DOS LIVROS. 72

26-03-2023 13:39

Natália Correia[1]

Prólogo:

Folhando o “catálogo”, lê-se, a páginas tantas da história da literatura: Natália Correia, surrealista; bibliografia: Le Surréalisme, Colecção “Que Sais-je?”. Esta escritora, porém, não é francesa; nasceu nas ilhas e é muito bonita. Andou, de facto, na mesma escola do Cesariny, do Herberto Helder e do António Maria Lisboa.

(entram dois jovens)

1.º jovem: “O “catálogo” já está à venda na Faculdade de Letras, mas ainda lá não figura o nome de Natália Correia.”

2.º jovem: “Não procuraste nas redacções dos jornais, secção páginas literárias?”

1.º jovem: “Sim, e encontrei. Referem até o último livro, A Madona. Mas eu queria saber o que dizem os catedráticos. Surrealismo está lá, em francês e com o artigo, le surréalisme. Diz assim, em certo ponto: “Escola ou corrente literária, que também se aplica a Portugal”; e alguém escreveu a tinta, na margem: “É uma glória para nós!”

2.º jovem: “Não o fazem por mal. Querias uma Universidade regionalista? Seria ridículo. Nem os escritores gostariam de se verem tratados como não-europeus. E é preciso que haja um perfeito entendimento entre os “creadores” e os “homens de ciência”.”

1.º jovem: “Não te entendo. Ainda ontem lias e aplaudias em A Madona umas frases que há por lá. Ou estás troçando.”

2.º jovem: “Quais frases? Não me lembro.”

1.º jovem: “Sublinhei-as no meu exemplar. Vamos ver. (Folheia e detém-se a pgs. 58) “Só por isso se matriculara na Faculdade de Letras de onde saíra até ao fim de poucos meses berrando que aquilo era o serviço militar do espírito”. Que estupendo! O serviço militar do espírito. Mas há mais. (Folheia até pgs. 17) “Acabarás o teu curso, o curso! a conspícua glorificação dos burros.” Página 18: “É só mesmo por isso que estás em Paris, onde vieste buscar à escola de Corbusier o prestígio do lá fora que é em Portugal a auréola das mediocridades obstinadas em vencer na vida”.

2.º Homem[2]: Estou a pensar nessa forma para toda a manga que é o romance. Permite dizer o que se quer e falar sobre o que se quiser. Não vês a Natália? A propósito: Ela tem curso? De Letras ou qualquer outra coisa?

1.º Homem: Não me digas que estás a pensar que é uma despeitada. Isso foi coisa que te ficou de teres ensinado numa Universidade brasileira.

2.º Homem: Qual história! Perguntei isto precisamente na ideia de que se ela tivesse curso não a podiam acusar de despeito. Mas ainda falando no que estava a falar: O romance é o género-polvo; deita tentáculos para todos os lados. Vê lá tu A Madona, cujo tema é o sexo, com essas arremetidas de lavagante contra os estrangeirados!

1.º Homem: Perdão! Às vezes a relativa é mais importante, porque mais disfarçada e íntima, do que a principal. Disseste: Cujo tema é o sexo. Não queres falar sobre isto? O tema de A Madona é, de facto, o sexo?

2.º Homem: Como querias que não o fosse? Não é o livro escrito por uma mulher inteligente? E em que é que se distingue uma mulher dum homem, antes de mais nada? Em o corpo ser diferente, em até a matéria do corpo ser diferente, como ela própria diz: “Achámo-nos nos braços uma da outra como duas mulheres, sem as arestas que o litígio criado pelos homens lhes acerou na alma. Uma só carne pulsando no amor de se saber indivisível no núcleo. Fulcralmente invulnerável à estratégia masculina que só aparentemente a reparte”. Ora o espírito de Natália está num corpo feminino, enraizado num corpo masculino. Ela ou ELE está numa carne feminina, carne que a multiplica, depois de se ter dividido, no abrir da vagina prenunciando o desdobrar da célula. Que bela ocasião teve o espírito em Natália para pensar, estando dentro ele, o Mistério do sexo!               

2.º Homem (sic)[3]: Todavia, as glândulas, sob o controle, alteraram-se. E, quando se lhe tornou impossível suportar a tensão de ter esperma transformado em energia espiritual, foi um cataclismo. Romperam-se as artérias subtis e o ímpeto da corrente extravasou refugiando-se, sem articulação interna, na forma lábil do homossexualismo.

1.º Homem: Deixemos, porém, o Anjo, que me parece arranjado para pôr na história o Perfeito. Há um outro homem: é Manuel. Esse é o de cá de fora, o de uma esfera exterior ao círculo da iniciação. Representa a força genesíaca do homem, no seu primitivismo de bruta rudeza e, se por momentos atrai Branca, porque só ele é o complemento dela como mulher igual a todas as mulheres e lhe parece convir para dar uma solução negativa ao “dualismo do ser”, toda a ironia cruel das almas divididas eclode de súbito em Branca, no prazer que sente o Espírito de humilhar e ofender a natureza.

2.º Homem: Parece-me que já estás a meter aí filosofia germânica.

1.º Homem: Deixando passar a expressão, o que estou a fazer é a mostrar o “maniqueísmo” de Natália Correia.

2.º Homem: Diz-me, porém, uma coisa. Achas que esse “maniqueísmo” é consciente ou inconsciente?

1.º Homem: Consciente, sem dúvida; como se prova até por aquilo do perfeito cátaro metido à força no corpo do Anjo.

2.º Homem: Não me parece que tenhas razão nesse ponto. Essa história do Anjo e da sua Queda é ainda do bom catarismo ou maniqueísmo, como quiseres. “Este vive para expiar a abjecção de todos nós. Não o deixemos morrer porque ele é a caricatura da nossa miséria. Ele esgota as forças da abjecção e isso liberta-nos. É o azazel da nossa imunda cidade interior”. Uma espécie de cano de esgoto.

Creio que Natália explica muito bem a transmutação do puro em sórdido que caracterizou muita seita maniqueia. Por exemplo, a dos Carpocratas, para não falar de alguns menos distantes.

Se eu te fiz a pergunta da consciência ou inconsciência, é porque me assaltam muitas dúvidas, não quanto à tua interpretação, que me parece exactíssima até certo ponto, mas quanto a Natália Correia, no sentido de saber se se trata duma maniqueia ou cátara, o que seria, sem dúvida, verdade, se tivesses demonstrado a existência no romance de um catarismo inconsciente. Tenho as minhas dúvidas se há disso ainda nos portugueses, a não ser por “via erudita”, para usar a linguagem dos etimologistas. Será o caso de Natália Correia, que deve ter lido Denis de Rougemont, Péladan, René Nelly e outros semelhantes. Bem sei que há quem defenda, entre nós, uma genealogia secreta, que nos enraiza o subconsciente nos celtas, através de Prisciliano, com a sua gnose que “celtifica” o maniqueísmo, para, depois de um largo período de latência, ressurgir entre os medievais, nas cantigas de amigo. Por aqui explicam também o maravilhoso entendimento dos nossos trovadores com os provençais e catalães. Conheço um tal António Telmo que defende isto mesmo: a “via popular” do maniqueísmo céltico.

Assaltam-me muitas dúvidas. Por exemplo, o final de A Madona. Como o explicas tu? Em termos vulgares: o Anjo foi uma decepção, Manuel um joguete da crueldade feminina, Miguel reapareceu na aldeia, (depois de ter comido guisadas as pernas da amante), num estado de prostração interior, perdida a antiga convicção nos caminhos do mal. Pobres homens! A começar pelo pai, morto de uma síncope na hora da digestão do jantar por ter trocado, na mesma sensação, os prazeres do estômago com os do sexo. Símbolo: – o fruto proibido de Adão e Eva. E a mulher? Condoída de Miguel e, nele, de todos os homens, reencontra-se como mãe, não a mãe besta que cria os filhos como a vaca cria vitelos, mas, contudo, a mãe natural, a mãe piedosa, aquela que sente “o próprio sofrimento do mundo que falhou e isso é mil vezes mais pungente”. “É aqui que deve resplandecer a piedade da mulher como uma força criadora que inaugure o novo ciclo”. Assim a Virgem Estéril se transforma na Virgem Mãe.

1.º Homem: E então?

2.º Homem: Isto aqui já não é maniqueísmo, é catolicismo. E do inconsciente.

1.º Homem: Não me digas que vais explicar todo o romance como o livro de uma escritora católica. Sabes o que Natália diz dos padres através daquele padre frequentador dos serões familiares. Acha-os lúbricos e torpes. Deves concordar que o anti-clericalismo não é independente do anti-catolicismo, embora muita gente queira ver na Igreja e no Clero o trigo e o joio que convém destrinçar. É idiota! Não há Igreja Católica sem sacerdócio, e quando se acusa um padre de ser mau padre, não se acusa o padre, acusa-se o homem. Que eu me lembre, há só uma frase no livro que justifica o teu ponto de vista: “Todos os latinos são católicos.”

2.º Homem: Eu não disse que era esse o meu ponto de vista. Eu não disse que Natália Correia era católica. Vou descobrir o meu jogo: o que eu penso é que Natália é o mais perfeito tipo de cristã nova e quer busque exprimir a sua inquietação no “maniqueísmo”, quer busque exprimi-la no surrealismo (daqui o engano dos europeizantes), o que ela manifesta sempre é o drama duma alma dividida, no cerne, entre duas castas, inimigas, de que ela representa o impossível compromisso. Sim, ela é católica, mas é ao mesmo tempo outra coisa.

1.º Homem: Uma espécie de Ester na corte do rei Assuerus.

2.º Homem: A única espécie de Ester, que é possível no nosso tempo. Isso explica as diferenças.

1.º Homem: Cristã nova ou não, do que não tenho dúvida é de que, se estivéssemos no século XVI, Natália seria queimada como feiticeira.   

 

António Telmo

                                                      

(Publicado em A Terra Prometida - Maçonaria, Kabbalah, Martinismo e Quinto Império, 2014)



[1] Texto encontrado no espólio.

[2] A partir daqui, e até final, António Telmo passa a designar os dois interlocutores por “Homem” e já não por “jovem”. Por outro lado, a partir deste mesmo ponto, as suas falas deixam de surgir entre aspas [nota do organizador deste volume].   

[3] António Telmo introduz aqui, de modo imediato, uma segunda fala consecutiva do “2.º Homem” [nota do organizador deste volume].