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DOS LIVROS. 56
01-04-2017 14:47
Da Introdução a Autobiografia e Sobrenatural em Luís de Camões
«Os Portugueses somos do Ocidente.
Imos buscando as terras do Oriente.»
Luís de Camões, Os Lusíadas, I, 50, 7-8
2
A ilha é como um ponto na imensidade do Oceano.
Para lá ou para cá da identidade da Ilha dos Amores, imaginada por Camões, com a paisagem de Xvarnah, imaginada pelos persas, não é difícil, sem deixar de ser surpreendente como algo que nos colhe do íntimo, observar que os três outeiros que se levantam na Ilha, a corrente que desce do alto e o lago onde vogam os cisnes estão de acordo com outra, análoga, forma de imaginar, esta hebraica, que é a da árvore das sephiras. As três colunas correspondendo aos três outeiros; o lago aparecendo como Malcuth onde se recebem e guardam as energias sagradas que vêm do alto.
António Telmo
(Publicado em A Aventura Maçónica - Viagens à Volta de um Tapete, 2011)
CORRESPONDÊNCIA. 41
21-03-2017 09:28ANTÓNIO QUADROS, 24 ANOS DEPOIS
Comemora-se hoje o vigésimo quarto aniversário da partida de António Quadros, inseparável amigo e condiscípulo de António Telmo no magistério filosofal de Álvaro Ribeiro e José Marinho. Assinalamos a efeméride com a publicação de uma carta do autor de Portugal, Razão e Mistério para Telmo, motivada pela leitura, então muito recente, da História Secreta de Portugal, o célebre livro télmico que no ano em curso completa quarenta anos de publicação.

22.6.77
Meu caro António Telmo:
Como deve calcular, li o seu livro com entusiasmo. É uma obra antes de mais nada corajosa, susceptível de abrir perspectivas a muitas pessoas que de nada “suspeitavam”. Você foi, como costuma dizer-se, para a cabeça do touro, abordando de frente e coerentemente, toda uma problemática oculta, mas sem a consideração da qual é de facto impossível começar a compreender satisfatoriamente a nossa história.
A sua maior vantagem é aliar conhecimentos esotéricos a uma reflexão filosófica sempre de qualidade, quer na fundamentação, quer no raciocínio.
Há no seu livro intuições e análises magníficas, em especial as questões relacionadas com as ordens do Templo e de Cristo, com os Jerónimos, Boitaca – sendo de realçar a sua “descoberta” da referência simbólica, nos Jerónimos, à iniciação de Nicolau Coelho, bem como a conotação estabelecida com Camões.
Ficamos a dever-lhe, pois, algumas contribuições essenciais para o conhecimento do Portugal profundo e do projecto ou dos projectos que assumiu, viabilizou e acabou por frustrar.
Pessoalmente, o seu livro suscitou-me interrogações e até o que diria serem objecções, não fosse admitir, por um lado a superficialidade da minha 1.ª leitura, e por outro lado, o escopo das suas intenções (não-histórico).
Por exemplo: a sua “História…” parece-me demasiadamente limitada no tempo; e antes do século 16? e antes da Ordem de Cristo? E antes da fundação da nacionalidade? É que há talvez (decerto) história secreta, com a civilização dolménica, com Tartessos e Creta, com os lusitanos, celtas e visigodos (os godos sábios), com a aliança dos príncipes borgonheses com a Ordem de Cister e a do Templo (S. Bernardo, confrarias de pedreiros, etc.)…
Parece-me que você também silencia em excesso as questões do Culto do Espírito Santo, dos “espirituais”, de Joaquim de Flora e dos Franciscanos portugueses, de D. Dinis e D. Isabel de Aragão, da transformação do Templo na de Cristo – e em especial nos problemas de interpretação iconográfica dos símbolos de Tomar; a Teodomar dos visigodos é um centro marcado e note a importância do triângulo Tomar – Santarém – Batalha / Alcobaça, dentro do qual se situa Fátima.
A sua divisão da história portuguesa em ciclo dos Reis, do Clero e do Povo – que é sem dúvida muito fecunda, ganharia a meu ver (até sob os pontos de vista que você defende) em ser enriquecida com um outro ciclo – Templários / Ordem de Cristo, qualitativamente diferente dos restantes; seria balizado por D. Dinis e D. Manuel, tendo como coordenadas principais o templarismo e o paracletismo. Antes 4, pois, do que 3 ciclos.
Não sei se concorde com a sua data-limite de 1513, para além da qual o projecto manuelino teria mudado de rumo; algumas das referências em que você se baseia não me parecem muito sólidas: assim, por exemplo, o Convento e Igreja de Belém foi doado aos Frades Jerónimos antes do início da construção – e é muito curioso observar que, em troca, o Rei ofereceu à Ordem de Cristo um edifício de Lisboa que tinha antigamente pertencido aos Templários… Por outro lado as razões para retirar Boitaca dos Jerónimos não têm a meu ver relação com qualquer decisão de tipo secreto, já que ele continuou a trabalhar no mesmo sentido noutros lugares. E… tem você a certeza de que as Capelas Imperfeitas foram interrompidas antes da morte de D. Manuel? Tenho de estudar o assunto, mas julgo que foi na verdade a morte do Rei que as interrompeu.
A sua indicação sobre o papel secreto de Boitaca, como um iniciado, parece-me no entanto uma descoberta importantíssima. O enigma da sua nacionalidade ainda se mantém; mas, sendo o iniciador da arquitectura manuelina, com a Igreja de Jesus em Setúbal, pode ter sido o pontífice de dois caminhos: o do passado cisterciense-templário, e o do novo mundo português-imperial e templário renovado. O seu estudo ficaria mais completo se você tivesse podido descobrir alguma coisa sobre Diogo de Arruda, a quem, afinal de contas, foi confiada arquitectura não menos importante do que a de Belém: a transformação da Charola de Tomar, a sua abertura para a nova Casa do Capítulo, e as famosas Janelas.
Agradeço a referência à “Estética Existencial”; no entanto, retomo o assunto de um ângulo mais profundo em “O Movimento do Homem”, apontando os Jerónimos como o novo Templo de Salomão, o Templo Universal, situado em Belém, sob a estrada ou a estrela condutora desta vez para o Ocidente e tendo como orago os Magos.
Outro ponto que seria fecundo considerar, seriam as relações, até arquitectónicas, entre o Manuelino do sec. 16 e o nosso Barroco dos séculos 17 e 18, pois há tão fundas relações entre eles, como há entre o sebastianismo projectual de Camões e o sebastianismo mitológico de A. Vieira.
Temo estar a ser insuportavelmente pedante, mas espero que não me leve a mal. É que o seu livro avivou uma das minhas preocupações mais constantes e antigas, fazendo emergir um tropel de ideias e reflexões. Vou relê-lo com redobrada atenção e talvez descubra que tem uma unidade não compatível com as minhas divagações!
Também li e apreciei, os seus artigos em “Escola Formal”.
Até qualquer dia,
Seu velho amigo,
António Quadros
DOS LIVROS. 55
19-03-2017 18:28
Da Introdução a Autobiografia e Sobrenatural em Luís de Camões
«Os Portugueses somos do Ocidente.
Imos buscando as terras do Oriente.»
Luís de Camões, Os Lusíadas, I, 50, 7-8
1
A palavra ar é a palavra aur (luz, em hebraico) sem a semivogal u, relação esta entre as duas palavras que podemos fundar na intimidade que há entre a propagação da luz e a atmosfera. É certo que se pode objectar que ar é uma palavra latina e aur uma palavra hebraica, o que tornará ilícito, do ponto de vista linguístico, a relação que proponho. Sê-lo-á do ponto de vista linguístico, mas então é preciso explicar como é que a mesma raiz hebraica aur se encontra noutras palavras latinas relativas a luz, como aurum (“ouro”) e aurora ou auréola.
Por outro lado, observe-se como, em combinação com a ideia de luz, há uma imediata relação com o som. É Henry Corbin quem chama a atenção para a conotação de aurora com aures (e digamos nós, com “auriculares”), que, como sabemos, significa ouvidos. A atmosfera não é só o meio de propagação da luz; é, ao mesmo tempo, o meio de propagação do som. E o que é espantoso é que a palavra grega atmosfera significa — em consonância com o sânscrito em que atmos é o nome para o espírito — a esfera do ar ou do sopro. Parece que há uma língua primordial presente, na forma de inúmeros vestígios, nas diversas línguas e é isso que funda as relações que se vêm mostrando.
Sem o ar não haveria respiração e, portanto, vida; não haveria também audição nem visão e nem sequer a possibilidade de cheirar. A palavra aroma tem a mesma raiz ar. E, no domínio do tacto e do paladar, o amor nos ensina que não há verdadeira relação sem a recíproca conversão pelo homem e pela mulher do sopro vital, o que é bem evidente na união pelo beijo.
Considerando a relação dos elementos com os pontos cardeais, temos, pela mesma relação linguística, que referir ar a oriente. É sabendo onde está o oriente que nos orientamos. Há, porém, um oriente que não é o espacial. Não se oferece ao sentido da vista. É qualquer coisa de íntimo, mais ligado com o ouvido do que com qualquer outro sentido. Por essa sensação íntima, temos esquerda e direita, rosto e occiput. Todo o nosso equilíbrio físico depende do ouvido. Sabe-o a medicina. A tradição sófica hindu ensina que o ar, sem o qual não há vibração sonora, é o que produz a determinação das direcções. É o que está bem manifesto na designação do símbolo sintético das direcções espaciais: a Rosa dos Ventos.
Os ventos vêm e vão. Vêm das regiões marcadas por oito pontos no horizonte. O símbolo da Rosa inverte essa perspectiva. As direcções dos ventos têm a sua origem no ponto central donde irradiam para todas as partes do Universo. Esse ponto é que é a verdadeira origem ou o verdadeiro Oriente dos ventos ou das oito energias que compõem o mundo subtil. Ele mesmo é que determina todas as direcções, ele mesmo é que situa, sendo o insituado, como o Espírito (Sopro) Santo para com as almas no ensino de São João.
António Telmo
(Publicado em A Aventura Maçónica - Viagens à Volta de um Tapete, 2011)
DOS LIVROS. 54
15-03-2017 09:35
Explicação
Vinte anos depois, venho retomar a História Secreta de Portugal no ponto em que a deixei. Do horóscopo que fez Fernando Pessoa apenas uma data, o ano de 1978, foi motivo de incertos vaticínios, mentidos ou desmentidos, depois, pelos acontecimentos. Esperei em vão que outros, mais versados em astrologia do que eu, fizessem o que não fiz então: ler toda a sina do nosso país nas linhas traçadas pelo vate.
Em vinte anos, passou-se muita coisa. Estamos, hoje, em posição de ver melhor, estudando a história do futuro pela história do presente e a história do presente pela história do passado. O horóscopo de Portugal é um documento impressionante. Tudo está aí, assim haja quem o veja.
Juntei a esta republicação das minhas ideias sobre a história de Portugal umas cinquenta páginas de aprofundamento. Elas constituem um novo livro, em modo sintético. Sendo esse livro, como é, a apresentação de um destino, deixará certamente perplexo o leitor para quem, por ventura, a história seja o domínio do imprevisível. No pensar de Fernando Pessoa há, como se verá, um primeiro, um segundo e um terceiro Portugal. Sabemos só, pelo horóscopo, que haverá, em tempo marcado, um quarto e um quinto que serão, em planos sucessivos, a manifestação gloriosa da alma portuguesa depois da viagem milenária pelo céu e pelo inferno da sua história. Imprevisível de todo é a forma dessa manifestação, mas sem a consciência do que fomos e do que somos não estaremos presentes no que quer que seja que viermos a ser.
O horóscopo trouxe-nos de novo ao Templo, em Belém, da Senhora dos Reis Magos. Continuo a pensar, vinte anos depois, que não foi em vão que os Boitacas deixaram escrita na pedra a transcendente mensagem. Não tem sentido pensar que edificaram o Templo para gozo dos turistas e dos historiadores de arte antiga ou para lugar de solenidades públicas de efémera repercussão. Quem morreu não foi Deus, como pensou o alemão ateu, quem morreu foram os monges e o que foi criado para lugar de oração é, mesmo sem monges e invadido por uma multidão informe ou por políticos sem Pátria, uma oração de pedra, que a excede infinitamente.
Valete Fratres
António Telmo
(Publicado em O Horóscopo de Portugal, 1997)
CORRESPONDÊNCIA. 40
15-03-2017 09:26Publicamos hoje uma carta de António Telmo para Risoleta C. Pinto Pedro, escrita nas semanas que antecederam a apresentação, pelo filósofo, do livro Venite In Silentio, da autoria da escritora, no Convento de São Paulo, na Serra d’Ossa, no Outono de 2004.
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Carta de António Telmo para Risoleta C. Pinto Pedro, de 24 de Agosto de 2004
Estremoz
24 de Agosto
de 2004
Estimada Amiga
Demorei alguns dias a responder, porque tencionava ler o livro antes de o fazer. Deixei a leitura para mais tarde, na semana anterior ao lançamento, até porque assim vou estar na Serra d’Ossa junto a vocês e dentro da nova atmosfera espiritual que é a que me há de, estou certo, trazer o livro.
Acho muito bem o lugar e o dia, 1 de Outubro. Diga-me então a hora, quando estiver certa dela. Fico à espera.
Um abraço do
António Telmo
P. S. Afinal comecei a ler o livro. Estou encantado.
UNIVERSO TÉLMICO. 49
07-03-2017 15:33.jpg)
Agostinho e o triunfo da entrevista
Risoleta C. Pinto Pedro
Este livro é um pequeno grande objecto de recordação, uma pedra de desagravamento, que não corrigindo nem substituindo o que deveria estar a acontecer, isto é: a edição e reedição da obra de Agostinho da Silva, como Renato Epifânio muito bem alerta no seu importante e sintético prefácio, importante pela frontalidade, contudo ajuda a tirar da sombra esta paralisação, e contribui para um apesar de tudo impossível consolo pela situação lamentável em que se encontra a monumental obra...
O livro lê-se com muito agrado, como todos os textos de Agostinho, e para além da entrevista propriamente dita, os textos complementares (prefácio, nota editorial e posfácio) também são de assinalar. É, por diversas razões, um livro histórico. Porque retoma uma entrevista histórica, a última dada à imprensa, em 93, ao Jornal Raio de Luz de Sesimbra, na pessoa de três entrevistadores: José Pedro Xavier, na altura director do jornal, e dois então jovens jornalistas: António Ladeira, actualmente poeta e professor de literatura nos EU; e Pedro Martins, escritor na área da reflexão filosófica, criador e coordenador do PAT.VO e do GEAS. A acrescentar a essa anterior razão, o livro apresenta informação importante que a peça jornalística, naturalmente, omitia, para além de integrar uma série de publicações da colecção Nova Águia, da editora Zéfiro, série com evidentes sinais de tendência para crescer.
Esta entrevista, na sua versão original, gravada, permaneceu entre 1993 e 2014 em hibernação nas cassetes que viajaram com António Ladeira para o seu êxodo no Texas e lá repousou arquivadamente todos estes anos, até ao momento que os astros desenharam para o seu desocultamento. Nelas, os dois jornalistas de então, Pedro Martins e António Ladeira, aos quais se juntou Rui Lopo na preciosa tarefa de transcrição, aperceberam-se que uma grande percentagem do material gravado não fora publicada. Assim nasceu o segundo livro gerado no seio do GEAS, acarinhado pelo mesmo jornal Raio de Luz e seu actual director António Marques, que em breve texto chama a atenção para a forte ligação de Agostinho da Silva a Sesimbra.
Na nota editorial, Pedro Martins, António Ladeira e Rui Lopo evocam o título da entrevista original que é uma citação de Agostinho: «A Península Ibérica deveria ser guia do mundo». Isto recorda-me uma conversa recente com um amigo de Marselha com quem Agostinho teria gostado de conversar. Dizia-me ele que estava a pensar vir viver para Portugal e aqui fazer durar a sua vida até ser chamado para o Eterno, por aqui ser ainda o único país onde é possível ser patriota e nacionalista sem se ser nazi ou de extrema direita.
Este título, esta primeira publicação em jornal, é a primeira etapa de um percurso que viria a revelar-se muito mais longo do que os intervenientes de 93 teriam imaginado. Numa segunda fase, a entrevista saltou do jornal e voltaria a ser publicada na terceira parte do livro Agostinho da Silva em Sesimbra, de Pedro Martins e António Reis Marques, em 2014. Mas Agostinho foi um cruzador dos mares e dos ares, e a viagem da entrevista não terminaria aqui. Voaria do Texas novamente para Lisboa, o Atlântico estava-lhe na vocação. Mostraria, na chegada, que quatro quintos do que fora gravado permanecia inédito. É a terceira etapa, a descoberta. Ou redescoberta. Culminando num quarto passo: a publicação autónoma em livro. Acrescentado o prefácio de António Cândido Franco e o posfácio de João Ferreira. Diferentes latitudes, diferentes gerações, a mesma amizade pela personalidade, a mesma admiração pelo carácter, o mesmo respeito pela obra.
É, assim, um livro que alia a didáctica dos estudos à evocação da figura, a fluência da conversa e a sedução do pensamento.
Na sua reflexão, António Cândido chama a atenção para um muito significativo acréscimo de dramatização do texto publicado em 93 para o livro. O que é natural, dada a extensão significativa de texto acrescentado.
Acentua também, e isto é muito importante, relativamente à literariedade da escrita de Agostinho, a sua habilidade e domínio de vários registos, entre o oral e o escrito, não se limitando a um estilo.
Assinala igualmente a importância que o género entrevista foi progressivamente adquirindo na expressão de Agostinho, possibilitando a este conversador, com o passar dos anos, manter o ritmo de comunicação com as pessoas.
A entrevista permite-lhe, parece-me, acentuar, pela oralidade, uma já característica do seu estilo de escrita que é a coloquialidade e a vivacidade. Não surpreende pois, que num conversador por excelência, a entrevista floresça.
Faz lembrar a importância de algumas entrevistas do seu amigo e compadre António Telmo, mas no caso deste por razões de conteúdo, não de frequência ou estilo.
Em Agostinho são tantas que, como diz António Cândido, «chegam bem para criar […] um compartimento próprio» onde alterna a narração com o discurso directo, formando «quadros poéticos vivos, embutidos em conversas».
Discurso directo que frequentemente não constitui uma resposta ao entrevistador, pois a partir das perguntas, o que muitas vezes faz é discorrer, com constantes digressões, voltando sempre a apanhar o fio. O discurso directo é o diálogo que reproduz/cria/inventa, daqueles de quem fala, ou entre eles. Antecedido e seguido do discurso do narrador, como é o caso, a propósito de a Espanha se ter apropriado da designação que partilhávamos como habitantes da península, o protesto de D. João II:
«D. João II protestou. Disse: Espanha não é um país. Espanha é a Península. Nós, portugueses, somos “portugueses da Espanha”. Que ideia é essa de vocês arrebatarem o nome e ficarem sozinhos com ele? Larguem o nome! Eles nunca largaram o nome.»
O início ainda é antecedido pela marca do narrador «disse» seguido de dois pontos, mas a passagem do final do discurso de D. João II para o do narrador é feita de modo imediato, quase abrupto. O «colosso» no seu melhor.

Na alternância entre as perguntas e as respostas, o que ressalta é, ainda que respeitoso do lado dos entrevistadores e coloquial do lado do entrevistado, um tom de companheirismo, demonstrando sintonia que não é propriamente concordância, mas que surge da empatia. Igualmente passa, pelas entrelinhas das perguntas, uma boa preparação; um conhecimento implícito e não superficial dos temas, o que é de salientar; uma prontidão na articulação entre a resposta e a pergunta seguinte.
Mas também é divertido ver a forma habilidosa como, por vezes, o entrevistado se desvia da pergunta, caso a questão não lhe interesse ou desencadeie algum outro tema sobre que considere mais apaixonante discorrer. É o caso da pergunta acerca da Universidade enquanto elite intelectual, que quase ignora, para falar de tema mais da sua preferência, como o estudo das tartarugas.
O que é encantador nele e cativa e conquista o mais duro e sério racionalista é a candura, a inocência, o atrevimento com que profere heresias, a ponto de desarmar qualquer um, abrindo brechas no pensamento dito normal, lógico ou comumente aceite.
Um dos seus temas de eleição é o divino, embora não o trate a partir de nenhuma religião em particular, mesmo quando manifesta simpatia por uma ou por outra, como é o caso do cristianismo, mas o pensamento de Deus é desenvolvido frequentemente a partir do pensamento de Portugal, que vê na sua dimensão eterna, para lá do espaço que ocupa:
«Porque eu digo, podia ser que Portugal, numa catástrofe geológica qualquer, ou antropológica, sumisse. O que não sumia era esse pensamento. O que não sumia era o pensamento defendido por eles na vida da plenitude do Divino, a plenitude de Deus».
Fala de tudo: desde as tartarugas, a temas de um altíssimo grau de complexidade, e o tom é didáctico. Acima de tudo, é um professor a explicar coisas complexas de modo natural, porque profundamente interiorizadas. Nunca se preocupa em, e até evita, passar por erudito. Assim como não distingue temas através da gala ou da sumptuosidade da palavra. A sumptuosidade é mais criada pela vivacidade e por vezes quase gongorismo das imagens. Também não distingue personagens pelo seu estatuto, nem mesmo pelo grau de admiração que por elas nutra. A familiaridade é o modo com que trata todos, mortos ou vivos, socialmente desvalorizados ou o contrário. É o caso da mais que insuspeitamente admirada rainha Santa Isabel, que trata por «Isabelinha». É a ternura. Mas também a fraternidade. Todos os homens são irmãos e não há nenhuns acima dos outros. Aprendamos com ele.
Apesar das frequentes alusões do seu discurso ao divino, o foco é, sempre, a vida. A sua inspiração são os portugueses do passado, os portugueses das aventuras, os portugueses da História, os portugueses de sempre, com destaque para os das viagens das descobertas, cujas palavras inventa, ou melhor, cita como se estivesse em comunicação directa com eles e os ouvisse dizer: «Não basta viver no divino. É preciso também viver no concreto, no real, naquilo de todos os dias», rematando com a sua já retórica interrogação que não pressupõe uma negativa: «não é?». Porque o argumento vem de autoridades, que são «os portugueses».
A entrevista, propriamente dita, inicia-se com um tema muito caro a Agostinho da Silva: a missão de Portugal no Mundo. Mas não é com pompa que trata tão pomposo tema. São expressões coloquiais e metáforas do quotidiano que este pedagogo usa para falar de temas considerados importantes. É o caso da expressão varrer a casa, a propósito da União Europeia. Fica tudo dito e os pontos colocados sobre os ii, sobre quem varre e sobre o estado da casa a necessitar de grande varridela. Ou limpeza. Para bom entendedor…
E sempre presente a lembrança da poesia, que para ele não se limita canonicamente aos textos poéticos, mas é muito mais ampla: um espírito e um estilo e uma forma extensa e extensível de viver a vida.
Um tema que tem proporcionado alguma polémica, a propósito do culto do Espírito Santo, é o menino. Por vezes é o próprio Agostinho o criador do equívoco, pela insistência que coloca na coroação da criança, mas nesta entrevista há um momento em que quase esclarece, quase se demarca do seu próprio discurso, quando diz:
«Então o que é? É porque eles julgavam que o menino era capaz de imperar no mundo, de governar o mundo? Não, de jeito nenhum! O que eles achavam é que é o exemplo melhor que temos do homem, e que o homem é a coisa suprema do Universo. Não há nada no Universo que exceda o humano.»
Aqui mostra que não é literalmente que se deve fazer a leitura, mas pelo símbolo, pela metáfora. O que já não entra em contradição e quase converge, com estudos que mostram que na tradição mais remota o coroado era um adulto. Ele próprio afirma que ali a criança é o símbolo do que existe melhor no humano.
Aproveitando para fazer a ligação às suas preocupações com a escola e seu papel deseducativo. Mais à frente afirma: «as escolas deseducam as pessoas».
Pelo meio destes temas grandes e sérios que ele trata com um misto de naturalidade e entusiasmo, não podemos ignorar o pitoresco, como cores com que vai salpicando a conversa. É o caso, que relata, de Roberto Carneiro, ex-ministro da educação, coroado Imperador aos quatro anos. De Imperador do Espírito a ministro, uma despromoção, digo eu, seja-me permitido o aparte. E talvez uma razão para não se coroarem crianças. É demasiado pesada, a coroa sobre uma cabeça de menino que ainda pode vir a ser ministro. Sabe-se lá que consequências poderá ter…
Tema importante que irá ser magnificamente abordado por João Ferreira no posfácio, é a questão da filosofia, que Agostinho aproxima, como faz em relação a tudo, do quotidiano. Fazer filosofia sobre o requeijão será, para ele, a mais elevada das filosofias. Aquilo que designa como a «atenção ao concreto», a vida material ou o espírito na matéria, ou, melhor ainda, a matéria como expressão do espírito, Deus «inteiro e pleno no mundo». A recorrente ideia de aliar a existência na carne ao anseio de plenitude. O que está, de algum modo, relacionado com a busca do poético com que salva o quotidiano da banalidade. E nenhum tema, nem a regionalização, fica fora desta outra forma de filosofia, ou, como diriam Huxley e Telmo, da «arte de olhar».
Especificamente em relação ao tema da filosofia portuguesa, que como já referido será o centro do texto de João Ferreira no final do livro, Agostinho vai igualmente pôr os pontos nos ii. Para ele, não está em causa a existência da filosofia portuguesa, mas não a situa na Universidade. Os «homens que fazem a Universidade […] não têm filosofia portuguesa.»
E põe a tónica no aspecto operativo da filosofia portuguesa, aquela que se traduz em comportamento, por se impregnar no ser. Dá, então, a sua definição do que é ser filósofo: «olhar a vida e pensar sobre ela»
Não se trata da recusa do pensar, mas da recusa do pensar estéril, sem consequências. Elege um pensar com visibilidade no «comportamento», um conceito muito do seu interesse, nomeadamente quando, a propósito da Seara Nova, afirma que, independentemente de não se ter de concordar com tudo, existe naquele projecto «um plano de comportamento de Portugal». O que valoriza.
Embora não coroando o pensamento como coisa abstracta desligada da vida e do comportamento, são várias as passagens em que, sem que o faça explicita ou deliberadamente, acaba por reconhecer, admitir e admirar … o pensar crítico. Como é o caso da passagem em que fala dos portugueses autores dos primeiros textos sobre a China, como «gente crítica […] gente capaz, e […] gente no fundo da qual há sempre a capacidade de julgar».
Ele próprio é o exemplo vivo do pensamento crítico. Nomeadamente sobre nós mesmos. Sobre cujo tempo lamenta faltar a componente da proeza. E aqui é totalmente coerente com o que defende num texto sobre educação que estudei e sobre que falei recentemente, em que, a propósito de Baden-Powell, exalta o risco e o perigo, e portanto a proeza, como condições necessárias à aprendizagem.
No seu magnífico posfácio, o companheiro de Brasília, João Ferreira, considera esta entrevista «uma peça testamentária» contendo «o fermento principal de todo um discurso elaborado durante uma vida inteira», vendo não apenas nas repostas, mas também nas perguntas, o «discurso essencial arquivado nas principais obras do Mestre», como a ideia de fraternidade e cooperação, uma das preocupações do seu pensamento essencialmente educativo. Liga-se esta ideia à da sua concepção de filosofia, uma «filosofia dinâmica» ou arte de viver. Como não gostava de rótulos, também não queria que lhe chamassem filósofo, mas existe coerência entre a definição que dá de filosofia como «dialéctica da arte de desembaraçar» e a sua própria atitude prática e teórica: «Olhar a vida e pensar sobre ela». No seu caso, «em nome próprio». E ousamos nós, por isto mesmo, aproximá-lo da filosofia portuguesa, que não desconhecendo as filosofias estrangeiras, a elas não se submete, com elas não se emaranha. Como ele, é a filosofia portuguesa «uma filosofia em nome próprio». Desembaraçada.
João Ferreira irá desenvolver, em torno do tema, larga e importante reflexão a que, por merecimento, dedicarei texto à parte. Como A Última Entrevista de Imprensa, talvez por contágio, também eu desdobro e prolongo esta reflexão à margem da Entrevista. A culpa é do insaciável Agostinho, esse doce e alegremente inquieto e feroz colosso.
Biblioteca Municipal de Ponte de Sor
25 de Fevereiro
(texto de apresentação do livro A Última Entrevista de Imprensa, Ed. Zéfiro)
CORRESPONDÊNCIA. 39
01-03-2017 09:42
ÁLVARO RIBEIRO, 112 ANOS DEPOIS!
Comemora-se hoje o 112.º aniversário do nascimento de Álvaro Ribeiro, mestre de António Telmo. Assinalamos a efeméride com a publicação de uma carta inédita do discípulo para o filósofo da razão animada, escrita em Estremoz, e datada de 9 de Outubro de 1965, exactamente 16 anos antes da morte do destinatário. Através dessa carta, que se guarda na Biblioteca Nacional, Telmo dá a conhecer ao mestre o horóscopo que dele fizera.

Carta de António Telmo para Álvaro Ribeiro, de 9 de Outubro de 1965
Estremoz 9-X-65
Sr. Dr. Álvaro Ribeiro
Como deve calcular e saber, estou em Estremoz, para onde vim na esperança de me demorar apenas dois ou três meses, mas começo a duvidar que isso aconteça. Estremoz tem um agradável café – “Águias d’Oiro” – onde se reúnem e se podem encontrar os intelectuais do sítio: um padre poeta, um advogado ocultista praticante várias vezes preso por razões políticas, um advogado (outro) leitor de Álvaro Ribeiro, Orlando Vitorino, José Marinho, etc…, um marxista ex-director da Escola e escultor, amigo do Conceição Silva, etc.
Ganho muito pouco. Isto preocupa-me e aborrece-me. Tenho, porém, muito tempo para escrever e, por isso, comecei a redigir um trabalho sobre a “descida aos infernos” em Aristófanes, que incluirei na tese de licenciatura. Mato assim dois coelhos com uma só cajadada. Suspendi o escrito sobre Bruno, mas espero retomá-lo logo que complete o trabalho destinado aos professores da Faculdade.
Aqui, têm sido muito comentadas as declarações de Paulo VI e muito apreciadas.
Nós estamos longe desta gente toda e as ideias do grupo, se podemos chamar-lhes assim, são fantasmas sem corpo, ainda à procura do “ectoplasma” fora dos limites em que nasceram e se formaram: o mundo espiritual do Palladium e de Atena.
Peço ao sr. Dr. Álvaro Ribeiro para apresentar os meus cumprimentos a todos de quem não me despedi, sr. Dr. José Marinho, Avelino Abrantes, sr. Dr. Leitão e restante “companhia filosófica”.
Cumprimentos também à Conchita.
Muito grato
António Telmo
1 de Março de 1905
[Imagem com o horóscopo de Álvaro Ribeiro]
Aspectos
Conjunção Vénus - Júpiter
Vénus – Júpiter em sextil com Saturno
Mercúrio em trígono com Neptuno
Mercúrio em sextil com Urano
Sol em sextil com a Lua
Sol em trígono com Neptuno
Neptuno em oposição com Urano
Lua em sextil com Marte
Mercúrio em sextil com Júpiter
António Telmo
(Horoscopista)
[Espólios N9/1049]
CORRESPONDÊNCIA. 38
26-02-2017 19:13
CARTAS DE ERNÂNI ROQUE PARA ANTÓNIO TELMO. 03
Algés, 18 de Junho 1977.
Meu caro Telmo:
Grato pela “História Secreta de Portugal” e pela dedicatória amiga. Li-o de um fôlego em Sesimbra (exemplar emprestado pelo Rafael), vou na segunda leitura e troquei impressões com os filósofos, 4.ª feira última, em casa do Afonso Botelho. O autor do Touro Celeste serviu-nos em Vista Alegre finíssima um chá das 5 (eram 23 horas…) infuso em chaleira rica de prata dourada, gentileza e requinte que em meu entender desbancam o cafezinho burguês do Furtado Guerra, de Miraflores (ausente por doença).
A Escola Formal estava também representada pelo Orlando, que se meteu comigo por causa das figas. Vou ter de refundir o suelto, “metendo-lhe” o Leite de Vasconcelos e a polémica do Camilo com o Senhor D. Luís, mais a pornográfica interpretação vèlhinha, da “coisa na coisa”. Se tiver paciência.
Mestre Álvaro, entre dois goles sorvidos da xícara a fumegar, foi-nos dizendo – e nós dizer-lhe – que Você na Secreta deixa o D. Manuel I mui maltratado, na medida em que lhe coloca no reinado venturoso o começo do pátrio trambolhão. Eu acho o livro formidável, a pedir 2.ª edição correcta e aumentada. Correcta: sem gralhas e com melhores fotografias, algumas grandes, de página, a dar o pormenor. Aumentada: Tomar, etc.
Há dias, no Centro do Livro Brasileiro, perguntei se a História estava a vender-se bem. Disseram-me que sim e aproveitei para afirmar, altissonante: é um grande livro! Quando saí, já havia dois indígenas entregues à folheadela percursora da compra!
Prometi ao Dr. Manuel Guimarães solicitar-lhe para ele um exemplar, dado o entusiasmo demonstrado quando lhe falei do livro. Se quiser ser amável e mandar-lho, a direcção é Hotel dos templários, Tomar. Gostava que lho enviasse.
A terminar: quanto ao horóscopo que não pode fazer, há decerto um pequeno lapso. Feito foi ele. O que Você pensa não poder fazer é revelá-lo e por isso o re-velou. Só me resta o Valete, Frate!
Um abraço,
Ernâni Roque
UNIVERSO TÉLMICO. 48
12-02-2017 22:54Moisés
António Carlos Carvalho

Todos sabemos que Agostinho da Silva gostava de contar histórias – eu próprio passei por essa experiência inesquecível na casa dele perto do jardim do Príncipe Real, em Lisboa; foi lá, por exemplo, que ouvi pela primeira vez falar do episódio de Canudos e de António Conselheiro, a última expressão do sebastianismo «ao vivo». Por isso, não é de estranhar que Agostinho tenha escrito biografias – escrever uma biografia é contar a história de uma vida por escrito.
E assim surgiu A Vida de Moisés, publicada pela Seara Nova em 1938 – fixemos esta data, porque esse é também o ano da tristemente famosa «Noite de Cristal», ou noite dos vidros partidos, os vidros das montras de lojas judaicas na Alemanha, anúncio do que viria a seguir, até 1945.
Contar a vida de Moisés em quarenta páginas é uma proeza, convenhamos …
Também sabemos que, mais cedo ou mais tarde, toda a gente acaba por «tropeçar» em Moisés – lembremo-nos que, nos anos 60 do século XX, nos EUA, por exemplo, Moisés era constantemente invocado pelos negros americanos, envolvidos na luta pelos seus direitos cívicos.
A começar pelos artistas: todos conhecemos o Moisés de Rembrandt ou o de Miguel Ângelo. Mas Moisés surge mesmo onde menos se espera – no portal sul do Mosteiro dos Jerónimos, bem explícito com as Tábuas da Lei, ao lado direito do Infante, ou até no portal oeste, «disfarçado» de Menino Jesus, mas deitado numa cesta, não nas palhinhas de uma manjedoura…
Mas voltemos ao Moisés de Miguel Ângelo: sempre que visitava Roma (coisa que fazia frequentemente), Sigmund Freud passava horas a contemplar a estátua de Moisés, totalmente fascinado. E foi esse mesmo Moisés que inspirou Freud a escrever a sua última obra, O Homem Moisés e a Religião Monoteísta, que teve uma primeira parte publicada em 1937 e a versão final em 1939.
Então percebemos esta coincidência extraordinária: Freud e Agostinho interessaram-se e escreveram ao mesmo tempo sobre a mesma figura: Moisés.
A Vida de Moisés, de Agostinho da Silva, é supostamente uma biografia, mas se o é, é certamente muito estranha, invulgar, algo que nos deixa perplexos. Vejamos: quando escrevemos uma biografia, temos o cuidado óbvio de procurar as informações essenciais: nomes dos pais, dos irmãos, etc. Mas quando lemos esta biografia de Moisés verificamos que Agostinho não nos dá esses nomes – só o do pai, a quem chama Levi (nome da sua tribo) e não Amram, e de Aaron, sem nunca dizer que este é o irmão de Moisés; a mãe, Jokebed, e a irmã, Myriam, nunca têm direito a nome …
António Cândido Franco tem razão: Agostinho era um «narrador de ficção», criava «mundos fictícios» – mesmo à custa de diversas invenções, digo eu.
Exemplos: põe Moisés a trabalhar nas obras, como pedreiro, imagine-se, junto dos seus irmãos judeus, a quem incita à revolta, mesmo depois de matar o capataz egípcio e de ser denunciado por isso; diz que Moisés e Séfora tiveram filhos e filhas – filhos, sim, tiveram, Gershom e Eliezer (mas Agostinho troca-lhes os nomes, chama-lhes José e Levi), mas filhas não, embora invente nomes para elas, Raquel e Maria… A seguir, coloca a visão da sarça ardente no campo, junto ao poço de Madian, e não no alto do monte Horeb… O episódio em que a mão de Moisés fica de repente leprosa e logo a seguir sã (e que acontece durante o diálogo com Deus junto da sarça ardente) é contado por Agostinho como sendo apenas um prodígio feito por Moisés perante os anciãos do povo… Refere que os escravos judeus no Egipto tinham magistrados (leia-se juízes), coisa que só viria a acontecer na travessia do deserto e por conselho do sogro de Moisés, Jetro… Apresenta os escravos judeus a apropriarem-se do ouro e da prata «dos pagãos», «como vingança dos maus tratos» que tinham recebido dos egípcios, o que é inacreditável e pura invenção – esse ouro e essa prata foram trazidos do Egipto pela enorme multidão de não judeus que os acompanharam para o deserto e depois participaram na cerimónia do bezerro de ouro… De Myriam, vidente da água no deserto, nada é dito… Agostinho inventa também uma animosidade e divergência profunda entre Moisés e Aaron, quando o texto bíblico diz precisamente o contrário… E ainda inventa que Moisés pensava que o povo hebreu era «mau, fácil às solicitações da vida criminosa» (sic), quando o texto bíblico conta que Moisés sempre defendeu o seu povo até mesmo da própria ira de Deus … Etc., etc.
Bom, que pensar de tudo isto?
Como foi referido, Agostinho escreve esta biografia e publica-a em 1938. Ora os anos 20 e 30 foram uma época sobretudo marcada pela ascensão ao poder de homens de mão forte e determinada, digamos assim, em muitos pontos da Europa e do mundo: Mussolini em Itália, Estaline na URSS, Salazar em Portugal, Hitler na Alemanha, Franco em Espanha, Getúlio Vargas no Brasil. Homens, esses, que conduziram as massas para os seus objectivos próprios, contra ventos e marés, sem olhar a meios. Foi o tempo do que na Renascença italiana se chamava os «condottieri». O perfil de Moisés que Agostinho nos apresenta aqui é precisamente o de um homem obstinado, «tenaz nos seus propósitos», exigente, o chefe desejado por todos que os irá libertar da escravidão, «fraco na aparência, poderoso no íntimo, como que animado por uma força divina». Nunca lhe chama profeta e muito menos o maior dos profetas.
A Vida de Moisés tem como epígrafe uma passagem do Deuteronómio, na tradução do padre António Pereira de Figueiredo. Podemos, portanto, deduzir que Agostinho leu esse livro, e provavelmente o do Êxodo, em que se fala de Moisés.
Mas leu-os certamente com os olhos de um «narrador de ficção», que ele era fundamentalmente. E não quero ir mais longe nas minhas deduções…
CORRESPONDÊNCIA. 37
12-02-2017 21:57AGOSTINHO DA SILVA, 111 ANOS DEPOIS
A poucas horas de se comemorar o 111.º aniversário do Estranhíssimo Colosso, um dos quatro mestres de António Telmo e padrinho de baptismo de sua filha Anahi, assinalamos a efeméride com a publicação de uma brevíssima mas tocante carta inédita de Agostinho da Silva para a sua afilhada.

22.7.79
Querida Menina
Há actualmente no Brasil grandes movimentos a favor dos índios e eles próprios estão defendendo seus direitos – o que é o melhor. Hoje queria dizer-te que um dos grupos mais influentes, de Rio e São Paulo, se chama exactamente ANAÍ. Não é interessante que haja essa coincidência? Gostarias de receber informação sobre índios?
Como vai Manuel?
Um grande abraço do Padrinho
