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VOZ PASSIVA. 39

16-12-2014 16:54

António Telmo, António Quadros e as dificuldades de um bolsista em Évora*

Carlos Francisco Moura

 

Não conheci pessoalmente o ilustre intelectual macaense Luís Gonzaga Gomes, mas de Portugal e do Brasil mantive com ele, durante vários anos, uma produtiva cooperação cultural.

Vale lembrar como essa cooperação começou.

Em 1968, com a situação política se agravando no Brasil – a invasão da Universidade de Brasília pelo Exército e outras ameaças –, o Prof. Agostinho da Silva começou a se preocupar com a sobrevivência do CBEP (Centro Brasileiro de Estudos Portugueses). Tendo conseguido vir para o Brasil, depois de preso por motivos políticos em Portugal, ele desenvolveu intensa atividade cultural nas Universidades de Santa Catarina, Bahia,

Paraíba e Brasília. Mas sua ideias libertárias e utópicas despertavam suspeitas dos então detentores do poder. Reuniu assim os professores, e disse:

– Do jeito que a coisa vai, o CBEP será implodido e, portanto, antes que isso aconteça, vamos organizar a diáspora. Foi determinando o rumo que cada um deveria seguir, e me deixou por último.

– Moura, você tem dinheiro de passagem de avião para Portugal?

– Da de ida, creio que sim, mas como vou manter-me lá, e dinheiro para a passagem de volta?

– Se tem para a ida, embarque logo. O resto a gente resolve depois. Desembarcado em Lisboa, siga para Évora, no Alentejo, e procure o Dr. Petronilho, na Câmara Municipal, e o Dr. Armando Perdigão, na Junta Distrital. Lá, a Câmara tem uma casa vazia no Jardim Infantil, que conseguimos pusessem à disposição dos bolsistas do Brasil. Você fica lá sem pagar aluguel, e, enquanto isso, procuramos obter uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian, para você se instalar em Lisboa e pesquisar na Torre do Tombo, no

Arquivo Histórico Ultramarino, na Biblioteca Nacional e em outras instituições, para prosseguir nas pesquisas iniciadas no CBEP.

Enquanto a bolsa não sai, você permanece em Évora, pesquisando os mesmos assuntos na Biblioteca e Arquivo Distrital de Évora. E aguarde lá os acontecimentos.

 

Em Évora

Entretanto, a bolsa demorou muitos meses mais do que o previsto, e eu continuei à espera, em Évora. Enquanto isso, para me manter, consegui algum trabalho, e com o resultado das pesquisas em Évora, e com o material que tinha trazido do CBEP, escrevi alguns artigos que foram publicados em revistas de cultura de Évora e de Lisboa.

No CBEP, havia apresentado uma dissertação de Mestrado sob o título “O urbanismo no Japão no século XVII, segundo o Pe. João Rodrigues Tçuzu”, que foi aprovada pela banca, da qual faziam parte o Prof. Agostinho da Silva e o Prof. João Evangelista, mas o título não foi efetivado em virtude da desativação do Centro.

Em Évora, prossegui na pesquisa sobre a presença dos portugueses no Japão, contando com a colaboração e a simpatia do então diretor da Biblioteca, Dr. Antonio Leandro Alves. Os artigos não eram pagos, mas as revistas forneciam aos autores um bom número de separatas.

Sabendo que eu estava com dificuldades, meu saudoso amigo, o escritor Antonio Telmo Vitorino, colega do CBEP, sugeriu que eu fosse da parte dele procurar o escritor Antonio Quadros, então diretor das Bibliotecas Itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian, e ele adquiriu um bom número de separatas dos meus artigos.

____________

* Da  Introdução do livro LUÍS GONZAGA GOMES E UMA PRODUTIVA COOPERAÇÃO CULTURAL: MACAU-PORTUGAL-BRASIL (Instituto Internacional de Macau / Real Gabinete Português de Leitura, Lisboa, 2014)

VOZ PASSIVA. 38

15-12-2014 10:28

António Telmo, os sons, as potências, as essências

Risoleta C. Pinto Pedro

 

Não me será fácil falar de António Telmo sem me estender excessivamente, porque, tal como Agostinho da Silva, é um autor que parece escutar a voz que sussurra na minha alma. A acrescentar a isto, a erudição, a sabedoria, a beleza.

Por isso centrar-me-ei, neste texto, num único aspecto. Ou melhor, na apresentação dele, apenas.

António Telmo chegou-me através da escrita e personalidade de Agostinho da Silva.

Dele, li alguns dos clássicos, ainda antes de o conhecer. Penso que os primeiros foram a Arte Poética e a História Secreta de Portugal. Entretanto, muitos amigos meus, seus amigos, começaram a falar-me dele. Curiosidades, episódios de vida, acabámos por nos conhecer na estreia de um espectáculo da Companhia de Dança Amalgama e lançamento de um livro meu, no Convento de S. Paulo, Serra d’Ossa, que ele apresentou. Maravilhosamente. Fluentemente. Sem papel.

Outros livros vieram ao meu encontro, Filosofia e Kabbalah, O Bateleur, Contos, A verdade do amor, mas o último por seu punho, chegou via correio, não muito antes de partir. Viagem a Granada.

Aquele que me tem acompanhado persistentemente, Gramática Secreta da Língua Portuguesa, felizmente recém-editado, considero-o uma pérola sobre a nossa língua, um estudo lúcido e profundo sobre as origens, a alma, o mistério do nascimento e da essência da língua. Muitas vezes o citei nas minhas aulas. Muitas vezes continuo a fazê-lo em situações menos institucionais que uma escola oficial, mas igualmente propiciadoras de conhecimento, informação e comunicação. De reflexão. Muito recentemente em Lagos, num workshop de Escrita Cura Criativa.

Com este livro, as minhas intuições de menina, intuições de quase antes das palavras, as imagens que me nasciam no coração e que continuaram a crescer ao longo dos anos, apesar de todas as teorias positivistas acerca da língua e da gramática que tive de estudar, essas intuições, dizia, foram totalmente validadas e eu fiquei a saber o que já sabia. Desde sempre. Que a língua, e particularmente a fonética, é um sistema inteligente, simbólico, coerente, e em total sintonia com o universo e a realidade. Que não há aleatoriedade na língua e que cada som que produzimos tem uma energia própria e uma essência. E um poder. Que é um sistema ligado a todos os outros sistemas cósmicos. Que pode ser uma fonte de conhecimento e, sem dúvida, de criação. Não apenas literária, mas de realidades.

E concluo: somos como magos ignorantes, magos negros usando indiscriminadamente um poder quase atómico que não dominamos, que não controlamos, porque não conhecemos.

A propósito dos sons, António Telmo fala de potências. Porque o são. Que distingue do conceito de fonema.

“No princípio era o verbo”. Como agora. Quando o criador disse “Fiat” pronunciou uma realidade totalmente diferente daquela que seria criada com outras potências. O “F” faz parte das potências sopradas. Sons que expiram. E é labial. Corresponde, na árvore da Kabbalah, à coluna da misericórdia, a que ele chama “ da clemência”. Aqui, começo eu a delirar, ou talvez não, e a ver neste acto de criação, a expressão daquilo que ele denomina a “estrutura sagrada”.

Afirma ele: “O “V”, como o “F” seu correlativo, é um sopro, uma voz. Estas letras marcam a emissão da voz sem resistência violenta.” E acrescento eu: como poderia haver resistência à ordem da criação?

E continuo: acredito que será também por isso que na respiração circular ou conectada, como chamamos à respiração no “Renascimento”, uma terapia respiratória, a expiração deve ser uma pausa ou repouso, não deve ser empurrada, mas o ar deve sair naturalmente, “sem resistência violenta”.

António Telmo fala também deste sopro do “F” como a transformação contínua. E assim é. A respiração assim feita é das tarefas do corpo mais transformadoras que conheço.

Poderia continuar muito tempo estas reflexões, mas não vou maçar-vos mais. Talvez num outro dia. Lamento não ter tido oportunidade (ou não a ter criado) para conversar com António Telmo sobre este específico e apaixonante tema. Mas ele está vivo. Em vós. Convosco partilho, então, o que dele recebo, reconheço e integro. E celebro.

POEMAS. 06

12-12-2014 15:21

Ao Cagica Rapaz

 

Meu barco quisera

Fazer sem martelo

Sem prego sem ferro

Como a Deus dera.

Só a madeira

Firme e sesgada

As tábuas unidas

Pela força do nada.

E o som que se ouvisse

Fosse o que repetisse

A palavra perdida

Que um marinheiro

Um dia me disse

Palavra que não digo

Nem ao maior amigo. 

 

António Telmo 

POEMAS. 05

10-12-2014 08:48

Ao Rafael Monteiro

Balada de Sesimbra

 

Em Sesimbra me fiquei

A alma de si esquecida

E aquele antigo Rei

No meu ser fundo dormindo

Pretende que assim não é vida.

 

Aqui no extremo de tudo

A noite é bem mais comprida

E o antigo Rei está mudo

O antigo Rei já é nada

Nem sequer pretende a vida.

 

E o sol que corre no céu

Essa luz que é só por fora

Fecho os olhos, quem sou eu?

O Rei dormindo que é nada

Na noite que sou agora.

 

Curso divino do sol,

Trazê-lo p’ra dentro de mim

Ser por dentro um girassol

Aqui no extremo do mundo

Onde estou só porque sim.

 

António Telmo

POEMAS. 04

03-12-2014 09:15

Ao António Reis Marques

 

Mestre, vou-me matar

Dá-me espada ou sabre.

Nada se fecha para mim

Porque nada se abre.

Ainda se eu ouvisse

O bater de uma porta

Soando na noite morta,

Sentia-me do lado de cá…

E talvez de súbito me visse

Da porta para lá.

 

António Telmo

DOS LIVROS. 27

01-12-2014 09:25

A influência da Cabala em Portugal*

 

Para dizer toda a influência da Cabala na cultura portuguesa no decurso dos séculos, seria necessário escrever vários livros e, não querendo limitar a minha intervenção neste colóquio a uma sequência de apontamentos, escolhi um poeta e um filósofo exemplares, onde, mais do que influência, o que ali encontramos é a presença da tradição esotérica hebraico-portuguesa, pela qual o hexagrama de Salomão e a cruz do Templo de Cristo se inscrevem no mesmo fundo azul e branco, comum às bandeiras das duas pátrias.

Um poeta por via popular e um filósofo por via erudita, João de Deus e Sampaio Bruno. Começarei pelo primeiro.

João de Deus deve o seu renome, vibrando com igual ressonância, a dois aspectos distintos da sua imaginação criadora: a poesia de amor e a Cartilha Maternal. Tratarei um após outro estes dois aspectos, do ponto de vista da Cabala.

Apesar das afinidades que existem entre as tradições iniciáticas dos vários povos que as têm, o que permitiu a um estudioso como René Guénon afirmar que a mesma metafísica se exprime nelas por formas distintas, não me parecem acidentais algumas características dominantes na tradição hebraico-portuguesa que fazem dela um caso único que, por si só, altera a fisionomia de um pensamento que se pretende igual em todas as partes. Tratando de João de Deus, o modo de pensar o amor aparece-nos, logo, como decisivo do abismo que nos separa das várias correntes gnósticas dos três continentes interpolares.

O amor, não qualquer forma abstracta do amor, mas aquele que une o homem e a mulher, constitui, na gnose em geral, uma barreira impeditiva da ascese do ser pelos graus da realização espiritual. Daqui a prescrição de um de dois procedimentos, daquele que resiste ao impulso do instinto sexual, abrindo o caminho da castidade entendida como abstinência, e daquele que prepara igual caminho produzindo a saturação e o nojo pela entrega excessiva e desmesurada a todas as modalidades de erotismo. Como vedes, os dois procedimentos, conquanto antagónicos, visam o mesmo fim que é o da neutralização do amor. Podeis ver isto documentalmente exposto no livro magistral de Hans Jones sobre A Gnose.

Desde D.Dinis e demais trovadores galaico-portugueses com as Cantigas de Amigo, passando, no cume, por Luís de Camões com os poemas líricos e sobretudo com A Ilha dos Amores, até João de Deus, Eugénio de Castro e Florbela Espanca, a nossa poesia, com raras excepções, faz a exaltação da companhia física, celebrando em verso o “puro amor” cuja presença invisível se manifesta pela santidade das relações sexuais entre homem e mulher.

A Santidade das Relações Sexuais entre o Homem e a Mulher é o nome de um livro medieval de Cabala, que ainda hoje se oferece aos noivos no dia de casamento, onde Gikatila ensina como, durante a união dos corpos, se cria a atmosfera necessária para que, invocado pelas duas almas, o Espírito Santo desça a fecundar a mulher, na ideia impressionante de que uma inteligência divina encarnará em cada criança assim concebida.

Álvaro Ribeiro, o discutido filósofo da filosofia portuguesa, há trinta anos, e digo trinta anos porque o seu livro A Literatura de José Régio foi escrito por essa altura, não tendo podido ler Gikatila, que ainda não estava traduzido numa língua europeia, contudo expôs doutrina semelhante, ao destacar o matrimónio como o primeiro sacramento.

A Cabala é uma forma de mística que, por isso mesmo, pretende realizar “o conhecimento pessoal de Deus”, para utilizar a definição de São Tomás de Aquino. Todavia, há nos cabalistas uma espontânea repulsa pelas formas de misticismo que defendem a anulação do indivíduo no Grande Ser (todos sabemos qual é o contraponto político desta anulação), fazendo-o por uma união em que o ser do místico se perde nupcialmente em Deus.

Em Portugal, não há exemplos como o de Santa Teresa e de São João da Cruz em Espanha. As visões de Dalila Pereira da Costa, de cuja reflexão nasceu o livro A Força do Mundo, uma das mais belas e inteligentes expressões da alma em língua portuguesa, surgem deslumbrantemente na intercepção da natureza com a sobrenatureza, em pleno campo, sem influência de nenhuma confissão religiosa. Tais visões são outra coisa.

Também não interpretamos O Cântico dos Cânticos, nas traduções de Pero Meogo, de João de Deus, de Herberto Helder e de Leonardo Coimbra, como uma alegoria em termos sexuais das relações místicas com Deus. É certo que uma interpretação de O Cântico dos Cânticos que vá neste sentido não constitui a apologia dos fenómenos parapsicológicos do sucubato e do incubato que ameaçam as mulheres e os homens solteiros ou solitários. Há, todavia, uma relação remota com estes fenómenos de natureza demonológica que pode, talvez, explicar o repúdio de tal interpretação.

O êxito popular da poesia de João de Deus pode explicar-se por razões estilísticas. Teófilo Braga, ao editar o Campo de Flores, sabia, porém, que outro factor mais profundo impressionaria o leitor português e acordaria nele uma imediata ressonância. O cristianismo popular pelo qual a caracterizou e a caracterizaram muitos que se lhe seguiram tem, por uma maravilhosa coincidência, seu sinal no nome do poeta. Se quisermos designar a sua poesia por um adjectivo, assim como dizemos fernandina para a de Fernando Pessoa, teremos de dizer a de João de Deus joanina ou divina.

Não dou exemplos da presença nos poemas do Campo de Flores da teoria do amor que, atrás, referi à Cabala, porque calculo que, dada a sua popularidade, todos os que fazem o favor de me escutar têm, pelo menos, um ou dois de memória.

Uma segunda característica é a da importância metafísica da língua maternal, pela qual pensamos e amamos. Eugénio de Castro tem um livro com o nome de Oaristos. Eis a palavra que caracteriza a poesia portuguesa, pois que significa “conversa entre os amantes” durante a qual toda a banalidade se reveste de um sentido transcendente e até absoluto. Quando eu era novo, na minha terra não se dizia “a minha namorada”, mas sim “a minha conversada”. Álvaro Ribeiro, propondo a língua portuguesa como um órgão universal da filosofia, demorou-se a pensar e a expor uma linguística que, se soubermos ler os seus livros com atenção desperta, vemos que, na verdade, é uma oarística.

Também aqui neste domínio, a gnose hebraico-portuguesa se distingue da gnose oriental valorizando a palavra sobre o silêncio, procurando no silêncio, não o pensamento que se torna inefável, mas o pensamento que se transforma em palavras que iluminem a treva em que vivemos.

Deste ponto de vista, devemos interpretar a Cartilha Maternal como uma tentativa, que as contingências da política fizeram fracassar, de fazer descer a luz ao espirito das crianças. É que a Cartilha Maternal de João de Deus não é como outra qualquer cartilha ; não é um método de ensinar a ler que se caracterize, como os outros métodos que, antes e depois dele, foram praticados, somente pelo mecanismo psíquico que põe em acção. Há nela vários aspectos pelos quais João de Deus conduz sugestões superiores, como a escolha das palavras, das frases e dos textos em que insinua e propõe a ideia de que é na família que está o verdadeiro Templo de Deus, o verídico lugar da nossa adoração, onde a criança aprende a falar e a ler ouvindo a voz da mãe e onde, ouvindo a voz do pai, aprende a cumprir os primeiros mandamentos. Ao mesmo tempo, são gravados na sua memória os fonemas e as letras, quero dizer as vogais e as consoantes, porque a fonética adoptada por João de Deus não é a fonética alemã de Franz Bopp. É, por surpreendente que pareça, a fonética da Cabala.

Na minha Gramática Secreta da Língua Portuguesa, chamei a atenção para o facto, mas de um modo incompleto e, por vezes, errado. Não desisti ainda de vir a escrever um livro a que daria por título A Gramática Cabalista de João de Deus. Neste momento, limitar-me-ei a dar algumas indicações. Quem sabe se alguns de vós não escreverá o livro que eu gostaria se escrever. Ficarei muito feliz se isso vier a dar-se, até pelo trabalho que me foi poupado.

A Cartilha Maternal não começa pelo ensino das vogais. Porquê ? Porque só elas são pronunciáveis na situação de sozinhas. Só elas, em português, podem constituir sílabas. Os restantes elementos do alfabeto só formam sílabas por intermédio das vogais. Daqui a crítica que João de Deus lança contra os métodos que têm por base a soletração. Mas, assim criticando, põe implicitamente o princípio de que os elementos não vocálicos não são fonemas, mas letras, quer dizer aquele princípio que determina o alfabeto hebraico. Neste, com se sabe, não há vogais, só consoantes, isto é, as vogais não têm forma gráfica, por tal modo que se nós tivéssemos perante os olhos uma palavra como, por exemplo, PRT, só pelo contexto poderíamos saber se significava porta, perto, porto ou parto. É esta indeterminação das vogais que possam vir dar sentido à palavra ou à frase ligando as consoantes que as constituem que vem dar à produção de equívocos, de jogos de significados, da intriga de ideias, da cabala enfim, na acepção que a palavra tomou popularmente entre nós. Assim, é bem possível que o adágio “Com papas e bolos se enganam os tolos” tenha sido formado para esconder outro sentido ; para um cripto-judeu hostil à Igreja Católica pode muito bem significar “Com papas e bulas se enganam os tolos”, em que as mesmas consoantes da palavra “bolos” se mantêm, mas que, recebendo outras vogais, altera o próprio sentido que vai contaminar a palavra “papas”. Claro que esta utilização da Cabala nunca esteve na mente João de Deus, conquanto utilize o processo, aqui e ali, principalmente nas sátiras que escreveu, com um fim bem mais elevado do que o do cripto-judeu seiscentista.

Deixemos, porém, o poeta para irmos ao encontro do filósofo.

Para aqueles que, na assistência, não conheçam Sampaio Bruno, recorro a Álvaro Ribeiro e a Fernando Pessoa pedindo-lhes que vo-lo apresente.

Álvaro Ribeiro disse dele que foi o fundador da filosofia portuguesa, o que deve entender-se, julgo eu, como tendo sido o primeiro em Portugal, no curso dos séculos, a manifestar em forma filosófica os princípios e os fins da nossa tradição esotérica.

Fernando Pessoa deixou gravada numa folha escondida no seu famoso baú a seguinte frase: ”Sampaio Bruno é hoje, em Portugal, o único que sabe.”

Feita esta apresentação, tentemos agora conhecê-lo melhor.

Era um revolucionário, em plena tirania de João Franco. Escreveu o manifesto do 31 de Janeiro e fugiu para França, atravessando as terras de Espanha. Era ateu. Nas terras de França, numa rua de Paris, dizem ter conversado com um ocultista, católico e rosacruz Joséphin Péladan que o terá acordado. Com efeito, nas Notas do Exílio, escritas nesse período, vê-se que um novo sopro transformou o seu materialismo materialista no materialismo espiritualista que será, mais tarde, com a solução dada ao problema do mal, a base da sua Ideia de Deus, nome do seu principal livro.

Para aqueles que se interessam pelo problema da conversão de Sampaio Bruno, eu direi que não acredito, como chegou a pensar Álvaro Ribeiro, que o filósofo português tenha sido iniciado por Péladan, à semelhança de Eugénio de Castro, nem sequer depois de haver lido há dias o texto que Sampaio Bruno escreveu exaltando a personalidade e a doutrina do iluminado francês. Este texto foi recolhido por Joaquim Domingues para uma nova edição de Os Cavaleiros do Amor, acrescentada de vinte e um capítulos e lançada desta vez pela Casa da Moeda, com um posfácio do mesmo Joaquim Domingues que nos impressiona pela coragem e pela inteligência com que defrontou o silêncio que até agora tem envolvido e escondido do leitor o pensamento do maior filósofo português.

Não acredito que tenha recebido a iniciação de Péladan. Mais provável me parece que a coisa tenha acontecido, não em Paris, mas em Amesterdão. Ali, onde se deslocou com intuito certamente escondido, não pôde ter deixado de ser atraído pelo demónio da bibliofilia a visitar a biblioteca dos judeus portugueses desterrados na Holanda. O nome dessa biblioteca é, em hebraico, Etz Haiim ; em português, Árvore da Vida. Foi à sombra desta árvore que, no século XVII, se congeminou o movimento conhecido por sabatianismo que revolucionou de todo em todo a comunidade judaica internacional que julgou ter chegado o tempo do Messias, isto nos mesmos anos, estranha coincidência de Palavras e de doutrina !, em que nas terras de Portugal, o Padre António Vieira, julgado por cabalista no Tribunal da Inquisição, propagandeava o sebastianismo.

É possível, pois, que, em Amesterdão, tenha conhecido alguém que o iniciasse nos mistérios da Cabala. É possível, mas não é certo. O que sabemos de certeza segura é que Sampaio Bruno, conforme ele mesmo no-lo narra nas Notas do Exílio, capítulo Erasmo, ali na Holanda conversou com um estranho companheiro, visível só para ele, de quem mais tarde em A Ideia de Deus veio a falar mais explicitamente, caracterizando-o como a sua enteléquia ou natureza perfeita deste modo:

“(Nas notas do Exílio) … a enteléquia recebeu uma confissão psíquica. (O outro eu mesmo com quem confidencio) não é bem um desdobramento, porque o menos (que eu sou) aspira ao mais (que ele é) e a insuficiência lisonjeia a integralidade. Porém, bonda. Sus. Silêncio.”

Neste passo, distinguindo, convém talvez lembrar outra característica peculiar da gnose hebraico-portuguesa. É o modo como concebemos e praticamos o ensino esotérico. As escolas da Índia com os seus gurus ou as terikas muçulmanas dos sufis causam alguma perplexidade nos melhores espíritos, na medida em que sujeitam o aprendiz a uma estrita obediência servil em trabalho de grupo, sob orientação de um mestre venerado que, na qualidade de guia espiritual, exerce sobre ele um poder quase absoluto, reforçado pela prática periódica da “confissão psíquica”. A tertúlia, o convívio interrogativo, a conversa que, como o José Marinho dizia, os mais experientes e sábios não devem deixar degenerar em diversa, é, mais uma vez, no âmbito da filosofia hebraico-portuguesa, a expressão do valor da palavra individualizada. Um dos últimos livros de Agostinho da Silva tem por título Vida Conversada e Agostinho da Silva é, sem dúvida, um dos mais lúcidos intérpretes do génio português.

Voltemos a Sampaio Bruno. A sua filosofia é fortemente marcada por outra característica, comum, aliás, à gnose persa. Como hei-de dizê-la?

Certo dia, estando eu de conversa com um camponês alentejano, ele disse-me a certa altura que não acreditava em Deus. Perguntei-lhe se sabia porquê. Respondeu-me que, se houvesse Deus (referia-se, sem dúvida, ao Deus omnipotente e criador da teologia corrente) se houvesse Deus, o mal não podia existir no mundo. “Ora essa!, repliquei, então o senhor não vê que, se há tanta dor, tanto sofrimento, tanto mal na terra, também há uma dádiva ininterrupta da vida ?”. E, para o impressionar, acrescentei o seguinte : “ O senhor fecha os olhos e só vê trevas ou, quando muito, uma luz difusa uma luz difusa, mas se os abre tem diante de si este esplendor que inunda e levanta as montanhas aqui diante de nós.” A conversa passava-se na Serra d’Ossa. “Pois é, disse ele, lá que existe qualquer coisa, existe, mas não é de certeza como a pintam”.

Nesta conversa, está todo o problema de onde se ergue a filosofia de Sampaio Bruno. Para a Cabala, como para ele, o mal tem existência real, é por tal modo evidente, intrínseco à vida que não é com dois ou três sofismas que se ilude o problema posto pelo camponês. Não vou, naturalmente, expor aqui toda a argumentação gizada por Sampaio Bruno contra as doutrinas que, desde Aristóteles a Leibnitz, na escolástica catolicizante antiga e moderna, têm explicado o mal como uma privação do bem, por tal modo que este é que seja só real e o outro, o mal, uma sombra passageira, como que um não-ser e um precipitado da contínua actividade do ser, sem peso na organização dos mundos. A Ideia de Deus, como vos disse, o principal livro de Bruno, é em grande parte tecido com sucessivos argumentos para os sucessivos aspectos da questão, mas conclui pela ideia de que o mal tem raiz em Deus, sendo a evolução humana, de companhia com a evolução angélica, o processo pelo qual os átomos de luz dispersos que formam a matéria se reintegrarão nos seus princípios primitivos na harmonia de um universo inteiramente redimido.

Deus exilado de si próprio no homem e, segundo a palavra de S. Paulo que cita, “em todas as criaturas que gemem” é o conceito basilar da sua filosofia. É também o conceito basilar de Isaac Luria e da escola de Safed por Isaac Luria fundada após a expulsão de Espanha e de Portugal dos judeus perseguidos pela Inquisição, cujos horrores Sampaio Bruno denuncia ao longo dos seus livros, como uma das manifestações mais evidentes do mal e do sofrimento que produz.

Não é possível saber se o filósofo português conheceu o ensino da escola de Safed, mas pensou decerto o seu exílio em França à luz da mesma visão do filósofo cabalista hebreu. Desterrado em Paris, Portugal aparecia-lhe como um símbolo daquela “distância subitamente impossível de percorrer”, na saudade e na angústia, só vencível no tempo, se as emanações divinas vindas em socorro da natureza decaída receberem dos homens a resposta eficaz que as transforme em trabalho libertador do trabalho. É então que escreve as Notas do Exílio e até à hora do último regresso, não mais parou de escrever, simultaneamente escondendo e revelando o segredo que lhe foi dado ouvir. Ele sabe que os seus livros, “propositadamente obscuros” como os diz, são difíceis, mas sabe também que o movimento pelo qual nos erguemos, em esforço, para a luz é que é, afinal, a própria luz, pelo que mostrar abertamente o maravilhoso segredo é deixá-lo de novo perder-se no mar da nossa banalidade, neste misto ou mistura que Camões definiu como “o confuso mundo”.

Chegado ao termo do que queria dizer-vos, temo ter criado em vós a ideia de que penso serem os judeus o único povo na origem da nossa sabedoria. De facto, mal cheguei a falar no pensamento cristão. Mas o tema que me foi proposto para esta conferência foi o da influência da Cabala na cultura portuguesa. Essa é, de facto, só um aspecto de um conjunto mais vasto. Na verdade, Portugal, como o Homem, é estruturalmente tríplice. É, pelo consciente, cristão, pelo seu subconsciente hebreu e, mais longinquamente, pelo seu supraconsciente, é persa ou ariano. Mas isso é assunto para uma outra tarde.

 

António Telmo

 

 * Conferência na Faculdade de Psicologia em Lisboa, 1996.

(Publicado em Viagem a Granada, 2005)



Ler mais: https://antonio-telmo-vida-e-obra.webnode.pt/news/dos-livros-21/

 

(Publicado em Viagem a Granada, 2005)



Ler mais: https://antonio-telmo-vida-e-obra.webnode.pt/news/dos-livros-21/

(Publicado em Viagem a Granada, 2005) 

VOZ PASSIVA. 37

28-11-2014 10:46

De Paulo Samuel, que no próximo dia 20 de Dezembro irá apresentar, na Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto, as Cartas de Agostinho da Silva para António Telmo, oferecemos hoje aos nossos leitores um ensaio sobre António Telmo escrito para o quinto volume dos Cadernos de Filosofia Extravagante, Confluências, que há já um ano (a completar-se no próximo domingo) aguarda a sua saída a lume, dando assim continuidade à publicação de diversos escritos de membros do nosso projecto em idênticas condições.

Carta a Pedro Martins a propósito de António Telmo

Paulo Samuel

 

Caro Pedro Martins

 

A minha consideração e estima por si, de par com o elevado apreço pelo trabalho que o Pedro Martins vem realizando no quadro dos signos, símbolos e mitos do pensamento português, através de estudos e livros que vem publicando, obrigam-me a esta carta, pela qual também quero testemunhar um vínculo de aproximação – à falta de capacidade para uma efectiva colaboração – à revista Confluências, em particular no que concerne ao próximo número, dedicado a António Telmo, em jeito de homenagem póstuma.

Quando recebi o seu amável convite (também subscrito por Renato Epifânio), logo se me figurou a necessidade de dar algum testemunho sobre o singular contributo deste filósofo para a afirmação da autonomia de pensamento do homem português. Na minha perspectiva, a sua importância advém não só no trilho que concerne uma leitura e compreensão aprofundada de certos aspectos da cultura portuguesa (onde se inscrevem mitolusismos fundadores: da gnose da Língua ao segredo das Descobertas, das razões da fundação da Ordem de Cristo à simbólica da arte Manuelina, da sibilina poética dos Trovadores à formação do carácter nacional), mas também nessa lavoura outra, sendo espiritualmente a mesma, que releva do ideário filosófico que caracteriza a denominada “Filosofia Portuguesa”. Por outro lado, creio não ser necessário encarecer o legado que António Telmo deixou, ou mesmo realçar a sedução que exerceu no seio da sua geração e, sobretudo, nas gerações que lhe são posteriores, desde logo aquela em que me incluo, mormente através de um magistério que, em terras alentejanas, se tornou ele próprio autêntica escola socrática para os que tiveram o privilégio de privar da sua companhia.

António Telmo foi senhor de um pensamento e obra que assumem feições muito próprias e singulares no quadro ideográfico do que se conhece de outros pensadores alicerçados na mesma matriz, os quais inteligiram obra de natureza esotérica sob roupagem linguística exotérica, que se tem personificado, com maior visibilidade, nos nomes de Sampaio Bruno e de José Marinho. Para quem conhece os estudos tão aparentemente diversos, conquanto densos, do autor da História Secreta de Portugal, a afirmação que procure radicar na sua obra uma presença de saberes ocultos, iniciáticos, assumirá a natureza de uma mera banalidade. Como sabe, de há muito que essa filiação, de vertente esotérica, se encontra assinalada, desde logo e com particular acuidade por António Carlos Carvalho, no prefácio que escreveu para a primeira edição da referida obra. Recorde-se que a História Secreta de Portugal, segundo livro de António Telmo publicado em 1977 pela Editorial Vega, pouca atenção colheu nos meios letrados e filosóficos da época. A importância dessa obra – que, a título pessoal, continuo a considerar a mais completa e referencial das que assinou, apesar das marcas comparatistas e do lastro de citações que se podem sinalizar – foi, no entanto, marcante quer para aqueles que se encontravam ligados ao grupo da “Filosofia Portuguesa”, ou próximos, quer para os que se encontravam inseridos em círculos de diferente filiação. Em todo o caso, Telmo inscreveu nessas páginas um mapa de conhecimentos e congeminações que vão acompanhar grande parte da sua reflexão e ensaio nos anos 80 e 90 do século findo, ordem de saberes que, todavia, sempre preferiu transmitir pelo meio tradicional comum a todas as transmissões iniciáticas, isto é, a oralidade.

O meu relacionamento pessoal com António Telmo data do início dos anos 80, quando me acerquei, após outras demandas em solo estranho, daqueles que eram figuras emblemáticas do movimento da “Filosofia Portuguesa”. A aproximação fizera-se à distância, por meio de leituras de livros que me chegavam a Paris, de alguma forma no intuito de me transmitirem a mensagem de haver em Portugal um domínio esotérico, diverso na sua expressão e fundamentos, daquele que buscava noutras paragens. Nessa época e na exterioridade pública que a consulta de impressos permitia (ressalvando o facto de se saber da existência de restritos e discretos grupos ocultistas) o chamado “esoterismo” confinava-se a uma certa marginalidade, à qual se pretendia conotar a ideia de práticas ocultistas, de artes divinatórias, a que se misturava a acusação de falta de qualquer saber “legitimado”. É certo que algumas tentativas para contrariar essa “opinião pública” (que encobria a do Poder, desde logo académico) não tinham garantido o caminho mais adequado, desde logo pela prática informativa ou publicitária, como aconteceu em França com a revista Planète (que, apesar das intenções iniciais, acabou por se tornar num repositório de quase tudo, incluindo o descrédito), ou, em Portugal, com a colecção “Esfinge”, das Edições 70, onde tudo coube… Por isso, a leitura de obras de autores como René Guénon, Julius Evola, Paul Naudon, René Alleau, Luc Bénoist, abbé Henri Pierre, Mircea Eliade, Henri Corbin, Ananda Coomaraswamy e tantos outros fazia-se nos originais (e traduções) de língua francesa, donde resultava a falta de interlocutores para um diálogo e discussão aprofundados. Pouco ou nada havia a complementar o conhecimento haurido nessas fontes, nenhuma plataforma de trânsito dessas ideias nos meios cultos portugueses, que ignoravam tais autores. É claro que nessa altura (anos 80) já se tinham instalado em Portugal centros e representações dos Rosa-Cruz e da Nova Acrópole, entre outros, mas com “mestres” e filiações discutíveis. Como é óbvio, não vale a pena sequer aludir à Maçonaria portuguesa, que de há muito se transformara numa organização com meros interesses de penetração e influência sócio-política. Daí que, ter sabido da existência no Porto de uma pensadora como Dalila Pereira da Costa, que frequentava as páginas de alguns dos autores atrás citados, constituiu razão suficiente para criar um elo que me viria a ligar ao núcleo daqueles que tinham em Sampaio Bruno e em Teixeira de Pascoaes (cuja obra entretanto eu descobrira) referências estruturais de pensamento, distantes do saber hegemónico da Universidade.

Nesse contexto, vim a conhecer o que pensava e exprimia um certo escol que, no Porto, mal se conhecia e do qual a Universidade não ousava falar. (O importante posicionamento de aproximação dialogal do Professor José Augusto Seabra, ocorrido em finais dos anos 70, foi determinante para algumas iniciativas que se vieram a concretizar depois na Cidade Invicta.) As circunstâncias que se me propiciaram correspondiam a conferências e colóquios realizados por essa época no IADE, graças ao empenho de António Quadros. Afinal, só um recém-chegado podia admirar-se com o convívio filosófico que em Lisboa decorria, que não dispensava jantares e tertúlias de Cafés, dado que o mesmo prolongava uma prática que desde os anos 50, pelo menos, era comum na roda daqueles que seguiam um magistério e “tradição” mantidos por Álvaro Ribeiro e José Marinho, por sua vez replicando uma vivência que lhes fora proporcionada no Porto, ao tempo da acção educativa de Leonardo Coimbra, na primeira Faculdade de Letras do Porto e fora dela, em consonância com os ideais da «Renascença Portuguesa» e a experiência resultante das Universidades Populares. 

Dos diálogos que então pude manter com alguns daqueles que ficam e ficarão como mestres de pensamento, entenda-se, de um pensamento verdadeiramente imbricado na “razão e mistério” do homem português, recordo-me que poucos privilegiavam essa vertente do conhecimento esotérico (por exemplo, de um esoterismo cristão), da qual ou não detinham, por opção pessoal, leitura e conhecimento aprofundado, ou porque essa atenção colidia com filiações religiosas a uma ortodoxia católica, alicerçada numa catequese doutrinal e creencial. Além disso, invocar o nome de um autor como René Guénon, que criticou de forma veemente as práticas do Catolicismo (que teima em exorcizar os seus próprios fundamentos) e que acabou por se converter ao Islão, considerando que apenas esta via religiosa mantinha os elos de ligação ao saber primordial e à mais autêntica iniciação espiritual, não colhia fácil aceitação. Contudo, o interesse pelos saberes esotéricos já se tornava patente em alguns autores, estudiosos e investigadores, desde logo pelas afinidades da obra pessoana, suscitando interpretações e análises num plano em que Dalila Pereira da Costa, Yvette K. Centeno e, depois, António Quadros foram, ao que sabemos, precursores. Também António Carlos Carvalho prestava a esse domínio e a certos autores atrás nomeados significativa atenção e divulgação, como o atestam alguns dos seus livros e escritos que publicou em jornais e revistas.

Importa ter presente, sem dúvida, que posicionados na confluência do legado das filosofias e teologias de inspiração cristã, muçulmana e judaica, cabe aos portugueses aferir da via que seja a mais consentânea com o seu génio, no que isto significa de sentido hermenêutico à luz do exposto por Teixeira de Pascoaes. Daí abster-me, nesta carta que começa a ser longa, de considerações que exigiriam outro contexto e amplitude, mencionando tão-só que me parece excessiva uma posição dominante dos ensinamentos da Cabala na compleição do pensamento português.

Como afirmei em parágrafo precedente, conheci António Telmo nos anos 80, na sequência dos contactos que por essa época estabeleci com o grupo da “Filosofia Portuguesa”, dando sequência prática à sugestão feita por Dalila Pereira da Costa que, residente no Porto, aonde eu regressava após alguns anos de permanência em Paris, entendia ser o caminho a seguir para quem pretendia aprofundar o conhecimento do pensamento português. Após os encontros iniciais com António Quadros, Pinharanda Gomes, Afonso Botelho, Orlando Vitorino, Lima de Freitas, Joaquim Braga, Henrique Barrilaro Ruas, ocorridos na sua maior parte no IADE, ou em outras circunstâncias de idêntica natureza, resultaram laços de amizade e de algum convívio, que se estendeu aos elementos de novas gerações, com os quais também passei a conviver aquando de deslocações a Lisboa, de que resultou, por exemplo, a minha ligação à revista Leonardo.

Curiosamente, o meu primeiro encontro com António Telmo foi no Porto, em 1983, na Faculdade de Letras (ao Campo Alegre), instituição à qual se deslocara no âmbito das comemorações do nascimento de Leonardo Coimbra, que se tinham iniciado em Março desse ano. Telmo participara na iniciativa, no dia 12 de Abril, na mesa-redonda subordinada ao tema “Leonardo Coimbra e a Filosofia Portuguesa”, moderada por José Augusto Seabra e com a participação de Afonso Botelho, António Alvim, António Braz Teixeira, António Quadros, Fernando Sylvan e Joel Serrão. Creio ter sido António Quadros (com quem já mantinha uma relação de profunda amizade, documentada em epistolário que venero) quem facilitou esse primeiro diálogo, durante o qual pude transmitir a António Telmo a recepção filosófica e as impressões de leitura que colhera dos seus livros, em particular da História Secreta de Portugal, exemplar que guardava, e guardo, com sublinhados e anotações que marcam uma etapa importante da minha vida. O meu nome nada lhe dizia, excluindo o facto de ele logo lhe imputar um sentido cujo alcance não apreendi na sua secreta dimensão. Nesse tempo, excluindo um ou outro artigo publicado em suplemento literário, nada mais podia apresentar, por via escrita, que indicasse o caminho que estava a trilhar nessa aproximação filial à “Escola Portuense”.

Pouco tempo depois, nos inícios dos anos 90, decorrida uma etapa feliz, mesclada de encontros, ofertas e dedicatórias de livros, troca de correspondência, projectos comuns, que me certificavam uma filiação aceite, podia contar com a adesão da maior parte desses pensadores e ensaístas às iniciativas que comecei a organizar no Porto, com o patrocínio da Fundação Lusíada, cujo presidente, Dr. Abel de Lacerda, entretanto conhecera e com o qual vim a estreitar laços de amizade e colaboração. Pelo meio, ficava uma relação mais estreita com Pinharanda Gomes, que me acolheu no seio familiar, onde pude beneficiar de funda estima e dos seus ensinamentos, envolvendo-me inclusive no trabalho de compilação dos Dispersos de Leonardo Coimbra.

De facto, tanto no Colóquio sobre Álvaro Ribeiro, como no dedicado a Dalila Pereira da Costa ou, mais tarde, no que teve por epígrafe “As Linhas Míticas do Pensamento Português”, contei com a presença e colaboração de António Telmo. Data, aliás, de Março de 1993, a primeira carta que dele recebi, confirmando que aceitava o pedido que lhe fizera de participação no encontro que nessa altura delineei – e organizei em colaboração com Joaquim Domingues –, intitulado “Álvaro Ribeiro e a Filosofia Portuguesa” (Porto, Ateneu Comercial, 14-15 de Maio de 1993), de algum modo dando sequência coloquial à homenagem feita pela Nova Renascença (Março 1993), que dedicara ao filósofo de A Razão Animada um número especial, concretizado pela vontade e esforço organizativo de Pinharanda Gomes, a que José Augusto Seabra deu total adesão, justificando-a em páginas iniciais de “apresentação” desse volume da revista (vol. XIII, n.º 48, Inverno 1993. Número esse que, além da de António Telmo, inclui colaboração de António Quadros, Pinharanda Gomes, Paulo Samuel, Alfredo Ribeiro dos Santos, Afonso Botelho, Orlando Vitorino, João Bigotte Chorão, António Braz Teixeira, Joaquim Domingues, Francisco Morais Sarmento, João Rêgo, João Ferreira. Aí se reúnem também os “escritos de juventude”, de Álvaro Ribeiro, que recolhi para acompanhar o seu “Itinerário Portuense”, os quais, pela importância que assumiam e por serem pouco conhecidos, justificaram que com eles se fizesse separata autónoma. Na sua carta manuscrita de resposta, Telmo afirma que “nenhum admirador ou discípulo” de Álvaro Ribeiro “poderá deixar de estar presente no congresso” e que irá contribuir com “uma reflexão sobre «A Teoria da Imaginação em Álvaro Ribeiro»”, o que de facto se verificou, havendo versão impressa desse texto em Viagem a Granada.

No interim, a minha relação com o autor de Arte Poética prosseguia em ocasionais encontros e conferências, realizadas no Porto e em Lisboa, através da leitura dos seus escritos ao tempo das revistas Nova Renascença e Leonardo, e numa ocasional passagem por Estremoz. Registava, nessas situações, que Telmo mantinha presente a dimensão esotérica subjacente aos seus artigos e comunicações, alimentando os comentários e observações que tornavam as suas intervenções por vezes incómodas ou polémicas. Na verdade, os textos que escrevia e lia, no seu peculiar e quase “alentejano” registo vocal, que iludia tratar-se, afinal, de um ritmo propício ao entendimento cognitivo da relação estrutural da palavra na sua correspondência sígnico-simbólica, sendo em regra breves, caracterizavam-se por  uma densidade que exigia ao ouvinte um atento acompanhamento, aliado a um lúcido entendimento, por sua vez exigente de lépida correlação imaginal e num preclaro domínio hermético da palavra.

Um ano depois, em 1994, surge um projecto que mais me aproxima de António Telmo. Pretende-se conceber e materializar uma “revista-órgão da Filosofia Portuguesa”, com o sugestivo título de “O Encoberto”, cuja capa traria uma imagem moldada sobre o desenho criado por Correia Dias para revista A Águia (esta era a sua proposta), desafio editorial que o entusiasmava e para o qual propunha também a colaboração de Joaquim Domingues. O assunto foi abordado, com detalhe, num diálogo ocorrido aquando de um encontro na Universidade Católica de Lisboa. Em todo o caso, não me foi possível levar por diante a materialização editorial desse projecto, apesar dos passos dados nesse sentido. (Mais tarde, procurei recuperar essa ideia através de uma revista, intitulada Verbo Escuro, que concebi e organizei para dar voz aos estudos pascoaesianos e a outros ensaios do pensamento português. Apesar do patrocínio que obtive do IPLB para custear essa publicação, de ter pronto o primeiro número (com textos e grafismo concluído), não consegui que a direcção da “Maránus” (Associação para a Divulgação da Vida e Obra de Teixeira de Pascoaes), à qual pertencia, concordasse em levar por diante o lançamento daquele que seria o órgão privilegiado dessa associação, da qual pouco depois me desvinculei. Julgo que a excelente revista fundada em 2000 por Joaquim Domingues, Teoremas de Filosofia, codirigida pelo próprio e por Pedro Sinde, é, em certa medida, o símile dessa publicação idealizada por António Telmo, em cujas páginas é nome recorrente, activa e passivamente.)   

Em 1996, enderecei-lhe novo convite, dessa vez para participar no colóquio sob o tema “Dalila Pereira da Costa e as Raízes Matriciais da Pátria”, que levei a efeito no Ateneu Comercial do Porto e no Centro Regional do Porto da Universidade Católica, entre 17 e 18 de Maio, complementado por apresentação pública de obras recentes da autora. Telmo discorreu sobre “Um Passeio por Trás-os-Montes”, dando-lhe versão escrita sob o título “Dalila Pereira da Costa e o Pensamento Místico”, que incluiu no volume de dispersos Viagem a Granada.

No âmbito dessas generosas colaborações, acedeu igualmente a prefaciar o livro O Brasil Mental (1997) de Sampaio Bruno, que integrei num efémero projecto de publicação das obras do filósofo portuense, aquando da direcção editorial que assumi na Editora Lello, plano que deixei consignado nesse volume, numa breve nota introdutória. Todavia, desse elenco apenas se publicaram mais dois títulos, a saber, A Ideia de Deus (1998, com prefácio de Pinharanda Gomes) e O Encoberto (1999, com prefácio de Joaquim Domingues). Volvidos poucos anos, retomei essa ideia em «Edições Caixotim», mas apenas pude publicar os três tomos de Portuenses Ilustres (2003), numa aguardada segunda edição desta obra de Bruno, que veio enriquecida com índices onomásticos e desenvolvido prefácio de José Augusto Seabra.

Nesta fugaz evocação, apraz-me ainda registar a colaboração dada por António Telmo à Leonardo – revista hoje raramente lembrada e da qual passam precisamente 25 anos sobre a data do primeiro número e da sua apresentação no Hotel Tivoli, em Março de 1988, na presença de numerosas figuras da cultura portuguesa e, sobretudo, dos mais representativos nomes da “Filosofia Portuguesa”. À Leonardo estive afectiva e idealmente ligado, participando com colaboração escrita ou acompanhando o núcleo directivo em momentos cruciais da revista, como aconteceu aquando da entrevista feita a Sant’Anna Dionísio, cujo encontro propiciei na sua residência ao Campo Lindo (Porto). Verifica-se, ao folhear os fascículos desta publicação – embora efémera, a Leonardo marcou uma época e uma geração… –, que o nome de António Telmo é praticamente constante no índice dos colaboradores. Publicou, no primeiro número, datado de Fevereiro de 1988, o artigo “O Timeu e o conceito de analogia em Leonardo Coimbra”, ocupando 7 páginas. No número 2, Junho de 88, apresenta “A teoria do instante em José Marinho”, artigo que precede a revelação de inéditos do filósofo portuense, acompanhados de uma nota introdutória de Orlando Vitorino. No número 3, de Outubro desse mesmo ano, António Telmo insere uma “Carta a Henrique Barrilaro Ruas”, respondendo às considerações que este tecera a propósito do artigo sobre o Timeu. No número 5/6 e último, datado de Março-Setembro 1989, colabora com o artigo “Sampaio Bruno, o «Encoberto»”, que ocupa duas páginas e se insere no âmbito dos estudos que dedicou ao filósofo de A Ideia de Deus. Estes artigos serão posteriormente integrados em livros do autor, designadamente no eclético Viagem a Granada.

Na revista Nova Renascença também se encontram publicados dois artigos de António Telmo. O primeiro, em data, intitulado “Dois filósofos portuenses e a simbólica do Porto” (vol. II, n.º 8, Verão 1982, p. 386-388), cuja leitura leva a descobrir tratar-se de Sampaio Bruno e de José Marinho, texto que virá a recolher no volume Filosofia e Kabbalah, com variante titular e de amplitude, pois passam de portuenses a “portugueses”. O segundo, sob a epígrafe “Filosofia e Cabala no pensamento de Álvaro Ribeiro” corresponde a uma versão distinta da sua alocução ao Colóquio de homenagem ao autor de A Razão Animada, seguindo uma linha de reflexão que permanecerá aberta até ao termo da sua vida humana.

António Telmo é um pensador arguto, cujas ideias se perfazem na sublimação de um espírito imaginal com um conhecimento de ordem hermética. Desse entrosamento fluem os seus estudos sobre a “História Secreta de Portugal”, a simbólica das Descobertas, ou os ensaios em torno da arte poética ou da linguagem críptica de Os Lusíadas e do mistério saudoso em Teixeira de Pascoaes.

Numa carta remetida em Janeiro de 1997 – na qual ainda se retorna ao projecto da famigerada revista que nunca chegou a passar das nossas intenções – Telmo alude a uma próxima viagem à Galiza e descreve o seu ponto de vista quanto à necessidade de se mudar o nome da publicação para “Portugaliza” (opção que prestes abandonará, para se manter o título original: “Portugal”). Carta dactiloescrita, nela faz, entre outras, estas considerações: “Há cerca de vinte anos, realizou-se em Santiago de Compostela um congresso sobre Prisciliano. Fernando Sanchez Drago, autor de uma História Mitológica de Espanha, em quatro volumes, foi um dos seus organizadores. Por razões que só ele conhece, visto que não tinha, como não tenho, nenhuma relação pessoal com ele, procurou-me então pelo telefone na Veja que o enviou para a Escola Secundária de Estremoz, onde lhe disseram que não havia lá professor com o me nome. Na comunicação que fez ao congresso, referiu-se com entusiasmo ao meu livro História Secreta de Portugal. Uma amiga minha, que estava presente, dirigiu-se-lhe no fim e ouviu dele a tristeza de não me ter podido contactar e de não poder ter tido, assim, os portugueses no congresso. […] Como sabe, o pensamento de Sampaio Bruno e de Teixeira de Pascoaes, para só referir o maior filósofo e o maior poeta portugueses, têm a sua raiz em Prisciliano. Toda a Lusitânia, conforme o ensino insuspeito por adverso de Menendez y Pelayo, adverso mas eminentemente sério, foi, durante cinco séculos priscilianista, abrangendo a Galiza e toda a região portucalense, estendendo-se pelo Alentejo até à Estremadura espanhola e até a Andaluzia. […]”

Estou certo – como explicitei em conferência realizada há alguns anos em Amarante, a propósito de Pascoaes – da importância que a corrente priscilianista tem na cultura e em algumas expressões poéticas e filosóficas do pensamento português. Em contrapartida, estou menos inteirado acerca das influências e sublimações da Cabala na heterodoxia portuguesa, que Telmo vinha revelando, porventura intuindo, nos últimos anos da sua vida, decerto com o precioso contributo do seu alter-ego, Tomé Nathanael.

Para lá do mais importante que foi a sua presença humana, a sua mundividência aliada a um espírito inquieto, interrogador do mistério do Ser, dimensão que alguns puderam fruir na convivência exotérica de um diálogo esotérico mantido ao longo de anos, dele resta a memória a preservar e uma obra que deve ser criteriosa e uniformemente reunida, se possível valorizada com inéditos e prováveis textos éditos, dispersos. Desde Arte Poética, “edição do autor” no ano de 1963, sob a chancela de “Teoremas de Teatro” (2.ª edição, 30(!) anos depois, em 1993, pela Guimarães Editores, acrescida de um texto inédito “sobre a poesia”), livro dedicado a Álvaro Ribeiro, como “sinal de reconhecimento”, passando pela História Secreta de Portugal (1977) , tributo “à memória de José Marinho”, ao qual se seguem Gramática Secreta da Língua Portuguesa (Guimarães Editores, 1981), dedicado “ao Agostinho da Silva” – assim se perfazendo a tríade dos nomes de quem mais se sentiu próximo – , Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões (1982), Le Bateleur (Edições Átrio, 1992), Horóscopo de Portugal (1997, que recolhe na 2.ª parte os III capítulos da História Secreta de Portugal), Contos (1999), O Mistério de Portugal na História e n’Os Lusíadas (2004), Viagem a Granada (Fundação Lusíada, 2005) e Congeminações de um NeoPitagórico (Al-Barzkh, 2006), fica uma obra que importa estudar num cruzamento interdisciplinar de saberes, aliás, implicando noções de ordem gnósica e sófica, que proficientes estudos das novas gerações decerto vão confirmar como uma via unificante do platonismo e do aristotelismo que, cada qual a seu modo, vivificam o rosto jânico do génio português na sua expressão poética e filosófica.

Na verdade, António Telmo não morreu… Apenas se ausentou, numa viagem pelo Mundo, mantendo vivo na esfera das correspondências espirituais o diálogo que permite o entendimento sobre o sentido da Luz, noutras palavras, (re)velando com o cumprimento da sua especulação filosófica a presença da Shekinah na etapa última das operações alquímicas que o espírito lusitano, ou saudosismo,  há-de cumprir. 

Aí fica, pois, este registo recuperado da memória e de anotações avulsas, cujo maior alcance foi ter-me conduzido à revisitação da obra de António Telmo, homem da filosofia e filósofo do homem, numa harmonia que entendeu conciliar, um amigo e mestre a cuja memória tributo um aceno de lembrança.

INÉDITOS. 35

27-11-2014 21:18

"Sou católico pelas festas"[1]

Um dia, durante um ágape, alguém ironizou estupidamente ao dizer que, pretendendo o Afonso Botelho ser um pensador católico, ou deixava de pensar ou deixava de ser católico, significando por esse modo que religião e filosofia são incompatíveis. O Afonso Botelho respondeu secamente:

“Sou católico pelas festas”.



[1] Título da responsabilidade do editor.

 

VOZ PASSIVA. 36

24-11-2014 10:44

António Telmo e o bilhar

Hernâni Matos 
 
Palavras proferidas na Homenagem a António Telmo
promovida pela Sociedade Recreativa Popular Estremocense no dia 23
de Agosto de 2014
 
À laia de justificação
 
Creio seguramente que, neste preciso instante e nesta sala, alguns dos presentes estarão a perguntar a si próprios:
 
- O que é que este sujeito está aqui a fazer? Ele não era amigo, nem tão pouco discípulo de António Telmo, não frequentava a Tertúlia do Café Águias de Ouro, não é jogador de bilhar, nem pertence ao Círculo António Telmo. Porque é que o fulano está aqui?
 
Passo a responder:
 
- Estou aqui pela razão exacta de não ser nenhuma dessas coisas. É que António Telmo não se esgotava no conjunto daquelas vertentes.
 
Ao longo da sua permanência em Estremoz, António Telmo teve escassa interacção comigo, mas foi quanto bastasse para eu perceber a consideração que nutria por mim, à qual naturalmente sempre correspondi, não por mera questão de cortesia, mas por reconhecer a sua grande envergadura intelectual e admirar o seu gosto pela autonomia e pela liberdade de pensamento. Foi essa força indomável e insubstituível do seu pensamento que me levou a vir hoje aqui, testemunhar o apreço que tenho pela sua vida e pela sua obra e dedicar-lhe com humildade as palavras que se seguem.
 
Falemos de bilhar
 
Na minha família existe há muito um intenso fascínio pelo jogo de bilhar.
 
Meu pai, alfaiate particular de António Telmo, tinha, tal como ele, o jogo na massa do sangue. Era exímio praticante de bilhar, exercício que praticava na Sociedade de Artistas Estremocense e no Café Alentejano.
 
Nos anos sessenta do século passado, aquele Café encerrava as portas às duas da madrugada, hora até à qual se podia jogar bilhar, xadrez e mahjong. Entre os seus parceiros destes jogos, estava o tenente Graça Gonçalves, combatente da 1ª Grande Guerra Mundial e dentista de profissão, em cuja morada actualmente resido. O seu consultório de tortura é hoje a minha pacífica sala de estar.
 
A minha memória do jogo de bilhar remonta aos quatro anos de idade. Nessa época, o meu tio paterno, recruta em Elvas, sempre que podia vinha passar o fim-de-semana connosco e levava-me a passear com ele. Escusado será dizer que o fascínio pelo bilhar, que ele também partilhava com o meu pai, o conduzia inevitavelmente ao Café Alentejano, onde existia então uma sala de jogo com duas mesas de bilhar. E foi nessas circunstâncias que, certo dia de Carnaval, trajado de lavrador, com farpela confeccionada pelo meu pai, me vejo ali a assistir a um jogo de bilhar. Os jogadores pertenciam à fina-flor das tacadas, pelo que o meu tio seguia entusiasmado a partida. Dali não resultaria mal nenhum, não se tivesse dado o caso de eu ter sido acometido por forte dor de barriga, que me levou a implorar-lhe:
 
Tio leve-me à retrete, que eu quero fazer cocó!
 
A resposta foi peremptória:
 
- Está sossegado rapaz, deixa-me lá acabar de ver esta jogada!
 
É claro que eu, gaiato de palmo e meio, obedeci ao meu tio. Os meus intestinos é que não, pelo que acabei por me borrar pelas pernas abaixo. Contrariado, o meu tio acabou por não ver o fim da jogada e lá teve de me levar para casa, a fim de a minha mãe me lavar. Nessa altura, eu já não tinha necessidade de evacuar, tinha era de ser evacuado urgentemente da sala de jogos, onde o chão e a atmosfera ficaram assinalados pelos meus intensos e infantis fedores fecais.
 
Eu morava então numa casa na rua da Misericórdia, que depois foi derrubada para ampliar o edifício dos Correios. O caminho ainda foi longo, pois tivemos que contornar a vetusta Igreja de Santo André, que ainda não tinha sido derrubada às ordens do Ditador, para ali erguer o mostrengo que é o actual Palácio da Justiça. Ao longo desse trajecto que parecia não ter fim, eu ia deixando marcas da minha passagem. Chegado a casa, o meu tio ouviu das boas e a minha mãe lá teve que me dar banho numa banheira da época, que era um avantajado alguidar de zinco, estrategicamente disposto na sala de arrumações. É pois compreensível que aquele jogo de bilhar tenha perdurado como forte registo da minha memória.
 
Mais tarde e já na juventude, o meu pai procurou iniciar-me nos jogos, entre eles o jogo de bilhar. Todavia, contrariando o adágio, filho de peixe não soube nadar, pelo que nunca passei dum péssimo jogador.
 
Na Universidade formei-me em Física, que grosso modo é uma espécie de râguebi da Ciência, onde só cabem os duros. Foi então que interiorizei a Física e a Matemática do bilhar, das quais passei testemunho ao Manuel, filho do António Telmo, de quem fui professor na Escola Secundária de Estremoz. Comigo, ele trabalhou as noções de momento linear e de momento angular de um corpo, a teoria das colisões, as leis da conservação e de variação do momento angular de um corpo, bem como o teorema da energia cinética. A aprendizagem do Manuel foi fácil, já que o terreno era fértil. Como opção de vida, o Manuel tornou-se seareiro numa área que também foi minha e, curiosamente, no bilhar seguiu também as minhas pisadas, que não as do pai.
     
Quanto a mim e como já disse, apesar de dominar a Física e a Matemática do bilhar, sempre fui péssimo praticante do “jogo de perícia e de saber que António Telmo tanto amava e de que foi praticante emérito”, como nos diz Armando Alves, seu amigo e companheiro de jogo.  
 
Pessoalmente, julgo que me faltam a perícia e o saber-fazer no jogo abordado por Camilo Castelo Branco em “Aventuras de Basílio Fernandes Enxertado”, por Eça de Queirós em “Os Maias” e por Alberto Pimentel em “O Lobo da Madragoa”.
 
A propósito do jogo do bilhar, existe um texto colhido em “Viagem a Granada”, onde António Telmo se entrevista a si próprio, dizendo a certa passo: “…o bom jogador tem de concertar entre si, antes de dar a pancada, mentalmente já se vê, cinco factores: a força com que a bola é impelida, o efeito que se dá na bola, a quantidade de volume a apanhar da bola que primeiro visamos tendo em conta as posições angulares, o ponto da tabela onde a nossa bola vai bater, e tudo isto numa apreensão sintética que implica uma concentração perfeita para que a jogada resulte”.
 
Mas o que é isto? Vindo lá de cima, onde António Telmo parece estar a jogar bilhar com o meu pai, estou a ouvir uma conversa onde o primeiro diz: 
 
- Amigo Matos, o seu rapaz é um artista das palavras, tal como você o foi dos fatos. Porém, a conversa já vai longa...
 
E agora António Telmo está a dirigir-se directamente a mim, proclamando:
 
- Oh Matos filho, são quase horas de almoço e todos estão fartos de o ouvir falar. Despache lá a conversa e depois vá “dar uma volta ao bilhar grande!”
 
É claro que não posso ficar indiferente a esta Mensagem, pelo que peço à Maria Antónia, amor da sua vida, que descerre o retrato de João Albardeiro que a Direcção da Sociedade Recreativa Popular Estremocense, em boa hora deliberou colocar aqui para assinalar e perpetuar a passagem de António Telmo por esta casa, da qual foi um animador incansável do jogo de bilhar e um notável jogador, cujas tacadas deleitaram quem o viu jogar. Casa onde ele soube também interpretar o simbolismo oculto do rico património azulejar das salas, que o levou a concluir estar em presença duma loja de São João.
 
Para o António Telmo, que nos está a ver e a ouvir lá em cima, peço uma calorosa salva de palmas.
 

DOS LIVROS. 26

20-11-2014 16:25


Etimologia Sagrada

 

Para um leitor mais interessado, a reflexão da gramática portuguesa pelos princípios da arte poética não ficará completa se não tentarmos ver como os valores dos fonemas formam os significados das palavras. Neste domínio, o risco de se cair na fantasia, esse falso duplo da imaginação, é tão grande que hesitámos em escrever sobre o assunto. Qualquer pessoa pode conduzir ou desviar uma palavra para o significado que lhe aprouver, considerando nela apenas a letra ou letras que lhe convêm. Todavia, é possível mostrar alguns pontos firmes, perante os quais a fantasia se quede para ceder o lugar à razão poética. 

Os tons e os sons do segundo triângulo (os sopros) imitam facilmente as naturezas sonoras e, por isso, a língua utiliza-os onomatopaicamente para formar palavras. É o caso de silvo, voo, seta, flecha, azagaia, vento, sopro, etc. Análoga relação se estabelece por meio do R em palavras significativas de vários movimentos: correr, carro, roda, corrupio, rio, rua, etc. O til (m-n) é também gerador de palavras onomatopaicas: som, tom, tambor, tímpano, sino, bombo

Outras letras, todavia, que exprimem ideias mais distantemente dos sons naturais e artificiais, não deixam de animar de sentido inúmeras palavras. Assim o N e o L.

Ninho, é o lugar interior da germinação dos ovos.

Certas formas isoladas e definidas na superfície homogénea do mar são designadas por vocábulos em que impera o N: navio, nau, nave, canoa, nadador

A nuvem, a neve e o nevoeiro ou a neblina sugerem a ideia de um elemento compacto, mais ou menos indiferenciado, uma espécie de germe esparso.

Para o L e de acordo com o seu valor temos, por exemplo, leve, ligeiro, ágil, alado, alto.

Poderíamos multiplicar os exemplos nestas e nas restantes letras, mas, em contrapartida, seria fácil apontar inúmeras palavras nas quais a relação procurada não é imediatamente evidente. Por outro lado, há, quase sempre, vários elementos significativos na mesma palavra que a põem em relação com sephiroth, triângulos e colunas diferentes. A unidade semântica deve formar-se com todos esses factores, à volta daquele que se oferece como dominante. O supérfluo foi considerado por Platão, no Crátilo, mero factor de embelezamento.

A multiplicidade de direcções na mesma palavra pode, mais uma vez, constituir o pretexto da fantasia para formar étimos vazios. O rigor que, do ponto de vista histórico-linguístico, falta a este tipo de etimologias deverá dar lugar a um rigor de outra espécie, que é o da própria razão poética.

A chave do problema é dada por Platão no Crátilo. Neste domínio, a razão poética tem como condição da própria actividade a inspiração. É assim que Sócrates, possesso do «daimon» de Eutyphron, desfia perante dois interlocutores atónitos centenas de etimologias falsas. A posição dos participantes no diálogo inverte-se. Sócrates de interrogador de Hermógenes passa a interrogado, como interrogadas são as pitonisas que proferem oráculos. Em certo momento adverte-o de que deve estar vigilante e que não deixe que tudo se explique por tudo. Quando o ritmo da interpretação das palavras se torna mais veloz e saltitante, declara que a inspiração de Eutyphron estava a chegar ao fim. Recebera esta inspiração por contacto com o adivinho, com quem estivera a conversar nessa manhã. Quando tivesse acabado, deveria purificar-se.

Os modernos intérpretes do Crátilo são, na generalidade, concordes em atribuir à ironia platónica estas etimologias, na verdade das quais o filósofo seria o último a acreditar. O principal argumento é a estupidez de Eutyphron, um adivinho de Atenas conhecidíssimo pelo seu fanatismo e que figura, nessa qualidade, noutro diálogo de Platão. Este, em consequência, não podia tomar a sério a inspiração provinda de semelhante espírito.

É um argumento de quem não leu o Fedro. Há, neste livro, uma passagem de exaltação da sabedoria das pitonisas, quando possessas, onde no entanto se diz que, fora dos momentos de inspiração, essas mulheres são seres completamente banais. Outras razões existem, contudo, para considerar destituída de qualquer fundamento a opinião dos modernos. Daremos algumas: 1 – Não se compreende uma ironia tão paciente e demorada, mantendo-se durante várias horas e repetindo-se em cada nova etimologia das várias centenas que Sócrates propõe; 2 – Várias dezenas de páginas teriam sido escritas para nada dizerem; 3 – Noutros diálogos e nos momentos mais sérios e solenes da reflexão filosófica, algumas das etimologias apresentadas no Crátilo servem de fundamento à doutrina que Platão quer transmitir. Ainda por cima, o seu discípulo Aristóteles também as utiliza: é o caso, por exemplo, da etimologia de éther (aei thein) transposta para o livro Do Céu a significar o movimento perpétuo e circular dos seres divinos.

Tudo se torna claro, deixando de haver oposição entre a linguística moderna e a sabedoria, quando admitirmos para cada língua duas espécies de genealogia: uma histórica e terrestre; outra que designamos por urânica. Todavia, já no tempo de Platão essa oposição tomava como hoje a forma de conflito: «os homens que, na Antiguidade, instituíram os nomes não tinham a opinião de que a inspiração, mania, fosse uma coisa vergonhosa e nem sequer um opróbrio. Pelo contrário, ligando a palavra mania à arte mais bela, àquela que permite predizer o futuro, chamavam-na pelo nome de manikê. Olhavam a inspiração como a mais bela coisa, desde que exprimisse um dom divino e, por isso, a denominavam assim. Os modernos, porém, que perderam o sentido do belo, introduziram na palavra um T e chamaram à arte divinatória mantikê. Compare-se a esta a arte dos homens que se dominam, dedicando-se a predizer o futuro por meio das aves e de outros signos; é uma arte, na verdade, que, por meio da reflexão, transmite à opinião dos homens, oiésis, inteligência e conhecimento, noús e historía. Eis por que tal forma de arte foi pelos antigos denominada oio-no-histikê. Hoje, os modernos designam-na por oiônistikê, com um o longo para tornar a palavra majestosa. Todavia, quanto mais perfeita e digna a arte do adivinho! Comparados os nomes e as funções do adivinho e do áugure, como é superior, pela beleza, a inspiração à dedução, a inspiração que provém do deus à ciência que vem dos homens!» (Fedro, 244 c – 244 d).

Perante uma palavra como noite, quem é capaz de sentir, como Pascoaes e Pessoa o fazem, a obscuridade vagamente luminosa do ditongo e a interioridade profundíssima do N? Quem, como o poeta italiano Julius Evola, sabe ver em «Narciso» a auto-reflexão expressa na própria figura gráfica do N – eu sou eu, a face diante da face – e também a morte e a queda, no fascínio das duas dentais sibilantes, deste modo aparecendo o nome a traduzir o próprio mito? 

Duas condições são, com efeito, necessárias nesta arte de formar etimologias pelos valores do diagrama principial: uma alteração da alma e uma lúcida embriaguez pela qual a razão poética organiza as formas da inspiração num sistema universal de pensamento. Em termos já familiares ao leitor, diremos finalmente que no Sócrates, interlocutor do Crátilo, se dá o encontro de Yesod e de Thiphereth.

 

António Telmo

 

(Publicado em Gramática Secreta da Língua Portuguesa, 1981) 

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