DOCUMENTA. 02

25-04-2014 10:24

Introdução

Pedro Martins

 

"Quando vim do Brasil, usava barba. E o ministério de Veiga Simão pediu-me para ir fundar a escola do Redondo. E eu vim. Nesse tempo ainda se fundavam escolas -- agora abrem-se escolas. E quem ia fundar uma escola tinha, também, de escolher os professores, etc. Quando lá cheguei, apareceram-me os políticos da terra a impor os professores, mas eu não deixei. Entre os que escolhi, pelo menos dois eram contra a situação, o que, aliado às minhas barbas, fez com que isto chegasse ao Governador Civil e, depois, ao ministério. Lá fui eu a Lisboa. O director-geral perguntou-me: «Você é a favor da situação?» E eu disse: «Não, sou contra.» E ele perguntou-me o mesmo que vocês agora: «Mas pertence a alguma coisa?» E eu disse que não. «Então, volte lá para o Redondo, que tem o nosso apoio», respondeu-me ele. A partir daí não tive mais problemas."

António Telmo in "António Telmo, O Último Cabalista", entrevista à revista LER - Livros e Leitores, n.º 41, Inverno/Primavera de 1998. 

 

Na conversa mantida com Francisco José Viegas e Diogo Queiroz de Andrade, de que acima se retirou um excerto bem significativo, António Telmo conta-nos ainda como, em 1965, anos antes da "saga" vivida no Redondo (vila alentejana onde, nas suas próprias e impressivas palavras, fundara a primeira escola pública democrática de Portugal, ainda antes do 25 de Abril), o célebre astrólogo e quirólogo Hórus, por entre vaticínios que o porvir confirmaria do maior rigor, lhe afirmara ser ele o único homem que podia derrubar Salazar, mas logo o instando, porém, a que o não fizesse. 

O 25 de Abril veio surpreender Telmo quando este, de novo a morar em Sesimbra, concluía o estágio do magistério em Almada. Nessa manhã, chegado ao portão da Escola D. António da Costa, o filósofo, desconhecendo o que se passava no país, deparou-se com um piquete formado por alunos, que logo lhe franquearam a entrada: "Este pode entrar", alguém disse, nele reconhecendo, porventura, o extraordinário didacta que já Agostinho da Silva, após visita ao Redondo, tanto elogiara, no tom superlativo que uma carta datada de 4 de Maio de 1973, e dirigida ao próprio Telmo, nos deixa perceber:

 

Já para não falar de mim, Maria Violante veio entusiasmada com sua Escola – a da liberdade, da familiaridade, da criação. Acho que há que acrescentar o louvor da sua pedagogia de gente adulta, inteligente e corajosa, coisa rara por estes lados. Suponho, pelo que vimos, que sua Escola será do melhor que jamais se fez. Para outro dia, que espero não longe, previno – e gostaria de ver a de Borba.

 

Nesse mesmo dia inaugural da Democracia, António Telmo regressa ao plaino transtagano, levando consigo sua Mãe, que vivia na camonina Piscosa. Tempos depois, em 1975, trará a Sesimbra o recém-formado Grupo de Cantadores do Redondo, onde já então pontificavam os irmãos Salomé, Janita e Vitorino, e o proverbial, inseparável Armando Carmelo. Pelas ruas da milenar póvoa arrábida soaram então, noctívagos, a Grândola, Vila Morena e os cantos solares do Baixo Alentejo, num périplo com prévia estação actuante no velho Grémio, então apinhado de gente, e a que muitos populares logo se juntaram, de braço dado. O regresso ao Alentejo fez-se pela alvorada.

Tempos febris, dias fervilhantes, estes, de que também nos ficou o rascunho, manuscrito pelo punho télmico, de uma declaração de apoio à Junta de Salvação Nacional, documento que, pela primeira vez, aqui se torna público. Não sabemos se a projectada declaração chegou a ser comunicada; não sabemos sequer se o seu esboço teve alguma sequência. Mas ficamos hoje a saber onde estava António Telmo no 25 de Abril.

O caso não é de estranhar. Já em 1962, quando leccionava na Escola Industrial e Comercial de Beja, Telmo se vira exonerado, conforme acta de 31 de Janeiro daquele ano, do cargo de Adjunto do Director dos Serviços de Concursos Literários do Centro da Mocidade Portuguesa. Motivo: 14 faltas injustificadas, pois que o filósofo se recusasse sistematicamente a colaborar com aquele Centro, deixando de comparecer a aulas que eram obrigatórias. A bravata trouxe-lhe ainda outras consequências desagradáveis: não haver obtido, como classificação de serviço, no ano lectivo de 1961-62, mais do que um sofrível "Suficiente", segundo reza uma outra acta, agora do Conselho Escolar daquele estabelecimento, de 11 de Agosto. Esta classificação era raríssima: nos anos anteriores sempre Telmo fora classificado com um "Bom"...

A acta de 31 de Janeiro transporta uma data simbólica. Evoca-nos, nesse mesmo dia do calendário, a "noite de esperança, noite de angústia, menos caliginosa e turva do que o claro dia subsequente, ensolelhado, em demoníaco sarcasmo", consoante Sampaio Bruno, n'O Brasil Mental, nos descreve as horas que perpassaram o frustrado golpe republicano portuense de 1891, na sequência do qual o filósofo d'A Ideia de Deus parte decisivamente para o exílio, na errância fundadora de uma viagem de que a Escola Portuense há-de emergir, entre nós, como o lugar supremo da Liberdade.

Em 1974, em Lisboa, diversamente do que no ano fatal de 1891 sucedera no Porto, o dia não desmentiu a noite; e a manhã que o inaugura há-de merecer a Telmo a elíptica alusão de um poema, somente saído a lume no volume, o terceiro, dos Cadernos de Filosofia Extravagante, que, titulado com o seu nome, rendeu homenagem ao filósofo no ano sequente ao da sua partida:

 

            A família é de noite quando se dorme

            Todos num sono só, juntos lá onde

            De Deus se toca a sua sombra informe

            Onde de nós secreto Deus se esconde.

            E como há crianças a dormir, o esplendor

            Diurno dos seus olhos brilha puro

            Num magnífico ponto interior

            Que é o reflexo de Deus no escuro.

            Mas amanhã há Sol. vamos passear a sós

            Na manhã tão nítida e clara, nesta manhã de Abril

            Vamos trazê-la para dentro de nós

            E levá-la para o sono obscuro e vil

           Tão límpida como uma gargalhada infantil.

 

____________

 

 

                                                                À

                                                                Junta de Salvação Nacional

 

Um grupo de democratas de Sesimbra vem manifestar o seu incondicional apoio e adesão ao programa político apresentado por essa Junta ao país.

                                O grupo de democratas:

                                António Telmo Carvalho Vitorino    

                                Aurélio de Sousa

                                Manuel Pereira Crespo    

                                António Baptista

                                Alfredo Marinheiro Cândido        

                                João Pereira Ramada Crespo

                                Augusto Cunha Pinto Covas

                                Manuel José Alves Pereira    

                                João António Carapinha Chagas