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VOZ PASSIVA. 15

10-03-2014 08:47

O peso da palavra 

António Cagica Rapaz

 

Se vos disser que aos doze anos beneficiei de aulas particulares ministradas por António Telmo, ninguém se admirará se, a seguir, revelar que tive a nota mais alta do país no exame escrito de Filosofia do antigo 7º ano, em 1962.

Obtive exactamente 18,5 valores, o mesmo tendo conseguido uma outra aluna com quem dividi o prémio de quinhentos escudos.

Importa, porém, acrescentar que os ensinamentos que recebi diziam respeito à forma mais expedita de bem aplicar os cirúrgicos efeitos, puxar com precisão ou juntar num canto as três bolas do bilhar, arte em que António Telmo era já um executante primoroso, aliando uma técnica apurada a uma imaginação exuberante e a um total desprezo pela comezinha avidez da vitória nas provincianas competições.

Estávamos na segunda metade da década de 50, em Sesimbra, e eu revelava algum tímido jeito para a coisa quando o futuro grande filósofo teve a bondade de me dar umas lições cuja particularidade maior era ser o mestre a pagar a hora do seu bolso. A instrução teve o seu início no café Ribamar onde a tertúlia intelectual tinha lugar, e prosseguiu no café Central, teatro das grandes representações às três tabelas.

Mais tarde, troquei as bolas do bilhar por outras maiores, de coiro, e o taco por botas de futebol a que hoje gente evoluída chama chuteiras.

O ainda jovem Telmo seguiu o seu caminho até atingir a projecção que sabemos e de que os seus amigos tanto se orgulham, por tudo e porque ele continua a espalhar a palavra do conhecimento e a iluminar as mentes de quantos o lêem, é certo, mas particularmente dos bem-aventurados que têm o privilégio de o escutar.

Contrariamente ao que se poderia esperar, não segui Filosofia.

Na altura, o 7º ano era o fim do meu percurso escolar, o limite da bolsa dos meus pais, e o acesso à Faculdade só aconteceu graças às tais bolas de coiro que me roubavam o tempo e pouco espaço deixavam para leituras e reflexão.

E foi assim, ao pontapé, que acabei por alcançar um canudo de Filologia Românica, bagagem modesta que acabei por nunca levar para qualquer sala de aula já que a minha vida profissional foi feita na aviação comercial, carreira que nem o astrólogo Horus (que o António Telmo tão bem e também conheceu) foi capaz de prever.

As voltas da vida nunca me afastaram muito de Sesimbra, apesar de ter vivido 19 anos em França, e fui mantendo contactos com alguns amigos comuns, como os irmãos Reis Marques e, mais recentemente, o Pedro Martins.

Não estou aqui para debater nem suscitar reflexões, a tanto não me atrevo. Sou um espectador ocasional das extravagâncias da vossa Filosofia e já me sinto honrado por poder assistir e fingir que percebo.

Não me choca a ideia de que o pensamento português tenha a sua origem nas tradições judaica, cristã e islâmica, admito de bom grado que sim.

Nem arrasto por aí as correntes joaquimitas, embora me impressione a exegese xiita, quase tanto como a tradição cabalista.

Já me sinto perplexo perante a dúvida que paira sobre a eventualidade de Jesus ter ou não sido assistido pelos anjos.

E parece-me perfeitamente legítimo que alguém possa interrogar-se sobre a existência de uma Filosofia intrinsecamente portuguesa.

Na minha condição de profano, ao assistir a alguns colóquios, fica-me a impressão de haver ali uma espécie de jogo, um pouco à imagem do que Sant’Anna Dionísio diz de Pascoaes ao classificá-lo como um espírito dialéctico que afirma e nega na mesma frase e até na mesma palavra, saltando de heresia em heresia.

E acho estranho que, apesar de tanta sapiência, os filósofos dêem mostras de tanta inquietação, não parecendo que tenham conseguido alcançar a serenidade e a paz própria de quem deveria saber de onde viemos e, sobretudo, para onde vamos. Porque, afinal, o que se passa entretanto, esta passagem efémera, pouca importância tem.

Confesso que o que mais me agrada é aquele momento delicado, no final, quando da sala não parece surgir qualquer intervenção, a menor pergunta, e nos fica a sensação de que os diversos oradores estiveram ali a perder o seu tempo.

Felizmente, para todos nós, levanta-se o António Telmo e faz duas ou três observações, com ar de quem pede desculpa por se intrometer, e lança uma luz nova sobre o tema.

Todos nós podemos fazer leituras, coligir informação, preparar textos de apoio, mas o grande talento, o que define e caracteriza os maiores é a capacidade de pensar com profundidade e com originalidade, de arrancar sabe-se lá de onde um ângulo original, um raio luminoso, uma centelha de excelência.

Há pessoas assim, que nos transmitem a sensação de tudo saberem, de nos surpreenderem com uma palavra, uma frase que, depois de solta, nos parece evidente, mas que nunca cruzara o nosso pobre espírito.

Depois há o timbre da voz, denso e seguro, e o tom, arrastado, tranquilo, desprendido, próprio de quem não precisa de mais evidência.

É o vagaroso pôr-do-sol alentejano, o peso da sabedoria, o calor da partilha simples e suave do conhecimento, tomai e ouvi, estas são as palavras do Mestre…

INÉDITOS. 06

07-03-2014 10:25

Irreverente, audaz, desassombrado, revisitando criticamente, mas ludicamente (pelo superior exercício do jogo), a sua História Secreta de Portugal, admitindo que há nela erros vários (espantoso gesto de humildade este, num tempo de homens infalíveis, pois que cheios de certezas!), eis António Telmo com a sua "Epístola aos Hieronimitas", mais um inédito saído do espólio do filósofo, aqui comentado por António Carlos Carvalho.     

Epístola aos Hieronimitas

 

Como manda a cortesia, começo por me apresentar. Católico praticante se houvesse Igreja, maçon sem Loja e Português sem Pátria, tudo isto sou anonimamente. Dir-me-á que fica sem saber nada de mim: o nome, a morada, o lugar de nascimento, a idade. Acha v. que se determina quem seja uma pessoa pelo seu bilhete de identidade? Na verdade, não estou nada interessado em que me responda, depois de ter lido esta carta. Se vier a concordar com o que nela digo, poderá aproveitá-la para escrever um novo livro sobre o Mosteiro dos Jerónimos. Como na sociedade em que vivemos está proibido o anonimato para qualquer publicação, ponha como nome de autor o seu. Imagine que, por qualquer motivo, a polícia o queira identificar, na intenção de saber quem é o homem que escreveu um livro que não é politicamente correcto. Consultará a ficha que regista no computador todos os dados sobre si. Por esse processo, identificou realmente o autor do livro?

Claro que não há esse perigo, porque aquilo de que lhe vou falar está fora da zona vigiada pela polícia. É coisa para intelectuais, mais ou menos loucos, mas inofensivos, pelo que não há também da parte do Estado qualquer interesse em encerrá-los num manicómio. Pois o que é que tem que ver com o mundo o Mosteiro dos Jerónimos, além de servir o turismo? É um lugar de solenidades? Óptimo. O livro será bom para uma e outra coisa.

Não foi, porém, para dizer estas inanidades que resolvi escrever-lhe. Li, há vinte anos, a sua História Secreta de Portugal, li agora o seu Horóscopo de Portugal. Não concordo com a explicação que v. dá do claustro dos Jerónimos e dos seus símbolos, de Portugal e do seu destino. Não concordo, não é bem a palavra. Gostaria que houvesse mais luz no que escreve, uma luz que, deixando mais ou menos tudo como o põe, o iluminasse revelando uma ideia completamente diferente da sua.

Por favor, não me tome por um Superior Desconhecido. Sou, como lhe disse, um maçon selvagem sem Loja, não sou Iniciado, nunca passei debaixo das espadas. Sou um qualquer Nicolau Coelho, sem rosa no ombro e sem laço ligando-o a uma superior organização.

Comparei-me ao Nicolau Coelho e, tem graça, é precisamente por aqui que convém começar a minha lição.

Diz v. na p. 47 da História Secreta de Portugal: “A observação atenta e pormenorizada das efígies dos quatro navegadores da face sul revela entre a de Nicolau Coelho e as dos outros três diferenças assaz estranhas, incompreensíveis fora da nossa interpretação. É o caso que os bustos de Vasco da Gama, Paulo da Gama e Pedro Álvares Cabral estão circunscritos por cornucópias, enquanto o de Nicolau Coelho está posto dentro de um círculo “rude, tosco e informe”; os chapéus dos primeiros estão presos ao alto por um laço; só Nicolau Coelho não ostenta no ombro a rosa iniciática.” Segue-se a afirmação de que isto é assim porque Nicolau Coelho não seria como os outros um iniciado, como se deduz das seguintes linhas de Mircea Eliade, citadas numa oportuna nota: “Quatro pontos definem a iniciação dos châmanes: 1. A vocação iniciática é o resultado de uma escolha divina; 2. Esta escolha é comunicada ao futuro châmane na imagem de um fio que desce do céu e poisa sobre a sua cabeça; 3. A descida do fio tem o carácter duma fatalidade, como se o destino fosse repentinamente revelado; 4. Com efeito, a pessoa escolhida sente que perdeu a liberdade individual: sente-se cativa, ligada pela vontade de Outro, encadeada.”     

Até aqui tudo está certo. Não há também refutação possível do argumento que deduz uma significação esotérica para o claustro a partir da irregularidade que é na sucessão das efígies dos navegadores a efígie de Nicolau Coelho. Se a inteligência que guiou a mão do escultor tivesse obedecido apenas a uma finalidade estética, não se compreenderia uma diferença tão marcada. Do mesmo modo poderia v. ter confundido os “estetas” mostrando-lhes o absurdo, do ponto de vista deles, de as cinco chagas aparecerem duas vezes repetidas na série dos vinte medalhões.

Aliás, nas criações artísticas de carácter iniciático há sempre uma irregularidade que é a chave capaz de abrir o entendimento do observador contemplativo para o sentido que nelas se encobriu.

Tudo está, pois, certo. O que não está certo é a conclusão a que v. chega: “estamos aqui perante a própria iniciação do navegador Nicolau Coelho.”

O leitor do seu livro conhece a história que, depois, v. urdiu indo até ao ponto de identificar o lugar onde Nicolau Coelho foi “recebido”, uma ermida na zona de Palmela em cuja pedra de fecho da abóbada está impressa uma efígie, já com os atributos iniciáticos na qual imagina a figuração do próprio Nicolau Coelho. A razão que apresenta não é razão: pessoas consultadas por si acharam os dois rostos muito parecidos. Isto envergonha-o, mas se quiser escrever o tal livro escusa de o referir.

Eu não digo que a ermida não fosse uma loja, isto é, um lugar de manifestação do logos. Tudo o indica: o chão em xadrez, a fonte no sítio do altar, a irradiação oitavada das estrias, etc. Como pode acontecer em todos os lugares outrora santificados, v. mesmo lhe experimentou a força naquela visita que ali fez com um amigo e no que se seguiu depois. Estou-me referindo ao que descreve no capítulo Fenómenos Misteriosos, acrescentado à primeira edição da História Secreta.

O que eu digo é que o que se representa a toda a volta do Claustro não pode ser a iniciação de Nicolau Coelho porque é absurdo que se subordinasse todo o sentido do Claustro a um acontecimento que, tendo embora relativa importância, está muito longe de poder explicar o carácter iniciático dos Descobrimentos, que é, julgo eu, a afirmação primacial do seu livro.

Por que é que não vemos a coisa de uma maneira simples e directa? Estão ali três navegadores fitando de frente o Sol: dois são iniciados, o terceiro não é. Contudo, apesar de não o ser, fita também o Sol. Deve admitir que isto constitui um sinal de esperança para todos nós que não somos iniciados.

Eu sei que esta história do Nicolau Coelho recebendo a iniciação à pressa, numa ermida longe lá nas terras de Vasco da Gama, uma misteriosa ermida cabalística, e recebendo-a antes de partir para a Descoberta do Caminho Marítimo para a Índia, na qualidade de comandante da Bérrio e o mais que nela v. inclui é o que, em boa parte, explica o êxito editorial do seu livro em leitores educados quotidianamente pela televisão de mistura com publicações marcadas por um esoterismo fantasioso, quando não tenebroso, quase sempre de proveniência americana.

Claro que leitores deste tipo não podem ter reparado nos erros frequentes que v. comete ao longo do livro, como esse imperdoável, aliás corrigido em Horóscopo de Portugal, que dá o Sul como correspondente à Primavera, quando o é ao Verão, o Ocidente como correspondente ao Inverno quando o é ao Outono, e assim para os outros dois pontos cardeais sucessivamente. Se esta correspondência, em vez de estar numa das últimas páginas, na 155, estivesse numa das primeiras, eu teria posto de parte o livro e não teria chegado a conhecer as coisas preciosas que ali se dizem.

 

António Telmo

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Comentário    

António Carlos Carvalho

 

Comecemos pelo título, insólito, lembrando obviamente as epístolas doutrinárias de Paulo de Tarso às comunidades de cristãos seus seguidores. Mas quem são os hieronimitas? Esta é a designação dos monges da Ordem de S. Jerónimo, aos quais, aliás, foi confiado o Mosteiro de Santa Maria de Belém. Mas há muito que não há ali monges: há fiéis das missas, há turistas, há convidados de casamentos e baptizados e de algumas cerimónias oficiais ou então melómanos que vão assistir a concertos. Mas não monges.

Então quem são os hieronimitas aos quais esta curiosa epístola se dirige? Creio que somos nós, os que ficámos definitivamente ligados ao Mosteiro dos Jerónimos desde que lemos a «História Secreta de Portugal» e com essa leitura tivemos uma espécie de revelação e de desvendamento acerca do significado da nossa História, do carácter iniciático dos Descobrimentos mas também do simbolismo inscrito nas pedras desse monumento. A partir dessa leitura não era mais possível olhar para o mosteiro sem ver aí os sinais que António Telmo nos apontava nas pedras centenárias.

E, falando só por mim, que tive o privilégio de ler o manuscrito, esse livro pioneiro de Telmo abriu-me também os olhos para outros monumentos que tantos portugueses ilustres e geralmente anónimos nos deixaram como lugares de meditação sobre o nosso destino como Pátria e como Povo. Mas sempre tomando os Jerónimos, lidos por Telmo, como ponto de referência essencial. 

«História Secreta de Portugal» foi de facto, e continua a ser, para muitos de nós, a descoberta de António Telmo e de um monumento até então olhado mas não visto nem lido. Então, nesse sentido, ficámos todos «hieronimitas». E esta epístola é realmente para nós e poderá ter sido escrita em 1997, a avaliar pelo que o seu autor escreve.

Mas como quase todos os textos de António Telmo só são simples na aparência e na verdade encerram diversos níveis e exigências de leitura, esta epístola também não escapa à regra. Em vez de se dirigir a um colectivo de «hieronimitas» assume logo a forma de uma carta pessoal de «alguém», anónimo, para o autor de «História Secreta de Portugal»: esse alguém diz ser «católico praticante se houvesse Igreja» (imagino já a perplexidade e o incómodo que isto poderá causar em certos meios...), «maçon sem Loja» (idem, idem) e «português sem pátria» (afirmação perfeitamente coerente com o que se afirma no livro). Alguém que sublinha que não se determina quem seja uma pessoa pelo seu bilhete de identidade – o mistério do nome e do ser não se circunscreve nem se desvenda num documento oficial --, sendo, todavia, todos nós obrigados a viver num tempo em que o anonimato é proibido. E esse «maçon selvagem sem Loja, não iniciado, um qualquer Nicolau Coelho», diz ainda ao nosso autor que, se concordar com a carta, pode até escrever um novo livro sobre o Mosteiro dos Jerónimos...

Pelo meio, fazendo notar que nas criações artísticas de carácter iniciático há sempre uma irregularidade que é a chave para se entender o seu sentido encoberto (como se vê no claustro dos Jerónimos), o autor da carta contesta que a iniciação de Nicolau Coelho esteja representada no claustro ou que a tal capela em Palmela seja o lugar dessa mesma iniciação; atribui o êxito editorial do livro a um interesse fácil por essa mesma iniciação entre leitores educados pela TV e pelo esoterismo fantasioso de proveniência americana; e até fala de «erros frequentes ao longo do livro», salientando as falsas atribuições do Sul e do Ocidente à Primavera e ao Inverno respectivamente (mas não vai mais além). Em contrapartida, sublinha que no livro se dizem «coisas preciosas».

Parece-me evidente que estamos perante uma importante reflexão – sob a forma de uma carta de si para si próprio – de António Telmo sobre a sua própria «História Secreta», que ele vê, vinte anos depois, como um livro nunca fechado e concluído, por um lado, e até mesmo necessitando de correcções. Além de ser um livro que se afastou do plano inicial congeminado juntamente com o mestre Álvaro Ribeiro (sabemos já isso através do inédito entretanto divulgado nas páginas deste projecto).

Provavelmente (assim poderemos esperar) haverá no espólio de António Telmo mais textos sobre o seu livro e a sua leitura dos Jerónimos. Mas para nós, «hieronimitas», o fundamental foi dito e escrito nas páginas da «História Secreta», nesse ano de 1977. Páginas luminosas, irradiantes de luz, como o Sol representado naquele medalhão do lado Sul do claustro. Esta «Epístola» e outros inéditos que entretanto apareçam e sejam publicados são centelhas dessa mesma luz e um incitamento para a nossa própria viagem de descobrimento. Uma viagem sem fim.

INÉDITOS. 05

05-03-2014 09:56

O trabalho que vem sendo desenvolvido no espólio télmico pelo projecto António Telmo. Vida e Obra traduz-se já em frutos vários e visíveis, sem nunca se perder de vista a empresa sumamente importante que é a edição das Obras Completas do filósofo. Oferece-se agora aos leitores o primeiro de três escritos autobiográficos de António Telmo com particular incidência astrológica. Os outros dois serão aqui em breve publicados. Todos foram já estudados e comentados por Eduardo Aroso, membro deste projecto particularmente autorizado no domínio da Astrologia. Daí, também, que este tríptico surja antecedido de uma Introdução versando "António Telmo e a Astrologia", que desde já abre perspectivas para a conferência que, sobre o tema, e com este título, Eduardo Aroso irá proferir na Biblioteca Municipal de Sesimbra, na quinta TARDE TÉLMICA deste ano, em 25 de Outubro. 

António Telmo e a Astrologia. Introdução

Eduardo Aroso

 

Se considerarmos o que António Telmo escreveu sobre astrologia, vemos que o filósofo, nesta matéria, foi não só um intuitivo como alguém que, de um ponto de vista da lógica estelar, discorria com fluência na interpretação tantas vezes labiríntica da roda, onde não é fácil ver o essencial: os movimentos da alma e do ser incarnado nos acontecimentos da vida terrena. E nisto convém já descartar alguma “ganga” associada à interpretação dos astros, como, por exemplo, a questão do falso conceito de “fatalismo” e de prognóstico. Um roteiro que nos é dado (inevitavelmente pelo acto do nascimento) pode ser seguido totalmente ou não. Na planta de uma casa algumas modificações podem ser feitas, perante o que se projectou inicialmente, não alterando a estrutura principal. A maior ou menor ondulação do mar diz-nos da certeza de haver movimento e a hora da preia-mar calcula-se com base na determinação do ciclo, independentemente da existência ou não de pessoas na praia. Podemos dizer que, em síntese, é isto o significado de um horóscopo de nascimento.

Projectando-se hoje na astropsicologia séria, como é o caso da «transpersonal psychology», a convergência da milenar gnose astrológica ou antigo arcano e a «arte de filosofar» (como disse certeiramente Álvaro Ribeiro, intitulando uma das suas obras fulcrais), a hermenêutica da Cabala e ainda outros atributos que não vêm agora ao caso, fazem de António Telmo uma figura carismática no movimento da filosofia portuguesa. Apesar da nossa tradição astrológica (com excepção de um Fernando Pessoa que a estudou e praticou, de um Mário de Saa, que se centrou em Camões, e de alguns investigadores no campo histórico, como Manuel J. Gandra), no que toca aos espaços da filosofia enquanto interrogação, não consta que a astrologia tenha sido aflorada nas tertúlias das gerações do pensamento português do último século, Ou, se o foi, escasseiam os registos.)

Para além do tratamento aturado e medular que no seu pensamento AntónioTelmo deu à Cabala, a atracção pelo significado dos astros, numa espécie de sinergia filosofia-astrologia (ramos de conhecimento diversos e antigos e que não necessitam de se misturar para dar força ou se justificarem mutuamente), e ainda que o pensador não tenha feito «cavalo de batalha» da segunda, fazem dele uma presença singular. Este facto leva-nos necessariamente a questionar se, por isto, ou também por isto, o filósofo de Estremoz se posicionou naturalmente, como talvez nenhum outro, enquanto elemento polarizador para as gerações novas. Neste ponto, ver-se-á futuramente também a importância do signo de Leão no ascendente do seu horóscopo, bem como Neptuno em conjunção.

Se pretendêssemos uma simples ideia, um breve excerto de algum texto do filósofo que desse sentido ao sentido que há num horóscopo (espelhar, numa linguagem simbólica, a imagem do céu enquanto roteiro celeste para nossa vida, e partindo da interpretação deste para um significado subtil mas em conexão com percurso individual ou destino) o seguinte excerto de Arte Poética seria um deles: «o movimento da filosofia deverá consistir, pois, não em fugir para um mundo suprassensível, mas em tomar consciência da imensa força na qual vivemos e somos, - em encontrar o dissolvente universal.» Ou seja, a interpretação da linguagem do horóscopo leva-nos a tomar consciência dessa «imensa força» singular (projecto pessoal ou destino) que está em cada ser humano, através do sensível (acontecimentos da vida), afinal, os efeitos. Por estes, podemos, subtil mas não menos verdadeiramente, chegar a certas causas e a um melhor entendimento do nosso viver. «Deus ao mar o perigo e o abismo deu,/ Mas nele é que espelhou o céu». Fernando Pessoa – aqui, e sempre sem necessitar de justificar a astrologia com a poesia ou outra forma de conhecimento – dá-nos, ainda que seja no colectivo, essa imagem do que é um horóscopo, perspectiva, neste caso, bem mais sublime do que vulgarmente se tem. Isto é, se o trajecto de cada um neste mundo deve interpretar, e depois seguir, a mensagem do céu ou relação do homem com o Criador, plasmada no horóscopo, também o céu se espelha por certo numa vida virtuosa, sábia e santa. Ou como disse Frei Agostinho da Cruz «Verei o Criador nas criaturas». Este céu que Deus espelhou no «mar sem fim» é o signo Peixes, que Pessoa colocou no alto ou também chamado Meio-do-céu do horóscopo de Portugal. Peixes, signo aquoso e universal, o último do zodíaco que, por isso mesmo, se liga ou religa ao primeiro, Carneiro, o de todos os começos. Afinal, o nosso ouroboros.

 

28-2-2014

 

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Na casa de meu Pai, éramos três irmãos*

 

Na casa de meu Pai, éramos três irmãos. Na verdade houve quatro. O primeiro morreu nos primeiros meses de vida, de modo que o segundo, Orlando, passou a ocupar o lugar do primogénito. Eis por que me posso considerar o terceiro filho. O outro dos meus irmãos chama-se Rui: recebeu o nome do falecido.

Nasci às duas horas da tarde do dia 2 de Maio de 1927, com o Sol em Toiro e o ascendente no grau 24 de Leão. A casa nona, que os astrólogos designam pela casa da filosofia e relacionam com a grande viagem, estava ocupada pelo Sol, pela Lua e por Mercúrio; Urano explosivo em Carneiro na casa oitava; Júpiter em Peixes, bem domiciliado; Marte, débil, na undécima casa; Saturno na quarta casa; Vénus resplendente em Toiro na décima casa; Neptuno[1]

Meu irmão Orlando, mais velho cinco anos do que eu, por uma associação invulgar de acontecimentos, viria a ser aluno e depois discípulo de José Marinho. A casa de meu Pai, no ano em que ele foi estudar para Lisboa na Faculdade de Letras, estava em Arruda dos Vinhos. Esta entrada de meu irmão no grupo dos discípulos de Leonardo Coimbra, chegados há poucos anos do Porto, abriria também a mim as portas da filosofia. Liguei-me muito mais intimamente a Álvaro Ribeiro, a quem me liga ainda hoje e me ligará sempre a mais profunda gratidão.

Toda a gente que conhece o Orlando Vitorino, por o ter lido ou por o ter ouvido, sabe que se trata de um dos espíritos mais lúcidos do nosso tempo e ninguém será capaz, sem remorso, de lhe negar a fruição de uma inteligência superior. Encontrei da sua parte, não obstante, uma constante hostilidade dentro do grupo. A minha carreira de escritor tornou-se dificílima. Ele não fazia mais do que obedecer à inexorável lei que opõe o primogénito ao benjamim, àquele que representa na família o princípio da revolta e do renovo. O conhecimento desta lei, pela leitura do Antigo Testamento e dos contos tradicionais, ajudou-me muito a manter uma certa impassibilidade, ao mesmo tempo que me incitava a realizar o meu destino de filósofo.

É deslumbrante observar como a condição de primogénito se reflecte no pensamento de Orlando Vitorino. A admirável criação de Deus é sem quebra ou falha. O mal não tem existência real. O fim do homem é assumir-se como a inteligência que compreende o mundo criado. Há, neste sentido, movimentos periféricos de degradação da inteligência, explícitos no socialismo, por exemplo, pela submissão dela no colectivismo da mediocridade. O papel do homem é conservar, bem alta e nítida, a luz que reflecte o esplendor da criação, promovendo o valor do indivíduo. A liberdade tem nesta visão o sentido que, em economia, se exprime pelo liberalismo e, em filosofia, pelo exercício do pensamento. O filósofo assume-se aqui como o primogénito de Deus.

Os caminhos para que, no meu torpor mental desses anos moços, tendia o meu espírito eram os difíceis e perigosos caminhos da gnose. Nunca quis ser um homem de pensamento, mas um homem de conhecimento. O pensamento haveria de ser, tanto como o sentimento ou a sensação, um órgão de conhecimento. Daqui não me ser difícil formar a ideia de um corpo subtil degradado no corpo físico, admitir consequentemente a queda, se não de Deus, pelo menos de uma parte de Deus, “pars divinae mentis”. O órgão do conhecimento é todo o corpo: pensamento, sentimento, sensação são solidários no acto de gnose. Sem restabelecimento do estado original, anterior à queda, isto é, sem formação do corpo subtil e luminoso, a obscuridade das sensações e dos sentimentos, o seu torpor determinam as categorias e formas do pensamento.

O grupo de filosofia portuguesa reunia-se nesse tempo na Brasileira do Rossio, hoje, como a maioria dos cafés, transformada em banco. Vale a pena descrevê-la, uma vez que muitos leitores já não puderam conhecê-la. É hoje em mim uma impressão de duas colunas de mármore castanho e brilhante da Arrábida numa casa comprida, escura e cheia do fumo dos cigarros. De um e de outro lado, espelhos paralelos multiplicavam as suas imagens até ao infinito. Supúnhamos ser uma antiga loja maçónica e os mais novos, na sua fantasia de adolescentes, viam no facto de ali ser o lugar de reunião da filosofia portuguesa uma escolha intencional dos mais velhos.

Constava que Álvaro Ribeiro era maçon. Para nós, a Maçonaria que, mais tarde, viria a patentear-se-nos como uma organização política de práticas e fins medíocres, era um lugar misterioso do espírito, que continha, envolvida de grande segredo, o ensinamento primeiro e último. Esta falsa noção actuava como um catalisador. Não seria, pois, possível atingir o verdadeiro conhecimento através dos livros e da reflexão própria. Eu não aprendera ainda a separar o homem social do homem real, sobretudo ou muito menos naqueles com quem privava diariamente. Conhecemos uma pessoa por um nome que nada nos diz na medida em que serve apenas para a determinar na multidão indefinida das outras pessoas; ligamo-la a uma família, a uma profissão, a um meio social; atribuímos-lhe mais ou menos valor; relacionamo-la principalmente connosco, com os nossos interesses, prezando-a ou desprezando-a conforme actua em relação ao sentimento que vivemos da nossa própria importância.

Era ainda o sentimento da nossa própria importância que funcionava na criação de um falso mistério à volta da pessoa de Álvaro Ribeiro. A possibilidade de virmos a ser iniciados na Maçonaria através dele tornara-o prestigioso e prodigioso a nossos olhos. Púnhamos assim véus sobre véus a esconder o verdadeiro mistério que é o do ser singular, tal como é em si, na relação vivente com a insondável origem donde todos os seres provêm e perdíamos assim a possibilidade de nos conhecermos, perscrutando-nos, na mesma insondável relação.

Todavia, eu gostava de subir o Chiado lentamente, porque era um espanto a singularidade de cada rosto, olhado numa espécie instintiva de dupla atenção. Todos aqueles rostos, um a um, sobretudo os olhos, emergiam repentinamente do desconhecido que me habitava.

Uma tarde, já depois do pôr do sol, encostava-me, ocioso e distraído, a uma parede da Calçada do Combro, observando vagamente as pessoas que passavam. Toda a minha vida tem sido este ócio e este torpor mental, esta penumbra de adormecimento, onde, de vez em quando, se acendem luzes e passa, alheio de si, o pensamento. Era a hora em que as alunas de uma Escola Comercial regressavam a casa, nas suas batas brancas. Olhei, mais demoradamente, para uma rapariga de cabelos ruivos, de pele muito branca e, de repente, conheci a sensação estranha de estar a viver aquele momento pela segunda vez: o lugar, a hora do dia, aquelas pessoas que passavam naqueles mesmos sítios e com aqueles mesmos movimentos, eu encostado e a rapariga, nos mínimos pormenores, eu tinha já visto ali. Segui Helena que se deixou seguir. Não casámos, porque a nossa história era do outro mundo.

Este fenómeno é bem conhecido de psicólogos, parapsicólogos, espíritas, teósofos, de toda essa fauna humana que [as] almas seduziu e engana. Henrique Bergson dedica-lhe um capítulo da “Energia Espiritual”.

 

António Telmo

 

* Título da responsabilidade do editor.

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Comentário

Eduardo Aroso

 

DE UM TEXTO ONDE ANTÓNIO TELMO FALA DO SEU HORÓSCOPO, DA SUA FAMÍLIA E DAS TERTÚLIAS DA FILOSOFIA PORTUGUESA

 

Para além do que é comum saber-se, o dia, o mês, o ano e o local onde se nasce, António Telmo diz-nos a hora em que veio ao mundo, indicação preciosa para levantar com exactidão o horóscopo. Portanto, às 14 h de 2-5-1927, em Almeida, Portugal. Seria interessante averiguar onde foi buscar esta informação; se da respectiva certidão, se da boca da sua mãe. Dados que nem sempre batem certo entre si. Todavia, os acontecimentos da vida do filósofo (assunto aflorado, em parte, já à frente) permitem dizer que essa hora, se não absolutamente certa, deve ser muito aproximada. Por isso, António Telmo sabia o grau do seu Ascendente (24) do signo de Leão, bem como a posição dos planetas nas casas (ou domicílios) do horóscopo, que indicam as várias actividades do ser humano. Por exemplo, refere-se à posição do Sol, e cito, na «casa nona, que os astrólogos designam pela casa da filosofia e relacionam com a grande viagem». Telmo, provavelmente por não o querer fazer (mas, por certo, sabendo-o), é de crer que omite o seguinte pormenor importante: sendo esta casa (9ª) a das viagens longas, o mesmo é dizer as relações com povos e países estrangeiros, vemos claramente a linha de causa-efeito na sua vida – viveu em Espanha e no Brasil e, sobretudo neste, contactou com mestres (que a 9ª casa também rege) como Agostinho da Silva e Eudoro de Souza, entre outros, episódios que marcaram profundamente a sua vida, sendo que o significado desta casa refere-se também à própria capacidade de ensinar a um nível superior. Note-se que, nesta casa, seguindo a observação do filósofo, para além do Sol se encontram a Lua e Mercúrio, este último relacionado com a comunicação e as viagens.

Com a palavra Neptuno António Telmo inicia uma frase que não conclui, não se sabendo as razões. No entanto, a posição do planeta é importante por estar junto do Ascendente, isto é, a um dos quatro pontos da chamada cruz, sendo os restantes, o ponto oposto ou complementar o Descendente, o Meio-do-Céu e o Fundo-do-Céu. A conjunção de Neptuno no Ascendente (também por este se relacionar muito particularmente com o corpo físico/energético) confere um alto grau de sensibilidade física, psíquica e espiritual, pelo que E. Bacher designou esta situação típica como a «capacidade de instrumentalização» por forças transcendentes e, em última análise, divinas, para uma actividade de ordem superior. Não sendo todavia o caso do filósofo autor de História Secreta de Portugal, esta configuração astral em certos indivíduos pode servir de veículo a situações negativas, a qual a pessoa poderá não controlar. Assim, com Neptuno nesta posição e no signo de Leão (chefia, poder irradiante, expressão luminosa ou “realeza de espírito”, etc) é fácil começar a ver, astrologicamente, o perfil do filósofo. Há 4 signos cardinais, 4 fixos e 4 comuns ou mutáveis. Os fixos correspondem ao meio das estações: Touro/Maio, Leão/Agosto, Escorpião/Novembro e Aquário/Fevereiro. Telmo nasceu com o Sol e com a Lua em Touro (na Lua Nova). Touro, elemento terra, dá firmeza e estabilidade a tudo o que sob ele se faça. Junte-se a isto o que se disse sobre a natureza de Leão, e entendemos essa auréola que foi reunindo à sua volta um grupo cada vez maior de discípulos e amigos.

 

Lua Nova de Peixes, 2014

 


[1] Este parágrafo termina aqui, com a frase por concluir e sem qualquer sinal de pontuação.

 

«OS MEUS PREFÁCIOS». 03

04-03-2014 22:34

No dia do aniversário natalício de Dalila Pereira da Costa, amiga com quem António Telmo manteve amplo convívio espiritual (bem patente nas cartas que a escritora portuense lhe endereçou, e que, com transcrição, comentário e anotações de Rui Lopo, serão publicadas no suplemento télmico do próximo número duplo da revista de cultura libertária A IDEIA), recuperamos o escrito posfacial que o filósofo da razão poética dedicou a um dos livros porventura menos conhecidos de Dalila, Mensagens do Anjo da Aurora, que contou também com um prefácio de António Cândido Franco. A tábua de Gregório Lopes a que Telmo se refere é o esplendoroso painel onde se representa Nossa Senhora da Misericórdia, hoje à guarda do Museu Municipal de Sesimbra, e patente no núcleo museológico da Capela do Espírito Santo dos Mareantes. Em Março de 1984, sobre e perante este quadro, então na Santa Casa da Misericórdia de Sesimbra, proferiu António Telmo uma notável conferência, cuja súmula, publicada por António Reis Marques, do projecto António Telmo. Vida e Obra, na edição de Março de 1984 de O Sesimbrense, viria a ser arquivada em Sesimbra, o lugar onde se não morre, livro póstumo editado em 2011 pela Câmara Municipal de Sesimbra. No espólio de António Telmo encontra-se uma gravação da referida conferência, de que o nosso projecto oportunamente se irá ocupar.   

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POSFÁCIO A MENSAGENS DO ANJO DA AURORA, DE DALILA PEREIRA DA COSTA[1]

 

Tenho diante de mim, enquanto escrevo esta breve introdução, o quadro de Gregório Lopes onde o pintor representou a aurora na forma de Nossa Senhora da Misericórdia com o seu largo manto azul escuro aberto como as asas de um anjo. Representou a aurora como Virgem do Manto ou a Virgem Nossa Senhora como a aurora. Escrevo aurora com letra inicial minúscula para que se veja bem que é a aurora mesma e não alegoria, a dos dedos róseos dos cantares de Homero. A aurora dá que pensar e raros são os que, como a Dalila, vêm nela o Anjo.

A luz manifesta-se a oriente e da negridão da noite surge primeiro o branco da alvorada e depois a aurora rubra mãe do ouro que é o sol. Ali, no horizonte a nascente, se pintam as três fases alquímicas de fabricação do ouro: a obra ao negro, a obra ao branco e a obra ao vermelho. Mas Nossa Senhora, tal como a pintou há cinco séculos Gregório Lopes, está diante de mim para que eu não me esqueça que ela é o essencial sem o qual a natureza não teria qualquer sentido. Ela não recebe o sentido da natureza.

Sobre a cabeça inclinada levemente para a direita tem a coroa de oiro e áurea é a auréola ou a aura que repete na forma o oval do seu rosto. E numa ondulante fita, em cima e de lado a lado do quadro está escrito: AB INFANTIA MEA CREVIT MECUM MISERACIO ET AB UTERE MATRIS MEAE EGRESSA EST MECUM.

O leitor não estranhou decerto que tenham vindo a aparecer em torno da Ideia que estamos contemplando tantas palavras em que está presente a raiz AUR: aurora, áureo, auréola, aurum. Se lhes juntarmos a palavra aures que é como em latim se dizem os ouvidos, ao sabermos que aur é a palavra hebraica para luz (sim senhor, senhores comparativistas), pasmaremos com o sublime ensino da língua que dá a luz da origem como audível, mais do que como visível. Sabia-o muito bem Goethe que, no início do segundo Fausto, põe este herói do conhecimento, de súbito acordado pela luz da manhã, a exclamar perante o sol que nasce: “Que estrondo!” Numa das suas conversas com Eckerman, veio a explicar que o maravilhoso som ouvido o ouviu por ter contemplado muitas e muitas vezes o nascer do Sol, por ter estado muitas vezes voltado para o Oriente, que, na palavra, é marcado pela mesma raiz AUR.

Também nós deveríamos levantar-nos cedo e procurar um lugar de onde pudéssemos assistir à formação da aurora. Esta seria a melhor introdução ao livro de Dalila. Pelo menos ficaríamos a fazer uma ideia do que possam ser as Mensagens do Anjo que nos dispusemos a ler.         

 

António Telmo



[1] Dalila Pereira da Costa, Mensagens do Anjo da Aurora, Lisboa, Hugin, 2000, pp. 147 a 149.

 

DISPERSOS. 08

03-03-2014 08:58

Completaram-se no passado sábado, 1 de Março, 109 anos sobre o nascimento de Álvaro Ribeiro, mestre por excelência de António Telmo, mestre daqueles que sabem. Aqui o recordamos com palavras do discípulo. Trata-se da comunicação apresentada ao Colóquio A Filosofia Portuguesa de Álvaro Ribeiro, realizado em 5 e 6 de Março de 2005, no Auditório Conde de Ferreira, em Sesimbra, e publicada em Teoremas de Filosofia, n.º 12, Porto, Outono de 2005.   

Apresentação de Álvaro Ribeiro aos Sesimbrenses

 

Compreende-se que a organização desta homenagem a Álvaro Ribeiro me tenha escolhido a mim para fazer a sua apresentação, isto é, para tornar o filósofo presente entre nós como um ser vivente e não como forma abstracta de pensamento. Compreende-se, porque de todos os que aqui vêm falar sobre ele e que com ele conviveram eu sou o mais antigo, aquele que durante muitos anos privou com ele e que sempre o procurou seguir em tudo quanto escreveu, embora por caminhos próprios, que não quer dizer que sejam os melhores.

Álvaro Ribeiro é (com Agostinho da Silva) o mais notável discípulo de Leonardo Coimbra. Não o mais notado. O mais notado, embora também notável, é Agostinho da Silva, já um dia homenageado nesta mesma sala. A sua vida decorreu obscura, repartida entre o modesto trabalho de ganha-pão e o estudo, isto é, o desejo que realmente importa satisfazer um dia. Exprimo-me assim, porque estudo, do latim studium, significa o desejo por excelência.

Não tinha o dom da palavra oral, talvez por ser tímido, talvez por ter sido perturbado no sentimento de segurança e de confiança nos seus próximos durante a adolescência, enquanto viveu aprisionado num colégio de padres em França. Dizemo-lo porque o lemos num dos volumes do seu livro Memórias de um Letrado. Mas o que vamos contar e que mostra a extraordinária inteligência que a sua timidez escondia não foi ele que no-lo disse, mas outro discípulo sublime de Leonardo Coimbra, José Marinho. O episódio revela ao mesmo tempo a presciência de Leonardo Coimbra e já diremos ou se verá porquê.

No último exame do seu Curso na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, apresentou-se perante um júri formado por Leonardo como presidente e dois outros professores que não podemos identificar. Durante o interrogatório feito por Leonardo Coimbra, o jovem estudante praticamente pouco disse. Não encontrava as palavras para o seu pensamento, hesitava, tartamudeava, fazia gestos.

Terminado o exame, os três professores conferenciaram, apresentando uns aos outros as respectivas classificações. Duas notas eram, como seria de esperar, negativas e aqueles que as atribuíram nem queriam acreditar quando Leonardo Coimbra lhes comunicou que tinha dado vinte valores.

- Vinte valores!, exclamaram eles. – Mas o rapaz não disse praticamente nada!

E Leonardo Coimbra:

- Não o disse com palavras. E então os gestos?

A verdade é que estava ali a ser julgado um dos maiores pensadores de todos os tempos. Leonardo Coimbra foi quem soube classificar.

Conheci o Álvaro Ribeiro junto ao elevador do Lavra, no Largo da Anunciada, em Lisboa. Subia-se por ali até ao Campo dos Mártires da Pátria. Se soubermos estar atentos, e temos a obrigação de estarmos sempre atentos, verificaremos sem dúvida que o primeiro encontro entre duas pessoas que virá a ser muito importante e até decisivo para ambas, seja um homem e uma mulher que virão a pertencer-se como marido e esposa, sejam dois homens dos quais um deles abrirá ao outro o caminho de união com o conhecimento de Deus são encontros sempre acompanhados de circunstâncias que se podem e devem interpretar como símbolos. Encontrei-me pela primeira vez com o Álvaro Ribeiro no Largo da Anunciada e daí ascendemos até ao Campo dos Mártires da Pátria. Não é difícil ver a significação destas circunstâncias.

O Largo era o da Anunciada, ao anoitecer daquele dia e também do mundo.

Eu ia com o meu irmão mais velho, o Orlando Vitorino, que muitos de vocês conheceram, e foi ele que me apresentou o grande pensador, em cuja tertúlia militava.

Não me estendeu a mão. Acenou levemente com a cabeça cumprimentando-me. Não me prestou a mínima atenção enquanto subíamos no elevador. E lá em cima, depois de uma acesa conversa com o meu irmão, despediu-se igualmente com um ligeiro aceno da cabeça.

Eu sabia que estava ali um dos homens mais inteligentes de Portugal. Fiquei triste pela indiferença que mostrou comigo, mas no fundo de mim continuei imperturbado, pois era dali, desse fundo do meu ser que eu contemplava a estrela sobrenatural que nos conduz a todos na Estrada Régia.

Três dias depois, entrei na Brasileira do Rossio, um café de gente perdida onde Álvaro Ribeiro tinha o seu Liceu Aristotélico de filosofia portuguesa. O filósofo estava sentado a uma mesa a olhar. Nesse tempo ainda se podia olhar imaginando o infinito (exercício que se recomenda), porque estávamos livres desses pequenos écrans ruidosos que se interpõem entre nós e o mundo (de Deus) verdadeiramente real.

Para meu espanto, minha surpresa e minha alegria fez um gesto chamando-me para a sua mesa. Tinha-me reconhecido!

E ainda foi maior o meu assombro quando me tratou pelo meu próprio nome. Assim que me sentei e após um curto silêncio perguntou-me: “O António Telmo o que é que acha que é a imaginação?”

Reflecti e disse: “Bem. Nós olhamos para o que está à nossa volta. Recolhemos a imagem de um objecto, de um ser no nosso espírito e, se somos imaginativos, transformamos essa imagem, tornamo-la significativa de uma ideia, fazemos com ela um poema.”

Sorriu com agrado e pôs em mim aquilo que viria a ser o germe de tudo quanto escrevi, pensei e vivi até hoje:

“Não é exactamente isso. A imaginação não é isso. A imaginação cria o seu próprio mundo, é senhora do seu próprio mundo, não depende do mundo sensível, do mundo que nos rodeia. Não é o mundo sensível que a produz, servindo-lhe de base. É ela que faz que haja o mundo sensível.”

Foi sobretudo esta última frase que se apoderou da minha inteligência e não a deixou mais sossegar. É a imaginação que faz que haja o mundo sensível. Como é isto? Perguntava-me. Até onde terei de ir em viagem da alma para compreender isto?

Nessa manhã, ele disse-me ainda:

“Quando tirar a licenciatura (anda na Universidade, não anda?) lembre-se sempre de que António Telmo há só um e que o título de doutor é como uma alcunha que se põe a muita gente. Há quem tenha vaidade em ser doutor e daí se segue que nunca procurará conhecer-se a si próprio, conhecer o ser que tem o seu nome e não outro, conhecer-se ali onde o seu espírito procura não ser dominado pela sua imaginação, mas fazer dela o seu trono.”

Foi assim que fui recebido como aprendiz de filosofia no Liceu que funcionava na Brasileira do Rossio.

Mas eu não venho aqui falar de mim e, se falei, foi porque, através de mim, mostrei o que num homem superior é o amor ao próximo. Não me propus traçar a biografia do grande pensador, mas, já que fui convidado pelos organizadores desta comemoração para dizer algumas palavras sobretudo àqueles que de Álvaro Ribeiro só conhecem o nome, contarei ainda um acontecimento da sua vida em que de novo se revela o seu amor ao próximo, desta vez não do mestre para o futuro discípulo, mas do filho para a mãe.

Ele via a mãe como uma pessoa angélica e pura. Aliás, o nome de sua mãe dava-lhe razão. Chamava-se Angelina Cândida.

Um dia, em consequência de um abalo interior a que os médicos chamam, não sei se com propriedade, um acidente cárdio-vascular, esta senhora perdeu a língua portuguesa. Eu digo perdeu a língua portuguesa, porque continuou a falar sem a mínima falha a língua francesa que tinha aprendido e praticado durante uma longa estadia em França. A ser verdade que a memória de uma língua está localizada nos neurónios do cérebro como num computador, a rotura vascular foi de uma precisão cirúrgica. Digo isto ironicamente. Quem leu Álvaro Ribeiro sabe que ele não aceitava a hipótese que localiza o pensamento no cérebro e, portanto, também não uma língua, pois ela é essencialmente pensamento.

Sentou-se na cama ao pé da mãe e começou a ensinar-lhe a língua portuguesa. O B a Ba. Durou muitos dias o ensino, mas por fim a língua portuguesa foi recuperada, regressou ao seu trono naquela alma. Só por má vontade não se vê neste acontecimento um sinal de que o pensamento, como o filósofo asseverava, é inlocalizável na matéria. Não há órgãos da fala, repetia ele baseando-se nas mais recentes descobertas da filologia e da fisiologia. Não há órgãos da fala. Do mesmo modo que os joelhos não se fizeram para rezar e as mãos para tocar piano, assim os órgãos pelos quais comemos, bebemos e respiramos não se fizeram para falar.

Álvaro Ribeiro pensou e escreveu numa época em que já se preparava, nos meios culturais, a integração de Portugal na Europa e a consequente servidão que, a pretexto de uma necessitação económica, invadisse todos os domínios de influência popular. Ao postular a existência de uma filosofia portuguesa, ao proclamar que um povo que não pensa por si próprio perde fatalmente a soberania, que a soberania só por extensão reside no poder do dinheiro, que reside sim sobretudo no poder da inteligência e da imaginação, suscitou contra si o ódio dos bem pensantes do país que tudo fizeram para que o seu nome fosse apagado.

Estamos aqui hoje, passados quase setenta anos sobre a publicação d’ O Problema da Filosofia Portuguesa, livro que abriu a estrada para o que é a verdadeira liberdade de pensamento, que é o pensar por si próprio. Passados quase setenta anos, todos começámos a ver que só pelo Espírito que, como disse Camões, os pescadores têm por Santo será possível levantar a Pátria do chão.

Foi com uma secreta intenção que, de entre o muito que conheci da vida de Álvaro Ribeiro, escolhi três acontecimentos apenas. Três e não mais e também não menos. O número necessário para que do silogismo não se decaia na estatística.

O primeiro episódio é o da relação do discípulo com o mestre, isto é, de Álvaro Ribeiro com Leonardo Coimbra; o segundo episódio é o dele, enquanto Mestre, com o seu discípulo; o terceiro episódio é o da sua relação com a Mãe.

Nos três há isto de comum: a relação do filósofo com a língua portuguesa. E o facto de essa relação ter sido tão difícil no plano da oralidade é o que certamente explica que o pensador, fazendo de uma fraqueza uma força, fizesse passar o pensamento pela filologia para que, através dela, se tornasse filosofia, filosofia que é um esplendor da ideia.

Então, para ele, tudo quanto existe, e tudo quanto é, é a criação ou, se preferirdes, a manifestação de uma palavra original e que é luz e vida e que está com Deus no princípio dos princípios, no que em todos os começos é começo. Por isso mesmo, se compreendermos com a profundidade e o respeito e a exactidão que nasce de uma imaginação disciplinada pela arte, se compreendermos só que seja uma língua e essa língua é antes de tudo o mais a nossa, poderemos ver como todo o universo é uma maravilhosa organização sintáctica, em que as formas manifestadas são na relação dos verbos com substantivos e adjectivos, dotados de energias vibrando múltiplas como fonemas no som primordial. O homem é uma palavra, com os seus predicados próprios, a mulher outra palavra de superior predicação, o amor é o verbo que se conjuga pela imaginação infinita de um e de outro. Este exemplo basta, se não é o mais importante, para que utilizemos ao falar e ao escrever e sobretudo ao pensar as palavras fundadas na etimologia que é a de cada uma e, sem desviar das leis de Deus tais como se manifestam na Natureza, levantar de raiz a árvore da imaginação humana pela arte de poetar e pela arte de filosofar, isto é em suma, pela arte de amar.

Há um livro de Oscar Wilde que tem por título A Importância de se Chamar Ernesto. Falou-me Álvaro Ribeiro, quando o ouvi pela primeira vez, da importância de me chamar António Telmo. Direi agora da importância de se chamar Álvaro Ribeiro.

Quem nasce recebe um nome. Apresentar, segundo o uso social, consiste em dizer o nome da pessoa que se apresenta a outra pessoa ou a outras pessoas que também estão presentes. Álvaro Ribeiro não está aqui presente em corpo. Juntaremos ao seu corpo o que ele significa, ele esse nome, para começarmos a ter o filósofo presente em espírito.

Diz-se popularmente que “é pior enganar-se no nome do que na pessoa”. É que o nome em princípio representa a essência sobrenatural do indivíduo, pelo sacramento do baptismo lançado no mundo para se desenvolver naturalmente. Emprego a palavra “desenvolver” no sentido que Fernando Pessoa pensou para o poema Iniciação.

O nome exemplar é o de Wolfgang Goethe. Poderíamos também lembrar os irmãos Lumière que puseram pelo cinema as fotografias em movimento, ou Bell, o inventor do telefone. Mas com o nome de Goethe descemos mais fundo. O autor do Fausto sabia, através de Herder, que lhe serviu de modelo para a criação de Mefistófeles, que o seu salto do lobo (Wolfgang) ligava sobre o abismo pelas cores a treva e a luz. Herder brincava com os fonemas de Goethe, Goetia e Gott.

Devemos, pois, sempre que nos propomos tornar conhecido um autor, alguém que conseguiu ser ele próprio, começar por imaginar no seu nome. Alvaro Ribeiro escrevia assim mesmo o seu nome de autor, sem acento na primeira sílaba da esdrúxula Álvaro, para que a ideia de luz nascente, de alva, de alvor, de alvorada e de alvoroço fosse a enteléquia da corrente filosófica capaz de remover os portugueses, do ribeiro ao rio e do rio ao mar, ligando-os de novo ao seu destino atlântico.

Eis, por este caminho, que não sou eu, mas o filósofo que se apresenta a si próprio. Em vários momentos dos seus livros, ele dá a inquietação como o estado de alma próprio de quem cultiva “a ciência que se procura”, desde que essa inquietação se revista da forma do alvoroço.

Assim, por exemplo, em Apologia e Filosofia: “Quem for dotado daquele senso linguístico que caracteriza os verdadeiros poetas, saberá que muitas palavras portuguesas, como, por exemplo, saudade e alvoroço representam vivências fundamentais que, fenomenologicamente estudadas, abrem caminho para noções ou estimulam a peculiaridade do nosso pensar.”

De alva ou alba e alvor, antes de chegarmos a alvorada, alvoroço e alvorecer, podemos, por movimento de letras, chegar a um feixe de noções vivenciais como valor, lavor e louvar que encaminham o espírito para ora et labora, famoso preceito de alquimia. O ORA ET LABORA poderia figurar como a legenda do brasão de Alvaro Ribeiro, se nestes tempos do fim ainda persistisse a tradição de ser conferida nobreza a quem se distingue na guerra santa da filosofia.

 

António Telmo

 

DOS LIVROS. 02

28-02-2014 10:40

De um caderno de apontamentos. 01

 

A ideia de que a electrónica funciona hoje como o sistema nervoso da humanidade traz outra: a de que há um cérebro capaz de mexer todos os cordelinhos. O seu aparelho ósseo-muscular foi montado durante o século XIX e tem vindo a ser constantemente aperfeiçoado. Poderíamos estender a analogia a todos os órgãos. É, porém, analogia? Não estamos perante um facto?

Isto quanto ao macrocosmos designado como humanidade. No microcosmos, cada indivíduo é igualmente tratado como uma máquina, cada vez mais subordinada ao sistema geral, na medida em que a máquina vier a ser integrada na rede geral dos computadores. Para a medicina, por enquanto, é um arranjo de peças, substituídas por outras retiradas por outros indivíduos, vivos ou mortos. Aqui, o ideal perseguido é a substituição completa no mesmo ser de todas as peças. Já se tenta implantar braços e pernas de cadáveres nos amputados. A alma passeará um corpo morto, animará um cadáver.

O que parece, porém, que representaria o triunfo da explicação mecanicista da vida e da concepção de um mundo sem espírito deverá ser interpretado como o triunfo daquilo que é negado: a individuação. O homem continuará a ser o mesmo nos seus recessos profundos, a vida nele não cessará apesar da implantação da morte. Não é menos um horror, mas, uma vez mais, a única, primeira e última realidade é o ser essencial de cada homem. Nas operações, permanece para além da anestesia, dotado de um poder comparável ao da ressurreição. A anestesia tem por fim evitar a dor, o protesto do ser durante a transplantação.

Esta palavra transplantação avisa-nos, porém, de que o homem é concebido como um mecanismo vegetal. É o que se verifica pela clonagem, pela qual se realiza o que, nas plantas, é a propagação por estaca.

No Yoga, hoje tão propagado simultaneamente com outros prodígios, o homem é reduzido à sua condição vegetal pela prática da imobilização do tronco, suportada na raiz pelo plano do ânus e das pernas compostas em nó, e pela evacuação do pensamento consciente de si. Aqui, a anestesia do animal produz a estesia da planta, esse vago sentir obscuro e indeterminado que, na natureza, é uma espécie de remota consciência da inteligência que, nos recessos da terra, busca a luz e a flor.

 

António Telmo

 

(Publicado em Viagem a Granada, 2005)

DISPERSOS. 07

25-02-2014 09:16

O Encoberto, de Bruno[1]

 

            O esquema traçado constitui a teia através da qual se desenvolve a trama desta obra-prima da história de Portugal. O leitor, se o mantiver presente no espírito durante a leitura de tão complicado livro, não terá grande dificuldade em orientar-se nos caminhos bruninos, – sinuosos e entrecruzados. Julgamos dar nele a imagem operativa que animou e articulou o pensamento de Bruno. No entanto, o próprio esquema necessita de ser explicado e fundamentado.

            Comece-se pelo “sebastianismo” no vértice inferior onde se tocam as duas linhas principais de acção política. O Encoberto é para Sampaio Bruno o Reino de Deus por fim revelado na República dos Homens. Por vicissitude histórica a ideia do encoberto assumiu-se entre nós incorporada no anúncio do regresso de D. Sebastião que viria estender pelo mundo o Reino já fundado de Cristo. Será a ideia católica, tal como a viveu, por exemplo, o Padre António Vieira.

            Todavia, parece querer dizer-nos Bruno que o movimento sebastianista, organizado em torno das profecias de Gonçalo Eanes Bandarra, foi uma criação judaica, de fundo messiânico, lançada contra a Inquisição. Chega mesmo a sugerir, nas últimas páginas do livro, que as profecias não se refeririam a D. Sebastião, como mais tarde um D. João de Castro e um Padre António Vieira viriam dizer, mas aludiam à acção de David Reubeni, misterioso judeu alemão, que terá estado em Portugal no reinado de D. João III, era protegido pelo Papa Clemente VII, dizia-se vindo do Oriente, de onde o enviara o Preste João, e tentara converter ao judaísmo o próprio imperador Carlos V através do seu discípulo Salomão Malcho, o português Diogo Pires.

            O “sebastianismo” surge-nos assim com um duplo sentido e o não ter em conta que umas vezes está ao serviço da ideia católica de domínio universal e outras vezes da ideia judaica de fraternidade universal, ali posta a esperança num homem, herói ou santo, aqui no acesso de todos os homens. O segundo sentido terá sido animado e movimentado por uma organização secreta, depois conhecida cá fora por Maçonaria, tornada activa em Portugal, segundo o mesmo Bruno, no tempo de D. João III, por intervenção do referido David Reubeni, que já ostentava um avental com os sacros símbolos da Ordem. Quase simultâneo foi o aparecimento da Companhia de Jesus.

            Compreende-se, pois, a energia mental que o nosso historiador põe em negar, contra outros notáveis historiadores maçons, a filiação da Ordem nos Templários, servindo-se até do testemunho insuspeito do Conde Joseph de Maistre para mostrar que ela é nos princípios, meios e fins estruturalmente judaica. Este Conde Joseph de Maistre, superfamoso defensor da Igreja Católica, foi iniciado numa loja maçónica martinista e desempenhou na organização importantíssimo papel. Privou com o iluminado Saint-Martin, o promotor da tríade Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Saint-Martin foi o ilustre discípulo de Pascoal Martins, judeu português, que se diz também enviado do Oriente, e fundador, como o nome o diz, do martinismo. Toda a revolução francesa está animada pelo ímpeto contido na famosa tríade.

            Dois séculos antes, houve em Valência, na vizinha Espanha, uma série de insurreições populares à volta de sucessivos encubiertos queimados uns após outros pela Inquisição, que durante vários anos alimentaram a chama da revolta. Defendem já as ideias e as emoções que, mais tarde, se tornariam vitoriosas com a Revolução Francesa. O primeiro encubierto é, como David Reubeni, uma misteriosa figura de judeu.

            Para Sampaio Bruno, o ódio ao judeu em que comungavam não só os dirigentes da catolicidade mas também o povo ululante durante os autos de fé tem como base um conflito étnico remotíssimo. Sucessivas ondas de camitas terão povoado o território português, provindas de África. Este povo camita – do qual os berberes – terá sido vencido pelos hebreus e ter-se-á espalhado pelo norte de África. O que fundamentalmente o caracteriza é o culto pelos sacrifícios humanos por cremação, culto que revivesce nos autos de fé. O catolicismo dominante na Península Ibérica será, pois, um catolicismo africano, fanático e cruel e, por isso, a Sampaio Bruno afigura-se-lhe perfeitamente ridícula a tese de Oliveira Martins que vê no sebastianismo a expressão da alma idealista e sonhadora de todo um povo. O leitor que tenha a paciência de ler toda a documentação apresentada neste livro descrevendo o comportamento popular durante os autos de fé, em uníssono com as acções dos dirigentes, não deixará de sentir-se pelo menos impressionado de pertencer a semelhante Pátria.

            O Encoberto não é, pois, um livro que satisfaça o patriotismo ingénuo de tantos portugueses. Põe-nos perante a realidade da nossa própria natureza, no que ela tem de sinistra e tenebrosa. Sampaio Bruno não é porém um maniqueu, no sentido deturpado da palavra, que é o que vê no maniqueísmo um dualismo do bem e do mal. É um gnóstico, embora do tipo não cristão. O mal é, para ele, um mistério e só a iluminação divina que traz consigo a progressiva reintegração no uno das parcelas divididas poderá finalmente libertar-nos do mal. Daqui o elogio do socialismo como forma de teodiceia. Assim como no alto, pela kabbalah, a Igreja se ligará à Maçonaria (assim pretendia David Reubeni), também em baixo o socialismo abrangerá tanto camitas como semitas no mesmo movimento de aperfeiçoamento moral.

            Podemos discordar de Sampaio Bruno, mostrando como o socialismo constitui uma degenerescência da Maçonaria. Aqueles que, de um ponto de vista esotérico ou simplesmente religioso, formam uma imagem minorativa da Maçonaria porque o socialismo ateu ou igualitário dela derive ou nela se fundamente, deveriam pensar que, também para os católicos, os caminhos sinuosos do clero não alteram a perpétua verdade da Igreja fundada por Pedro. Todavia, Sampaio Bruno vê no socialismo democrático subordinado à ideia suprema de República a aplicação ao progresso da humanidade dos princípios sóficos da Maçonaria. Assim como Leonardo Coimbra dizia ser a “mecânica” o socorro de Deus enviado ao Nada, quererá talvez significar Sampaio Bruno que o socialismo constitui o socorro que o todo homogéneo dos seres integrados envia ao nada dos seres decaídos. O fim da Maçonaria no plano político será assim a participação dos membros dispersos e dilacerados da humanidade numa grande e luminosa unidade interior. Nem um só homem poderá ficar fora do processo universal de realização da Bondade. Todos os homens, pela democracia, serão chamados a cooperar activamente na política, assumindo-se cada um como uma parcela luminosa do universo, pois, enquanto emanação superior, conquanto esquecida de si, possui a potencial dignidade de um “sacerdote-rei” maçon, de um arquitecto. Há então que correr o risco que consiste na subversão dos elementos superiores pelos elementos inferiores. Mais do que o risco, há que viver essa subversão sem a cobardia do egoísmo, a não ser que se aceite a ideia pessimista de que para sempre haverá divisão entre os que sabem e os que não sabem, entre os que podem e os que não podem.

            Neste ponto, cremos ter dado as indicações necessárias. Deixamos ao leitor o cuidado do melhor. Antes de terminar, poremos ainda um aviso quanto ao estilo de Bruno.

            Este livro só pode desvendar-se pela inteligência que a memória dá ou pela memória que a inteligência ilumina. O leitor que, logo nas primeiras páginas, não sinta que está perante um livro secreto ou “encoberto”, como de si mesmo ele diz no título, e que, em consequência, siga por essa estrada das frases e dos períodos desatento ao que já percorreu e desinteressado pelo que vai percorrer ainda ou ficará a meio caminho, enfastiado e confuso, ou chegará ao fim sem nada ter visto de essencial. Tudo nele se liga e tudo está posto a seu tempo e no lugar exacto. É uma fantástica, rigorosa, realista construção mental.

            Em geral, quando lemos, arrumamo-nos ao sentido imediato e deixamo-nos conduzir pela cintilação fácil das palavras. Sampaio Bruno não deixa. Logo no período, se não na frase, troca as habituais relações dos termos do discurso, introduz parêntesis, emprega formas estranhas e desusadas de dizer, amontoa citações, demora propositadamente o ponto final, obriga-nos enfim a um esforço de memória que, a ser feito, nos torna mais ágeis de inteligência. Por ali não se vai desatento e adormecido. As sucessivas barreiras exigem um leitor corajoso e que confie na final revelação de um segredo.      

 

António Telmo


[1] Messianismo Português, colóquio realizado na Casa Municipal da Cultura, em Coimbra, no dia 23 de Outubro de 2004, Lisboa, Fundação Lusíada, 2005, pp. 39 a 45.

 

DOS LIVROS. 01

21-02-2014 09:06

Uma nova secção desta página dá livre curso à difusão do que António Telmo deixou escrito nos livros já publicados, e aqui tanto poderão vir a caber textos na íntegra como passagens dadas em excerto. A escolha inaugural recai sobre a figura de José Marinho, num curto escrito testemunhal pejado de recordações, saído a lume em Viagem a Granada, de 2005. Recorde-se que o suplemento télmico, da responsabilidade do projecto António Telmo. Vida e Obra,  que acompanha o próximo número duplo da revista de cultura libertária A IDEIA, irá publicar a correspondência trocada entre mestre e discípulo, num trabalho de transcrição, comentário e anotação de Jorge Croce Rivera e Rui Lopo.

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José Marinho

 

Lembro-o melhor na Brasileira do Rossio, junto a uma das colunas do velho templo maçónico, que hoje é Banco e então era Café, nos meus anos moços. Movia a cabeça com o garbo de uma águia, atento e flexível aos sopros invisíveis do Espírito, uma espécie de núncio apostólico da luz única. Aquela cabeça era um sol.

Tenho a honra de ter pertencido ao círculo que a sua palavra traçava. Naquele Café de mulheres perdidas, de actores vencidos, de traficantes e de chulos, de bombistas sem préstimo ou de revolucionários sem emprego, a filosofia, que não encontrávamos na Universidade, era uma lâmpada. Formávamos roda sobre a mesa preta, traçávamos o círculo por entre nuvens de fumo. As káfkicas baratas, pré-históricas, tão antigas como o tempo, corriam por todo o lado. À esquerda e à direita, ladeando o rectângulo da grande sala, havia límpidos espelhos paralelos que multiplicavam as imagens até ao infinito.

José Marinho produzia em quem teve a ventura de o conhecer a impressão de se estar, não perante um homem, mas perante o próprio pensamento. A postura do corpo, a maneira de olhar, a subtil e doce ironia do sorriso, o movimento aéreo das mãos, o próprio jeito de compor a gravata acompanhavam o movimento do seu espírito reflexivo. Era muito difícil segui-lo por onde ia. Quando um de nós, entusiasmado com uma ideia, lha dizia com alguma empáfia, não o contradizia, deixava-o para trás para que imaginasse à frente outras e melhores ideias e isto com um simples “Já passei por aí”. Ele ensinou-nos a única religião irrefutável : a de uma inteligência cujo acto é impossível se não regressa continuamente à origem, ao segredo do próprio pensar, ao ponto sem dimensão donde tudo emerge. O pensamento nele era a demonstração de Deus. Por isso foi para nós, seus discípulos, um dos últimos rosacruzes.

Escreveu nessa época a Teoria do Ser e da Verdade, onde, pela visão unívoca e pela cisão, une, numa sucessão de logismos e de intuições, segundo o processo mental da corrente alterna, o que de mais revelador significam a cruz e a rosa. Nunca, porém, nos foi dado racionalizar a filosofia de José Marinho, de tão ligada ao seu misterioso ser singular, tão sua e de Deus e por isso inacessível.

Quinze anos volvidos, nos últimos meses que passou connosco, quis a fortuna que todos os dias almoçássemos juntos. Vi-o pela derradeira vez nesta vida numa cama de hospital. Levei os meus dois filhos, ele com cinco, ela com oito. A magreza de Marinho era impressionante. Era já só espírito. Dois dias depois falecia. Os médicos disseram que morreu em êxtase.

Nos últimos anos da sua vida, foi funcionário da Fundação Gulbenkian. Exactamente, FUNCIONÁRIO  DE  PSICOLOGIA, uma monstruosidade concordante com um mundo em que se desalojam Cafés para se edificarem Bancos e se evanesceu de todo a ideia arqueológica de iniciação filosofal.

Funcionário de psicologia! E de psicologia científica!... Com que suspicaz e penetrante ironia, mas também infinita cautela e até alguma caridade para seus confrades doutos, se referia  ele à vil ocupação inglória do tempo da vida, em que fingia ou fazia por seguir uma ciência definitivamente refutada em todos os livros de gente e, portanto, também nos seus. Este conflito entre a secreta, séria e honrada obediência à luz da verdade e o amor aos seus próximos que, enquanto homens e mulheres, participavam e comungavam, por este ou aquele modo, dessa mesma verdade, explica em grande parte o seu estilo de viver, em que compreensão e interrogação apareciam como um só movimento.

Entende-se assim por que José Marinho não tenha concitado o ódio dos outros homens. Um por um, evidentemente, na terrível miséria cheia de dignidade do seu ser individual. Mas o ser genérico dos homens reunidos pela força dos egrégores, a que os poetas chamam molusco e a teologia diabo, na impossibilidade de o absorver e integrar, haveria de catapultá-lo para lá das portas da morte.

Que Deus tenha em paz a sua alma!

 

António Telmo

 

(publicado em Viagem a Granada, 2005)

 

CORRESPONDÊNCIA. 05

20-02-2014 09:11

Em 2005, a Fundação Lusíada publica as Actas do Colóquio O Messianismo Português, promovido pela revista Teoremas de Filosofia e realizado, no ano anterior, na Casa da Cultura, em Coimbra, por ocasião do centenário do livro O Encoberto, de Sampaio Bruno. Além de poemas então lidos por Eduardo Aroso, o livrinho dá a lume as comunicações ali apresentadas e um escrito de António Telmo (com Pedro SInde e Carlos Aurélio, o filósofo compusera o leque de oradores) que, sem documentar a sua intervenção no encontro, antes consubstanciava o prefácio, escrito muitos anos antes, para uma edição de O Encoberto, de Bruno, que nunca chegou a concretizar-se, consoante se afere pelos informes que nos introduzem na brochura. "O Encoberto de Bruno", assim se intitula o texto prefacial que aqui será publicado dentro de dias. Por ora, e como um fruto do estudo do espólio de António Telmo que o nosso projecto está a realizar, disponibilizamos aos leitores as quatro cartas (três de José Valle de Figueiredo e uma de Luís Sá Cunha) que os responsáveis das Edições do Templo escreveram a António Telmo, entre Junho e Outubro de 1978. Por elas se esclarece grandemente a génese deste importante disperso télmico. De modo significativo, fica-se a saber que foi presumivelmente Álvaro Ribeiro quem indicou a Valle de Figueiredo (na foto) o nome do discípulo para prefaciador...

 

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CORRESPONDÊNCIA DE JOSÉ VALLE DE FIGUEIREDO E LUÍS SÁ CUNHA PARA ANTÓNIO TELMO

 

DATA: 9 de Junho de 1978

N/REF.

V/REF.

 

 

                                                                                              Exmo. Senhor

Dr. António Telmo Vitorino

Rua Marquês de Marialva, 22

BORBA

 

Senhor Doutor e prezado confrade,

                                               Sendo de há muito tempo seu leitor e admirador atento venho agora incomodá-lo por indicação do nosso bom e comum amigo Dr. Alvaro Ribeiro pelo seguinte: está esta editora de que faço parte interessada em publicar o “ENCOBERTO” de Sampaio Bruno. Pensei, entretanto, que seria do maior interesse anteceder o texto com um prefácio ou estudo-prefácio relacionado com o assunto, para o qual o Dr. António Telmo seria a pessoa ideal, se quizesse ter essa generosidade, nas condições que propuser.

                                             Ficando a aguardar notícias suas

sou

             

muito obrigado

 

José Valle de Figueiredo

 

 

[em papel timbrado de

Edições do Templo, Lda.

Rua da Mãe de Água, 13, 4.º F

Telefone 36 21 58

Lisboa - 2]

 

* * *

 

DATA: Lxa. 12 de Junho de 1978

N/REF.

V/REF.

 

                                                           Meu Prezado Amigo,

 

            Muito obrigado pela sua resposta. Ficaria muito satisfeito se me mandasse o prefácio até ao dia quinze de Agosto. Poderá ser? Se tivesse uma semana antes, então seria o ideal.

            Com um grande abraço

do

José Valle de Figueiredo

 

 

[em papel timbrado de

Edições do Templo, Lda.

Rua da Mãe de Água, 13, 4.º F

Telefone 36 21 58

Lisboa - 2]

* * *

 

DATA: 24 Agosto 1978

N/REF.

V/REF.

 

                                                                  Exmo. Senhor

                                                           Dr. António Telmo

Exmo. Senhor,

 

            Sem prejuízo de recomposição posterior de José Valle de Figueiredo, que pessoalmente invocou a sua disponibilidade amável para o prefácio do Encoberto, apressamo-nos a anunciar-lhe que acabamos de receber o seu texto que passaremos a incluir na edição.

            Manifestando-lhe desde já o nosso agrado e agradecimentos pelo trabalho interessante, enviamos-lhe os nossos cordiais cumprimentos

 

                                               Luís Sá Cunha

 

 

[em papel timbrado de

Edições do Templo, Lda.

Rua da Mãe de Água, 13, 4.º F

Telefone 36 21 58

Lisboa - 2]

 

* * *

 

DATA: 2 de Outubro de 1978

N/REF.

V/REF.

                                                           Meu Prezado Amigo,

 

            Regressado de férias, apresso-me a escrever-lhe para agradecer o magnífico prefácio que, aliás, o Luís Sá Cunha, também se apressou a louvar-lhe.

 

            Queria pedir-lhe o favor de me dizer quanto é que deseja que a Editora lhe pague.

 

                                               Com um grande abraço

                                                           do

                                                           José Valle

 

 

[em papel timbrado de

Edições do Templo, Lda.

Rua da Mãe de Água, 13, 4.º F

Telefone 36 21 58

Lisboa - 2]

 

VOZ PASSIVA. 14

17-02-2014 10:59

É mais um contributo télmico para o próximo número duplo da revista de cultura libertária A IDEIA, este surpreendente ensaio de Paulo Jorge Brito e Abreu que agora antecipamos ao leitor. Recordamos, a propósito, que aquele número, já o 73/74, da publicação actualmente dirigida por António Cândido Franco, sairá a lume no segundo semestre deste ano, tendo já uma sessão de apresentação aprazada para a sexta TARDE TÉLMICA de 2014, a 22 de Novembro, na Biblioteca Municipal de Sesimbra. Desta feita, a revista vem acompanhada de um suplemento inteiramente dedicado à memória e ao legado do nosso patrono, onde se publicarão inéditos deste e as cartas que lhe escreveram José Marinho, Dalila Pereira da Costa e Fiama Hasse Pais Brandão, num trabalho coordenado pelo projecto António Telmo. Vida e Obra, e que conta com a colaboração de António Carlos Carvalho, Jorge Croce Rivera, Pedro Martins e Rui Lopo.    

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António Telmo: os Números, os Nomes e os Numes

Paulo Jorge Brito e Abreu

Dividindo bem o Logos – distribuindo-o bem pelas tuas entranhas.

Empédocles

 

I

 

Seguindo e segundo santelmo António Telmo, eis aqui, e eis agora, as «Congeminações de um Neopitagórico». Pois cada nome é um número, e cada número é um Nume. Abeiramo-nos, em sacral, sagrado esquisso, da Simbologia, da Súmula, da Suma que nos dá o velho Pitágoras. António Telmo ou, então, o Tomé Natanael, António Telmo, na Ágora, o áugure pítico. E aqui surge, dessarte, a pergunta: qual o escopo, e a escola, deste nosso «Bateleur»? E em crítica acribia, eis o repórter, a resposta: adentro do culto, e Cultura Portuguesa, adunar os Hebraicos ao Livro de Thoth. Quero eu dizer, e aduzir: enlaçar a Kabbalah com a Letra de Hermes. Filho de Júpiter, e Maia, o deus Hermes, o Mercúrio, o Hermes Trismegisto, o deus que aos homens deu as palavras, as letras, os nomes e os Numes. E é que a serpente mercurial, ela é superna, e superior, ao cifrão comercial. Ela é a música, o Museu, e Templo das Musas. Unindo entanto, e ligando, o Céu com a terra; eis o seu mágico, ou ático, laboratório. Queremos assertar: aqui hermética hermenêutica, o labor, inicial, iniciando com o oratório. Se tudo é uno, portanto, então tudo está em tudo. E a Kabbalah é o saber que importa desvelar. As Letras activas como o Sol e as estrelas. Pois, na Fonte Cabalina, em Cavaleiros do Amor, foi de acordo com as Letras que o mundo foi criado – e qual Arauto, e Autor, António Telmo é por isso o fogo-de-santelmo, «Philosophus per Ignem» para as quinas de Alquimia. E se ele é, dessarte, o Filho da Viúva, ele é, outrossim, o Tomé Natanael. Elaborando, e operando, na Arqueologia do Ser. Tomando a Bíblia, sobretudo, como a prosódia, e pois ofício, o exercício das metáforas – e esse o múnus, o Nume, da Palavra perdida, da hermética irmandade dos Amigos da Luz. Fazendo, como vimos, do Poeta um «Bateleur». Que o acrobata, pelotiqueiro, ou saltimbanco, é a lâmina prima do Tarot de Marselha. O Iniciado ou o Mago, aquele que, com a Língua, aquele que se dedica aos jogos malabares. Que o Mistagogo, e o Poeta, ele é sempre, ele é sempre, um prestidigitador. Aquele que, no jogo, em ludíbrio da mente, aquele que transmuta a verdade em mentira e a mentira em verdade, o cultor, o místico, e mistificador. «Arte Poética», dedicado, formalmente, ao Álvaro Ribeiro, data, portanto, de 1963, e é o «liber» primeiro do nosso Criacionista. Elaborado nas «sephiroth», na árvore das cifras, ou safiras dessarte – e não remembras, ó ledor, a esfera, e o «Sfairos», parmenidiano? Para bem ser aprendida, e desse modo compreendida, urge bem que esta Lira, já escrita em «Shekinah», seja tomada como estética, e poética, Filosofia. Um pouco como o fazia, professando e proferindo, Agostinho Maldonado, nos anos 70. Imitando o que operava, falante e aflante, o feraz Leão Hebreu, o médico e Filósofo Judah Abravanel. Ou em tópicos e tropos camonianos, adorando o Deus menino por cuja potestade os deuses descem à terra, os homens sobem ao Céu. Considerando, por isso mesmo, e siderando, as três mais claras, e preclaras, expressões do Cristismo, em terras de Luso, são o Mosteiro, dessarte, de Santa Maria de Belém, «Os Lusíadas» da Luz e o paládio «São Paulo», do Teixeira de Pascoaes. Bem longe e distante, bem longe, deveras, da feira de vaidades que é o mundo literário Portugalaico. Pois importa, em «Shekinah», importa, aqui, o proferir: se o bétilo, «Omphalos», se o bétilo, na Pítia, clama por Beth, a «Casa de Deus», ou «Beth-El», se tornou, cristiana, em «Beth-Lehem», em Belém, ou na «Casa do Pão». Que inicial da palavra «Barukh» ( bendito seja Ele ), a letra «Beth» é o começo de «Bereshith», ou «no princípio», a primeira palavra do Antigo Testamento. Ou especulando, em estupor, e estupefacto: em demanda, ou na questa, de um sófico centro, o ministério mais alto do magistério Portugal, ele é ser, ele é ser, um construtor de Catedrais. Não já no fundo e fundamento, mas em preste Firmamento. Ou dizendo, e aduzindo, por vocábulos outros: em frutífera «Efrata», o antigo, avito nome da cidade «Betel» foi a «Luza», Luza gente, ou gente Lusa. Sempre aliando, na Casa de Deus, sempre aliando, e ligando, a terra com o Céu. A Maia ao Pater, afinal. De tal modo que assertamos: se a terra é fértil, de facto, e se chove, deveras, ora urge que os Magos já voltem a Belém…

 

II

 

Trataremos, aqui, do génio poético do mundo ocidental: não é dessarte, António Telmo, ciência fácil e fútil. Pois, ao falarmos do Tarot, falaremos da Torah – e proferindo nós o naipe, o «naib», ou «naibbe», professamos, nós ora, o Vidente e o «nabî». Pois consequente à expulsão dos judeus da antiga Espanha, a diáspora sefardita difundiu, e defendeu, o alado «Liber Mundi». E ora basta e ora bonda. Pois «nomina numina» diremos nós ora: foi nado, António Telmo, em Almeida, a 2 de Maio de 1927. E significa, o nome António, «valoroso» ou «valioso». A abrir sua «persona», corresponde, a letra «A», ao «Aleph» dos patriarcas, e significa, esse «Aleph», «o Touro», o signo precisamente do nosso querido Filósofo. E se o chifre do Touro é o crescente lunar, simboliza «Aleph» a Lua em sua prima semana; se Vénus tem seu domicílio nocturno no signo de Touro, a Lua está nele em altar exaltação. E sabe-se, na Simbologia, que o Touro, ou bovino, representa os deuses celestes nas religiões e nos cultos indo-mediterrânicos. O «Tauros» é símbolo da força, e potência criadoras, ele a-presenta, ou re-apresenta, as forças elementares do sexo e do sangue. Pois a partir, na História, do terceiro milénio antes de Cristo, o Touro era o Deus El, sob a forma, formal, da estatueta de bronze; fixada na ponta de um Pau ou duma Vara, essa estátua é similar à do feraz Bezerro de Ouro. Ou pra aplicarmos, aqui, a Cabala fonética: o «Stauros» dos gnósticos era a Cruz, dessarte, e o Tau dos Patriarcas. E queremos ir até ao imo da ciência de Pitágoras, a Kabbalah é florescência da Linguagem dos Pássaros. Que o Poeta é a chave, o Poeta é qual a ave que as portas nos abre. Pois seguindo e segundo o nosso Livro de Thoth, nasceu, António Telmo, sob o Touro, cognato, e segundo decanato. Quer isso indicar, indiciar, assinalar: um homem com um cinto, e com uma chave na mão direita, a dignidade, a nobreza, o poder e o domínio. O domínio e o poder, afinal, duma Arte Real. Já o «A», de que falámos atrás, significa a independência, a curiosidade e a coragem – e o poder, iniciando, de comando e iniciativa. E na primeira consoante do nome de «António», tipifica, o nosso «N», a imaginação, criatividade, e o cunho inspirador. Que o nascido, alfim, no dia 2, é qual harmónica «persona», ele é sensível, emotivo, e não gosta de discórdias. Fortemente afectuoso, ele ama as Musas, a dança, e o ritmo em geral. Pois importante, e marcante, é o facto seguinte: nos primeiros dias de Maio, concelebra, o povo Luso, a festa das Maias, as Maias promotoras das Artes maiêutas. Se dedica, o mês de Maio, a Vulcano ou Apolo, Apolo consorciado com a Maia mulher. Se o maior é o magno e portanto o maioral, bem magíster, e mágica, é nossa majestade. E qual o magistério? Se nascer no quinto mês dá origem, lilial, a uma certa instabilidade, 1927, agora, é como segue: 1+ 9 + 2 + 7 = 19 – e 1 + 9 = 10, e 1 + 0 =1. É o signo da Palingénese, reencarnação, e da Nova Renascença; ela plasma e ela marca a senectude do sénior. O Arcano do Sol iluminando, alumiando, o ministério menestrel. Ratificando, inicial, e rectificando, no «Karma», indicaremos, em Telmo: 2 + 5 = 7: é o número, deveras, das Artes Liberais e dos dias da semana; se isso é sagrado, o secreto e o segredo, é vista aqui, a sabatina, qual a missa e a missão.

Professoral, a missão, dos Poetas maiêutas. E ora sus, avante, e mais ânimo e Alma para a nossa viagem: pois somando, agora, os dígitos, eis a safra, e pois a cifra, do prestidigitador: 2 + 5 + 1 + 9 + 2 + 7 = 26. E 1927 + 7 = 1934; e concluindo, no conto, 1 + 9 + 3 + 4 = 17, o Arcano e Arcaico da Estética Estrela. Quer num, quer noutro caso, para o Filósofo António Telmo, o 8 é dessarte o Número da Vida. Ou cotejando aqui a causa com António de Macedo: foi nado e nascido, o homónimo do Telmo, a 05/ 07/1931: e 1931 + 5 + 7 = 1931 + 12 = 1943: e 1 + 9 + 4 + 3 = 17; e como sói aqui dizer-se, voam juntas e conjuntas, as aves, liliais, da mesma plumagem. Para António Telmo Carvalho Vitorino, o 8 é portanto o número do Destino – e é a Força da Justiça, e a Estrela está com ele em correlação. Simboliza, a lemniscata, a Rosa dos Ventos e a liderança, a Autoridade, do Autor, e o poder material. São as provas, desafios, e a transmutação – e a verve da Kabbalah, e a Caaba como símbolo da pedra e do Cubo. Mas característica, e carácter, da estética Estrela, é o prospectivismo, professor, e o espírito visionário. A imaginação, dos magistas, a «imago» aplicada à poética razão. Pois liberta, ou liberada, dos instintos e pulsões, realiza-se, a Estrela, na estesia da Esperança e no Fogo do Espírito. Por a Poesia, afinal, como a cura, visionada, e o estado de Graça. E sendo vista, a Psicologia, como a fala da Alma e a Fonte Cabalina – e eis a Luz e a Lira, eis a «lectio», lição, do Álvaro Ribeiro.

Por limitações, na lida, de espaço, terminaremos ora. Não sem antes indicarmos, sinaleiro, e assinalarmos: o número pessoal, ou da Personalidade, de António Telmo Carvalho Vitorino, ele é, dessarte, o 22 – ele em nova, numinosa, é chamado Número Mestre. Significativa, apelativa, oblativa coincidência: é o Número do Destino de Sigmund Freud, o frutuoso; do Destino é o Nume, em vida sana, de António Manuel Couto Viana. Para Mário Máximo, outrossim, 19 + 9 + 1956 = 1984, e 1 + 9 + 8 + 4 = 22. São 22 os capítulos do feraz Apocalipse, 22 as letras do alfabeto hebraico – e 22, argonautas, e em conteúdo, os Arcanos Maiores do Livro do Mundo. Eis a cifra, em «Sephiroth», do grande apostolado, do Génio engenhoso, e Construtor de Catedrais. Ele é «Nabî», o Visionário, e labora, liberal, para toda a Humanidade. Por isso aduziremos, mensurando a mente nossa: vamos todos, com Telmo, até ao novo Tabernáculo. Ou vamos ora, simplesmente, aprender a dançar.

 

Queluz, 05/ 02/ 2014

AMOR MAGISTER EST OPTIMUS

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