. Isso deu-me uma pontaria excepcional na fisga, por exemplo. [risos] Não é meu mérito. Aqui em Sesimbra sabem isso, não é? Os mais velhos… Não é meu mérito… É porque a Lua, que é a deusa Diana, a deusa caçadora, se encontra no alto do Céu, não é? Por conseguinte, se há por aí alguém invejoso, não tenha inveja de mim, ahn?, porque tudo isso é determinado pelos nossos… pelas nossas cartas do Céu.

Agora, quanto ao meu livro, e como que em ressonância com o que o meu grande amigo Pedro Sinde disse sobre o livro, eu gostaria de saber onde está a Paula, onde está aqui a Paula… [Alexandre Gabriel: – a Sofia…] Ahn? A Sofia, pois… Não está? A Paula… Está a Paula… Bom, mas está cá… [Alexandre Gabriel: – eu transmito…] está cá o… Esta capa, esta capa  foi feita pela Sofia, que é a companheira do Gabriel, Alexandre Gabriel, e há aqui uma coincidência muito… que eu achei muito interessante, que é: Congeminações de um Neopitagórico, conforme observou a minha amantíssima esposa que está ali sentada, tem 13 – em Congeminações – letras. Em Neopitagórico – outras 13. Em de um 4. 13 e 13: 26; e 4: 30. O que é interessante é que aqui depois neste triângulo que está com os raios, contando os raios, tem também 30 raios, 30 raios… Isto é uma janela, mas só se pode entrar por esta janela, nesta casa, depois de ter lido o livro todo, ahn? Quem não ler o livro… Quem entra por esta janela…

Bem, agora, uma coisa autobiográfica. Eu fiquei impressionado com este olho que vem no triângulo, porque não só é muito parecido com o meu olho esquerdo, como também me aparece de noite naquela… naquele período em que estamos para adormecer, chamado… chamado período pré-hipnótico, em que a certas pessoas, e eu sou uma delas, vão surgindo imagens, imagens antes de adormecer, e a mim aparecem-me frequentemente muitos olhos, muitos rostos… e um dos olhos que me aparece frequentemente é este… é este que a Sofia pôs aqui, ahn? é este… Mais: tenho um medo dele tremendo! [risos, palavras imperceptíveis]

Ora, diz o Carlos Castaneda, que foi referido há bocado pelo Pedro Sinde, quando o Castaneda, que é discípulo do índio, diz ao índio que lhe aparecem olhos antes de adormecer, o Don Juan, o índio, diz-lhe: – É por esses olhos que tu podes entrar para o mundo do desconhecido, para o mundo [palavras imperceptíveis].

Ora é por isso que o olho que eu vejo de noite, faz medo, porque por trás dele estará o verdadeiro mundo, e o verdadeiro mundo não é para brincadeiras. Já este não é para brincadeiras… [risos]

Quanto ao ver as evidências, eu termino com uma coisa humorística, uma coisa humorística… que é o poder das evidências, que a gente nunca vê… Por exemplo, quando olhamos para um rosto, nunca reparamos nas orelhas [risos]. Reparem bem… Reparem bem nisso! Os olhos da pessoa, não é, os olhos das pessoas como que cativam a nossa atenção, a nossa atenção, e não reparamos que têm todas orelhas, olhem para mim, não é? Quando se olha e vê-se as orelhas, começa-se a pensar se o Darwin não terá razão… [risos] não terá razão… Eu não acredito que a gente tenha nascido… tenhamos sido macacos [palavra imperceptível]… Se algum de vocês aceita esta doutrina, então muitos parabéns, ficam muito bem servidos! [gargalhadas, aplausos]

 

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