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DISPERSOS. 09

31-03-2014 11:29

[Ernst Jünger]

 

O número 13: página de autobiografia espiritual*

 

 

14 de Outubro de 1998

 

Ontem, dia 13, encontrei, sem que o procurasse, o texto de que precisava, desde que, há quatro anos, colhi no meu quintal um trevo de quatro folhas. Foi tão importante este encontro como o do trevo. Ambos são como o início e o fecho de um ciclo de vida. Mais uma vez a significação tornou interior e actuante o que, não obstante o seu carácter insólito, não diferia pela sua opaca exterioridade de tudo quanto vamos vendo no decurso dos dias.

O texto é de Ernst Jünger. “Um trevo de quatro folhas traz felicidade. Todavia, há uma condição, que o encontremos sem o termos procurado.” Ignorava esta condição. Vejo que no meu caso ela se deu. Lia no meu quintal o Homem de Luz de Henry Corbin. Ao suspender a leitura por uns momentos., o meu olhar caiu num trevo de quatro folhas, bem distinto num tufo que se amontoava à volta de uma roseira.

“Julgaremos estar perante um paradoxo e, no entanto, muitas pessoas têm o dom de descobrir trevos de quatro folhas sem que estivessem à procura deles. A minha mãe era uma dessas pessoas. Muitas vezes, passeando com ela ao longo de um campo de trevos, baixava-se para colher um de quatro folhas. Eu punha-me à procura, mas, apesar de todos os meus esforços, nunca consegui encontrar um que fosse portador da felicidade.”

Em rapaz, eu e outros da minha idade, por muito que o tentássemos, nunca nos foi dado encontrar a excepcional planta. Fi-lo muitas vezes depois. Cheguei a convencer-me que não existia o trevo de quatro folhas e que a tradição popular queria apenas significar com isso que a felicidade é impossível.

“Conheci – prossegue Ernst Jünger – outras pessoas que tinham adquirido esta faculdade. “Adquirido” não é, a bem dizer, a expressão justa; é antes um dom que se manifestou um belo dia. Data importante para elas.”

Data importante, pois, para mim. Importante por se ter manifestado o dom e não porque, depois disso, tenha acontecido alguma coisa que se pudesse interpretar como a vinda da felicidade. Tudo continuou a correr tranquilamente como antes.

“Desde que a “procura” me deixou

Aprendi a encontrar.

Desde que um ventre me fez frente

Navego com todos os ventos.”

“Nietzsche chamou a estes versos “A Minha Felicidade”. Os dois primeiros são ambos aplicáveis aos trevos de quatro folhas, os dois últimos dão a receita da arte da descoberta: a equanimidade.”

No meu caso, o encontro com o trevo de quatro folhas associa-se ao número treze que, desde aí, durante os quatro anos que entretanto passaram, começou a perseguir-me e a marcar acontecimentos e seres à minha volta. A página em que, ao acaso, o guardei era a 113. Ter-se-á fechado um ciclo de vida com o texto de Ernst Jünger, que me apareceu no dia 13 de Outubro? Ou terei de ver nele o portador do sentido que por mim mesmo não era capaz de ver naquele encontro e na repetida emergência do 13, factos que, não obstante o seu carácter insólito e excepcional, me apareceram envolvidos de invencível e opaca exterioridade? Não será, juntando uma coisa a outra, que um novo ciclo de vida se abre pela revelação desse sentido?

O trevo de quatro folhas é 1+3. Não é propriamente um trevo, mas qualquer coisa como um quadrevo.

Em todas as emergências do número treze, a mais espantosa é a seguinte. Desde a publicação da História Secreta de Portugal, caí nas redes do prestígio. Desde então tenho recebido cartas e visitas de muitos desconhecidos que seria capaz de esperar me viessem procurar para aprender qualquer coisa de mim. É, porém, divertido, observar que todas essas pessoas se põem a ensinar-me. Leio as suas cartas e, salvo um ou outro caso, não respondo; se vêm ver-me, escuto-os placidamente e, em geral, não voltam a procurar-me.

Ultimamente, recebi de um desses desconhecidos por três vezes uma série enorme de poemas patrióticos, católicos, messianistas, claros de dizer, mas sem a força da metáfora vidente. Nenhuma mensagem em prosa os acompanhava, talvez porque os fez a pensar em mim, que aliás, interpela aqui e além. Todavia, na última desses três cartas, havia uma página em A-4, onde estava escrito só o seguinte: Dedução do número 13 pelo três e pelo quatro e umas contas arbitrárias mostrando o procedimento dedutivo. Apesar de quanto isto me aparece como estranho e digno de atenção, não respondi. Responderei?

 

António Telmo

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* Título da responsabilidade do editor.

INÉDITOS. 09

28-03-2014 09:46

Dos símbolos[1]

 

A incapacidade de pensar por outro modo que não seja o que tudo compreende por relações mecânicas, se pode dar a ilusão de inteligência onde não há a vida do espírito ou nem sequer a vida, revela-se, pelo contrário, como opacidade quando tal modo aparece a descrever e a circunscrever aqueles domínios que se caracterizam pela ausência de relações mecânicas na produção dos fenómenos. É o caso do esoterismo. Observamos aqui, naqueles que hoje parecem incumbidos de o destruir divulgando-o, que se nega ao pensamento ou ao espírito qualquer eficácia ou até realidade se não o interpretarmos como energia ou força ou vibração actuando sobre a matéria ou sendo essa mesma matéria actuando sobre si por diferenças de nível ou de tensão.

Ninguém nesse domínio aceita ou reconhece o sobrenatural como aquilo cujas leis são inacessíveis à Física, isto é, que sejam outras que as leis da natureza e somente acessíveis a uma espécie de intuição que seja, ao mesmo tempo, a revelação de outra coisa. Por isto mesmo é que os símbolos (e a natureza é símbolo da sobrenatureza) constituem a linguagem de acesso ao que sem eles permanecerá abscôndito.

Só neste sentido se pode dizer que a poesia é superior à história e a metafísica à física. O diálogo da razão com o que se intui simbolicamente é o que verdadeiramente constitui a filosofia. Pela imaginação as metáforas compõem-se com os conceitos para formar a poesia. Mas o modo como os esoteristas que vimos referindo pensam os símbolos, se é lícito e próprio falar aqui de pensamento, ou é um jogo infantil em que pelo fio das associações por semelhança se prolongam indefinidamente as comparações ou decai novamente na tenebrosa redução do superior ao inferior, como quando se diz, por exemplo, que Cristo é o símbolo do sol ou na indefinição do superior, como quando se diz, ao invés, que Cristo é o sol espiritual de que o sol físico é o símbolo. O verdadeiro caminho, neste último caso, seria o de ver no sol físico o sol espiritual por um modo de o olhar de que só os contemplativos têm o segredo. 

Daqui se compreende que o que quer que se consideremos (pois tudo é símbolo) vemo-lo sempre depois de se ter produzido, o nosso ser está sempre em atraso em relação ao fiat do ser. Um símbolo vive-se ou não se vive, explica-lo é perdê-lo. Só há um processo de vencer esta dificuldade, é o de descer à fonte do nosso próprio ser.

 

António Telmo



[1] Título da responsabilidade do editor.

 

VERDES ANOS. 03

26-03-2014 13:02

O princípio de individuação na literatura[1]

 

Triste ideia, sem dúvida, faria da poesia aquele que nela apenas visse uma cinematografia do sentimento. É certo que, quando se fala de «pensamento», raras vezes se anuncia aquela actividade invisível que nos envolve, domina e exalta sempre que lemos um grande poeta. Quando de «pensamento» falamos, temos em mente uma ideia de arranjo e composição, de discernimento e análise de imagens e, nesse sentido, nos exprimimos ao declarar, por exemplo, Antero de Quental um poeta filósofo. Mas a poesia não é comparável à cinematografia. Resulta de uma actividade secreta invisível e subtilmente audível e, por isso, se projecta primeiro em ritmos, depois em imagens, por fim em figuras, que constantemente se dissolvem durante a leitura em alta voz.

Não é possível negar a existência do pensamento sem reduzir a literatura a figura contingente. E com efeito, os estudos literários em que transparece ou se afirma essa negação denunciam-se cúmplices da sociologia positivista. Alguns positivistas, como o linguista francês Belly, chegam até a propugnar a eliminação da poesia do mundo social e só devemos admirar-lhe a coerência se subentendemos nesse desejo o intento mais fundo de combater a filosofia.

A corrente positivista, que domina em superfície a nossa cultura, aparece ligada a outras anteriores, tais o iluminismo e o humanismo da Renascença. Na história da cultura portuguesa, tais correntes, entre si comutadas, não impedem, contudo, a originalidade da nossa literatura. Para Fernando Pessoa, consumado o ciclo das descobertas marítimas, retomou-se um movimento de descobrimento no invisível, de que a epopeia última será a expressão suprema.

À filologia incumbe imprimir-se uma orientação eficaz no domínio do pensamento. Quem queira estudar a filologia portuguesa desde os inícios até hoje, ganha, sem dúvida, mais em considerar os escritos de natureza artística do que em cingir-se aos trabalhos compostos por linguistas. Diz-se que a filologia como ciência é recente, o que só pode interpretar-se como afirmação de que passou pela classificação das ciências positivas. A palavra «ciência» já se não impõe como se impunha e, por isso, deixou de actuar eficientemente como instrumento de propaganda e domínio positivistas, a não ser, evidentemente, nas zonas sempre retardadas da vulgaridade. Todas as vezes que a filologia é apresentada como novidade científica, não só se veda qualquer possível verdade dos estudos anteriores, como se contraria a liberdade de pensar a filologia noutra direcção, porventura mais fecunda.

Se os efeitos que o escritor produz e se configuram em beleza manifestam a actividade das causas, não surpreendem ninguém os limites duma sistematização filológica que para se constituir teve de negar os difíceis caminhos da hermenêutica. A hermenêutica não se cinge somente aos textos literários, mas é também uma interpretação filológica das várias expressões da actividade plástica. No problema das relações da filosofia com as artes manuais, das causas com os efeitos, a filologia fornece a fórmula de solução. O artista plástico que compõe conforme vê, e não conforme ouve ou imagina, na fase de imitação acreditará na mediação geométrica e matemática da sua arte para a filosofia, em inconsciente oposição ao ensino de Aristóteles. A oposição à estética aristotélica explica também a predominância na escultura de representações do corpo humano e a supremacia dos estudos anatómicos sobre os biológicos na Escola de Belas Artes.   

As artes plásticas mais divulgadas, arquitectura, escultura e pintura, na medida em que se cindem da biologia, tornam-se representações do visível tendentes a isolar a luz em figuras poliédricas definitivas. Será talvez a Oração à Luz a poesia mais própria para ser meditada por plásticos. Para Guerra Junqueiro, a luz é uma energia ou uma força, não é mera representação passiva; energia ou força que percorre invisivelmente a natureza e se redime em oração e pensamento, no fenómeno transcendente da maternidade natural. Fixar a luz, como fazem plásticos, em formas geométricas perfeitas, acabadas ou passadas, cujo paradigma é a figura humana, equivale a produzir um fascínio que impede a assunção invisível do pensamento.               

A cultura humanística estatifica e estratifica os poetas e, ao estudar os recíprocos reflexos, a que chama influências, utiliza um jogo de espelhos, com mestria de ilusionista para quem a luz é sem segredo. Já vários escritores pensam que Camões foi ultrapassado por Pascoais, por Junqueiro ou por Pessoa. Não há, todavia, dúvidas que os quatro são superiores. Superiores, quer dizer, poetas que em versos exprimem o sobrenatural. E o que vimos dizendo no decorrer destas linhas, que a literatura, enquanto sistema de artes verbais, sempre se refere àquela realidade, de que a palavra é o meio revelador, da figura para a imagem e da imagem para o ritmo.

A desconfiança para com o poder revelador da literatura, revelador em sentido substantivo, anda ligada à decadência do princípio de individuação, como sua consequência. Quando tal princípio é desatendido pelo modernismo transparece sobretudo no romance, em seu aspecto relativo ao tratamento dos caracteres. Estes, no escritor de tradição humanista, são tomados como tipos gerais, e é em função de características de natureza social que são descritas a fisionomia, a linguagem, os gestos, o vestuário, todos os actos do personagem. Sociedade opõe-se a colectividade. Inábeis sempre que se trata de coleccionar e distinguir, de reconhecer o princípio de individuação, omitem os romancistas nos personagens os actos que melhor revelam as potências singulares. No primeiro momento, o princípio de individuação aparece como uma negação, classificável pela escala dos sentimentos negativos, que culmina no orgulho e, enquanto tal, ainda constitui objecto do romance modernista. No segundo momento é já a promessa duma infinita dádiva. Evite-se, porém, considerar este momento como negação do primeiro. Não é a sua negação, mas a sua antítese, isto é, posto em vez da tese que aquele representa, pois o inicial obscurecimento produzido pela negatividade do sentimento contém em si o princípio da luz e da liberdade. No terceiro momento transforma-se em movimentada e libertada energia, pelo socorro da colectividade, que elegeu alguém único no seu princípio e, nessa promoção, lhe deu os meios de nobilitação.

Não se percebem claramente os motivos, as razões ou os fins que levam muitos a menosprezar o grande romancista que é Somerset Maugham. Quem leu as «Férias do Natal» a pouco tempo do «Nome de Guerra» de Almada Negreiros não pôde deixar de notar o paralelismo dos entrechos nos quais uma mulher conduz o protagonista de metamorfose em metamorfose pelos ciclos da vida. Recordamos aqui o «Nome de Guerra» porque é talvez o único livro entre nós nos últimos trinta anos que merece o nome de romance.

 

António Telmo

    


[1] Diário Popular, suplemento Letras-Artes, ano XIV, n.º 5006, Lisboa, 12 de Setembro de 1956, pp. 7 e 15.

 

DOS LIVROS. 05

25-03-2014 16:16

O mito do Encoberto*

 

O mito do Encoberto em Portugal conta-se em poucas palavras. Durante a batalha derradeira, em Alcácer-Quibir, D. Sebastião morre sem deixar cadáver atrás de si e, em novo corpo, mora agora numa ilha bem-aventurada donde regressará numa manhã de nevoeiro para ressuscitar o seu povo que é o seu exército, o que foi derrotado e o que somos nós todos sempre que confiamos na estrela sobrenatural da filosofia.

O mito tem quatro momentos: a batalha, a ressurreição do Rei que é para nós o seu desaparecimento, a ilha que foi habitar e o seu regresso numa manhã de nevoeiro. Meditemos cada um destes momentos sem os degradarmos ao nível da história. Cumpriremos assim um dos principais preceitos aristotélicos da Poética. Fazendo-o, ergueremos a história, quando for caso disso, à altura da poesia.

 

A BATALHA

 

O nome de Sebastião é, como todos os nomes aziagos, isto é, como todos os nomes com sestro, portador de glória conseguida com desgraça. Quem o baptizou ou ignorava certamente o preceito antigo de que o nome de Sebastião não deve ser dado aos reis, talvez porque signifique o que só pode ser dito de Deus. Deriva de sébas, palavra grega que envolve as ideias de veneração e de terror religioso.

A preparação da batalha foi longa e meticulosa. Ninguém deve defrontar a morte e a imortalidade que vem no seu seio sem uma longa preparação que, tanto para o guerreiro como para o filósofo, que é uma outra espécie de guerreiro, se faz harmonizando a teoria com a prática no próximo e no distante. Depois, “tudo o mais é com Deus”. No fragor da batalha, foi a voz de um anjo que se ouviu mandando parar, quando, senão se parasse, ela estaria ganha. Não importa que o anjo tenha gritado pela boca de um espanhol ou de um traidor. D. Sebastião, ao ver tudo perdido, ao ver o exército deter-se e recuar, continuou a avançar em espírito. Mas já o seu corpo estava repassado de espanto e encobriu-se na nuvem.

 

A ILHA

 

Como disse aqui ontem o Orlando Vitorino, os Descobrimentos não tiveram por fim a conquista das rotas comerciais, a não ser que nelas vejamos etimologicamente as rodas de Mercúrio, daquele Mercúrio que é, segundo Camões, o Espírito Santo revelando-se a Vasco da Gama. O fim dos Descobrimentos foi, na verdade, o inesperado encontro com a Ilha dos Amores.

É essa mesma Ilha aquela onde reside o Rei.

Numa das notas escritas por Fernando Pessoa sobre o sebastianismo, o poeta impõe a si próprio o seguinte: “É preciso ver o que significa a Ilha”. Aprendemos da Escola: “Ilha é uma porção de terra cercada de água por todos os lados”. Na terminologia dos filósofos uma ilha é um absoluto, o ab-soluto ou então, recordando Leibnitz e Leonardo Coimbra que o segue, uma mónada representativa do Universo. Um ponto de vista que tem, em relação aos pontos de vista a partir dos quais abrangemos um panorama, esta importantíssima diferença: a de o objecto da visão ser produzido pelo próprio ponto que o apreende. Uma estrela é uma ilha cercada de todos os lados pelo infinito, mas é a sua luz que cria a visibilidade.

A mónada é propriamente o indivisível, isto é, o indivíduo, quando o compreendemos pela imagem da ilha, não este ser inquieto e dividido, não este egoísmo que somos, este pedaço onde se quebra o tempo. Eis o sentido em que a mónada é a mónada sem lugar nem tempo. Cada um de nós a é na sua altitude profunda e por isso Fernando Pessoa pôde pensar que D. Sebastião regressou à terra dos «egoismos» em 1888, data do nascimento do poeta.

O mundo encoberto, presente por toda a parte como uma ilha que pode surgir inesperadamente em qualquer ponto do percurso da nossa navegação, não é o mundo vazio de vida dos nossos pobres conceitos. Swedenborg viu-o como uma terra em que os vivos, que são os nossos mortos ou de que nós somos a imagem morta, nascem, casam-se, viajam, amam e até têm os seus Cafés onde se encontram formando tertúlias de pensamento. “Os Anjos também investigam”, escreveu Leibnitz.

Cada um de nós ao morrer encontra do lado de dentro aquilo que se foi formando no seu subconsciente por dejecto, no seu supraconsciente por assunção. Levamos connosco o nosso Inferno e o nosso Paraíso. Só os heróis têm a revelação da Ilha com os seus três outeiros, as suas aves, as suas flores e as suas águas onde o Amor abre o acesso ao Paraíso, onde a mónada se conhece enquanto mónada na forma de “um globo diáfano e profundo”.

 

O ENCOBERTO

 

O contrário de encobrir é descobrir, mas é no descobrimento que nasce o encoberto, os Descobrimentos precedem e preparam a ocultação do Rei.

Encoberto sugere esotérico. Hoje, é corrente falar-se de «esoterismo» como sinónimo de «ocultismo», depois que Éliphas Levi escreveu pela primeira vez esta palavra. Por este caminho, até a confusão de esoterismo com satanismo é possível dentro da conhecida homologação de ciências ocultas com ciências malditas. A verdade, porém, é que o «ocultismo», na sua acepção vulgar, nem sequer chega aos calcanhares do «exoterismo».

Esotérico é um relativo. Relativo a exotérico, segundo a quarta categoria indicada por Aristóteles. Não é um substantivo (primeira categoria), mas um comparativo, o que sabe muito bem quem conhece um mínimo de grego. Teros é desinência do comparativo.

Esotérico significa, por conseguinte, “mais dentro” e não digo “mais interior” porque a terminação -ior é desinência do comparativo latino. Interior significa propriamente “mais dentro” e essa palavra sim é que é sinónima de esotérico. Exotérico é o mesmo que “mais fora”. Como é que foi possível opor exotérico a esotérico, quando, pelo contrário, um não pode existir sem o outro?

O que fica dito não constitui apenas uma distinção linguística. Repare-se só no seguinte para avaliar a importância da distinção: quem combate o esoterismo cristão por isso mesmo combate o cristianismo ali como ele nos aparece, por exemplo na Religião Católica, como um sistema exotérico.

Se admitirmos com Álvaro Ribeiro que não há filosofia sem teologia, ficamos a saber que o «meio» ou, como dizia Hegel, o «éter» da filosofia está na relação do esotérico com o exotérico.

A filosofia é a vida do pensamento como fenómeno da luz. A inteligência é o meio onde a luz se torna consciente de si e é a esse movimento que José Marinho chama “a descoberta da subjectividade”. A inteligência é, porém, um fenómeno universal que toma progressivamente consciência de si do exotérico para o esotérico e daí que a descoberta da subjectividade venha a ser o caminho, sempre percorrido jamais percorrido, para a perfeita objectividade que só é a forma como Deus pensa o mundo que criou. Objectividade é, neste caso e só neste caso, sinónimo de verdade.

A nuvem encobre o sol como o exoterismo o esoterismo. Se a nuvem passasse, teríamos de desviar a vista para não ficarmos cegos.

Por isso o Rei regressará numa manhã de nevoeiro.

 

O REGRESSO  

 

Fernando Pessoa e Sampaio Bruno interpretaram o nevoeiro da manhã do regresso como o estado de extrema degradação mental que se foi progressivamente adensando, no país, a partir da derrota de Alcácer-Quibir, estado que precede e anuncia a vinda do Rei, em Bruno do “novo Cristo cujos milagres são argumentos”. Há, porém outra interpretação que não subordina o mito à história. É a de conceber o nevoeiro, já repassado de sol, como um caos cintilante, a forma que a alma expectante assume no momento em que imagina o surgir do sol levante.

Na definição que abre a Ética, Espinoza escreveu: “Por causa de si entendo aquilo cuja essência envolve a sua existência”. O que nos interessa nesta definição nuclear de toda a filosofia do filósofo português desterrado na Holanda não é a relação que ela possa ter com a prova ontológica da existência de Deus. O que nesta definição nos fascina é o facto de o definido, isto é, a substância que é causa de si mesma dever ser concebida em analogia com a luz. A luz é, com efeito, aquilo cuja essência é o aparecer. O que é próprio da essência do oculto é o aparecer. Não é o que se esconde, mas o que nos escondem e de que a primeira notícia em nós é a formação do “caos cintilante”.

Aqueles que, sempre que ouvem proferir a palavra oculto ou a palavra esotérico, sentem acordar em si ecos de um reino tenebroso deveriam libertar-se da própria treva que os não deixa ver. Veriam talvez então que o encoberto é o lugar da luz esplendorosa de que a luz sensível é véu sobre véu. Numa perfeita diafaneidade do nosso ser íntimo, o regresso pode ser vivido hic et nunc. Mas aí também o longe de nós se revelará. A demanda do Encoberto é sem fim.

Eis o que me ocorreu dizer em tão boa companhia como a vossa. Falei de pé, porque é de pé que se deve evocar o Rei. Sentado, só num cavalo branco e em Alcácer-Quibir.

 

António Telmo

 

(Publicado em Viagem a Granada, 2005)



Ler mais: https://antonio-telmo-vida-e-obra.webnode.pt/news/dos-livros-04/

(Publicado em Viagem a Granada, 2005)

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* Comunicação aperesentada ao Colóquio sobre “As Linhas Míticas do Pensamento Português” realizado no Ateneu Comercial do Porto.

VOZ PASSIVA. 17

21-03-2014 10:53

Presença de António Quadros, no dia em que se completam 21 anos sobre a sua partida...  

António Telmo, filósofo da razão estética*

António Quadros

 

Conheci-o há pelo menos quarenta anos na «Universidade» da Filosofia Portuguesa, como ele atraído pelo magistério marginal de Álvaro Ribeiro e José Marinho, discípulos de Leonardo Coimbra, para quem a filosofia não era um modo de vida, mas um modo de ser…

Essa «Universidade» informal teve como sedes, primeiro o Café Palladium, onde ainda apareciam às vezes o Casais Monteiro, o Jorge de Sena, o Eudoro de Sousa, o José Blanc de Portugal, o António Banha de Andrade, o Eduardo Salgueiro ou o Domingos Monteiro, depois a Brasileira do Rossio, onde assentou arraial durante os anos em que nós lançámos com entusiasmo e espírito de desafio o Acto, o 57, a Espiral, anos em que aqueles nossos mestres saudosos publicaram, o primeiro A Arte de Filosofar (em 1955) e A Razão Animada (em 1957), o segundo a Teoria do Ser e da Verdade (em 1961). Mais tarde, outros cafés tomaram o lugar daqueles, o Colonial na Almirante Reis ou o Estrelas Brilhantes em Campo de Ourique…

Nesses cafés, nossos jardins de Akademos, nos juntávamos António Telmo e o seu irmão Orlando Vitorino, Afonso Botelho, Fernando Sylvan, Jorge Preto, Luís Espírito Santo, Luís Furtado, um pouco mais tarde Pinharanda Gomes, António Braz Teixeira, Romeu de Melo, Joaquim Braga, além de outros infelizmente já desaparecidos, como Francisco da Cunha Leão, Amorim de Carvalho, Luís Zuzarte, Francisco Sottomayor, Fernando Morgado, Alexandre Coelho ou Rui Vitorino, irmão de António Telmo e Orlando Vitorino, todos então rapazes que, fascinados, pela primeira vez deparavam com uma filosofia viva, não escolar.

Em cada um de nós se desenhava uma vocação, uma tendência, que sobretudo Álvaro Ribeiro estimulava de um modo subtil, mais inteligente que insistente. Quanto a António Telmo, veio a ser o que de todos nós levou mais longe o conhecimento gnóstico, o conhecimento do que está escondido e é inacessível pelas vias da percepção sensível, da ciência positiva e da erudição livresca.

Dizia Álvaro Ribeiro que a arte de filosofar (arte porque queria acentuar o papel da criação mental, da imaginação, da intuição e da indução) procurava o conhecimento pela tripla via gnósica, pística e sófica. O que António Telmo buscou toda a sua vida foi, não unicamente uma gnose (como o tentam os ocultistas e os esoteristas), mas uma harmonia entre a gnose e a razão ou melhor, a sophia ou a sabedoria abonada pela exigência intelectual da razão teórica.

É um filósofo da razão estética. É um decifrador de escritas perdidas, a da poesia de Dante, de Camões, de Pascoaes ou de Pessoa, a da simbologia iniciática dos Jerónimos, a da língua portuguesa e da sua gramática secreta, a do saber antiquíssimo expresso no pensamento de Bruno, de Leonardo, de Álvaro ou de Marinho, a da relação de uma filosofia que não é a filosofia das Universidades oficiais, com uma cabala que também não é a cabala dos esotéricos sem filosofia.

Depois dos anos da juventude, na Universidade dos cafés, António Telmo é um fugitivo dos grandes centros urbanos, procurando o sossego e o silêncio para melhor guardar a sua autonomia. Beja, Brasília (para onde o levou Agostinho da Silva), Estremoz, são lugares do seu itinerário existencial, mas o característico da sua inteligência invulgar, é a capacidade para atravessar ou penetrar para lá das camadas sobrepostas da cultura morta em que «coisamos» os nossos saberes satisfeitos.

Calmo por fora, parco em palavras, autor de livros pequenos e densos, poucos imaginam a rapidez do seu movimento mental: chegamos, já lá esteve; alcançamo-lo, já subiu mais uns degraus; quando publica um livro, é sempre o inesperado; é um heterodoxo, mas em nome de uma fidelidade ao essencial.

Sempre desdenhou de honrarias, de títulos, de «posições na vida». É ignorado pelos universitários, mas o que estes sabem é o por ele há tempos sabido que nem se dá ao trabalho de o referir. Alguns gostariam que ele escrevesse mais, explicasse melhor, desenvolvesse as sugestões e os enigmas que apenas esboça. Mas ele prefere propor-nos charadas. Que as decifremos nós, como ele próprio a decifrou. Esse é o acto genésico de filosofar. Começa por uma hermenêutica, pela arte de Hermes.

Pensará talvez António Telmo (nunca mo disse) que não vale a pena escrever para os desatentos, para os desinteressados e para os filisteus. Que não é pedagogo, quer dizer, que não é o escravo que leva pela mão os meninos até junto do mestre. Mas ele não é um pedagogo porque é verdadeiramente um mestre. Como Leonardo, como Álvaro e Marinho.

António Telmo escreveu, no prefácio do seu último livro, Filosofia e Kabbalah, que a razão é um órgão para o conhecimento mas as suas articulações não coincidem com a realidade. Por isso a razão não pode dispensar a comunicação com o desconhecido, que a poesia, a música e as artes plásticas procuram estabelecer.

Englobante pois da razão e das artes, o pensamento é como a ave Fénix, uma energia, um fogo, uma actividade do espírito que todas as manhãs renasce das próprias cinzas…

Escassas embora, estas duas citações desenham já o perfil do filósofo. Interiorizou como poucos a herança de Álvaro Ribeiro: a de um pensador da arte de filosofar e da razão animada, explorando vias que ele próprio abriu, no trânsito da autognose para a heterognose, do conhecimento do espírito no eu para o conhecimento do espírito no além-eu.

 

Janeiro de 1991

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* Publicado originalmente na edição de 13 de Fevereiro de 1991 de O Setubalense, no suplemento de artes e letras «Arca do Verbo», coordenado por João Carlos Raposo Nunes.

 

INÉDITOS. 08

20-03-2014 09:16

[Leonardo Coimbra e Teixeira de Pascoaes]

 

A Interpretação de Leonardo Coimbra

 

Era a Faculdade de Letras da Universidade do Porto uma escola de Cabala? Que nos diz sobre o assunto Álvaro Ribeiro?

A resposta é de grande interesse para nós, porque, se for afirmativa, poderá explicar a origem da orientação cabalista do pensamento do nosso filósofo e abrirá uma nova perspectiva sobre a natureza de um ensino que, vinte anos mais tarde, viria a exprimir-se no movimento da filosofia portuguesa. Como é sabido, todo o movimento de natureza espiritual, na medida em que se afasta da origem, não só vai “perdendo a forma” que o caracterizava como, em dado momento, troca de sinal algébrico, invertendo todos os valores. O exemplo mais claro e mais notável é o do cristianismo que, na época da Inquisição, se volta contra si próprio em nome de Cristo. É, por isso, que importa regressar, de vez em quando, às origens e procurar no ímpeto de sempre a enteléquia do movimento.

Dado o modo cifrado próprio da prosa de Álvaro Ribeiro, no cultivo sábio da “prudência”, são raras as alusões mais claras à doutrina oculta no ensino que recebeu de Leonardo Coimbra, Teixeira Rego e Aarão de Lacerda. Podemos, no entanto, encontrar, aqui e ali, uma dessas alusões. A mais significativa, pela sua generalidade, é aquela em que nos diz ter constituído a Faculdade de Letras da Universidade do Porto “o exemplo de como uma sociedade secreta pode perfeitamente funcionar sem deixar de estar aberta ao público”. O que qualifica de secreta uma sociedade é, como Dante ensina, a doutrina escondida. Que doutrina era essa? Era a Cabala?

Álvaro Ribeiro explica a conversão de Leonardo Coimbra pelo modelo do romancista francês Huysmans, que ingressa num movimento trapista no fim de uma viagem espiritual “pelo espiritismo, pela teosofia, pela gnose e pela Cabala”. Noutro lugar das Memórias de um Letrado aponta a decisiva influência sobre Bruno e Leonardo do grande matemático e cabalista polaco Hoëné Wronski. Escreve também que “o educador Leonardo Coimbra atribuía ao estudo da alma, ou seja, à psicologia racional, à psicologia experimental, e à metapsíquica, ou parapsicologia, um valor e uma função de superioridade sobre todos os outros estímulos disciplinares” (110, v. II). A doutrinação d’A Luta pela Imortalidade não terá apenas constituído um momento efémero da evolução do pensador, mas terá sido vertida nas formas pelas quais exercia o seu magistério oral.

Como veremos no estudo que a Leonardo Coimbra dedicamos neste livro, a analogia que é o método por excelência das Ciências Ocultas e da Cabala constitui o primeiro método da sua aventura filosófica. O discípulo não deixa de frisar, repetidamente, a importância central da analogia no pensamento do mestre. “Consciente da função criadora do verbo” função “de Alta Magia”, conhecia Leonardo Coimbra “o poder mágico da palavra benéfica ou maléfica”. A magia foi por ele depurada “de todo o natural barbarismo pela acção sublimante do espírito”, pois “viu bem a intenção poética da oração mental e da oração ritual, precursora dos sacramentos litúrgicos” (116, v. II).

Entre Deus e o homem, há o mundo dos anjos. É à comunicação dos entes sobrenaturais, ao modo como o Intelecto Activo elabora os dados da comunicação que se deve a criação científica, filosófica ou religiosa. As palavras de Leonardo Coimbra que Álvaro Ribeiro cita são as seguintes: “Só os criadores de uma atitude sua, científica, filosófica ou religiosa, sentem a chegada dos mensageiros da dimensão espiritual: a sua comunicação na centelha do “Intelecto Activo”. É de notar o emprego do termo aristotélico num pensador vulgarmente interpretado como platonista. Quem visava Leonardo Coimbra com a sua crítica do aristotelismo?

Mais do que o platonismo, ou o aristotelismo oculto, Álvaro Ribeiro pretende mostrar a relação do pensamento leonardino com o positivismo de Augusto Comte.

O principal problema que terá de defrontar o estudioso de filosofia portuguesa é o da coexistência nessa filosofia do sobrenaturalismo com o positivismo. O positivismo foi pelo próprio Álvaro Ribeiro apresentado, nos primeiros livros, como um obstáculo à filosofia e a toda a literatura que seja, como teorizou Teixeira Rego, na sequência de Sampaio Bruno, “a expressão do sobrenatural”.

O positivismo dos factos contra os argumentos não pode, evidentemente, ser adoptado por nenhuma filosofia. A lei dos três estados, interpretada como abolição da teologia, também não se vê como possa ser perfilhada por uma filosofia, como a nossa, que tem por último e supremo fim o conhecimento de Deus. Álvaro Ribeiro, substituindo o adjectivo “teológico” pelo adjectivo “mitológico”, pensando “mitologia” onde Augusto Comte escreve “teologia”, estabeleceu melhor correspondência entre os três momentos seriados na lei e as idades do homem: puerícia, adolescência e adultidade, no curso de uma vida ou no curso da história, embora, para esta, mantenha o reparo de Bruno de que os três estados podem coexistir na mesma época.

A idade positiva é, como se sabe, aquela que a humanidade atingiu pelo descobrimento e desenvolvimento da ciência. A classificação comteana das ciências estrutura o programa de filosofia para os liceus elaborado por Leonardo Coimbra durante a sua efémera passagem pelo Ministério da Educação. A filosofia não é aí considerada uma disciplina de letras, mas “a unificação activa de todos os conhecimentos” adquiridos no curso de ciências. Esta unificação é possível porque ela constitui a ciência dos princípios, e doutrina do sobrenatural “na centelha do Intelecto Activo”. O programa ou progresso dos estudos científicos é o seguinte: Matemática, Física, Química, Biologia, Psicologia e Sociologia. Na Sociologia se incluem “a actividade estética e a actividade moral”.

A Faculdade de Letras do Porto representa-se-nos neste momento como uma escola da Cabala que tem por suporte o positivismo de Augusto Comte.

Se lermos com atenção o texto do programa, que Álvaro Ribeiro teve o cuidado de publicar no fim do segundo volume das Memórias de um Letrado, deparamos com uma constante no ensino das várias disciplinas: para a Física – “o valor da analogia na organização da experiência física”; para a Química – “a analogia química e a relação com a indução”; para a Biologia – “a analogia em biologia sistemática”; para a Psicologia – “a indução, a dedução e a analogia nos estados psicológicos”. Na segunda parte do programa, propriamente referido à filosofia e titulada de “Os Problemas Filosóficos”, entre as alíneas sobre “O problema metafísico” a referida constante aparece de novo: “A analogia, seu valor de conhecimento e seu alcance para a apreensão da realidade”.

A analogia é o método da Cabala e das Ciências Ocultas. Ela é, porém, um movimento da palavra ou do verbo, o seu movimento ascendente pela escada ou escala das categorias e das sephiroth. Assim se compreende que Álvaro Ribeiro, apesar de enaltecer o valor do programa, o critique por não incluir as disciplinas do Trivium: gramática, retórica e dialéctica. A hierarquia das ciências, adoptada por Leonardo Coimbra, é também uma escala, que sobe do estado do corpo cosmológico, necessariamente figurativo, pelo das relações íntimas ou químicas desses corpos, para o domínio da vida e da alma (biologia) e depois para o mundo do espírito (sociologia) culminando na concepção artística do mundo. A filosofia virá, no termo, unificar activamente todos os conhecimentos. A filosofia é a pura e suprema analogia.

A sociologia oferece o perigo, ao culminar a hierarquia das ciências, de ser confundida com a teologia.

 

António Telmo              

DOS LIVROS. 04

19-03-2014 09:56

António Quadros, a Lua e a Primavera

 

        Estamos aqui reunidos celebrando o pensamento de António Quadros para o tornar presente na nossa lembrança e na nossa saudade. Nesta época da televisão em que todas as noites nos expomos sem vergonha ou defesa, ao bombardeamento da imagem, é bom, de vez em quando, não morrer de todo relendo um conto tradicional, não para regressar à infância, mas para nele vermos como a imagem pode ser um símbolo para os homens, quando a luz não é manipulada pelos computadores, mas se revela nas formas da verdade.

            “Era uma vez uma princesa que, ao descer, logo vieram sete fadas. Cada uma delas dotou-a com uma virtude, mas a sétima marcou o seu destino de infortúnio.”

            Eis que entramos no reino dos mitos e dos símbolos.

            Só as almas superiores concentram sobre si, ao nascerem para a vida, os sete poderes fatais, significados pelos planetas.

            António Quadros era um espírito superior. No horóscopo que dele fez Vasco da Gama Rodrigues, o signo de Câncer na casa Segunda está povoado de estrelas juntas olhando o recém-nascido. A Lua no seu domicílio domina o céu.

            António Quadros não gostou do horóscopo, viu com incómodo que ele o caracterizava como um espírito lunar. E não se libertou desse desgosto mesmo quando outros astrólogos lhe lembraram que a Lua é o espelho do Sol e lhe mostraram que a conjunção de tantos astros no mesmo lugar do horóscopo era o sinal de um destino superior.

            Morreu exactamente na hora em que teve início a Primavera de 1993, ali onde a roda do tempo recebe o impulso de luz que o liberta do nocturno Inverno. Refere René Guénon que os iniciados escolhem esse dia para morrer porque assim propiciam que a viagem no outro mundo se inaugure em condições altamente favoráveis. António Quadros não era um iniciado, mas Deus, queremos todos pensar, terá escolhido por ele. Assim seja!

            Mais misterioso é o facto de Agostinho da Silva ter pedido para o levarem do hospital para casa onde queria passar o Domingo de Páscoa, dia em que de facto partiu.

            A obra de António Quadros é uma obra de reflexão. Não é um filósofo operativo, um filósofo que não confunde a categoria de paixão com a categoria de acção. Reflectiu, com muitas vezes perfeita limpidez, as doutrinas solares dos seus mestres, cuja luz encheu daquela suavidade que a torna suportável e até aceitável pelas almas inferiores que a noite dominada pela televisão envolve. Por vezes há manchas nessa reflexão, como a do excessivo valor que atribuiu à doutrina do inconsciente de Carl Jung.

            Esta doutrina aparece a explicar e a defender o mito do Encoberto contra a grosseria de António Sérgio. É sobre o livro de António Quadros Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista que diremos qualquer coisa nos poucos minutos que a cada um de nós são concedidos. Espero que essa coisa qualquer seja a coisa que se quer.

            Neste livro, como em Portugal, Razão e Mistério, o mito aparece a interpretar a história, mas é sempre a história que decide do sentido do mito através da política. O mito do Encoberto é a forma que em Portugal assumiu o messianismo, mas, se no judaísmo a espera do Messias degenerou no marxismo e na utopia da sociedade sem classes, aqui, em Portugal, país onde manda Cristo, é a unidade católica, que harmoniza mas não destrói as diferenças dos indivíduos, das classes e dos povos, aquilo que aparece prometido no regresso do Rei e que, sem dúvida, estará confiado à Idade do Espírito Santo. Em consequência, António Quadros não se limitou a criticar e a refutar o optimismo progressista de Marx e seus sequazes, mas repudiou também o pessimismo dos esoteristas, apesar da simpatia que eles lhe mereciam, cuja doutrina resume deste modo: “O albedo do Quinto Império virá assim depois das fases alquímicas de putrefactio e nigredo; a luz do Espírito Santo, após a putrefacção e a morte ritual de todo um povo. A terra portuguesa, queimada, gasta, desperdiçada, a wasteland, povoada de hollow men, de homens vazios, é um Calvário, onde um povo-Messias, um povo-D. Sebastião, um povo-Cristo, é crucificado para ressuscitar em glória e salvar a humanidade. Este é, para Abellio, o mais subtil sentido do sebastianismo e do Quinto Império.“

            Se eu tivesse vindo aqui com a intenção somente de expor a mitosofia de António Quadros (era assim que ele gostava de exprimir-se), já há muito que estaria empregado numa universidade. Toda a interpretação que não vai para além de si própria é uma redução, porque é nisso que consiste a objectividade científica, conservando-se dentro dos seus limites. Prefiro ler Leonardo Coimbra e ouvir as suas palavras à saída da fonte, mesmo que o não compreenda, do que lê-lo simplificado numa apreensão mais ou menos correcta. Se o autor disse o que disse naquelas palavras, outras palavras desdizem necessariamente o que ele disse. Antes a fantasia subjectiva dos que atiram ao lado de Leonardo Coimbra e, ao irem procurar o que disseram, descobrem um mundo maravilhoso. Por muito respeito que nos mereçam os estudos de um filósofo que só são científicos quando deixamos a alma em casa, é bom, de vez em quando, que sigamos o movimento da nossa imaginação.

            Todos sabemos que o espiritismo é uma aberração, mas comportarmo-nos perante os mortos, com quem convivemos e que amámos em vida, como se tivessem passado a inexistentes e fossem hoje um nada, além de estúpido é imoral. Por isso Álvaro Ribeiro, quando José Marinho partiu, falava dele, nos meses sucessivos em que permaneceu entre nós, como se não tivesse morrido e em tais termos e com tal verdade que alguns julgaram que pelo seu cérebro perpassasse a asa da alucinação.

            Façamos o mesmo com António Quadros!

            Eu discuti com ele enquanto preparava esta evocação do seu pensamento. O que lhe disse foi mais ou menos o seguinte.

            “O meu amigo, levado pelo seu inteligente e corajoso patriotismo, compromete excessivamente o mito do Encoberto com a história política de Portugal. O sebastianismo, como movimento social, é apenas um aspecto menor desse mito. Com o Bandarra o sebastianismo foi anterior a si próprio porque as Trovas foram publicadas antes de Alcácer-Quibir. Você dirá que as profecias do sapateiro de Trancoso nasceram de condições históricas socialmente análogas às que permitiram mais tarde, depois do descalabro da batalha, criar pelo inconsciente colectivo a ideia de um rei eternamente vivo. Se observarmos, porém, que ao mito do Encoberto corresponde uma sabedoria do Encoberto, de que a filosofia portuguesa foi até si a explicitação actual, terá de situar essa sabedoria muito antes do Bandarra com o nascimento da Ordem do Templo como Portugal. No reinado de D. Dinis, as condições sociais eram completamente diferentes. Havia um país pleno de força e de confiança em si próprio e, no entanto, todas as Cantigas de Amigo têm por tema a demanda do Encoberto.

 

            Ai flores, ai flores do verde pino

            Se sabedes novas do meu amigo

            Ai Deus y u é ?

 

            O Encoberto aparece aqui significado por três vogais: i u e. Y u é, que quer dizer, como sabe, e onde está ? O verde pino deve ser interpretado, em sintonia com a ilha verde em que habita o Rei, como a comunidade gnóstica e as flores como os seres iluminados supremos. A pinha, símbolo sempre presente na arquitectura manuelina, sendo o fruto dessas flores concentra em si ocultas as sementes na forma vegetal duma chama.

            Quando o Padre António Vieira desocultou o Encoberto apresentando-o como D. João IV, quando interpretou o Fuão das Trovas do Bandarra, como João Duque de Bragança, o sebastianismo, no sentido que lhe dou de uma sabedoria esotérica, acabou e a Pátria entrou em decadência até esta miséria do nosso tempo em que o deus que cultuamos é o deus Mamon. A revelação do oculto não pode ser histórica. O oculto só se revela à alma.“

            António Quadros ouviu-me com aquele jeito tão seu de quem não se sabe se está a ouvir mas que é o modo próprio de quem segue a sua estrela interior e disse-me brandamente : “Está bem. Mas tudo isso não invalida o que eu exponho no meu livro. Os Antónios Sérgios continuam aí“. 

 

António Telmo

 

(Publicado em Viagem a Granada, 2005)

VOZ PASSIVA. 16

17-03-2014 09:07
de António Quadros Ferro, neto de António Quadros e membro do nosso projecto, sobre a Correspondência entre António Telmo e António Quadros, comunicação apresentada ao Colóquio "A Obra e o Pensamento de António Telmo", realizado em 14 e 15 de Fevereiro de 2011, no Palácio da Independência, em Lisboa, por iniciativa do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, já documentada no III volume dos Cadernos de Filosofia Extravagante. Sublinhe-se que esse precioso acervo epistolar, transcrito por Afonso Cautela (cartas de António Telmo) e Pedro Martins  (cartas de António Quadros), com revisão e organização geral de Mafalda Ferro e Pedro Martins,  se encontra em vias de publicação no V volume dos Cadernos de Filosofia Extravagante.

Ler mais: https://antonio-telmo-vida-e-obra.webnode.pt/news/antonio-quadros-evocado-pelo-projecto-antonio-telmo-vida-e-obra-ao-longo-da-proxima-semana-/
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de António Quadros Ferro, neto de António Quadros e membro do nosso projecto, sobre a Correspondência entre António Telmo e António Quadros, comunicação apresentada ao Colóquio "A Obra e o Pensamento de António Telmo", realizado em 14 e 15 de Fevereiro de 2011, no Palácio da Independência, em Lisboa, por iniciativa do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, já documentada no III volume dos Cadernos de Filosofia Extravagante. Sublinhe-se que esse precioso acervo epistolar, transcrito por Afonso Cautela (cartas de António Telmo) e Pedro Martins  (cartas de António Quadros), com revisão e organização geral de Mafalda Ferro e Pedro Martins,  se encontra em vias de publicação no V volume dos Cadernos de Filosofia Extravagante.

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Na semana em que se assinala o 21.º aniversário da morte de António Quadros, publicamos hoje, de António Quadros Ferro, neto do autor de O Movimento do Homem e membro do projecto António Telmo. Vida e Obra, o seu estudo sobre a "Correspondência entre António Telmo e António Quadros", comunicação apresentada ao Colóquio "A Obra e o Pensamento de António Telmo", realizado em 14 e 15 de Fevereiro de 2011, no Palácio da Independência, em Lisboa, por iniciativa do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, já documentada no III volume dos Cadernos de Filosofia Extravagante. Sublinhe-se que esse precioso acervo epistolar, transcrito por Afonso Cautela (cartas de António Telmo) e Pedro Martins  (cartas de António Quadros), com revisão e organização geral de Mafalda Ferro e Pedro Martins,  se encontra em vias de publicação no V volume dos Cadernos de Filosofia Extravagante.

 

 Correspondência entre António Telmo e António Quadros

António Quadros Ferro

 

Em vias de terminar a organização da correspondência de António Quadros, não posso deixar de aproveitar esta oportunidade para fazer uma breve descrição do conteúdo deste acervo que, desde 2008, a Fundação António Quadros preserva no seu espólio.

Note-se que, à partida, qualquer descrição como esta depende de critérios pessoais ou autorais, mais ou menos subjectivos, sendo que o que se descreve provém daquilo que se escolhe ou daquilo que se exclui, do que se relativiza ou enfatiza, em suma, do que voluntária ou involuntariamente se regista.

Por outro lado, e porque não se trata de um descrição técnica, a riqueza deste espólio merece mais do que uma avaliação genérica que confira a si própria limites, mas antes de uma reflexão que, não perdendo de vista aqueles dados, seja capaz de fazer uma leitura tão ou mais abrangente do que a particularidade dos números nos sugere. De qualquer forma, importa notar que a correspondência reunida compreende um período que começa em 1944, tinha António Quadros apenas 21 anos de idade e termina em 1993, no ano da sua morte. São cerca de 1200 cartas de 450 autores portugueses e estrangeiros. Poetas, escritores e filósofos, como José Régio, Herberto Helder, Teixeira de Pascoaes, Sophia de Mello Breyner, Mircea Eliade, Agostinho da Silva, Álvaro Ribeiro, José Marinho, Sant’Anna Dionísio, Delfim Santos, entre muitos outros.

O epistolário de António Quadros (1923−1993) com António Telmo[1] (1927−2010) compreende mais de 35 anos de amizade e respeito mútuos. São 30 cartas, enviadas de Lisboa para Estremoz e vice-versa, que documentam o que está para além das obras e do pensamento de cada um. O que hoje vou procurar trazer a lume, e que urge transmitir, para além de pretender ilustrar os momentos mais significativos da actividade filosófica de António Quadros e António Telmo, complementa o estudo possível do pensamento dos dois filósofos e ultrapassa, em muitos aspectos, a compreensão das afinidades e diferenças especulativas entre um e outro pensador.

O primeiro contacto de António Telmo com a Filosofia Portuguesa acontece através de Orlando Vitorino (1922-2003), irmão do autor de Arte Poética, e fundador dos fascículos de cultura Acto com António Quadros, em 1951. Orlando Vitorino recebe lições particulares de José Marinho, em Arruda-dos-Vinhos, onde os irmãos viviam com a família. Nessa altura, António Telmo era uma criança de catorze ou quinze anos de idade e só mais tarde viria a compreender a importância futura, dir-se-ia eterna, do que na sua casa estava a acontecer. Era um momento decisivo na vida dos dois irmãos, era o início de tudo o que de extraordinário aconteceu depois.

Alguns anos mais tarde, António Telmo, também através do irmão Orlando, ouve pela primeira falar na tertúlia que Marinho e Álvaro Ribeiro, discípulos de Leonardo Coimbra no Porto, organizavam em Lisboa e apressa-se a juntar-se àqueles que viriam ser seus mestres para toda a vida.

Sabemos que António Telmo se interessa desde muito novo pelas letras. Começa a estudar sozinho aos dez anos de idade, preparando-se para os exames que vem fazer à capital. Ainda assim, esta autonomia, segundo conta numa entrevista, revela-se pouco útil enquanto estudante universitário. Demora demasiado tempo a tirar o curso de Letras, por, segundo conta, ter sido demasiados anos auto-didacta. No entanto, apesar desta confissão, António Telmo nunca perderia esse gosto pela autonomia e, sobretudo, pela liberdade própria do seu pensar, liberdade essa, também largamente protagonizada pelo seu irmão Orlando.

Em qualquer dos casos, o primeiro encontro de António Telmo com António Quadros, só acontece em Lisboa no café Palladium ou, talvez, na Brasileira do Rossio. É ali que Álvaro Ribeiro e José Marinho criam a Universidade da Filosofia Portuguesa e onde se encontram, durante mais de 30 anos, algumas das figuras mais importantes da cultura portuguesa do séc. XX.

A poucos metros dali, com galáxias a separá-los e milhares de anos-luz pelo meio, no Café Gelo, havia, com homens de índole diferente ou até oposta, outra tertúlia a acontecer. Eram Luiz Pacheco, Mário Cesariny, Mário-Henrique Leiria, António José Forte, Herberto Helder, entre outros, altos representantes do nosso surrealismo e, alguns deles, heróis marginais, com maior ou menor mérito.

A vocação espiritual de António Telmo, encontrava na prelecção alvarina, e não no vizinho teatro surrealista, a companhia necessária para, mais tarde, realizar uma obra única, que ao longo dos anos não escapou aos elogios de António Quadros, também discípulo de Álvaro Ribeiro e continuador da Arte de Filosofar. A propedêutica cultural e filosófica de ambos, é, aliás, evidente nas suas obras, como um acto de manifesta continuidade dos temas nucleares da obra de Álvaro Ribeiro. Tanto para António Quadros como para António Telmo a filosofia é uma arte e jamais poderia ser ciência. Por isso, na perspectiva filosófica de ambos estava a existencialidade da língua portuguesa, expressa, nomeadamente, em ensaios de filosofia da história e na crítica ao positivismo que ao longo dos anos foram desenvolvendo.

Se de António Telmo, António Quadros, recebe dezasseis cartas, já de Orlando Vitorino, recebe apenas uma. A relação dos dois irmãos com António Quadros não foi idêntica, como o intercâmbio epistolar o demonstra, mas ambos despenharam papéis extraordinariamente relevantes na sua vida. De qualquer forma, é com Orlando Vitorino que António Quadros funda o Acto, do qual sairão dois números, entre 1951 e 1952. Apesar do fim prematuro desta publicação, este foi apenas o inicio de uma longa e fecunda prática filosófica realizada por estes pensadores, sob o importante magistério de Álvaro Ribeiro e José Marinho.

Já António Telmo, manteve uma longa e riquíssima correspondência com o autor de Portugal Razão e Mistério. O contacto entre os dois teria sido mais próximo, não tivesse António Quadros alguma relutância em deslocar-se a Estremoz, onde António Telmo vivia e leccionava a disciplina de Português. São vários os convites para que o visitasse, ao ponto de António Telmo, escrever a António Quadros, com ironia, dizendo: “Olhe que a Áustria é bem mais longe. Acabarei por ter de abraçá-lo aí em Lisboa ou Cascais.”

Num artigo, publicado em 1991, António Telmo é descrito por António Quadros, como “um fugitivo dos grandes centros urbanos, procurando o sossego e o silêncio para melhor guardar a sua autonomia.”

A verdade é que, apesar disto, António Quadros foi um dos mais importantes interlocutores de António Telmo. Em 1977, ano em que Orlando Vitorino cria, com Afonso Botelho, a revista Escola Formal, António Telmo publica História Secreta de Portugal, obra que António Quadros recebe com entusiasmo e que lhe suscitaria, por via epistolar, uma interessante reflexão, que, embora, nem sempre coincidente, revela a proximidade programática traçada pelos dois escritores. Nessa carta, António Quadros elogia a capacidade de António Telmo para compreender a história de Portugal, em especial as questões relacionadas com as ordens do Templo e de Cristo. Mas não deixa de questionar a periodificação escolhida pelo autor, por ser limitada no tempo e, por conseguinte, não considerar a história de Portugal antes do séc. XVI, antes da fundação da nacionalidade ou da criação da ordem de Cristo. Na perspectiva de Quadros, faltava ainda à História Secreta de Portugal, um estudo sobre a importância do Culto Popular do Espírito Santo e das teorias joaquimitas, matéria que o próprio viria a desenvolver exaustivamente em Portugal Razão e Mistério, publicado dez anos depois.

Em 1981, é a vez António Telmo felicitar António Quadros depois deste publicar o ensaio Fernando Pessoa, A Obra e o Homem, considerando-a uma obra prima de biografia espiritual e reconhecendo que o seu autor soube distanciar-se daquilo com que parecia estar identificado. Estamos longe da primeira fase do movimento da filosofia portuguesa, que termina com o fim do jornal 57 em 1962. Foram anos difíceis para o grupo, pelas críticas a que foram submetidos, mas, nada que se comparasse com o que, nesse ano, abalou toda a geração. Morre Álvaro Ribeiro e os discípulos perdem a sua maior referência. Curioso é notar, que, na única carta que Orlando Vitorino envia a António Quadros, tinha este acabado de publicar Introdução à Filosofia da História (1982) o autor da Refutação da Filosofia Triunfante, deixe transparecer o peso da responsabilidade que o magistério de Álvaro Ribeiro e José Marinho exerceria sobre todos: “com 50, 60, anos ainda escrevemos como se fossemos jovens e discípulos”.

Um ano depois, e apesar do sucedido, António Telmo não mostra sinais de fraqueza. Tinha acabado de ler A Patrologia Lusitana (1983) de Pinharanda Gomes, e escreve com entusiasmo a António Quadros, dizendo que “Os adversários da filosofia portuguesa terão de se haver comigo e com ele, cuja periodicidade de publicação de livros é verdadeiramente espantosa.”

António Telmo, que já em Arte Poética, via a filosofia como uma “actividade de progressiva consciencialização das formas que actuam no corpo, em graus cada vez mais profundos”, transmitia agora a António Quadros, a esperança no labor filosófico de ambos e na capacidade espiritual que tinham para prosseguir na senda alvarina.

Entre 1986 e 1987, António Quadros publica os dois volumes de Portugal Razão e Mistério, obra que motiva o maior número de cartas trocadas entre os dois pensadores. Depois do primeiro livro, no dia 31 de Maio de 1986, António Telmo, coloca António Quadros ao lado de Álvaro Ribeiro e José Marinho, como um dos mais importantes pensadores portugueses do século XX. Apesar disto, revela a frustração pelo pouco eco que a filosofia portuguesa tem em Portugal, mesmo aquela que é protagonizada pelos seus melhores intérpretes. Conta ainda, que, José Marinho, pouco antes de morrer dissera que “Se tiver de voltar de novo à vida, peço a Deus para não nascer português. É um povo de vesânicos. Houvesse o Álvaro Ribeiro nascido na França, na Alemanha, na Inglaterra e seria hoje admirado como o maior filósofo da actualidade.” Já Álvaro Ribeiro, numa carta dirigida a António Telmo terá dito que se houver uma lei que nos mande regressar à Terra, “pedirei a Deus que me poupe à obrigação de voltar a ser português.”

Em resposta a esta carta, António Quadros, a propósito das palavras amargas de Marinho e Ribeiro, apressa-se a dizer que é necessário distinguir o país-virtual, do país sociológico. No dia 22 de Janeiro de 1987, António Telmo, depois de, em várias linhas, desconsiderar o seu livro História Secreta de Portugal, diz, não ver ninguém, a não ser António Quadros, capaz de acompanhar Álvaro Ribeiro. Nesta altura, começa a pairar sobre António Quadros, mas também entre os restantes homens do grupo da Filosofia Portuguesa, o fantasma do III volume de Portugal Razão e Mistério.

A cada nova carta, a mesma pergunta. Para quando o terceiro livro. Para quando?

Uns dias depois, António Quadros escreve: “Só peço a Deus que me dê tempo, força e cabeça para concluir as obras que tenho projectadas. O terceiro e quarto volume de Portugal Razão e Mistério; um livro sobre a filosofia portuguesa, de Bruno a Orlando; um outro livro, sobre O Primeiro Modernismo Português […] e ainda outros que tenho na cabeça.”. Destes, só viria a publicar os dois últimos ensaios e chegaria a confessar, uns dias depois, devido ao cansaço provocado pelos recentes problemas de saúde, não estar à altura do projecto. No final da carta pergunta: “Será que conseguiremos o mínimo de convergência? E será que conseguirei […] ir para a frente com o meu projecto, que pode prejudicar os livros planeados?”

A reposta de António Telmo não tarda e no diz 2 de Fevereiro escreve: “Estamos todos no fim da viagem e já […] ninguém quer mudar, ceder de pontos de vista: isso seria negar o que julgamos ter sido ser o nosso destino espiritual. Quem é capaz de nascer de novo aos 60, aos 70 anos? Há, todavia, pontos e até linhas comuns. Não será possível, com elas, traçar uma figura que satisfaça todos? Cada um de nós, no fundo, tem o desejo e a ideia de fazer uma revista sozinho, com vários heterónimos ou pseudónimos, daí o desentendimento inevitável. Nos jovens o que unifica é o sentimento, isto é, o desejo sem a ideia.”

Dois meses depois, em Abril, António Telmo principia a sua carta desta forma: “Meu caro Amigo, estamos na última fase da nossa vida e todos temos pressa em dizer a palavra definitiva. Sinto-o em si, ao ler as suas últimas cartas. Perdemos o medo. Agora já não há nada a aprender com os outros homens. Só Deus nos pode ensinar. Se, ao dizermos, dissermos o erro, a culpa não é nossa. Se dissermos alguma verdade que seja para bem dos que vierem depois. Mas somos responsáveis porque queremos ser valentes, ter valor, ter saúde.”

Em Junho, volta a escrever a António Quadros sobre Portugal Razão e Mistério, referindo-se ao segundo volume como a reflexão mais completa, mais rica e uma das mais inteligentes sobre História de Portugal, só comparável ao pensamento de Sampaio Bruno e uma ou outra excepção. No final da carta relembra: “Ocorre-me a vaga lembrança ou pressentimento, neste mesmo instante, de que o António se chama Gabriel, ou estou enganado?”

Na última carta que envia a António Quadros nesse ano, diz: “Hoje mesmo levantei-me às cinco horas e vi que a saudação de todos os seres naturais ao espírito nascente do Sol não é apenas um fenómeno de componentes físicas. A percepção íntima da natureza pela ideia cristã de companhia ainda é, como ensinou Leonardo Coimbra, o melhor modo para mim de conceber directamente o Espírito Puro, que o paganismo parece ter ignorado ou, pelo menos, só confusamente percebido.”

Os problemas de saúde de António Quadros agravam-se. A partir de 1990 a troca de correspondência com António Telmo diminui. É de lamentar a perca de parte de uma missiva enviada no dia 22 de Março de 1990, onde António Quadros diz estar a braços com uma espécie de bloqueio interior, devido ao receio de que o III volume de Portugal Razão e Mistério não tenha a repercussão dos dois primeiros livros.

A verdade é que, nesse ano, António Quadros estreia-se no romance e publica Uma Frescura de Asas, onde descreve os sintomas de uma angina de peito que sentira dois anos antes, numa ficção espiritual sobre os últimos dias de vida de Sampaio Bruno. Entre 1990 e 1991 prosseguem por via epistolar os contactos de António Quadros com António Telmo. Em carta enviada de Estremoz no dia 6 de Março de 1990, António Telmo lamenta novamente não ter ainda recebido o livro que formaria o tríptico de Portugal, Razão e Mistério e confessa ainda que António Quadros é um dos raros espíritos com quem convive superiormente. Uns dias depois, aconselha António Quadros, a “entrever” o III volume de Portugal Razão e Mistério, “de modo a amar escrevê-lo”. Estas foram as suas últimas palavras a António Quadros, escritas em carta. Num longo balanço da actividade filosófica dos dois escritores e da amizade e admiração que nutriam um pelo outro, António Quadros perguntara, uns dias antes:

“Que seria de nós, sem essa presença invisível dos mestres, aguilhões do nosso espírito, alimentando a nossa perpétua insatisfação? Por mim, continuo a conversar com eles, e se eles me dizem que fiz pouco, que quase nada fiz, então sou obrigado a continuar…” e continua, “Apesar destas diferenças, em ambos há o interesse pela poesia, pela simbólica artística, pelo oculto e pela filosofia em todas as suas formas (mas sobretudo por uma filosofia de Espírito), sendo também de notar que, ao contrário da maioria dos nossos companheiros, reconhecemos os nossos mestres, Leonardo e Bruno, Pascoaes e Pessoa, Álvaro e Marinho, integrando-os, com as suas antinomias, na nossa vivencialidade gnóstica.”

O fim deste epistolário data de Fevereiro de 1991. É uma carta de agradecimento, mas onde António Quadros, descreve a luta que sentia para escrever o III vol. de Portugal Razão e Mistério. Nesta altura, escrevia, riscava tudo, rasgava páginas, voltava ao início e mudava até o nome do livro, para ver se o conseguia escrever. Não conseguia. Não conseguiu.

A António Telmo, confessava o que até hoje não se sabia: apenas escrevera o prólogo.

Tratava-se de um longo texto, já dactilografado, evocando o seu próprio itinerário: a faculdade; o ideal português; o 57; os mestres Álvaro Ribeiro e José Marinho; os encontros com Mircea Eliade na juventude e o grupo da filosofia portuguesa – entre outros: Afonso Botelho, António Braz Teixeira, Pinharanda Gomes, Dalila Pereira da Costa, Orlando Vitorino e António Telmo. Era, enfim, uma despedida, em forma de homenagem, um sentido adeus a todos os seus amigos, de quem já sentia saudade.

António Quadros morre no dia 21 de Março de 1993 e em Outubro de 1995 António Telmo participa na homenagem de despedida. A sua comunicação, que também é um pequeno estudo sobre mito e símbolo no pensamento de António Quadros, começa assim: “Estamos todos aqui reunidos celebrando o pensamento de António Quadros para o tornar presente na nossa lembrança e na nossa saudade.”

Estou certo que, se hoje António Quadros estivesse vivo, estaria aqui nesta homenagem, no dia em que nos reunimos e celebramos o pensamento de António Telmo para o tornar presente na nossa lembrança e na nossa saudade.


15 de Fevereiro de 11

 


[1] António Telmo Carvalho Vitorino nasceu em Almeida, Beira Alta, a 2 de Maio de 1927. Foi, a convite de Agostinho da Silva e Eudoro de Sousa, durante três anos, professor de Literatura Portuguesa na Universidade de Brasília. Mais tarde, dirigiu a Biblioteca de Sesimbra e leccionou a disciplina de Português em Estremoz. Publicou, entre outras obras,  Arte Poética  (1963),  História Secreta de Portugal (1977),  Gramática Secreta da Língua portuguesa (1981) e Filosofia e Kabbalah (1989). Morreu no dia 21 de Agosto de 2010.

 

INÉDITOS. 07

16-03-2014 12:20

São onze páginas manuscritas num bloco de apontamentos de António Telmo que agora se revelam, inéditas, ao leitor, provindas do seu espólio. Encerram o presumível esboço, necessariamente inconcluso, de um escrito (ou livro) que o filósofo intitulou Autobiografia e Sobrenatural. Nele se contam episódios vários, vividos ao longo de décadas, em diversos lugares do seu itinerário biográfico. Trata-se de brevíssimos quadros narrativos onde os sucessos oníricos e as indicações astrológicas se entrecruzam e preponderam. Numa dessas páginas, de escrita seca, despojadamente fotográfica, Telmo limita-se a remeter para passagens já publicadas nos seus livros; noutras, deixa notas auxiliares da composição e apontamentos para mais tarde desenvolver. Num destes últimos tópicos, que diferenciadamente se transcrevem em itálico e entre parêntesis rectos, uma operação aritmética de subtracção, tendente ao cálculo de um determinado ano, permite datar a feitura do conjunto: o ano de 2008.   

Autobiografia e sobrenatural

 

 

Premonição

1945. Em Sesimbra, com 18 anos. Convívio frequente à volta de uma mesa no café com tuberculosos, seus amigos.

            Distinta, natural, uma voz interior pela noite: “Não estejas melancólico se não entuberculizas”.

 

Os guizos

1955. Em Lisboa, no meu quarto de estudante. Uma vez deitado, fiquei, antes de me voltar para o lado para adormecer, a olhar para cima. De repente, um som estridente de guizos entrou fisicamente (ou sentido como tal) pelos dedos dos pés e veio subindo pelo corpo até sair pelo occiput evanescendo-se. Todavia, passados alguns instantes, de novo o mesmo som entrando pelos pés e saindo pela cabeça. Quando passava pela zona do plexo solar, tinha a sensação tremenda de que me estavam arrancando a alma.

            Veio ainda terceira vez, mas desta vez a passagem por essa região do plexo solar tornou-se ainda mais assustadora. Não continuou para cima, porque rezei a Avé Maria. Desapareceu logo ali. Depois tudo ficou calmo de uma imensa serenidade. 

 

2.ª Premonição

1958. Em Beja, onde era professor pela primeira vez. Tornei-me caçador.

            Convidado para uma coutada, durante a noite sonhei que mataria 24 perdizes.

            Enquanto comíamos a açorda matinal, contei o sonho aos outros caçadores. Como era um novato, riram-se de mim. Quando a caçada terminou, eu tinha 23 perdizes. Estava empatado com o mais exímio dos outros caçadores. Este disse-me: Vamos desempatar. Quem matar primeiro uma peça, ganhou. Se for uma codorniz vale uma perdiz.

            Cumpriu-se o sonho. Nenhum deles falou no acerto da premonição. O sobrenatural assustava aqueles caçadores.   

 

O Maggid

1963 (1). Évora. A mesma voz que ouvira em Sesimbra, eram exactamente três horas da noite acordava-me para me dizer: “O soneto sobre Gomes Leal de Fernando Pessoa não é o horóscopo de Gomes Leal, mas o horóscopo de Fernando Pessoa”.

            Tinha aprendido a traçar horóscopos quatro horas antes com o José Luís Conceição Silva. Uma colega, dias antes, quando foi do meu aniversário a 2 de Maio, tinha-me oferecido o livro A Vida e a Obra de Fernando Pessoa por João Gaspar Simões. Nele encontrei a data do nascimento do poeta, com a indispensável hora.

            Em Filosofia e Kabbalah mostro pormenorizadamente que a voz tinha razão.  

 

Astrologia

1978. O primeiro horóscopo que fiz foi o meu, naturalmente. Vi, ou supus ver, através dele que a progressão do Sol criava em 1978 uma quadratura com Urano que significava, em meu entender, a minha morte.

            Pensei nisso durante anos, mas fiz por me esquecer à medida que a data se aproximava, o que consegui.

            Vinha de Lisboa para Estremoz. O vidro do carro do lado esquerdo deixava passar o ar por uma estreita fresta. De súbito adormeci ao volante. O leve som no vidro transformou-se no som de um vento de tempestade. Acordou-me. Ia precisamente a sair da estrada. Um golpe de volante e o perigo passou.

            Dois dias depois: vinha de Beja para Estremoz, com pressa (130 Kms. à hora) para assistir, como orientador, à aula de uma colega. Entre o cruzamento para São Manços e Reguengos de Monsaraz, o carro despistou-se, embateu contra uma berma alta ao lado de um sobreiro, caiu de lado e endireitou-se. O pára-brisas foi expelido para longe para fora da estrada, mas não se partiu. Chovia e o campo estava lamacento.

            Não me lembro do susto, mas deve ter sido violento. Deu-se certamente quando o carro mudou de direcção, incontrolado, indo bater contra a berma. Assisti, depois, a tudo tranquilamente, sem qualquer sombra de medo. Deve ter durado 2 ou 3 segundos a trajectória do carro até ao embate. Tudo se passou, porém, donde eu assistia, devagarinho. “Vamos ver, pensei, se o carro não bate contra a árvore!” Ao capotar, disse para mim mesmo, enquanto me via caindo contra o vidro à minha direita: “Oxalá não enfie a cabeça no vidro!” Voltou o carro à posição inicial, sobre as quatro rodas e eu vim do vidro para o meu lugar de condutor. Desejei: “Deus queira que não bata com a cabeça no volante! Não bati. Fiquei sentado na posição de condutor. Atordoado, saí do carro. Vinham correndo para mim dois homens:

            – “Há alguém dentro do carro?”

            – “Não.”

            –  “E você?”

            –  “Julgo que estou bem.”

            –  “Que sorte! Foi espectacular!”

 

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[Na reflexão falar que não se vê de cima

Falar sobre a astrologia

A opinião de Hölzer: V. foi salvo.]

 

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[2008

    42

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1966

 

Mostrar como neste segundo sonho há um pormenor que não coincide com os acontecimentos]    

 

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O astrólogo

1965 (2). Em Lisboa, sozinho num quarto. O Rafael Monteiro procurou-me e insistiu comigo para que eu fosse ao astrólogo e vidente Hórus. Acedi, depois de alguma resistência.

            O homem disse-me que em 21 de Fevereiro do ano seguinte (estávamos em Agosto de 1965) eu iria para o Brasil, que encontraria no dia 1 de Outubro (também de 1965) a mulher com quem casaria, a mãe dos meus filhos, que não tinha que fazer nada para conseguir sucessivos êxitos na vida, que dissesse sempre que sim aos convites que me viessem a fazer.

            No fim disse-me:

            – Só não sei quem é você.

            Respondi: – Sou Professor.

            – Também me interesso por ocultismo.

            – Não, não é nada disso.

            Tudo quanto anunciou cumpriu-se exactamente.

 

Terceira premonição

O desastre

1978. Outra premonição. Novamente em sonho. Vejo-me no carro e numa estrada antes de Borba. Penso que tenho tempo para ultrapassar antes de uma curva. Aparece um carro. Travo. O meu bate ao de leve na frente do carro que pretendia ultrapassar. Insultam-me. Sigo, já livre de tudo aquilo, em direcção a Vila Viçosa.

            Sonhei isto pela manhã. Era um sábado. Reunia-me, como de costume, com a minha tertúlia de Vila Viçosa. Quando seguia para lá, no mesmo lugar deu-se exactamente o que o sonho anunciou. Só a pequena pancada no outro carro não se verificou.  

 

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[O quadro da Cintia] (3)

 

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José Marinho

1975. Às três horas da noite, acordei. Sentia-me inquieto. A inquietação chegou a tal ponto que me levantei e passeei pelo quarto até sentir que era capaz de voltar a deitar-me e de adormecer.

            De manhã, telefonaram-me de Lisboa.

            – O José Marinho morreu.

            – A que horas? Quando?

            – Às três horas da noite.

            Vim imediatamente para Lisboa. O seu corpo estava sozinho na cave de uma igreja.

 

As Águias…

(contado em Horóscopo de Portugal)

19…

 

As Árvores são Chamas

 (contado em Teoremas de Filosofia)

19…

 

A Alucinação Visual

 (contado em Viagem a Granada)

19…

 

A Fogueira de São João

19… Dei uma aula em Évora, na Universidade, a pedido do António Cândido Franco. No dia de São João.

            Uma porta da sala dava para um pequeno claustro, onde se viam as cinzas de uma fogueira. Quando comecei a falar, alguém disse:

            – A fogueira acendeu-se.

            Quando acabei de falar, a mesma pessoa exclamou: A fogueira apagou-se.

 

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[Sonhos verdadeiros e sonhos falsos

A imagem total, sem aparecimento sucessivo das imagens, à medida que vão sendo lembradas.]

 

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O Álvaro Ribeiro não morreu

19… Três dias depois de ter acompanhado os restos mortais do saudoso filósofo, tive um sonho nítido como uma fotografia.

            Uma esplanada num recinto com arcos, numa espécie de claustro onde se tinham posto mesas. Álvaro Ribeiro era a única pessoa que ali estava quando eu cheguei. Estava sentado a um canto com o seu fato castanho. Aproximei-me e pus-me a falar com alguma presunção. Tirou do bolso a sua bela caneta tão minha conhecida, olhou para mim com alguma censura no olhar e fez como se estivesse a escrever.

            Interpretei: Deixa-te de conversas. Escreve!

            Afastei-me envergonhado. Ao lado havia um corredor como há nos claustros, onde encontrei o F. Sottomayor. Escondemo-nos atrás de uma coluna, donde podíamos ver o Álvaro Ribeiro sem sermos vistos. Um homem aparentando 30 ou 35 anos, de fato completo mas pobre, estava agora onde eu tinha estado de pé a falar com ele, que o ouvia agradado.

            – Estava vendo?, disse eu para o Francisco Sottomayor, fomos todos enganados. O Álvaro Ribeiro está vivo. Enganou-nos simulando o seu funeral.

            Numa porta, ao fundo do corredor estava o Espírito Santo, um dos nossos condiscípulos. Dei-lhe logo a notícia de que o Álvaro Ribeiro nos tinha enganando, que estava vivo.

            – Ah!, exclamou o Espírito Santo, só agora é que o sabem? Ainda ontem estava no Café Colonial.

 

            Contei no dia seguinte o sonho ao Francisco. Disse-me, com espanto de ambos, que o marido da Conchita, afilhada do filósofo, tinha tido um sonho análogo, onde se mostrava que tínhamos sido todos enganados.

 

António Telmo   


 

(1) 1961 no original manuscrito. Há, porém, lapso manifesto de António Telmo na fixação do ano, que é o de 1963 (nota do editor).
(2) 1966 no original manuscrito. Há, porém, lapso manifesto de António Telmo na fixação do ano, que é o de 1965 (nota do editor).
(3) Aliás Cynthia. António Telmo refere-se à pintora, sua amiga, Cynthia Guimarães Taveira (nota do editor).

 

DOS LIVROS. 03

12-03-2014 20:45

O pensamento ocultista e revolucionário de Álvaro Ribeiro

 

Em 1979, num dos últimos escritos, o filósofo, não temendo já que o proibam de viver, deixa, bem claro, o que pensa sobre a questão religiosa:

“Só os estudiosos sinceros das ciências ocultas – melhor, das causas ou qualidades ocultas –, se mostraram capazes de, por sanção ou por oração, relacionarem o espírito humano com o espírito divino. A arte de filosofar é, por conseguinte, uma actualização constante das provas da existência de Deus. A Igreja Católica, hoje mais perplexa que ontem, ou talvez mais prudente, terá de aceitar, enfim, o messianismo de S. João Evangelista e de Joaquim de Floris, libertando a liturgia de praxes e de dogmas que representam rotinas pretéritas, já insignificantes ou talvez hipócritas.

No parágrafo seguinte, chama “livres pensadores religiosos” àqueles para quem, como diz, a arte de filosofar é o estudo sincero das causas ocultas.

Vinte e quatro anos antes, em 1955, num artigo que publicou na Revista do Norte com o título significativo Sampaio Bruno e a Verdade Oculta caracteriza assim o livre-pensador:

“Recebemos do século passado o preconceito erróneo de que livre-pensador é o homem capaz de pensar sem a mínima referência aos assuntos religiosos, que o verdadeiro e autêntico livre-pensador é afinal o ateu.”

“Livre-pensador é o homem capaz de pensar livremente os valores – o bom, o belo e o vero –  e mais ainda aquilo que os unifica e afinal garante. O problema do infinito incita o livre-pensador a meditar heroicamente a difícil temática religiosa. Nisso está o mérito ; nisso está a dificuldade ; nisso está o perigo ; porque o livre-pensador, ao contrário do positivista, avança por um domínio delimitado pelos escolásticos, mas acelera a evolução espiritual da Humanidade.

Sampaio Bruno não começou por ser livre-pensador. Sofreu a pressão dos sofismas dominantes no ambiente cultural da cidade do Porto, aceitou iludido as teses negativistas do voluntarismo germânico até ao dia em que, iluminado ou iniciado, converteu em doutrina diferente as generosas aspirações da sua mocidade.”

O mais surpreendente neste artigo sobre Sampaio Bruno é o que vem depois: a caracterização do autor de A Questão Religiosa como pensador católico através dos ensinamentos esotéricos, conjectura Álvaro Ribeiro, que terá recebido, no exílio em Paris, de Joséphin Péladan. Esta ideia de que a filosofia portuguesa, fundada por Bruno, tem por base uma tradição esotérica indissociável do catolicismo encontramo-la, no mesmo ano de 1955, claramente expressa n’A Arte de Filosofar:

“A tradição portuguesa, a esperança de que o Cristianismo reintegrará o Homem e a Natureza no Reino de Deus, durante o século XVIII passa a exprimir-se em termos diferentes dos que ficaram estabelecidos na nomenclatura da teologia católica e da filosofia aristotélica. A obra de Pascoal Martins, vertida maravilhosamente na cultura da Europa Central, dá-nos uma síntese, ainda hoje admirável das tradições peninsulares.”

A generalização do ensino de Pascoal Martins, que Sampaio Bruno identifica como português e cristão-novo, é conhecida pelo nome de martinismo. O martinismo seria, segundo Álvaro Ribeiro, uma expressão da constante sabedoria esotérica que, no passado, se estabelecera nos termos da teologia católica e da filosofia aristotélica. Dante terá sido o medianeiro:

“Convém aproximar a doutrina dos três planos teológicos – Inferno, Purgatório, Paraíso – com a doutrina dos quatro elementos, incluída na cosmologia de Aristóteles. Se o simbolismo da terra é inferior ao simbolismo da água, se o simbolismo pagão da agricultura é inferior ao simbolismo cristão da pescaria, se o simbolismo do túmulo é inferior ao simbolismo da nave, a navegação portuguesa, utilizando os elementos superiores da física, correspondia à tradição de mais fluido e subtil simbolismo. A Terra é uma nave, e as viagens em demanda do Oriente pelo Ocidente visaram a promessa cristã de reintegração do Homem e da Natureza no plano original.”

A superação do simbolismo do túmulo pelo simbolismo da nave na Igreja de Cristo têm, nestas linhas, um sentido que, despido do prestígio das imagens, será aquele mesmo que, em 1979, vinte e quatro anos mais tarde, aparecerá no prefácio ao livro de Conceição Silva sobre Os Painéis das Janelas Verdes.

O último dos doze livros de Álvaro Ribeiro foi As Memórias de um Letrado. O primeiro volume tem a data de 1977, o terceiro a data de 1980. O seu verdadeiro nome é, pelo que foi dito e pelo que virá a dizer-se, Memórias de um Kabbalista. Letrado é, como a palavra o significa, aquele que tem o conhecimento das letras, mas tal conhecimento é, na sua forma superior, a própria Kabbalah. Como se sabe, este é o nome hebraico para tradição. Todavia, a remota antiguidade que os kabbalistas lhe atribuem, é negada pela erudição ao dá-la como nascida na Península Ibérica, no século XII.

O problema da filosofia portuguesa poderá somente ser vencido quando ficar bem estabelecida a existência de uma tradição sófica portuguesa, isto é, a existência de uma comunidade espiritual invisível, através de Portugal procurando “acelerar a evolução da Humanidade”. Dos seus efeitos, visíveis na arte, na política e na religião, apenas os filósofos iluminados ou iniciados serão capazes de tomar consciência como efeitos de causas ocultas activas. Álvaro Ribeiro identificava, como vimos, a tradição portuguesa com a Kabbalah e atribuía-lhe o poder de realizar a síntese católica das três tradições religiosas peninsulares.

 

António Telmo

 

(Publicado em Viagem a Granada, 2005)

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