DOS LIVROS. 19

30-09-2014 11:58

Esotérico e exotérico

 

Esotérico é relativo a exotérico. Não são opostos, como vulgarmente se entende. Estão assim como o interior em relação ao exterior, pois só há exterior por haver interior e só há interior por haver exterior. Exterior não é, porém, o mesmo que exotérico ; só é exotérico aquele exterior em que vive o interior e dele recebe a forma. Ou, por outras palavras, só é exotérico o exterior enquanto nele se revela o esotérico. Consiste a revelação em, mostrando, ocultar de novo. Não se deve dizer, pois, que Shakespeare ou Camões escreveram livros esotéricos.

A revelação do esotérico, por isso mesmo que é revelação, faz-se através de formas superiores, como as da arte ou as da religião, desde que estejam de acordo com o que de sua essência são. Tudo quanto é apresentado como esotérico por isso mesmo que é apresentado como tal não é esotérico. Apresentando-se independentemente daquelas formas, é o “material” de que se serve o espírito inferiorizante para edificar a sua Babel. Uma comédia de Shakespeare, com o seu enredo de conflitos aparentemente banais, é exotérica ; um romance de Alan Cardec, por mais que nos fale de “astral”, de “perispírito” ou de “reencarnação”, não é exotérico.

Daqui se infere que, para atingir o esotérico, é condição necessária a aprendizagem da filosofia ou, por outras palavras, da arte de pensar a intuição e a imaginação. Só pela filosofia pode haver compreensão das formas superiores de arte ou de religião do exotérico para o esotérico. Mas as pessoas não querem pensar ou porque são indolentes ou porque não se dispõem a aprendê-lo, por excesso de orgulho ou por falta de interesse. É verdade que é difícil. Bem mais fácil é acreditar em qualquer espiritismo ou em qualquer teosofismo com a auto-suficiência de quem conhece os mistérios do sobrenatural e não é, no entanto, capaz de compreender uma página de Hegel.

O esoterismo, neste último sentido, tornou-se contrário do que é. Se o seu modo de revelação é o artístico (a religião também é uma arte), a sua democratização é a sua negação.

Este fenómeno social de democratização do indemocratizável é próprio de todas as épocas de decadência. A do império romano é nitidamente exemplar. Freud explicou aquilo de que estamos falando pela relação das fezes com o dinheiro ou com o oiro. A magia, a astrologia e as demais ciências ocultas são nas bocas dos porcos uma porcaria. As pérolas foram devoradas por eles e expulsas na forma de fezes.

Um exemplo que faz ver a degenerescência dos homens com suficiente evidência é o da missa cristã na televisão. Podemos estar felizes. A mensagem cristã chega a todos os lares entre anúncios da pasta de dentes e anúncios de preservativos. Há quem tenha televisão na casa de banho. Eis um belo mundo sem discriminações!

Há quem confunda o império de Satan com o império do Espírito Santo. E, no entanto, se ambos estão anunciados para o fim dos tempos, é bem difícil distingui-los. Perante a Matéria todos somos iguais, perante o Espírito todos somos diferentes. Ali somos iguais e não nos entendemos uns com os outros ; aqui somos diferentes e entendemo-nos uns com os outros.

 

(Publicado em Viagem a Granada, 2005)

António Telmo