DOCUMENTA. 03

01-05-2014 10:57

[Eusébio e Cubillas]

 

Introdução

Pedro Martins

 

À ideia de viagem, sempre tão proverbial na vida e na obra de António Telmo, ajusta-se na perfeição o trajecto biográfico evidenciado pelas suas preferências clubísticas.  Adepto do Belenenses desde tenra idade – ao que se sabe, em lance de afirmação diferenciadora perante os seus dois irmãos, um benfiquista, o outro sportinguista –, o filósofo tornar-se-á, mais tarde, nos tempos áureos em que  Eusébio e Coluna pontificam no Sport Lisboa e Benfica, fervoroso simpatizante do clube da Luz. É possível que o aceso benfiquismo de Afonso Botelho e de António Quadros, seus amigos e condiscípulos no magistério filosofal de Álvaro Ribeiro e José Marinho, tenha influenciado a mudança de sentido de Telmo, que,  por um desses anos faustos dos encarnados, ao cruzar-se com Eusébio no Cinema Roma, em Lisboa, requesta um autógrafo ao pantera negra.

É neste contexto de retumbante entusiasmo que, com alguma naturalidade, surge a entrevista concedida pelo filósofo, faz exactamente hoje meio século, a O Benfica Ilustrado, suplemento mensal do jornal O Benfica, à época dirigido por Botelho. Muito longe da futilidade oca e ligeira que tantas e tantas vezes surpreendemos no periodismo desportivo, as palavras télmicas destacam-se pelo seu interesse e pela elevação de quem as profere: um filósofo é um filósofo!...

Telmo, na verdade, vinha de lançar o seu livro de estreia, Arte Poética, e encontrava-se então em Évora, onde fizera tropa e agora ensinava, na Escola Comercial e Industrial, em cuja equipa o surprendemos alinhando, conforme mostra uma fotografia datada de 1962. Tem junto a si a bola, à semelhança do que sucede numa outra imagem, fixada vinte anos antes, em 1942, em Arruda dos Vinhos, em que o jovem António Telmo enverga o jersey do clube local. Praticante de bom nível, o filósofo, aquando da sua primeira passagem por Évora, em 1952, para ali cumprir o serviço militar, terá mesmo chegado a suscitar o interesse do Lusitano local, por quem, uma década depois, conforme se infere da entrevista a'O Benfica Ilustrado, sofrerá a bom sofrer...

Parece que Peyroteo o trouxe ao colo nos anos infantes e remotíssimos – de 1929 a 1933 – em que viveu em Moçâmedes, Angola – mas é como portista, e não como sportinguista, que o adepto do futebol António Telmo Carvalho Vitorino poderá vir a ser lembrado. Aqui, desde há uns bons trinta anos, para seguir as pisadas do filho Manuel, também ele, desde muito cedo, torcedor pelo emblema da Invicta.

O portismo de António Telmo levá-lo-á a tomar parte, mediante convite de Jorge Nuno Pinto da Costa mediado por Pedro Baptista, numa importante jornada de celebração dos dragões: as "Noites do Tri". Foi em 1997, pelo meado de Junho, na cidade em que, com Sampaio Bruno e Leonardo Coimbra, nasceu a filosofia portuguesa de Álvaro Ribeiro e José Marinho, inigualados mestres tripeiros que as agruras do "exílio" irradiante hão-de trazer para Lisboa.

O chauffeur do presidente do Futebol Clube do Porto leva-o e trá-lo de volta a Estremoz. Pelo meio, na cidade da Virgem, por entre as nocturnas notas de Bach que o pianista Paulo Assis e a violinista Lina Turbonet fazem soar, o filósofo profere uma palestra subordinada ao tema "O clube é um mundo"; e tem também tempo para sugerir a mister António Oliveira que aprenda algo de kabbalah, «código velho com que os judeus tentam ainda decifrar o mundo e que pode ser-lhe útil para relançar o movimento que leve do "tri" ao "tetra"». Na verdade – e aqui releva o testemunho que colhi do próprio Telmo –, chega a propor-lhe que disponha em campo o onze azul e branco segundo os ditames das tríades sefiróticas (onze, e não apenas dez, são também as sephirot, se levarmos em conta Daath, ligando Hochmah e Binah no mundo de Aziluth...)!

O jornal O Jogo, que vimos seguindo, dá-nos conta, na sua edição de 13 de Junho desse ano de 1997, das analogias que o pensador estabeleceu entre o jogo e a filosofia. Dois dias antes, em evidente registo lúdico, afirma-se haver quem, na Invicta, espere de Telmo um novo livro, intitulado O Império de Jardel... 

Humano, porventura demasiado humano para alguns, este outro António Telmo. Mas, afinal, o mesmo de sempre. Quando, com António Quadros, acabado o ágape filosófico com os mestres, mãos nos bolsos, assobiando, sorridente, entrava no primeiro café onde se lhes deparasse uma mesa de matraquilhos...  

       

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Entrevista com António Telmo*

 

António Telmo publicou o seu primeiro artigo no Boletim de Língua Portuguesa.

Após um período em que colaborou nos jornais da capital (Diário de Notícias, Diário Ilustrado, Diário Popular, etc.) fez parte de um movimento de cultura portuguesa, veiculado pela Revista 57, de que foi um dos fundadores. Retirou-se, por necessidade profissional, para Beja, onde durante quatro anos exerceu o professorado no Ensino Técnico. Ali pensou «Arte Poética», livro que só pôde escrever em Évora, em cuja Escola Técnica encontrou aquela tranquilidade de espírito indispensável às criações do intelecto.

«Arte Poética», agora publicado, confirma e revela António Telmo como um dos mais esclarecidos, argutos e poderosos pensadores da moderna geração.

 

P. – Costuma ir ao futebol?

 

R. – Quando o Benfica joga em Évora, nunca falto, assim como nunca perco a oportunidade de o ver nos outros pontos do país.

 

P. – O que o leva lá?

 

R. – O Benfica, os seus jogadores admiráveis, as suas camisolas vermelhas, a sua glória! Devo, porém, dizer que, depois do Benfica, está o Lusitano. Encontro-me ligado a Évora pelo destino: – aqui fui soldado, aqui casei, aqui sou professor. Ainda há dias, sofri nas bancadas para que o Lusitano não descesse de Divisão. Tiveram, porém, de jogar «à Benfica»!

 

P. – Como interpreta a cada vez maior importância do futebol, como espectáculo, na vida do homem contemporâneo?

 

R. – Só posso dizer que as várias explicações que se costumam dar – económicas, sociológicas, políticas e até religiosas –, conquanto verdadeiras dos seus pontos de vista, não me convencem completamente. Há outra, que procuramos. O futebol actua como um anestésico, o futebol representa a luta mítica da luz com as trevas, o futebol entusiasma pela teatralização do heroísmo, o futebol é o substituto moderno das romarias – tudo isto é verdade, mas esta verdade não é tudo.

 

P. – Há reflexos do desporto no plano da cultura ou considera que há total separação?

 

R. – É curioso que a nossa cultura se subordina muito mais ao desporto do que este àquela. Dir-se-á que a mentalidade dos nossos homens cultos é uma mentalidade ridiculamente desportiva. Os escritores são estudados na crítica literária da mesma maneira que os atletas na crítica desportiva. Diz-se, por exemplo, de Domingos Monteiro o mesmo que se diz de Eusébio: – o nível mental a que sobe ou desce a inteligência num ou noutro caso é exactamente o mesmo. Comparam-se os poetas como se comparam os jogadores: – em função da prática, da habilidade, da técnica, dos estilos. Vejam-se algumas correspondências:

 

«Eusébio é superior a Rogério»

 

«Régio é superior a Torga»

 

«Neste jogo, Germano mostrou poder reconquistar o seu lugar na equipa do Benfica».

 

«Neste livro, Fulano (um escritor conhecido), que já não publicava há alguns anos, mostrou-se ainda de posse de todos os seus recursos estilísticos».

 

«Determinado jogador é já uma promessa do nosso futebol».

 

«Determinado escritor é já uma promessa das nossas letras».

 

Deve dizer-se, porém, que os críticos desportivos (que, aliás, escrevem muito melhor que os críticos literários) estão no seu papel. É que a cultura é o domínio do pensamento. Há, também, uma virilidade do espírito, que paira por cima do elogio e da crítica – que são os movimentos característicos da mentalidade feminina. Neste sentido, todos devemos concordar que desporto e cultura se separam por definição. Poderíamos ter levado ainda mais longe aquelas correspondências mentais, se tivéssemos recordado os programas de televisão em que são entrevistados desportistas e intelectuais.

 

P. – O que se oferece dizer sobre o ambiente cultural português?

 

R. – Que é um ambiente em que não se discutem ideias, mas se repetem opiniões, apesar de por ele ter passado o espírito de António Sérgio.

 

P. – Atendendo ao extraordinário desenvolvimento conseguido pelo Benfica no campo desportivo e ao grande número dos seus simpatizantes, acha que também no plano da cultura o Benfica poderia desempenhar papel relevante?

 

 R. – Seria interessante que fosse o Benfica a contribuir para a reforma da mentalidade que domina a nossa cultura, dizendo aos intelectuais: «O desporto é connosco; deixai de ser desportistas no plano da cultura; nós acertámos com os nossos valores; pomos sempre o melhor jogador no melhor lugar; isto é que vocês deveriam aprender connosco, a saber seleccionar os atletas, sem burocracias inúteis e perniciosas, sem cursos feitos para que triunfem os menos aptos. Mas não transferi os métodos que se usam no domínio da força física e da destreza física para o domínio do espírito. Este mede-se pelos frutos, é uma árvore cujas raízes mergulham no fundo imensurável da inteligência humana».

 

O Benfica, precisamente porque vive à parte da cultura, livre dos seus preconceitos e dos seus limites, poderia constituir o ponto de partida dum movimento intelectual imenso. Não é a mim, porém, a quem faltam todos os elementos de ordem concreta, que compete apontar os modos de realização desse movimento.    

 

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* Publicado em O Benfica Ilustrado, suplemento mensal do jornal O Benfica, n.º 80, 1 de Maio de 1964, Ano VII.