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INÉDITOS. 105

16-04-2023 11:27

História Secreta de Portugal, o mais célebre livro de António Telmo, tem ele mesmo uma história que pode igualmente ser considerada secreta, no sentido de que somente o estudo do espólio do filósofo permitirá esclarecer – pelo menos em parte – o correspondente processo de gestação e de desenvolvimento da obra. Em O Horóscopo de Portugal e escritos afins (Volume VII das Obras Completas de António Telmo, publicado pela Zéfiro em Junho de 2017), haviam já sido dados à estampa alguns escritos inéditos contemporâneos da História Secreta e que revelavam afinidades com a sua ideação; em História Oculta de Portugal precedida de No Meio do Caminho da Vida e Os Meus Prefácios (Volume VIII das Obras Completas de António Telmo, publicado pela Zéfiro em Dezembro de 2017) foi a vez de se publicar uma grande parte dos materiais de uma primitiva versão da História Secreta, então ainda com o título História Oculta de Portugal. De natureza fragmentária e organização conjuntural, do conjunto então dado a lume só se deixou de fora os escritos que escassa diferença patenteavam com as versões definitivas, consagradas no livro de 1977, bem assim como um outro – “A inveja como agente da degenerescência espiritual” – revelando uma versão levemente diferente, e de resto inacabada, da que veio a ser escolhida.   

O conjunto de textos que agora se dá à estampa – que quase esgota o conteúdo de um dos proverbiais cadernos manuscritos de Telmo, em cuja capa o filósofo, à guisa de indicação, escreveu: “Serve / A “inveja” e os leonardinos” – vem alargar o nosso conhecimento do processo criativo da História Secreta de Portugal. Será publicado no próximo número (o 32) da revista NOVA ÁGUIA, a sair no próximo Outono.

Destinavam-se todos esses textos a um capítulo da obra – intitulado “Os leonardinos” – que a sua versão final, como se sabe, não viria a contemplar. Enquanto a História Oculta de Portugal, pelas referências que se surpreendem no seu texto introdutório, nos remete para o palco das eleições presidenciais portuguesas de 1976, realizadas no mês de Junho, um dos textos agora publicados faz menção à coincidência de Portugal e Espanha terem primeiros-ministros homónimos: Mário Soares e Adolfo Suárez, respectivamente. Esse texto não deverá, assim, ter sido escrito antes de Julho de 1976. Deste ponto de vista, representará possivelmente um estádio mais avançado da elaboração da obra. Com efeito, se entre os materiais da História Oculta se encontra um plano do livro, aliás manuscrito por Orlando Vitorino, que não vai além da 2.ª Parte – Os Sacerdotes (uma clara antecipação do que, na História Secreta, virá a ser o ciclo do clero), do caderno sobre os leonardinos resulta um novo plano da obra, tendencialmente completo e já bem mais próximo do que virá a ser o ser o seu índice final:    

 

«Introdução

Em seu trono entre o brilho das esferas

 

Ciclo dos Reis

 

I

Santa Maria de Belém

Volve a nós teu rosto sério,

Princesa do Santo Graal!

 

II

A Iniciação de Nicolau Coelho

Na Cruz morta e fatal

A Rosa do Encoberto.

 

[III]

O Barco

 

IV

A Fonte dos Gamos  

Em baixo, onde a terra é, o pastor gela, e a flauta

Cai-lhe, e em êxtase vê, à luz de mil trovões,

O céu abrir o abismo à alma do Argonauta.

 

V

A Poesia de Amor de D. Dinis  

Na noite escreve um seu Cantar de Amigo

 

 

Ciclo dos Sacerdotes

 

VI

Luís de Camões

                        Abria em flor o Longe, e o Sul sidério

Splendia sobre as naus da iniciação.

 

 VII

António Vieira

 

           

Ciclo do Povo

 

VIII

O Brasão (Guerra Junqueiro)

 

IX

Fernando Pessoa

A Europa jaz, posta nos cotovelos…

 

X

Teixeira de Pascoaes

 

XI

Os leonardinos

Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.

Senhor, falta cumprir-se Portugal!

 

XII

O Fim

O mostrengo que está no fim do mar

Na noite de breu ergueu-se a [voar]»

 

A intenção de adoptar para a epígrafe de cada um dos capítulos do livro versos de Mensagem, de Fernando Pessoa, anunciada no texto sobre o poeta que integrava a História Oculta de Portugal (cf. História Oculta de Portugal precedida de No Meio do Caminho da Vida e Os Meus Prefácios, p. 253) releva aqui um grau de concretização deveras apreciável. O diálogo do “caderno dos leonardinos” com a História Oculta e com os textos afins da História Secreta é, de resto, bastante assinalável e fecundo. Assim, o escrito intitulado “Homens sem sono” e incluído em O Horóscopo de Portugal e escritos afins conhece interessantes desenvolvimentos numa das presumíveis variantes de “Os leonardinos”. Também o sentimento de inveja (com a sua etimologia e a sua psicologia) ou a ideia de uma inversão dos pólos, já abordados nos materiais da História Oculta, conhecem nesse caderno reformulações não isentas de diferença ou novidade. Por muito que Telmo, em “Os leonardinos”, se distancie do profetismo, a sua proposição de que a revolução de 25 de Abril de 1974, por enfim ter dado curso ao socialismo em Portugal, seria, segundo uma rigorosa lei histórica que o filósofo enuncia, o prenúncio do fim desta corrente mental na Europa e no resto do mundo, não deixará de impressionar o leitor ciente ou recordado do que, no final da década seguinte, sucedeu na Europa Central e de Leste…     

 

Os leonardinos

 

Se a saudade é o sentimento que nos caracteriza como povo criador, parece ser a inveja o factor mais evidente da nossa degenerescência mental. António Vieira, que foi uma das suas nobres vítimas, considerava-a o vício nacional. A inveja não é um vício, mas a energia torva da vontade. Assim, em francês, o étimo latino evoluiu para envie, que significa desejo ou vontade, mas onde se perdeu ou se não ganhou, como em português aconteceu, a relação da palavra com o sentido da vista. Popularmente, a inveja é o mau olhado. Invejar é não querer ver ou não poder ver, por se nos tornar insuportavelmente dolorosa a evidência do valor alheio.

A inveja encobre-se. É um sentimento “pálido”, como escreveu Virgílio. Não se manifesta violentamente como o ódio. Disfarça-se. Reclui-se na intimidade sofredora e, se o invejoso não chega a adquirir uma nítida má consciência de si, é porque actua sempre em nome da justiça, de valores pseudo-cristãos como a igualdade, proclamando que não está certo que uns sejam mais do que outros, opondo-se até à existência do outro, só porque este é uma diferença, defendendo a vida grupal em massas e legiões e partidos, construindo

 o socialismo no mundo, como ainda há bem pouco tempo observou o Bispo do Porto.

O seu encobrimento vai até ao ponto de simular uma admiração sincera, de simular para si próprio também, em relação a certos valores inegáveis, mas obedece, na escolha desses valores, a uma tónica secreta que tem por fim esconder aos seus olhos e aos olhos de toda a gente o valor que verdadeiramente gostaria que não existisse. Assim, se eu posso ocasionalmente admirar um Heidegger, longe na Alemanha, ou um Duns Scoto, longe no tempo, não suporto que o meu vizinho, o meu próximo, o meu compatriota, seja um filósofo de prestígio. Pela inveja se explica assim a subserviência dos portugueses para com os estrangeiros e para com os mortos.

“Quem ao pé do invejoso morou, nem ele medra nem o invejoso medrou”. A inveja, que é coisa da vista, só actua a uma certa distância. Deus foi morto em Cristo, porque em Cristo se tornou visível. O invejoso não suporta a evidência do outro: desvia o olhar. Mas para olhar e lançar a energia torva da vontade precisa de ter a vítima próxima, distinta, circunscrita. Só há um processo de fugir ao olhar mortífero: a fuga.

Sampaio Bruno escreveu um dia que era um exilado na sua Pátria. Nela viveu tanto quanto pôde como um “encoberto”.

Mas o homem verdadeiramente distinto, insuportavelmente visível, foi Leonardo Coimbra. O que espanta, neste espírito, é que ele foi imediatamente espírito. Não se lhe conhece mestre visível, e talvez por isso mesmo fundou e criou uma escola de filosofia, que haveria de assumir, neste fim de ciclo, em que a inveja parece ter consumado a sua obra, a missão de tornar evidente o que, até então, estava oculto e oculto marcou os homens e a sua história. A filosofia de um povo só aparece no termo da vida desse povo: “a ave de Minerva só voa ao anoitecer”.

Nem Leonardo Coimbra, nem os seus discípulos, com excepção talvez de Agostinho da Silva, se caracterizam pela profecia. Não confiam a demonstração da verdade à História. Dizer que a História ou o tempo de tudo decidem, ou na forma inferior que consiste em classificar uma doutrina da falsa porque não é actual e está ultrapassada pela experiência pela experiência dos homens e do seu espírito, ou na forma superior, a de Bruno, por exemplo, que vê no tempo o próprio Espírito Santo, pode ser um dos caminhos de progresso especulativo, mas fecha as portas a qualquer tentativa individual de exercer a liberdade do pensamento ou de livremente aderir ao que foi pensado pelo espírito vivente, de uma vez para sempre, em qualquer ano da vida do mundo. A história modificará a face do homem; todavia, ele continua, “por mais que a ciência a inútil gleba lavre”, e “a religião viva o sonho do seu culto”, a ser um mistério para si próprio, o mundo e a própria ciência e a própria religião continuam a ser um mistério, de tal modo que o silogismo poético de Fernando Pessoa deveria ter antes esta conclusão: procura e crê porque tudo é oculto.

Caminho de progresso especulativo sim, mas nunca uma artimanha do “espírito que nega”, da inveja para dissuadir o homem, enquanto indivíduo, de pensar. É incrível como há tanta gente que se deixou convencer de que vivemos num mundo sem mistério e que a solução dos nossos problemas depende do tempo ou da evolução da ciência, como se alguma coisa se soubesse do germinar da semente ou do eclodir da ideia que não reclame sempre de novo a actividade “criacionista” do pensamento. Se eu tenho a intelecção das coisas “em potência” é no sentido de que essa potência passará a acto em qualquer momento do tempo. Não se compreende uma ciência definitivamente encerrada em letras ou números, sem que eu, enquanto sujeito de intelecção, eu e mais ninguém por mim, possa movimentá-las em ideias e restituí-las ao espírito. A letra em si nada significa. É o espírito, tornado activo e vivente, que lhe dá sentido.

Todavia, só o espanto e outros demónios análogos da inspiração teorética podem suscitar em mim a vida do pensamento, isto é, desencadear em actos livremente elaborados a potência de ser, aparentemente morta que tenho em mim. Por isso, a inveja, o espírito que nega procura, por todos os modos, evitar que os homens se espantem, admirem e venerem o que lhes é superior. Há formas da alma que provocam a descida do espírito, mas que, por sua vez, só se produzem ou pela acção mecânica dos vários alucinogénios ou pela reflexão superiormente orientada por um mestre exterior ou interior! Homens tem havido que têm orientado a reflexão dos outros homens no sentido de criar um estado de alma onde se espelha um mundo sem mistério ou segredo, para ser vencido, na sua cenobita inviolabilidade pétrea, pela vontade ou pela astúcia. É que, uma vez petrificado o mundo pela nossa maneira de o olhar, logo ele surge como uma enorme, imensa massa impenetrável, indiferente no seu majestático movimento sem alma à nossa vontade de o possuir. Assim o diabo cai na própria ratoeira que armou.

Leonardo Coimbra escreveu, num comentário ao Regresso ao Paraíso de Pascoaes, que «os demónios fiéis a Satanás procuram corromper as almas adormecendo-as no esquecimento da sua origem divina». A psicologia actual começou por negar com Augusto Comte[1] a possibilidade de autognose, mas desenvolveu-se no mesmo sentido negativo até ao ponto de o homem se conceber como um ser destituído de vida interior. A autognose de impossível passou a ser considerada sem objecto e, portanto, como uma actividade vazia. O “conhece-te a ti mesmo” perdeu o sentido que lhe atribuíam Sócrates e Platão e tantos outros para quem a alma é de origem divina. Dentro de mim, encontrarei apenas fosforescências e reflexos que exprimem as reacções, mais ou menos profundas, às forças sociais que sobre mim actuam. Sou um elemento mínimo de um grande grupo, traumatizado por falta de inserção na sociedade, essa entidade mística dos tempos modernos.

Compreende-se que os leonardinos se tenham ligado aos poetas e que, tenham defendido contra todos, que a poesia, na forma superior que lhe transmite um Pessoa, um Régio ou um Pascoaes, não é só uma vivência típica de certos seres com sestro, mas uma forma real de investigação da verdade. Repudiaram, por isso, a crítica literária que estuda os poetas e não a poesia, vendo em cada um apenas um estilo de sentir ou de imaginar, sem efectiva participação no conhecimento objectivo do mundo e do homem. É a custo que empregamos a palavra objectivo, de que já conhecemos a impropriedade em língua portuguesa, mas se há o que é e também o que parece, por objectivo significamos o que é, isto é, a verdade.

Claro que, sendo assim, a classificação dos poetas por escolas, épocas, correntes, que tem por fim anular o peso objectivo da poesia sobre o seu entendimento das coisas subordinando-a à história, não mereceu dos leonardinos a mínima atenção. Tanto faz que Pascoaes seja ou não romântico. E Pessoa o que é, esse poeta tetrafronte, que desafia o tempo e o espaço? E José Régio e o seu conhecimento dantesco dos infernos da alma? Eles interrogam o mesmo mistério que nós. Ouçamos o que dizem e como respondem às perguntas que fazemos. Só isso importa.

É evidente que tudo está em saber interrogar. Ensinar a interrogar é a primeira missão de uma escola de filosofia. Sabe-se a pressa que os homens têm em encontrar respostas para tudo, antes mesmo de terem sabido fazer as perguntas. Isso resulta, em grande parte, do medo de ser sozinho, sem um ponto firme que lhes dê a ilusão do estar. Em geral, a língua que aprendemos por termos nascido num país, constitui já de si um sistema automático de respostas. Nunca saberemos, todavia, o que significam as suas respostas se não soubermos quem perguntou e qual o verdadeiro fim da pergunta. Julgamos ter uma teoria e somos tidos por ela. Eis por que Sócrates, nos Diálogos de Platão, conduz o adolescente pelo método dialéctico até à aporia inevitável que abala os fundamentos, ilusoriamente firmes, das convicções do interlocutor. Cria-se um momento de perplexidade, de espanto e até de medo. O espírito, apanhado de surpresa no vazio de si próprio, reage automaticamente, negando-se a prosseguir. Mas já não há refúgio possível para ele, se assumir seriamente a própria negatividade. Refugia-se aonde, se tudo ruiu?

E é então que Sócrates inicia o segundo momento da iniciação. Pode tomar um de dois caminhos: ou conta um mito, que mais tarde virá a interrogar, mito que sugere estar a solução da aporia numa visão transcendente; ou faz o elogio da filosofia, da coragem de filosofar como de um pleno que não deixará de correr para o vazio de uma ignorância que conscientemente se assume. E o diálogo prossegue de dificuldade em dificuldade até à epoptia final.

Este método socrático é também o leonardino. É um método iniciático, que permitiu a formação de uma verdadeira escola de filosofia. Claro que ele tem como maiores adversários os cartesianos, cujo método, por semelhante que lhe pareça, é precisamente o seu inverso. A dúvida de Descartes não corresponde à perplexidade de Platão e, muito menos, à ignorância de Sócrates. Descartes duvida, divide-se em dois, um dos quais se afirma a partir do cogito, logo como um ponto firme, inabalável, sobre o qual irá constituir-se o edifício francês das ideias lúcidas e distintas. Tudo o mais é sombra, inexistência, quimera.

A perplexidade platónica surge do sentimento de insuficiência que de si tem o espírito perante a diversidade dos próprios caminhos no mundo imenso das ideias; Descartes conclui desta diversidade a sua irrealidade e é, pelo contrário, na autosuficiência do espírito que põe o núcleo firme da realidade. Quem duvida, acaba sempre por afirmar uma das duas coisas e tentará anular a segunda pela vontade. O problema central dos platónicos era, pelo contrário, o das relações do uno com o múltiplo, entendidas de tal modo que toda a pluralidade ficasse garantida pela presença formatriz da ideia. É o que realiza Aristóteles.

Os leonardinos constituem uma escola de tradição platónico-aristotélica. Nos dias que correm, ser-se platónico ou aristotélico constitui um absurdo ou um contrasenso histórico tão nítidos que a filosofia portuguesa aparece como uma manifestação de heroísmo quixotesco aos olhos daqueles para quem o destino da Pátria se decidirá no palco da economia.

Do que não há dúvida, porém, e aqui está a grande razão quixotesca dos leonardinos, é que a definição da Pátria por qualquer dos três internacionalismos equivale à sua negação.

 

Os leonardinos constituem uma escola de tradição platónico-aristotélica. Afirmam, como se sabe, a existência de uma filosofia portuguesa, que arranca desta tradição e assume a sua forma específica pela língua em que os indivíduos a pensam. Não só afirmam essa existência como a superioridade.

Não se poderia esperar senão o repúdio geral desta ideia pela aparente tolerância que vê nos poetas e nos filósofos uns lunáticos que só por si respondem e não respondem pelo mundo. A inveja cria esta imagem para tornar inoperante a influência que mais teme. Não se ignora o que aconteceu a Sócrates, a Platão, a Giordano Bruno, a Leibniz, a António Vieira, a Camões, a Sampaio Bruno, a Fernando Pessoa, a Leonardo Coimbra, a José Marinho. A inveja perseguiu-os até ao túmulo e, muitas vezes, cavou-lhes o próprio túmulo.

Os leonardinos representam o único acto heróico neste crepúsculo da Pátria, o único risco. Tudo o mais, em breve, será cinza.

 

Os leonardinos constituem uma escola da tradição platónico-aristotélica. Afirmam a existência e até a superioridade da filosofia portuguesa, fazendo coro com os nossos grandes poetas. Só que a estes não competia defender o valor da filosofia, mas da Pátria, que um deles significativamente identificou com a língua. Para os leonardinos só há Pátria se houver filosofia, pois lhes parece que a sua definição por qualquer dos três internacionalismos equivale à sua negação.

É uma situação claramente quixotesca. Nas condições mentais do fim do ciclo, a ideia de uma filosofia portuguesa tinha de ser fatalmente repudiada e até ridicularizada. Isto aconteceu sobretudo durante o socialismo positivista de Salazar, incapaz como todos os socialismos, de aceitar reconhecer e expressar a liberdade do pensamento. Vir dizer ao “povo mais anti-filosófico do planeta”, e ainda por cima quando atingiu um ponto de extrema degenerescência mental, vir dizer que há uma filosofia portuguesa constitui um acto de heroísmo quixotesco. Todavia, como D. Quixote tinha as suas razões, os leonardinos também têm as suas.

Pondere-se, por exemplo, este facto simples: de um lado uma língua, a portuguesa, que é o próprio pensamento na complexidade imensa das suas articulações secretas; do outro um povo que ainda não deixou de falar e que, enquanto memória, lhe está ligado em substância. Mas o plano subtil onde se exerce o acto comum de pensar define-se pela mediocridade das ideias, pela incapacidade de ligar duas ideias e muito menos de deduzir uma terceira. Como é isto possível?

O mesmo fenómeno foi verificado pelos linguistas americanos (um Sapir, um Boas, um Lee-Whorf) que têm estudado as línguas ameríndias. Povos completamente estupidificados falam idiomas que são complicadíssimos sistemas de compreensão do mundo. Como é isto possível?

A hipótese de Sapir é que nenhuma relação substancial existe entre a língua e o povo. Então, quem pensa na língua?

 

Os leonardinos constituem uma escola da tradição aristotélica. Afirmam a existência, fundada em Platão e Aristóteles, na língua e no génio individual, de uma filosofia portuguesa. Ao dizerem-na superior, só estão com eles os poetas da Mensagem, do Maranus e de El-Rei D. Sebastião e poucos mais, que acreditaram na missão transcendente da Pátria.  

O ponto decisivo é a língua. Para Fernando Pessoa “a Pátria é a língua portuguesa”. Acontece, porém, que uma língua é um fenómeno subconsciente. Tudo se passa, quando falamos, como se um gramático interior soubesse o que nós ignoramos. Nos três planos linguísticos – o fonético, o morfológico e o sintáctico – actuam sempre os mesmos padrões gerativos a todo o esforço da linguística moderna, – de Sapir a Chomsky, passando por Lee-Whorf –, tem assistido em determinar esses padrões[2] [sic] para cada língua estudada. Assim Lee-Whorf encontrou a fórmula de formação fonética dos monossílabos ingleses e pôde depois escrever: «No plano fonológico, os fenómenos essenciais são regidos por modelos que não são produzidos pela consciência individual. Acontece o mesmo nos planos superiores da língua que designamos por “expressão do pensamento”.»

As investigações deste linguista, na sequência das de Sapir, mostraram que povos num estado extremo de degradação mental – o caso dos povos ameríndios – possuem línguas que constituem complicadíssimos sistemas de compreensão do mundo. Como é isto possível? De qualquer modo, mesmo que se conclua do facto, como o fez Sapir, que raça e língua são entre si independentes, a verdade é que há quem fale a língua, há quem a fale através de um povo, num determinado momento histórico e se, no curso da vida desse povo, os indivíduos que o compõem vão sendo atraídos para formas de vida grupal inferiores, nas quais se afundam mais e mais, há sempre a possibilidade, enquanto existir a língua, de os levar a assumir conscientemente as formas de conhecimento do mundo que a língua guarda nos seus planos superiores.

Pretendem os leonardinos, através da proposição de uma filosofia portuguesa, levar o povo a esse conhecimento, esperando assim poder inverter o movimento do ciclo ou dar, no momento em que a roda pare, o impulso de uma ideia que faz tudo começar de novo?

É evidente que tudo se modificaria em Portugal se os seus pensadores começassem a ser lidos por aqueles que detêm o poder político e se a maçonaria dominante se repensasse nos seus valores originários, projectando-se exteriormente “em formas superiores de vida política”, conforme as palavras de Eanes, mantendo a fórmula socialista embora, mas em consonância com o lema profético de Eanes Bandarra:

 

Rei e povo governarão.

 

Moisés possuía genealogia real, mas ignorava-a. Édipo, criado por pastores, só quando assumiu o poder em Tebas, soube ter morto o pai Laos e casado com a rainha sua mãe. Cristo, da casa de David, nasceu numa cabana. O arquétipo toma forma histórica no momento de crise dos povos e até da humanidade.

Impressiona nesta revolução do 25 de Abril a multiplicação de sinais e de opiniões carregadas de significado mítico, de que os indivíduos não têm consciência, mas que são lançados no domínio público, como se uma mente invisível comandasse os acontecimentos. Desculpe-se a audácia poética da interpretação:

Os cravos identificam-se com as chagas.

“Homens sem sono” é a expressão clássica de designação maçónica e iniciática dos “vigilantes”.

As alusões frequentíssimas nos jornais ao “encoberto”.

[A ideia,] tão ridicularizada, mas profundamente séria, de construir um socialismo à portuguesa.

A anunciação por parte de certos políticos de uma Nova Era, iniciada com o 25 de Abril.

A simbólica do terceiro mundo do célebre poema de Pessoa.

O nítido sentido de inversão de Gomes da Costa para Costa Gomes.

A coincidência de haver um primeiro-ministro em Portugal chamado Soares e em Espanha chamado Suarez.

O facto de Cunhal (a pedra sobre a qual se constrói o templo) ser entre o povo o Cavalo Branco.

A série de nomes medievais que se tornam dominantes: Eanes, Veloso, Sebastião.

 

Não desconhecemos que esta visão poética assume aspectos ridículos ou até cómicos, como, por exemplo, a de identificar a iniciados homens que, na sua maioria, se revelaram de uma mediocridade assustadora. Todavia, se tivermos de reconhecer que o 25 de Abril pôs termo a um ciclo histórico, de dominação do polo norte, fazendo parar a roda e pondo-a a girar ao contrário, o que agora nos parece ridículo toma o aspecto de um conjunto de sinais, que há que ter em conta, independentemente dos homens que lhe estão ligados. Uma lei histórica, mais evidente no domínio da cultura, rigorosa, é a de que quando uma corrente mental chega a este extremo ocidental está prestes a perder-se e a extinguir-se na Europa e no resto do mundo. Assim aconteceu com o movimento medieval dos trovadores, com o gótico na arquitectura, com os valores do Renascimento, com a Reforma, com o iluminismo, com o fascismo, etc… O 25 de Abril que apareceu sob o signo do socialismo marca também a extinção desta corrente política no mundo.    

 

 

António Telmo  



[1] Nota do editor - No original manuscrito: “Compte”.

[2] N. do E. – É de admitir que António Telmo tivesse pretendido escrever: “tem-se assistido ao determinar desses padrões etc.”.

 

DOS LIVROS. 72

26-03-2023 13:39

Natália Correia[1]

Prólogo:

Folhando o “catálogo”, lê-se, a páginas tantas da história da literatura: Natália Correia, surrealista; bibliografia: Le Surréalisme, Colecção “Que Sais-je?”. Esta escritora, porém, não é francesa; nasceu nas ilhas e é muito bonita. Andou, de facto, na mesma escola do Cesariny, do Herberto Helder e do António Maria Lisboa.

(entram dois jovens)

1.º jovem: “O “catálogo” já está à venda na Faculdade de Letras, mas ainda lá não figura o nome de Natália Correia.”

2.º jovem: “Não procuraste nas redacções dos jornais, secção páginas literárias?”

1.º jovem: “Sim, e encontrei. Referem até o último livro, A Madona. Mas eu queria saber o que dizem os catedráticos. Surrealismo está lá, em francês e com o artigo, le surréalisme. Diz assim, em certo ponto: “Escola ou corrente literária, que também se aplica a Portugal”; e alguém escreveu a tinta, na margem: “É uma glória para nós!”

2.º jovem: “Não o fazem por mal. Querias uma Universidade regionalista? Seria ridículo. Nem os escritores gostariam de se verem tratados como não-europeus. E é preciso que haja um perfeito entendimento entre os “creadores” e os “homens de ciência”.”

1.º jovem: “Não te entendo. Ainda ontem lias e aplaudias em A Madona umas frases que há por lá. Ou estás troçando.”

2.º jovem: “Quais frases? Não me lembro.”

1.º jovem: “Sublinhei-as no meu exemplar. Vamos ver. (Folheia e detém-se a pgs. 58) “Só por isso se matriculara na Faculdade de Letras de onde saíra até ao fim de poucos meses berrando que aquilo era o serviço militar do espírito”. Que estupendo! O serviço militar do espírito. Mas há mais. (Folheia até pgs. 17) “Acabarás o teu curso, o curso! a conspícua glorificação dos burros.” Página 18: “É só mesmo por isso que estás em Paris, onde vieste buscar à escola de Corbusier o prestígio do lá fora que é em Portugal a auréola das mediocridades obstinadas em vencer na vida”.

2.º Homem[2]: Estou a pensar nessa forma para toda a manga que é o romance. Permite dizer o que se quer e falar sobre o que se quiser. Não vês a Natália? A propósito: Ela tem curso? De Letras ou qualquer outra coisa?

1.º Homem: Não me digas que estás a pensar que é uma despeitada. Isso foi coisa que te ficou de teres ensinado numa Universidade brasileira.

2.º Homem: Qual história! Perguntei isto precisamente na ideia de que se ela tivesse curso não a podiam acusar de despeito. Mas ainda falando no que estava a falar: O romance é o género-polvo; deita tentáculos para todos os lados. Vê lá tu A Madona, cujo tema é o sexo, com essas arremetidas de lavagante contra os estrangeirados!

1.º Homem: Perdão! Às vezes a relativa é mais importante, porque mais disfarçada e íntima, do que a principal. Disseste: Cujo tema é o sexo. Não queres falar sobre isto? O tema de A Madona é, de facto, o sexo?

2.º Homem: Como querias que não o fosse? Não é o livro escrito por uma mulher inteligente? E em que é que se distingue uma mulher dum homem, antes de mais nada? Em o corpo ser diferente, em até a matéria do corpo ser diferente, como ela própria diz: “Achámo-nos nos braços uma da outra como duas mulheres, sem as arestas que o litígio criado pelos homens lhes acerou na alma. Uma só carne pulsando no amor de se saber indivisível no núcleo. Fulcralmente invulnerável à estratégia masculina que só aparentemente a reparte”. Ora o espírito de Natália está num corpo feminino, enraizado num corpo masculino. Ela ou ELE está numa carne feminina, carne que a multiplica, depois de se ter dividido, no abrir da vagina prenunciando o desdobrar da célula. Que bela ocasião teve o espírito em Natália para pensar, estando dentro ele, o Mistério do sexo!               

2.º Homem (sic)[3]: Todavia, as glândulas, sob o controle, alteraram-se. E, quando se lhe tornou impossível suportar a tensão de ter esperma transformado em energia espiritual, foi um cataclismo. Romperam-se as artérias subtis e o ímpeto da corrente extravasou refugiando-se, sem articulação interna, na forma lábil do homossexualismo.

1.º Homem: Deixemos, porém, o Anjo, que me parece arranjado para pôr na história o Perfeito. Há um outro homem: é Manuel. Esse é o de cá de fora, o de uma esfera exterior ao círculo da iniciação. Representa a força genesíaca do homem, no seu primitivismo de bruta rudeza e, se por momentos atrai Branca, porque só ele é o complemento dela como mulher igual a todas as mulheres e lhe parece convir para dar uma solução negativa ao “dualismo do ser”, toda a ironia cruel das almas divididas eclode de súbito em Branca, no prazer que sente o Espírito de humilhar e ofender a natureza.

2.º Homem: Parece-me que já estás a meter aí filosofia germânica.

1.º Homem: Deixando passar a expressão, o que estou a fazer é a mostrar o “maniqueísmo” de Natália Correia.

2.º Homem: Diz-me, porém, uma coisa. Achas que esse “maniqueísmo” é consciente ou inconsciente?

1.º Homem: Consciente, sem dúvida; como se prova até por aquilo do perfeito cátaro metido à força no corpo do Anjo.

2.º Homem: Não me parece que tenhas razão nesse ponto. Essa história do Anjo e da sua Queda é ainda do bom catarismo ou maniqueísmo, como quiseres. “Este vive para expiar a abjecção de todos nós. Não o deixemos morrer porque ele é a caricatura da nossa miséria. Ele esgota as forças da abjecção e isso liberta-nos. É o azazel da nossa imunda cidade interior”. Uma espécie de cano de esgoto.

Creio que Natália explica muito bem a transmutação do puro em sórdido que caracterizou muita seita maniqueia. Por exemplo, a dos Carpocratas, para não falar de alguns menos distantes.

Se eu te fiz a pergunta da consciência ou inconsciência, é porque me assaltam muitas dúvidas, não quanto à tua interpretação, que me parece exactíssima até certo ponto, mas quanto a Natália Correia, no sentido de saber se se trata duma maniqueia ou cátara, o que seria, sem dúvida, verdade, se tivesses demonstrado a existência no romance de um catarismo inconsciente. Tenho as minhas dúvidas se há disso ainda nos portugueses, a não ser por “via erudita”, para usar a linguagem dos etimologistas. Será o caso de Natália Correia, que deve ter lido Denis de Rougemont, Péladan, René Nelly e outros semelhantes. Bem sei que há quem defenda, entre nós, uma genealogia secreta, que nos enraiza o subconsciente nos celtas, através de Prisciliano, com a sua gnose que “celtifica” o maniqueísmo, para, depois de um largo período de latência, ressurgir entre os medievais, nas cantigas de amigo. Por aqui explicam também o maravilhoso entendimento dos nossos trovadores com os provençais e catalães. Conheço um tal António Telmo que defende isto mesmo: a “via popular” do maniqueísmo céltico.

Assaltam-me muitas dúvidas. Por exemplo, o final de A Madona. Como o explicas tu? Em termos vulgares: o Anjo foi uma decepção, Manuel um joguete da crueldade feminina, Miguel reapareceu na aldeia, (depois de ter comido guisadas as pernas da amante), num estado de prostração interior, perdida a antiga convicção nos caminhos do mal. Pobres homens! A começar pelo pai, morto de uma síncope na hora da digestão do jantar por ter trocado, na mesma sensação, os prazeres do estômago com os do sexo. Símbolo: – o fruto proibido de Adão e Eva. E a mulher? Condoída de Miguel e, nele, de todos os homens, reencontra-se como mãe, não a mãe besta que cria os filhos como a vaca cria vitelos, mas, contudo, a mãe natural, a mãe piedosa, aquela que sente “o próprio sofrimento do mundo que falhou e isso é mil vezes mais pungente”. “É aqui que deve resplandecer a piedade da mulher como uma força criadora que inaugure o novo ciclo”. Assim a Virgem Estéril se transforma na Virgem Mãe.

1.º Homem: E então?

2.º Homem: Isto aqui já não é maniqueísmo, é catolicismo. E do inconsciente.

1.º Homem: Não me digas que vais explicar todo o romance como o livro de uma escritora católica. Sabes o que Natália diz dos padres através daquele padre frequentador dos serões familiares. Acha-os lúbricos e torpes. Deves concordar que o anti-clericalismo não é independente do anti-catolicismo, embora muita gente queira ver na Igreja e no Clero o trigo e o joio que convém destrinçar. É idiota! Não há Igreja Católica sem sacerdócio, e quando se acusa um padre de ser mau padre, não se acusa o padre, acusa-se o homem. Que eu me lembre, há só uma frase no livro que justifica o teu ponto de vista: “Todos os latinos são católicos.”

2.º Homem: Eu não disse que era esse o meu ponto de vista. Eu não disse que Natália Correia era católica. Vou descobrir o meu jogo: o que eu penso é que Natália é o mais perfeito tipo de cristã nova e quer busque exprimir a sua inquietação no “maniqueísmo”, quer busque exprimi-la no surrealismo (daqui o engano dos europeizantes), o que ela manifesta sempre é o drama duma alma dividida, no cerne, entre duas castas, inimigas, de que ela representa o impossível compromisso. Sim, ela é católica, mas é ao mesmo tempo outra coisa.

1.º Homem: Uma espécie de Ester na corte do rei Assuerus.

2.º Homem: A única espécie de Ester, que é possível no nosso tempo. Isso explica as diferenças.

1.º Homem: Cristã nova ou não, do que não tenho dúvida é de que, se estivéssemos no século XVI, Natália seria queimada como feiticeira.   

 

António Telmo

                                                      

(Publicado em A Terra Prometida - Maçonaria, Kabbalah, Martinismo e Quinto Império, 2014)



[1] Texto encontrado no espólio.

[2] A partir daqui, e até final, António Telmo passa a designar os dois interlocutores por “Homem” e já não por “jovem”. Por outro lado, a partir deste mesmo ponto, as suas falas deixam de surgir entre aspas [nota do organizador deste volume].   

[3] António Telmo introduz aqui, de modo imediato, uma segunda fala consecutiva do “2.º Homem” [nota do organizador deste volume]. 

 

UNIVERSO TÉLMICO. 76

26-03-2023 13:15

Sonho de infância

Paulo Jorge Brito e Abreu

 

( invoco, para a Musa minha, o Arcano do Sol )

 

«A criança é o antepassado do homem.»

 

William Wordsworth

 

( «In Memoriam» de António Telmo )

 

Ah, suave e dourado sonho de infância

Em que eu contava as estrelas do Céu!!!

Pequeno bicho pequeno, a Distância

Aproximando do meu ser sem véu!!!

 

Já depois, meus dedos tocando as nuvens,

Meus olhos a imensidão a contemplar……

Meus dedos sãos, tenros, puros e jovens,

A alada leve e louca, e ao Luar.

 

E o Éter lilial lá das alturas!!!

Prazer bom, leve e morno, o Infinito…

E eu palpando, eu absorvendo, tão fito,

Rectas ondulações, cumes!!! Lonjuras……………………….

 

Ai, a almofada onde eu dormia – tão fofa!!!

E os lençóis que me aqueciam – de cetim…………

A Acidália sem til era estofa:

Meninas brincadas chamando por mim………………….

 

Circulares anjos, formando uma corte

Onde se bailava respirando jardim,

De toda a sorte ogivais rosas, metas, metas!!!

Meninas brincadas chamando por mim……………..

 

00000XXXXX00000XXXXX00000XXXXX00000XXXXX

 

Súbito acordo, eu, o delinquente

Dum fundo mar salgado e cheio de vícios,

À volta de mim olho, vejo só, somente,

- Asas aladas, negros precipícios……………………

 

Lisboa, 16/ 02/ 1978 – Tomar, 01/ 03/ 2023

 

SPES MESSIS IN SEMINE

 

PAULO JORGE BRITO E ABREU   

 

CORRESPONDÊNCIA. 59

26-03-2023 13:08

Carta de Max Hölzer para António Telmo, de 31 de Dezembro de 1976

 

Paris, dernier jour de l’année 76

 

Mon cher ami,

 

Je suis très heureux d’avoir des nouvelles de vous : merci ! Permettez que j’entre dans le « vif ».

Vous savez bien que vous étiez, lors de mes tentations, déjà presque abandonnées à cause de multiples et inévitables malentendus, de former ce « cours » − que c’était vous qui avez fait possible une liaison initiale. Non pas des raisonnements, non pas persuasion, non pas intéresser les autres pour une conviction quelconque, mais par ce « quelque chose » que nous avons senti, nous deux, communiquant entre nous, quelque « courant » (qui dépassait toute « sympathie », ne regardait pas le personnel) – et c’était ce « courant » que les autres ont que constater sans le toucher, inconsciemment, et qui les a infléchis, de temps en temps, d’accepter une chose aussi « folle », à ce moment, que ce cours. Depuis ce moment nous avons à supporter, à réconcilier ce double mouvement d’une intensité qui se voudrait la plus sincère, et la moins « conditionnée » pour des données extérieures et intérieures, et cette autre chose qui nos dépresse, et qui – engendrant la lutte en vous dont vous me parlez dans votre lettre – nous restera toujours, d’une manière isolante mais aussi comme seule possibilité de communication et de connaissance (co-naissance) vraies, l’Inconnu…

Vous devinez, et vous « savez », qu’il y a un certain « commencement » qu’on ne pourrait pas manquer sans se trouver, par la suite, dans l’impossibilité absolue d’atteindre quoi que ce soit de «réel ». Mais la structure de notre existence actuelle est telle qu’elle nous incite à s’appuyer sur « nous-mêmes» justement là où nous devrions suivre certains conseils nous venant directement  des plus expérimentés et chercher quelques attitudes nouvelles, et de vouloir «se faire» là où il est impossible qu’un autre fasse quelque chose pour nous. – Finalement, rien n’est à abandonner, mais dans l’état actuel de notre « être » nous ne savons pas utiliser une seule chose pour notre évolution, pour l’argumentation de notre conscience. Toujours de nouveau, au cour de ma vie, j’ai rencontré des «plus expérimentés», mais maintenant je vois la lignée.

Mon ami António Telmo sait, devrait savoir que je souhaite de tout mon cœur de revenir chez vous. CE qui concerne votre patrie à laquelle je me suis attaché profondément – pensez, pour comparaison, sur une autre échelle, à ce qui pouvait, et parfois ne pouvait pas signifier pour les juifs « Israel ». Moi, j’y trouvais une gamme de possibilités presque complète.

Ce qui concerne un travail possible, je vous pose la même question que je posais à notre ami Francisco dans une lettre récente. Il faudrait un nombre si petit qu’il soit des intéressés, non pas liés par des sympathie et amitiés comme condition (au contraire !) et aussi des couples, qui consentiraient à travailler vraiment pour quelques semaines, en surmontant tout empêchement personnel ou accidentel comme secondaire, et en se réunissant deux fois par semaine sous des conditions un peu différentes que la première fois. Après cela seulement on pouvait voir si une suite ultérieure est possible. Mais, je le dis tout-de-suite à mon ami António Telmo – non sans lui. Ils devraient participer aussi notre ami Francisco et Carlos Silva et sa femme. Je connais quelques jeunes gens que je rencontrais par hasard heureux les derniers jours  à Lisboa dont je ne sais pas s’ils y sont toujours, mais que je voudrais inviter sous les mêmes conditions.

Ce que vous dites de José Marinho, me touche vraiment. Nous avons pu avoir des entretiens très subtils dont j’espère qu’ils l’ont confirmé dans des expériences très intimes. Il était le premier d’entre autres que je rencontrais lors de mon deuxième séjour au Portugal en 1969 qui m’a impressionné profondément – le voyant et entendant lire et interpréter un poème de Teixeira de Pascoaes.

Mes meilleurs vœux, et les plus amicaux pour vous, cher António Telmo, et votre famille.

Je vous embrasse –

Max

 

VOZ PASSIVA. 126

16-03-2023 09:19

Testemunho

Mafalda Ferro

Querido Pedro

Foi com grande alegria que recebi o seu convite que, de facto, não esperava e que, desde já agradeço.

Integrar o grupo de personalidades que compõem o Projecto António Telmo. Vida e Obra é, sem dúvida, um motivo de orgulho e que, tenho a certeza, despertaria em meu pai a mesma reação.

Desde sempre me identifiquei com António Telmo, o patrono, e com Pedro Martins, o mentor do Projecto, bem como com o tipo de trabalho que tem sido desenvolvido na divulgação e estudo da vida, obra e pensamento de António Telmo e do chamado Movimento de Filosofia Portuguesa, por isso o convidei em 2017 a integrar os Órgãos Sociais da Fundação António Quadros.

A Fundação António Quadros, por mim representada, e o Projecto António Telmo. Vida e Obra, da sua responsabilidade, realizaram já, em conjunto, várias publicações, encontros e outras actividades. Parece-me por isso que, aceitar este convite, é a continuação lógica de uma parceria já existente entre estas instituições, até hoje não formalizada e de uma amizade e respeito mútuos entre os seus dirigentes.

Se o Pedro Martins acha que eu posso ser útil, conte comigo.

Como sabe, apesar da admiração, cumplicidade intelectual e amizade que ligaram sempre António Quadros e António Telmo, apesar dos muitos projectos que partilharam, das ajudas com que ambos se brindaram, havia aspectos em que divergiam embora nunca tivessem deixado de se estimar e de respeitar o Pensamento um do outro.

Penso que nós, Pedro e Mafalda, herdámos dos nossos patronos algumas dessas diferenças que, afinal, os completavam e enriqueciam, sem conflitos nem divisões, como sempre tem acontecido connosco.

Com base na sólida amizade que nos une, em interesses e objectivos comuns, muitos projectos se seguirão e benificiarão com a cooperação e estima de sempre.

CORRESPONDÊNCIA. 58

15-03-2023 12:25

Carta de Max Hölzer para António Telmo, de 7 de Janeiro de 1976

 

7 janvier 76

Mon cher ami António Telmo,

Merci de votre lettre, je suis toujours heureux d’avoir des nouvelles de vous et nos amis, ou du moins un signe d’endurance… D’abord: n’inquiétez-vous pas de la note, du paiement pour les livres, tout est réglé depuis des mois – mais qui, au diable, a pu vous importuner avec une réclamation?? (Ma banque, comme je vois, a bien réglé la chose; seulement, je ne vous ai pas écrit et demandé d’accepter les livres de ma part – mais c’est un autre côté…).  Ne répondez rien, ou envoyez-moi la fiche. –

J’ai reçu, avec une véritable joie, la lettre de notre Francisco S. – et c’est vraiment impardonnable de n’avoir pas donné signe, d’autant plus que j’avais l’impulsion presque irrésistible de le faire sur le champ … mais un autre sentiment – je ne sais de quelle ptofondeur – que j’eusse à faire attendre ma gratitude… J’étais vraiment dans des travaux multiples et difficiles, avec une certaine soumission, qui me laisseraient, la nuit venue, sans aucune ressource d’énergie. Entretemps s’ajoutait beaucoup de travail physique d’un déménagement : notez, s’il vous plaît, l’adresse nouvelle: 1, Place de Breteuil, F 75007 Paris, tél. 7344689.

Avez-vous, mon ami, pu obtenir les livres de Vyas et d’Ouspensky? Je serais très contente si vous pouviez m´écrire vos impressions, vos réactions, et je vous prie de m’écrire en portugais, cela me fait beaucoup plus de plaisir !

 

Par le travail dont je faisais allusion, et par la grâce des « circonstances », je pourrais aujourd’hui, sous certaines conditions, répondre à vos désirs de recherches authentiques ; je savais que l’essai que je faisais, il y a un an, ne pouvait pas être qu’un test, une annonce. C’était trop et trop peu en même temps. Mais, ni nous tous, ni le moment n’étaient prêts à autre chose. Tout dépend, maintenant de la force du désir, de l’impulsion de travailler (en soi-même), de la disposition voulue à sacrifier les obstacles. La « vie» est une chose, l’œuvre une autre. Les livres ne suffisent pas, et non plus les accompagnements que nous donne le destin, ou le hasard, parce que nous ne savons pas comment les utiliser pour ces fins supérieurs.

– Nous ne savons absolument pas, combien de temps nous sera accordé pour apprendre une fois pour toutes, et dans chaque moment, la juste « rentrée». –

Je n’ai pas trouvé sur la mappe le beau nom de Borba – ce n’est pas loin d’Évora ? Pouvez-vous aller régulièrement à Lisbonne ? Donnez-moi des nouvelles, tout ce que vous croyez bon que puisse me représenter les choses.

Je vous souhaite, de tout cœur, une bonne année illuminée de plus en plus par l’apprendre de la Connaissance et de la Vie.

Max Holzer

 

DOS LIVROS. 71

14-03-2023 15:51

As tradições heterodoxas da filosofia Portuguesa (excerto do Epílogo)

 

Todos quantos podem dizer «nós» pensando na sabedoria esotérica que permitiu à Faculdade de Letras da Universidade do Porto ser uma escola exotérica serão capazes de pressentir, se não o souberem já, o que o discípulo[1] de Leonardo Coimbra pretendia dizer ao invocar o nome de Hermes. A existência de uma sabedoria hermética, demonstrada neste estudo, sabedoria não inconsciente mas subconsciente à filosofia portuguesa, ao ser descoberta poderá traumatizar quem entrou na escola de Leonardo Coimbra pela porta da ortodoxia. A fidelidade ao ensino só poderá manter-se com o reconhecimento do que lhe aparecerá como terrível e inevitável. Qualquer subterfúgio para iludir a verdade frustrar-se-á perante os textos. Será talvez tarde para recuar, mas, se persistir, ao reconhecimento, no sentindo aristotélico da tragédia grega, seguir-se-á a catástrofe e, por fim, havendo coragem e inteligência, a entrada em Colona, onde Édipo, pela mão de Antígona, filha do incesto, ainda hoje exerce a medicina perfeita.

 

António Telmo

 

(Publicado em Filosofia e Kabbalah seguida de Álvaro Ribeiro e a Gnose Judaica e outros estudos, 2015)
 


[1] Nota do editor - António Telmo refere-se a José Marinho.

 

CORRESPONDÊNCIA. 57

11-03-2023 16:27

Depois de uma carta sem data e de outra datada de 16 de Maio de 1975, retoma-se hoje a publicação da correspondência de Max Hölzer para António Telmo, que, com transcrição, apresentação e notas de Risoleta C. Pinto Pedro, havia sido iniciada nesta página em 21 de Agosto de 2021.   

 

Carta de Max Hölzer para António Telmo, de 16 de Maio de 1975

 

Le 6 août 75

Cher António Telmo,

 

Tout-de-suite après avoir reçu votre lettre, et très content d’avoir votre adresse exacte, j’ai donné l’ordre  de vous envoyer les livres, et je pensais que vous aurez de cette manière une “réponse” immédiate: mais je ne savais pas que l’ami à Francfort qui attendait l’adresse, étai parti avant d’avoir reçu ma lettre. Puis, moi aussi je devais partir pour un colloque à l’Université de Genève, sur le fait religieux “interdisciplinaire”, comme on dit (théologiens, sociologues et.) – c’était très décevant mais au moins partiellement un aveu de leur impuissance totale- Entre temps – tout en participant avec un certain engagement [ilegível] aux “événements” – j’ai continue à travailler intensément dans plusieurs directions – et “en marge” aussi à écrire d’autres choses sur Fernando Pessoa, que je pense à pouvoir publier l’automne ou l’hiver prochain comme “apprêts”[?] …

Savez-vous que Castanede a publié un 4 -ème tome, tales of Power, qui est tout à fait extraordinaire et donne – si on a la patiente de l’analyser, comparer, composer les “membres” – les clefs et une connaissance structurelle assez avancée.

Écrivez-moi, s’il vous plaît, si vous avez reçu les livres. Une autre chose m’intéresserait – si vous avez la possibilité, par votre éditeur, de vous faire venir des livres français ou anglais.

Francisco n’a pas pu venir pour un de ses brefs séjours? Je lui écrirai.

Si vous pouviez le faire, ce serait une bonne préparation pour un travail ultérieur, lisez le livre de Ouspensky, Fragments d’un enseignement inconnu, le livre est paru aussi en espagnol et en français et en anglais naturellement. Lisez-le ensembles, sans trop discuter.

Vous avez tout à fait raison avec la solitude! Mais d’autre part, elle ne comporte pas assez des frictions éveillantes par lesquelles nous commençons, si nous abandonnons tout notre vocabulaire et toutes nos représentations psychologiques etc habituées, à nous connaître nous-mêmes. Il n’y a pas de temps à perdre.

Je pense à vous, tous les jours, et de moins et moins, l’espace nous separe.

Avec mon affection la plus cordiale,

Max H.

Merci pour votre belle lettre! – Dalila m’a écrit que le Dr. José M. avait été opéré et se trouverait encore dans un état de faiblesse – dites-moi où je pourrais lui écrire et envoyer un livre.

INÉDITOS. 104

11-03-2023 16:13

Não sabemos se a carta, inédita, que hoje damos à estampa chegou a ser enviada ao seu destinatário, pormenor, ainda assim, de pouca importância atendendo ao seu conteúdo intrínseco. O leitor está perante um dos mais importantes documentos, que conceber se possa, para a história do movimento da Filosofia Portuguesa no último meio século. As clivagens que atravessaram a geração a que se convencionou chamar do 57 não são inteiramente desconhecidas. A posição assumida nesta missiva pelo filósofo da razão poética é sumamente esclarecedora quanto à ideia que faz daquele movimento, concebendo-o, na senda de Sampaio Bruno e de Álvaro Ribeiro, como a-confessional ou heterodoxo, num quadro de livre-pensamento.         

Carta a Francisco Moraes Sarmento por mor da revista Leonardo

 

Estremoz

14-11-88

 

Exm.º Sr. Director da revista Leonardo

e meu caro Francisco

 

Profundos laços de fraternidade por um lado e de amizade por outro, o nome de Leonardo e o que ele deve implicar de fidelidade a José Marinho e a Álvaro Ribeiro explicam que, até agora, a presença do meu nome entre os “mentores” da Revista que v. dirige não tenha sido contestada por mim. A sua comunicação, durante o jantar do dia de São Martinho ou do deus Marte, fez “estalar as castanhas” no familiar estrépito das brasas e no esplendor das mónadas divergentes: o senhor bispo fulano de tal advertiu a Revista por um dos seus administrativos sobre o perigo, já visível, de ela se tornar um órgão do anticlericalismo. Admirei, na altura, o nobre destemor do seu espírito, quando declarou que a Leonardo não está nem estará ao serviço de instituições, sejam elas a Universidade ou a Igreja. Dado, porém, que o referido administrativo (Pinharanda Gomes) é um dos principais mentores da Revista é de supor que a minha colaboração tenha sido visada na advertência episcopal: a intriga, no nobre sentido da palavra de relação a três, estabeleceu-a o autor desse livro sub-reptícia e subversivamente antipatriótico História da Filosofia Hebraica.

No Correio da Manhã de Domingo leio agora o anúncio do terceiro número da Leonardo, com uma nota em que o meu nome aparece associado ao de Pinharanda Gomes e ao de Bigotte Chorão. O relevo dado nesse número à carta a Francisco Costa constituiu uma cedência às instituições episcopais.

Estes factos, até porque são factos, não constituem, porém, o decisivo. Eles apenas significam o proveito que os adversários do livre-pensamento podem tirar da confusão estabelecida pela conversão final ao catolicismo do pensador “obreiro”, desviando subtilmente a interpretação da sua filosofia da linha de impulso que Álvaro Ribeiro situou em Sampaio Bruno. Tudo está aqui neste desvio subtil. Não me parece que a orientação geral ou dominante da Revista possa, sem contradição, incluir entre os filósofos de filosofia portuguesa Sampaio Bruno, aceitando o ensino de Álvaro Ribeiro que o dá como “fundador”, isto é, como aquele que estabeleceu os princípios que fundam essa mesma filosofia.

Essa foi a razão secreta que me levou a recusar o seu convite de escrever, para o primeiro número, sobre o autor do Porto Culto, enviando-lhe, em substituição, um artigo sobre Leonardo Coimbra que logo provocou a censura eclesiástica, através da carta de Barrilaro Ruas. Nos livros que até agora publiquei e nos escritos que se vão dispersando por revistas e jornais deixei claramente expressa uma interpretação de filosofia portuguesa de raiz brunina e, por isso, incompatível, no domínio da religião, da política e do ensino com a que é dominante entre vós.

Ficar-lhe-ei, pois, muito grato se o vir obrigado a não incluir nas próximas publicações da Revista o meu nome. Não significa isto que me recuse a responder à segunda carta do Barrilaro Ruas.

                                                                                              Abraça-o com sincera amizade

                                                                                                              António Telmo            

 

UNIVERSO TÉLMICO. 75

08-03-2023 11:05

Publicamos hoje o ensaio com que Pedro Martins colaborou no volume, recentemente publicado e já aqui amplamente divulgado, Miguel Real 40 anos de Escrita: Literatura, Filosofia e Cultura.     

 

A casa das mil portas:

Miguel Real e a Filosofia Portuguesa

Pedro Martins

 

Nota prévia

O presente texto tem o propósito exclusivo de homenagear o escritor e filósofo Miguel Real. Pede-se de antemão ao leitor o favor de nunca o perder de vista, mesmo quando, pela dialéctica desenvolvida nas suas páginas, o homenageado delas pareça estar momentaneamente distante, ou até ausente. As críticas nele dirigidas a autores notados, laureados e até incensados na ara do reconhecimento público não terão outro propósito senão o de melhor enfatizar, pelo fulgor do contraste, e em termos do maior louvor, a excepcional atitude ética e teorética de Miguel Real perante o segundo azimute do seu subtítulo: quem, despido de preconceitos, e à margem do canibalismo cultural que ele tão bem tem sabido denunciar, quiser entender a essência do movimento da Filosofia Portuguesa, pode começar por ler os livros do autor de A Morte de Portugal.          

 

 

I. A atitude lamentável de uma parte significativa da intelectualidade portuguesa perante o movimento da Filosofia Portuguesa – e, mais amplamente, em face da catena aurea da Escola Portuense em que este se insere – pode ser ilustrada pelo capítulo IV do livro Uma Admiração Pastoril pelo Diabo (Pessoa e Pascoaes), de António M. Feijó, intitulado “Teixeira de Pascoaes”. Nele se surpreende uma ignorância clamorosa do que tal movimento seja, eivada, para mais, de um insofrido acinte. Vale a pena ver de perto, com certa demora, o que o autor ali afirmou, pois que a sua atitude se ache, precisamente, nos antípodas da que depois se encontrará na obra de Miguel Real, num contraste precioso, por iluminante.

Considera Feijó que três factores afectam «a legibilidade da obra de Pascoaes», visto que esta: a) «é ameaçada por uma noção corrente do que é «poético», em que a característica maior do poético é a presença da «metáfora», sendo aqui a metáfora, de modo vago, qualquer figura reconhecível pelo leitor»; b) «parece igualmente afetada por uma dicção poética regressiva e pré-moderna que levou Pessoa, não obstante a sua perceção da magnitude de Pascoaes, a descrevê-lo como sofrendo de “pouca arte”»; c) e «alguns dos seus textos mais conhecidos» foram «assiduamente glosados por uma série de discípulos menores que neles em parte fundaram a débil construção derivativa apelidada “Filosofia Portuguesa”»[1].

Não enuncia o autor quais os escritos pascoalinos sobre os quais terá incidido esta contínua glosa; mas, em seguida, depreende-se estarem em causa os «textos exotéricos», pois que, segundo ele, se constituam estes como «evangelho» dessa «religião inferior» que, a seus olhos, vem a ser a «filosofia portuguesa”»[2]. Contra semelhante estado de coisas, pernicioso para a «legibilidade» da obra do vate, sugere-se então

 

«uma regra simples: tudo o que Pascoaes escreveu deve ser lido de modo literal, não dissolvido na interpretação, como tropo ou símbolo. A radicalidade conceptual e poética dos seus textos só assim é percetível. Ler literalmente os seus textos não é incompatível com o reconhecimento de um papel decisivo da «imaginação», se o que neles se exprime for, como é o caso, um adquirido cognitivo, uma intuição metafísica do autor. O objeto destas intuições, inesperadas e de uma audácia inigualada por qualquer contemporâneo, é cosmológico e poético. Por exaltante que seja para o leitor, o belo de que é expresso é a beleza de um conteúdo belo, o seu modo de existir, a sua forma de expressão».[3]

 

Qual seja este conteúdo, parece o ensaísta dizê-lo logo depois, de modo sintético e terminante: «Pascoaes é precisamente um gnóstico. O seu sistema é rigoroso, nada heteróclito. Se considerado de um ponto de vista normativo, o sistema, tal como neste capítulo o descrevo, é um compêndio de heresias»[4]. Importa, contudo, precisar que um tal sistema, na visão do autor, parece emergir exclusivamente das cinco biografias por Pascoaes publicadas entre 1934 e 1945, em que se encontra «disperso»[5].

Pascoes é efectivamente um gnóstico. Nada que na Filosofia Portuguesa há muito se não saiba. Em apontamento de publicação póstuma, afirma António Telmo, discípulo directo e dilecto de Álvaro Ribeiro:

 

«A genealogia de Pascoaes é como se segue:

O Canto da Pérola dos Actos de Tomé gerou Prisciliano, este gerou Dinis e Isabel e as festas do Espírito Santo, Dinis e Isabel geraram Luís de Camões e a sua Ilha, Luís de Camões gerou Sampaio Bruno e os Cavaleiros do Amor, Teixeira de Pascoaes é um deles.»[6]

 

Helder Macedo, universitário insuspeito de vinculação, ou sequer proximidade, ao movimento da Filosofia Portuguesa, teve o mérito sage de não dissociar a literatura de um Bernardim Ribeiro do esoterismo, o que lhe veio a propiciar a composição do notável ensaio Do significado oculto da Menina e Moça, de tão fecundo diálogo com os estudos de hermenêutica camonina, praticamente coevos, de António Telmo e Fiama Hasse Pais Brandão. Nesse estudo, e no contexto que é o seu, se declara, a dado passo, que «o Hino da Pérola deve ser visto como um modelo arquetipal do ensino gnóstico»[7]. Hino ou Canto, como Telmo de modo diverso traduz, são o mesmo relato, de que Macedo, decisivamente, lançou mão:

 

«A aproximação estilística entre a abertura do Hino da Pérola e da Menina e Moça já de si sugere a possibilidade de que a novela encerre um significado esotérico semelhante. Porque de que encerra algum significado esotérico não pode haver dúvidas: o próprio Bernardim o indica em vários comentários cuidadosamente integrados na tessitura da história.»[8]        

 

O facto de António Telmo não haver mencionado Bernardim Ribeiro na genealogia de Pascoaes não significa, porém, que dela o tenha excluído: Camões é um marco suficientemente poderoso para nele, como num símbolo, se poder polarizar toda uma época. Mas o que aqui mais importa frisar é precisamente a tradição que, como transmissão e recepção de um conhecimento, se consubstancia na correspondente cadeia.

Na sua obra sobre A Corrente Idealístico-Gnóstica do Pensamento Português Contemporâneo – Antero, Pascoaes, Pessoa, Ângelo Alves considera sucessivamente o movimento da Renascença Portuguesa, o movimento da “Filosofia Portuguesa” e o Movimento Internacional Lusófono e a Nova Águia como os três momentos altos da corrente mencionada no título do livro. À semelhança do que sucederá no estudo de Feijó, o autor de Santo Agostinho foi ali objecto, se bem que em moldes diversos, de uma especial atenção, e ainda aqui a par de Pessoa (e de Antero).

A leitura de Ângelo Alves, sobre ter o mérito de relevar a cadeia tradicional que, a partir da Renascença Portuguesa, vincula os sucessivos movimentos contemporâneos nela inscritos, não lhe desconhece a antiguidade das suas raízes; e, por isso mesmo, o autor assinala, aborda e caracteriza sumariamente o esoterismo das inúmeras correntes gnósticas, ainda que dele naturalmente se distancie e divirja pelo prisma crítico da ortodoxia católica tradicional.

Um dos erros graves em que António M. Feijó incorre advém precisamente de desconhecer, não compreender ou recusar-se a aceitar que Teixeira de Pascoaes (e o movimento da Renascença Portuguesa em que o poeta pontificou), por um lado, e o movimento da Filosofia Portuguesa, por outro, se inscrevem orgânica e essencialmente numa mesma cadeia tradicional, de que constituem sucessivos elos solidários. A tradicionalidade dessa cadeia está referida a um conhecimento ou a uma sabedoria que se constitui como objecto da tradição (no sentido forte acima proposto), em que avultam, e porventura predominam, referentes matricialmente gnósticos, pese embora o corpus transmitido neles se não deva considerar esgotado. Vale a pena considerar o seguinte excerto do livro de Ângelo Alves:

 

«A corrente filosófica dos “metafísicos heterodoxos” da contemporaneidade portuguesa, que qualificámos de idealístico-gnóstica, não se constitui como tal, nem é partilhada em continuidade, senão a partir de 1912, com a fundação do movimento da Renascença Portuguesa. Aí se acumulam as afinidades com o passado, os ideais e propósitos comuns. A sua identificação e auto-reconhecimento acontecem apenas a quando da discussão acerca do problema da “Filosofia Portuguesa”, levantado por Álvaro Ribeiro e pelos discípulos de Leonardo Coimbra da primeira e da segunda geração. Por eles são identificados, como precursores, Antero de Quental e Amorim Viana; como fundador, Sampaio Bruno; como mestres, Leonardo Coimbra, Guerra Junqueiro, Teixeira de Pascoaes, Teixeira Rego: todos ligados à cidade do Porto, física ou culturalmente, dando origem à posterior denominação de “Escola Portuense”, constituída por eles e pelos continuadores, já assinalados, do segundo e do terceiro momento alto da sua história.»[9]

 

Na recensão que na revista Suroeste dedicou a Uma Admiração Pastoril pelo Diabo (Pessoa e Pascoaes), António Cândido Franco pôde muito justamente observar que o seu autor nunca leu Álvaro Ribeiro, pois o filósofo de A Razão Animada pouca atenção prestou a Teixeira de Pascoaes e seria grave dá-lo como discípulo deste, ao passo que José Marinho, «esse, sim, dedicou-lhe muita leitura, mas sem “capturar”, sem se fazer servil, e sempre acima de debilidades»[10]. É deveras certeiro o modo como Cândido Franco mostra e demonstra o «erro de juízo» do ensaísta. Note-se, aliás, na sua senda, que para a geração dos discípulos de Álvaro e de Marinho, Pascoaes, sendo um poeta e um filósofo admirado e amado, não constitui propriamente uma referência obsidiante. António Telmo elegeu Camões como o poeta de eleição da sua hermenêutica e António Quadros concentrou maiormente a sua atenção em Fernando Pessoa, enquanto Afonso Botelho, Pinharanda Gomes (em colaboração com Dalila Pereira da Costa) e António Braz Teixeira, posto que à Saudade hajam dedicado notáveis estudos, não consagraram de modo autónomo qualquer monografia à vida, à obra e ao pensamento do vate do Marão – à semelhança de um Orlando Vitorino.

Sendo exacto, como António Cândido Franco aduz, que Álvaro Ribeiro pouca atenção (entenda-se: no que deixou escrito) prestou a Teixeira de Pascoaes (por comparação, notadamente, com as páginas mais copiosas que dedicou a Bruno ou a Leonardo), deve-se, todavia, sublinhar que o filósofo, em poucas linhas, declarou com uma enorme lucidez o que de mais essencial e mais importante haveria a dizer:

 

«À Tradição chamou Teixeira de Pascoaes Saudade, e nessa alegorização ou mitificação foi o poeta extremamente feliz. Não só porque encontrou uma palavra inconfundível e intraduzível. Mas também porque a tradição, entre nós, não persiste com aquela modalidade didáctica ou eminente que surpreendemos na vida de outros povos, porque se dilui em doutrina esquecida ou perdida, em doutrina remota. Isto explica, aliás, que o Génio Português não se actualize positivamente, não se patenteie, não afirme a sua superioridade na constância de uma vitória que confunda e derrote os descrentes. A saudade é uma tradição, mas uma tradição sem fórmulas que a fixem e transmitam, uma tradição sempre difícil de surpreender e de reconstituir.»[11]

 

Nesta concepção de Álvaro Ribeiro, em que, de algum modo, parecem justamente emergir a identificação e o auto-reconhecimento da denominada corrente idealístico-gnóstica, divisados por Ângelo Alves no seio da Filosofia Portuguesa, a Saudade de Pascoaes surge como um momento inscrito num iter, inserido num movimento, sendo o todo – a Tradição – evidentemente maior do que a parte – a Saudade, tomada como expressão alegórica ou mitificante dessa mesma Tradição. Nada de mais distante da concepção hipertrófica vertida em Uma Admiração Pastoril pelo Diabo (Pessoa e Pascoaes), que, pelo menos em parte, parece fazer depender a doutrinação dos homens da Filosofia Portuguesa de uma suposta cartilha saudosista pascoalina. Álvaro Ribeiro sabia bem que fora em Sampaio Bruno que Pascoaes haurira a sua filosofia da Saudade – o que António Telmo pôde demonstrar nalguns lugares da sua obra[12] – e que ambos se vinculavam, de um certo ponto de vista (como, de resto, Fernando Pessoa), a uma orientação martinezista ou martinista (isto é, derivada do ensino de Pascoal Martins) [13], o que aliás, ainda e sempre, nos remete para o vasto domínio multímodo do gnosticismo. A Tradição, primordialmente, é uma e é una; mas diversifica-se em ramificações passíveis de adquirirem particulares conotações, de índole nacional ou supra-nacional, consoante as formas tradicionais que em concreto prevaleçam, de um prisma diacrónico, em determinado espaço ou em dada comunidade. A este respeito, deve desde já notar-se que o gnosticismo peculiar da tradição portuguesa é um gnosticismo mitigado, inconformado com a irredimível malignidade da matéria e muito próximo do primitivo judeu-cristianismo ebionita e elcasaíta (a doutrina da cristo-angelologia e do Verus Propheta, que ressoa nitidamente no priscilianismo e no martinismo, será o corolário surpreendente de um livro já tão tardio e definitivo como seja A Literatura de José Régio, de Álvaro Ribeiro) e, por esta via, da Kabbalah hebraica e do sufismo de matriz persa, para aqui se fazer convergir as três tradições – a rabínica, a patrística e a corânica – que na visão alvarina confluem na formação da filosofia portuguesa. Uma tal confluência, pressupondo a harmonia efectiva e perene de três exoterismos religiosos, não pode deixar de fazer apelo a uma tradição esotérica e iniciática, único plano em que os aparentes antagonismos dos credos e dos cultos se resolvem na superior unidade do Princípio, conforme o ensino de um André Benzimra[14].     

Feijó parece crer que Pascoaes é um gnóstico de geração espontânea ou que se limitou a colher nos livros o correspondente saber. Nada de mais errado, como muito bem sabe quem não ignora o que aqui esteja em causa. O gnosticismo não se confunde com a mística, domínio da passividade e do isolamento: é um esoterismo e uma iniciação, o que pressupõe a transmissão de um conhecimento e, o que é mais, de uma influência espiritual, no seio de uma organização tradicional regular. Pascoaes, como se viu, tem uma genealogia, algo que, nas palavras de René Guénon, cuja lição venho seguindo, o místico não tem, dele, sim, se podendo então dizer «que só por uma espécie de geração espontânea é o que é»[15].

Nesta inconsideração do esoterismo radicam outros erros, como seja, antes de mais, a propugnada leitura literal do corpus pascoalino, não dissolvido na interpretação, como tropo ou símbolo. Estamos perante uma evidente impossibilidade gnoseológica.

Os escritos de Pascoaes em que Feijó descobre o seu gnosticismo, pois que sejam textos de um gnóstico, sê-lo-ão igualmente os de um iniciado. Revelam, isto é, expressam exotericamente uma experiência, que mostram e voltam a ocultar. Re-velam, pois. Se, ao referir-se aos textos exotéricos de Pascoaes (com o que possivelmente deseja designar os títulos do ciclo textual cumprido com a campanha saudosista), o autor pretende inculcar a ideia de que o vate escreveu outrossim textos esotéricos, volta a dar mostras de não fazer a mais pequena ideia daquilo sobre que escreve. A lição é agora de António Telmo:

 

«Esotérico é relativo a exotérico. Não são opostos, como vulgarmente se entende. Estão assim como o interior em relação ao exterior, pois só há exterior por haver interior e só há interior por haver exterior. Exterior não é, porém, o mesmo que exotérico; só é exotérico aquele exterior em que vive o interior e dele recebe a forma. Ou, por outras palavras, só é exotérico o exterior enquanto nele se revela o esotérico. Consiste a revelação em, mostrando, ocultar de novo. Não se deve dizer, pois, que Shakespeare ou Camões escreveram livros esotéricos.»[16]            

 

Está bem de ver que esta ocultação na expressão, mais do que de uma necessidade de preservação do iniciado (face a perseguições) ou da doutrina que expressa (perante o perigo da sua desfiguração pelos profanos), resulta da própria natureza das coisas[17]. A iniciação é a experiência de um mustérion (mistério), e esta palavra, tal como a palavra muthus (mito), deriva da raiz grega mu, que se reencontra no latim em mutus (mudo) e que representa a boca fechada e, por extensão, o silêncio. Este parentesco, esta familiaridade, explicam que o relato mítico, pleno de simbolismo, seja o veículo do mistério, a própria linguagem da iniciação. Sendo o mistério, de seu natural, e no seu sentido mais profundo, o inexprimível, aquilo que só em silêncio pode ser contemplado, ou seja, o incomunicável – pelo menos directamente e pela linguagem vulgar –, «uma das funções gerais do simbolismo é efectivamente a de sugerir o inexprimível, de o fazer pressentir, ou melhor, «assentir», pelas transposições que permite fazer de uma ordem para a outra, do inferior para o superior, do que é mais imediatamente alcançável para aquilo que só mais dificilmente o seja; e tal é precisamente o destino primeiro dos mitos»[18].

A quimera lógica veiculada em Uma Admiração Pastoril pelo Diabo (Pessoa e Pascoaes) está em se proclamar a literalidade da leitura dos textos pascoalinos, procurando em simultâneo compatibilizá-la com o reconhecimento de um papel decisivo da «imaginação», se o que neles se exprime for, como é o caso, um adquirido cognitivo, uma intuição metafísica do autor. Na verdade, a interposição da imagem – a mediação reveladora que por ela se opera – é eminentemente simbólica daquela intuição metafísica. O que é intuído, só o é porque é imaginado, na medida em que o é e pelo modo como o é.      

A este respeito, a desocultação pioneira que Pedro Sinde empreendeu da poesia pascoalina em O Velho da Montanha – A Doutrina Iniciática de Teixeira de Pascoaes, perscrutando nos seus versos a sintomatologia do mundus imaginalis, a partir dos ensinamentos de um Henry Corbin sobre a imaginação criadora, mormente na tradição islâmica, e na esteira do que António Telmo já fizera com Camões, oferece formal desmentido ao paralogismo há pouco identificado, na medida em que a reconduz de modo inelutável ao domínio do hermetismo, para a aproximar da tradição martinezista, pelo diálogo quase a final encetado entre o Regresso ao Paraíso e o Tratado da Reintegração dos Seres de Pascoal Martins[19].    

Ao contrário do que António M. Feijó afirma, as intuições pascoalinas, posto que sejam um caso raro, desde logo no plano da expressão literária, nada terão de inesperado do ponto de vista de uma ciência sagrada que o autor, manifestamente, ignora ou desconsidera, o que não deixa de ser espantoso em quem pretende reconstituir numa vintena de páginas um sistema de pensamento gnóstico haurido em muitas centenas de laudas. Já o aparente receio que o leva a colocar entre aspas – como quem duvida ou hesita – a palavra imaginação, sendo coerente com a recusa da leitura simbólica dos textos de Pascoaes que propugna, não deixará de constituir, da sua parte, uma concessão, porventura indesejada, à natureza das coisas.

No fundo, está aqui em causa a partilha, pelo ensaísta, daquele «critério cheio de severidade para com todas as formas de imaginação que se apresentam, nos poetas e nos prosadores, com a finalidade secreta ou patente de dizerem o mistério»[20] que Telmo considerava ser comum a António de Oliveira Salazar e a António Sérgio. Em pleno século XXI, a anquilose positivista continua a fazer o seu curso na nossa cultura…

 

 II. Nessa sua monumental obra de referência que é O Pensamento Português Contemporâneo – 1890-2010: O Labirinto da Razão e a Fome de Deus, escreve Miguel Real: «Não interessa quantas pessoas estiveram no funeral de António Telmo, desde que as presentes o tivessem lido e, mesmo não aceitando e até contraditando a sua teoria, tivessem consciência do valor da sua obra»[21]. São palavras que exemplarmente definem quem firmou como um aristocrata do espírito.

Entre nós, além de ser um dos grandes romancistas do seu tempo, Miguel Real revela-se também um pensador singular, tanto pela valia inquestionável de uma obra ensaística original que marca com argúcia, audácia e acutilância a actualidade do panorama mental português, como pela gesta propedêutica e didáctica que o escritor vem amorosamente dedicando à cultura filosófica, literária e artística da sua Pátria.

É admirável o modo como o faz. A erudição prodigiosa de que sobriamente se prevalece concorre com a maior honestidade intelectual. A limpidez que tem no olhar faz com que nunca perca a capacidade de admirar, reconhecendo e exaltando o que no outro – ainda que por caminhos diversos dos seus – é novo e – ou – valoroso, devendo aqui ser lembrado o muito que as gerações novas lhe devem. Mesmo quando dissente, denuncia ou refuta, é seu o exemplo de uma elegância séria e serena, feita de civismo e cordial civilidade.   

Há nele uma permanente disponibilidade para aquela entrega generosa que é própria dos grandes missionários da cultura. Mas Miguel Real é sobretudo um homem bom: dele são a coragem, o coração, a compreensão.

Gostaria aqui, todavia, de lhe realçar uma outra virtude invulgar: a da imparcialidade. Dela ouvi um dia dizer a António Telmo ser qualidade imprescindível a quem queira prosseguir na vocação de pensar.

Quanto lhe deve a Filosofia Portuguesa avalia-se, antes de mais, pelo modo isento, objectivo e esclarecedor como n’O Pensamento Português Contemporâneo – 1890-2010 soube apresentar a obra e o pensamento de Álvaro Ribeiro, de quem, como «um livro-charneira no pensamento português do século XX»[22], irá encarecer essa obra seminal que é O Problema da Filosofia Portuguesa. Nela aliás entrevê uma «espécie de corolário necessário» da corrente espiritualista em que se inscrevem Sampaio Bruno, Teixeira de Pascoaes e Leonardo Coimbra, «três pensadores portugueses portuenses dos inícios do século XX» exercendo «manifesta influência» na obra de «pensamento original»[23] do autor de Apologia e Filosofia: Pascoaes ao enfatizar a especificidade essencial da vinculação inerente à tradição portuguesa e o necessário comércio da filosofia com a filologia; Bruno ao considerar a união substancial entre a filosofia e a teologia; e Leonardo pela assunção de um espiritualismo metafísico de pendor humanista e cristão.    

Não se trata aqui, porém, segundo o nosso autor, de influências «de conteúdo, mas de espírito ou de atitude»[24]. Estamos já muito longe da visão assaz ligeira de um António M. Feijó. Miguel Real sabe do que fala: pressupõe a existência de uma cadeia tradicional que não começa em Pascoaes nem termina em Álvaro Ribeiro; e, porque a todos leu, reconhece em cada um dos seus elos aquela originalidade única e irrepetível que a comum origem dos pensadores nunca chega a prejudicar.

Miguel Real não ilude o confronto entre o movimento da Filosofia Portuguesa e a corrente dos pensadores racionalistas em que, aliás de modo muito variado, se inscrevem nomes como António Sérgio, Eduardo Lourenço ou Boaventura Sousa Santos. Sendo conhecida a importância de que para si se reveste, aliás em termos de decisiva influência, o segundo destes autores[25], não deixa de ser admirável – para alguns, porventura, mesmo surpreendente – o desassombro desenvolto com que n’O Pensamento Português Contemporâneo aponta, em termos manifestamente críticos, «o exagero extremista» – e «fulgurante» – com que Lourenço visou Álvaro Ribeiro[26]. São as páginas, aliás equívocas, de O Labrinto da Saudade, que Miguel Real traz à colação, ali onde se menciona Álvaro como o «“guru”» da «“seita”» da Filosofia Portuguesa, grupo cujo pensamento surge referido a uma espécie de motor da «“ideologia cultural de um fascismo lusitano”»[27]. Devo esclarecer que, diferentemente de Miguel Real, não estou seguro de que Eduardo Lourenço tenha realmente pensado isto de Álvaro Ribeiro. Quero dizer, por exemplo, que não sei se entre os olhos dos muitos aos quais a filosofia portuguesa passou por ser essa tal ideologia cultural de um fascismo lusitano[28] se encontravam os do próprio Lourenço, pois que este, quando não padecia, ele próprio, pelo efeito-ricochete de um irónico boomerang, do «estilo peremptório»[29] que atribuiu a Álvaro Ribeiro, ou do «estilo provocatório»[30] por si vislumbrado no Jornal 57, parecia, não raro, mostrar-se exímio em dizer algo ou talvez, afinal, o seu contrário, numa deriva hesitante que quase se diria ser o preço a pagar pela superior expressão literária com que o prosador ensaísta fascinava muitos dos seus leitores, se não houvéssemos de suspeitar que se encontra ainda por fazer a psicanálise mítica da obra de Eduardo Lourenço[31], em que se pressente a expressão, aliás complexa, de um marranismo cultural, e a este respeito talvez valesse a pena começar por escrutinar quanto nos deixou escrito sobre Pascoaes e Pessoa.          

Como quer que seja, tem Miguel Real, na defesa que faz da obra alvarina, o mérito inestimável de desenganar ou desencantar quantos, por desencontradas razões – à esquerda ou à direita da cruz, nas palavras de António Telmo –, ansiariam vislumbrar em Álvaro Ribeiro o teórico de serviço do Estado Novo, «como se tivesse sido um “Salazar” da filosofia»[32]. De resto, bastará a leitura de A Filosofia Política de Álvaro Ribeiro, de Elísio Gala, que o nosso autor não deixou de considerar, para se compreender, com rigorosa lucidez, o que está realmente em causa[33].    

O nacionalismo alvarino, como Miguel Real bem demonstra n’O Pensamento Português Contemporâneo, é histórico e filosófico, com o que participa do seu Zeitgeist, mas não é político, e daí que seja «de uma forte injustiça operar uma ligação directa (e mecânica) entre nacionalismo político português entre as décadas de 1930 a 1950 e a obra deste pensador»[34]. E o autor aponta com decisiva argúcia uma sólida evidência: um livro tão focado na Universidade como O Problema da Filosofia Portuguesa (escrito e publicado, acrescentarei eu, no apogeu do Estado Novo) não faz «a apologia das novas instituições escolares e da nova filosofia de ensino de Oliveira Salazar»[35]. Pelo contrário, faz «A Crítica ao Existente», que é o título, revelador e bem significativo, de um dos seus capítulos. Atitude pioneira e exemplar, irá aliás encontrar, logo na década seguinte, um eco prolongado e contundente na acção discipular da primeira geração da Filosofia Portuguesa: em 1955, publica Afonso Botelho, sob a égide da Cidade Nova, o livro O Drama do Universitário; e no ano imediatamente subsequente será a vez de António Quadros dar à estampa, com a mesma chancela, A Angústia do Nosso Tempo e a Crise da Universidade. Sintomaticamente, também os quatro primeiros escritos de imprensa de natureza teorética de António Telmo (um em A Semana, em 1952; os outros três em A Bem da Língua Portuguesa, em 1953)[36] constituem, do ponto de vista do jovem filósofo estudante de Filologia Clássica, uma crítica judiciosa ao ensino universitário, dominado por uma mentalidade positivista[37].   

Nem poderia ser de outro modo. A dispensa de uma tão grande atenção ao ensino universitário será a consequência congruente do labor de uma escola de pensamento que da filosofia deduz a educação para, só depois, desta deduzir a política.

Também o pensamento religioso de Álvaro Ribeiro recebe da análise de Miguel Real as precisões necessárias para que se o possa preservar de indesejáveis confusões. O «apelo» que lhe corresponde é «eminentemente ideológico e filosófico, encontra-se totalmente divorciado de pretensões eclesiásticas ou de divulgação evangélica, bem como de apologia doutrinária da velha escolástica senão quando esta, pelas suas obras, contribuiu para o núcleo fundante da identidade cultural portuguesa»[38]. Fazendo notar a «antropologia de forte vínculo cristão»[39] que ressuma de A Razão Animada de Álvaro Ribeiro, e a sua tentativa de recriação do aristotelismo, que fora a tradição filosófica portuguesa até ao consulado de Pombal, Miguel Real vê-as, porém, vinculadas «a um espiritualismo cristão não eclesiástico, mas de evidente teor pascoalino, brunino e leonardino»[40]. Poderia ter também concluído: de fundo martinezista – pois nem mesmo o criacionismo leonardino se mostra imune aos ensinamentos de Pascoal Martins, conforme a penetrante leitura de António Telmo[41].

Como quer que seja, não deixa Miguel Real de primar pela exacção quando assina à antropologia alvarina uma «visão cristã (não ortodoxa e muito menos eclesiástica) do mundo»[42]. Este duplo afastamento da Igreja Católica e da sua ortodoxia será afinal uma herança coerente com a cristo-angelologia ebionita que define matricialmente o pensamento de Álvaro Ribeiro, e de que o martinismo terá constituído oportuna expressão actualista em pleno século das Luzes.

Um pensamento filosófico tão secretamente singular e profundo como o de Álvaro Ribeiro não poderá deixar de estar votado, no seu tempo como no nosso, à incompreensão da maioria: «acusaram-no de reaccionário, escolástico e ultramontano e assim, o sangue e os nervos presentes na sua obra escrita (…) nunca foram verdadeiramente entendidos, como é habitual em Portugal, falando-se de mais e lendo-se de menos»[43]. Não parece que nada disto, na verdade, tenha mudado. E daí a justa preocupação que Miguel Real revela ao cair do pano sobre o subcapítulo que n’O Pensamento Português Contemporâneo dedicou ao filósofo de A Razão Animada:

 

«Entretanto, Portugal evoluiu política e historicamente no exacto sentido oposto ao evidenciado pela obra de Álvaro Ribeiro e receamos que o pensamento português do século XXI, recalcando a vertente nacionalista e conservadora do seu passado recente, recalque igualmente a obra de Álvaro Ribeiro, uma das mais originais do século XX em que plenamente se consumou a “fome de Deus”.»[44]

       

III. A Morte de Portugal, obra emblemática de 2007, toca-nos por vários motivos, e o principal será porventura a sua beleza moral. Essa beleza envolve a justa revolta de Miguel Real diante de uma época crítica, sentimento que, em termos de pura indignação, o parece ter motivado à sua escrita. Livro dialógico e caleidoscópico, como quase sempre o são os ensaios do autor, é fascinante o modo como nele se polarizam oitocentos anos de História pátria em quatro complexos culturais por que Portugal se foi concebendo a si próprio. Talvez possam ser aproximados dos quatro ciclos históricos que António Telmo definiu na sua História Secreta de Portugal. Certo que a correspondência resulta imperfeita, pois a sobreposição não será integralmente exacta; mas, a partir do que os dois pensadores deduziram, cronológica e ideologicamente, não parece exagerado associar o ciclo heróico ou dos reis ao complexo viriatino; o ciclo do clero ao complexo vieirino; e o ciclo do povo ao complexo pombalino. O complexo canibalista, na visão de Real, dura há quatro séculos e, nesse sentido, antecede, em muito, o período da plebe divisado Telmo. Mas sintetizando este último período, desde a implantação da República até aos nossos dias, as formas degenerescentes da nobreza, do clero e do povo, é inegável que aquele complexo lhe assenta como uma luva.

A própria ideia de uma morte de Portugal está igualmente presente nessa sequela da História Secreta que é o Horóscopo de Portugal. Apraz-me notar esta convergência da imaginação dos dois autores, ainda que às imagens confluentes nem sempre corresponda uma mesma ideação. Pouco importa se o desígnio for afinal, como Agostinho da Silva desejaria, o de uma vida conversável.

 Enunciando o complexo canibalista, denuncia justamente Miguel Real que «não temos feito história da cultura com o pensamento, mas com o sangue, sustentando-nos antropofagicamente do corpo do adversário»[45]. Em termos mais prosaicos, mas também mais explícitos: «Assim, mais do que filosófico ou reflexiva, a cultura portuguesa tem sido eminentemente ideológica, isto é, enformada ou desenvolvida por um sentido de Estado que lhe guia a orientação político-social, ora entronizando no poder uma(s) doutrina(s), ora excomungando a(s) doutrina(s) contrária(s)»[46].

Aos quatro complexos somam-se, n’A Morte do Portugal, os quatro vectores com que o filósofo caracteriza analiticamente o último século e meio da cultura portuguesa. Espiritualismo, providencialismo, racionalismo e modernismo, longe de serem compartimentos estanques, como aliás o comprova o facto de certos autores poderem ser incluídos, sincrónica ou diacronicamente, em mais do que uma destas vertentes (ocorrem-me, de imediato, os nomes de Agostinho da Silva e de Fernando Pessoa), deverão doravante procurar evoluir no sentido de um «convívio harmónico»[47]. Naquela que, sob qualquer prisma, será porventura a mais bela das laudas de A Morte de Portugal, escreve Miguel Real:

 

«No Portugal do século XXI, no Portugal europeu – desejado e sempre interrompido desde os tempos de Pedro Nunes, de Garcia da Horta, de Sá de Miranda, de Damião de Góis –, o Deus que nos habita é um Deus cuja casa tem muitas moradas, inúmeras moradas; neta casa de Deus, as portas e as janelas são mil e de cada uma todas espreitam a obra do vizinho, nela se inspirando para criar a sua própria obra sem que daí nasça a guerra de extermínio, como o fez durante mais de um quarto de milénio a Inquisição, como o fez durante trinta anos o Marquês de Pombal, como o fizeram liberais e republicanos durante cerca de um século perseguindo a Igreja Católica, e como o fez o Estado Novo a socialistas e comunistas. A casa das mil portas, mil janelas, mil escadas, mil andares, mil moradas, possui um único telhado que a todos abriga, feita da matéria mais resistente ao tempo, tão resistente ao tempo que, para os homens, se tornou consubstancial à eternidade divina, tornando-se igualmente o novo-velho rosto de Deus na Terra: a matéria da tolerância, noção e sentimento a que mais rigidamente os portugueses têm resistido.»[48]              

 

Que Miguel Real leva muito a sério quanto pensa e escreve, realizando-o operativamente, demonstra-o de modo inequívoco O Pensamento Português Contemporâneo – 1890-2010: O Labirinto da Razão e a Fome de Deus, essa sua obra monumentalmente enciclopédica em que abre as mil portas da casa do Deus que nos habita a tantos outros autores, representativos das quatro vertentes que erguem a montanha da cultura portuguesa.  Que de modo imparcial, empático e compreensivo envolva num abraço quantos, de Sampaio Bruno até aos nossos dias, honraram a Escola Portuense, não será apenas uma vitória para o movimento da Filosofia Portuguesa, mas é já o triunfo da própria filosofia, factor de eticidade.

 

Almoinha, Sesimbra,

às primeiras horas da Primavera de 2021.

 


[1] António M. Feijó, Uma Admiração Pastoril pelo Diabo (Pessoa e Pascoaes), Lisboa, INCM, 2015, p. 79.

[2] Idem, ibidem.

[3] Idem, pp. 79-80.

[4] Idem, p. 80.

[5] Idem, ibidem. Esta proposição de um sistema gnóstico «rigoroso, nada heteróclito», disperso nas biografias de Pascoaes é assaz problemática. No estudo de António M. Feijó, nem uma só palavra se encontra sobre o resto da obra pascoalina, corporizada numa multidão de dezenas e dezenas de títulos, jamais renegados pelo poeta, com a única excepção das primícias de Embryões. Não que se escamoteie a enorme importância daqueles cincos livros no conjunto dessa obra, mas não nos podemos abstrair de outros tão marcantes como Marános, Regresso ao Paraíso, Verbo Escuro, Os Poetas Lusíadas ou O Homem Universal, este último uma súmula do seu pensamento, saída a lume já depois de São Paulo (ou seja, rigorosamente contemporânea das biografias), em que Pascoaes se declara um escritor herético para crentes e descrentes e até para ele mesmo… Esta heresia perante a heresia tanto pode conduzir a uma nova heresia como a um regresso, provisório e pontual que seja, à ortodoxia que a primitiva heresia, agora negada, viera postergar. Parece ser por isso, diante de uma passagem do São Jerónimo em que Pascoaes de alguma forma pressupõe ou assume dogmas basilares do cristianismo como o da Trindade e o da Encarnação, que Feijó afirma ser o sistema pascoalino «simultaneamente rígido e dialéctico», numa expressão manifestamente contraditória, pois o poeta não se limitou a considerar algumas proposições da ortodoxia cristã, mas fê-las suas, numa atitude que nada tem de rígida, e que assim introduz elementos heteróclitos no seu pretenso sistema rigoroso (Cf. António M. Feijó, Op. cit., p. 88).

[6] António Telmo, Capelas Imperfeitas – Dispersos e Inéditos, Sintra, Zéfiro, 1999, p. 34.

[7] Helder Macedo, Do Significado Oculto da Menina e Moça, Lisboa, Guimarães, 1999, p. 68.

[8] Idem, p. 63.

[9] Ângelo Alves, A Corrente Idealístico-Gnóstica do Pensamento Português Contemporâneo, s/l, Estratégias Criativas, 2010, p. 46.  

[10] António Cândido Franco, “Uma Admiração Pastoril pelo Diabo (Pessoa e Pascoaes) – António M. Feijó”, in Suroeste, n.º 6, Badajoz, 2016, p. 207.

[11] Álvaro Ribeiro, Dispersos e Inéditos – Vol. I (1921-1953), Lisboa, INCM, 2004, pp. 484-485.

[12] Cf. António Telmo, A Aventura Maçónica – Maçonaria, Kabbalah, Martinsimo & Quinto Império, Sintra, Zéfiro, 2014, p. 139-141.

[13] Cf. António Telmo, A Aventura Maçónica – Maçonaria, Kabbalah, Martinsimo & Quinto Império, pp. 125-128. 

[14] Cf. André Benzimra, Contribution Maçonnique au Dialogue Entre Les Religions du Livre, Paris, Dervy, 2010.

[15] René Guénon, Aperçus Sur L’Initiation, Paris, Éditions Traditionnelles, 2000, p. 31.

[16] António Telmo, Viagem a Granada seguida de Poesia, Sintra, Zéfiro, 2016, p. 169.

[17] René Guénon, Aperçus Sur l’Ésotérisme Chrétien, Paris, Éditions Traditionnelles, 2002, pp. 61-62.

[18] René Guénon, Aperçus Sur L’Initiation, p. 124.

[19] Cf. Pedro Sinde, O Velho da Montanha – A Doutrina Iniciática de Teixeira de Pascoaes, Lisboa, Hugin, 2000, pp. 95-106.

[20] António Telmo, Luís de Camões e o Segredo d’Os Lusíadas seguido de Páginas Autobiográficas, Sintra, Zéfiro, 2015, pp. 61-62.

[21] Miguel Real, O Pensamento Português Contemporâneo – 1890-2010: O Labirinto da Razão e a Fome de Deus, Lisboa, INCM, 2011, p. 800.

[22] Idem, p. 446.

[23] Idem, p. 447.

[24] Idem, p. 448.

[25] Não deverá ser fruto do acaso que Eduardo Lourenço, a par de Agostinho da Silva, seja um dos dois filósofos portugueses seus contemporâneos a quem unicamente consagrou monografias autónomas, em que expõe e sintetiza os respectivos pensamentos no contexto panorâmico da cultura portuguesa.  

[26] Miguel Real, Op. cit., p. 447.

[27] Idem, ibidem.

[28] Cf. Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade, Lisboa, Dom Quixote, 1992, p. 34.

[29] Idem, p. 34. Note-se, logo no capítulo inaugural de O Labirinto da Saudade, a emergência desse estilo peremptório em afirmações como esta: «Através de mitologias diversas, de historiadores ou poetas, esse acto [o surgimento de Portugal como Estado] sempre apareceu, e com razão, como da ordem do injustificável, do incrível, do milagroso ou num resumo de tudo isso, do providencial» (Idem, p. 18); ou como esta: «Nunca se meditou a sério em actos tão significativos como os da invenção de falsos documentos pelos monges de Alcobaça para provar a nossa existência legal no passado, assim como, já depois da ressurreição, no labor incrível dos nossos juristas para justificar o nosso direito a um lugar ao sol entre os povos livres» (Idem, pp. 22-23). Faço notar que esta minha observação se limita ao plano estilístico; mas dos sublinhados exemplares, e dos advérbios que assim se salientam, o leitor saberá tirar as devidas ilações. Sobretudo, com respeito à primeira citação, se tiver presente a lição de um Jaime Cortesão no volume intitulado Os Factores Democráticos na Formação de Portugal. Onde, porém, o modo terminante de certas asserções de Eduardo Lourenço melhor se evidencia será, talvez, na passagem sobre Camões e Os Lusíadas que um outro capítulo de O Labirinto da Saudade patenteia: «Mas seja qual for a interpretação ideológica de Camões, não é possível, para ninguém, separar o seu canto épico da apologia histórica de um povo enquanto vanguarda de uma Fé ameaçada na Europa do tempo e de um Império igualmente guarda-avançada da expressão comercial e guerreira do Ocidente. É essa «a matéria» textual e moral do Poema. Não tem outra e é absurdo fingir que possa tê-la» (Idem, p. 122).        

[30] Idem, p. 34. Não será provocatório o exercício manifesto, mas nem por isso menos deprimente, da ironia por quem, como Eduardo Lourenço, se refere aos «iluminados seguidores (a começar pelo iniciador Álvaro Ribeiro)» (Idem, ibidem) do movimento da Filosofia Portuguesa? Esse mesmo Álvaro Ribeiro em cuja «pluma exotérica e brumosa» reconhece afinal, algumas linhas adiante, uma «organicidade potente» (Idem, p. 35)?

[31] Eduardo Lourenço tornou-se inquestionavelmente um mito cultural. Bastará ter presente os encómios, por vezes mirabolantes, que a imprensa portuguesa lhe destinou, antes e depois da sua morte (como esse do homem que ensina Portugal a pensar), e o unanimismo que ilegitimamente se pretendeu instituir em torno da sua figura e, porventura, do seu pensamento.

[32] Miguel Real, Op. cit., p. 453.

[33] Cf. Elísio Gala, A Filosofia Política de Álvaro Ribeiro, Lisboa, Fundação Lusíada, 1999.

[34] Miguel Real, Op. cit., p. 450.

[35] Idem, ibidem.

[36] Cf. António Telmo, História Oculta de Portugal precedida de No Meio do Caminho da Vida e Os Meus Prefácios, Sintra, Zéfiro, 2018, pp. 25-38.

[37] Convém a propósito recordar que A Fenomenologia do Mal, tese apresentada em 1951 por Orlando Vitorino às provas de licenciatura do curso de Ciências Históricas e Filosóficas da Faculdade de Letras de Lisboa foi reprovada por um júri composto por Vieira de Almeida, Délio Santos, Virgínia Rau e Mário de Albuquerque, tendo o seu autor sido excluído da licenciatura.

[38] Miguel Real, Op. cit., p. 450.

[39] Idem, p. 452.

[40] Idem, p. 453.

[41] António Telmo, “A Conversão”, in Leonardo Coimbra – Filósofo do Ideal e do Real, Lisboa, Instituto Amaro da Costa, 1985, pp. 203-209.  

[42] Miguel Real, Op. cit., p. 460.

[43] Idem, p. 453.

[44] Idem, p. 462.

[45] Miguel Real, A Morte de Portugal, Porto, Campo das Letras, 2007, p. 16.

[46] Idem, p. 97.

[47] Idem, p. 113.

[48] Idem, pp. 100-101.

 

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