UNIVERSO TÉLMICO. 50
A estranhíssima Associação: Reflexão à margem de um artigo do deputado Paulo Trigo Pereira
Pedro Martins
Em tom lamentoso, o senhor deputado à Assembleia da República, Dr. Paulo Trigo Pereira, que, por acaso, é também o Presidente da Assembleia Geral da Associação Agostinho da Silva, vem, em artigo publicado hoje no Observador, interrogar-se como é possível que Agostinho esteja actualmente tão mal tratado em Portugal, pelo poder instituído e instalado. Cito a parte final do seu texto:
«5. O paradoxo de Agostinho hoje, é que ele é simultaneamente amado e mal-tratado. Amado e querido por muitos dos que o leram, que viram as suas entrevistas televisivas, que privaram com ele e foram amigos dele. Mal-tratado, quer por parte de certa “inteligentzia nacional” (a que já estamos habituados), mas sobretudo pelas instituições públicas. A entrada sobre Agostinho da Silva no “Camões – Instituto da Cooperação e da Língua” é desequilibrada (há apenas um lado de Agostinho na mente do autor). Não tem as referências bibliográficas de Agostinho, nem as obras de referência sobre ele que têm vindo a sereditadas sobretudo pela Associação Agostinho da Silva (AAS). O espólio, sobretudo literário, de Agostinho está ainda em condições precárias de sustentabilidade física futura. Deveria ser assumido com a brevidade possível pela Biblioteca Nacional em condições de acessibilidade para estudiosos e interessados. Ainda há pouco tempo, o Museu de Marinha retirou, sem nenhuma informação para herdeiros ou a AAS, um pequeno mas nobre memorial a Agostinho com parte do seu espólio. Não existe, que eu saiba, nenhuma instituição pública (nacional, regional ou municipal) onde seja possível tomar contacto com a vastidão da vida e obra deste personagem maior da cultura portuguesa. Urge cuidar do seu património, em Portugal e no Brasil. Saibamos nós, seus familiares amigos ou admiradores, ajudar a corrigir estas injustiças.»
Não posso deixar de estranhar as afirmações do senhor deputado. Quais são «as obras de referência sobre ele [Agostinho] que têm vindo a ser editadas sobretudo pela Associação Agostinho da Silva (AAS)» a que se refere? Aqui exorto o senhor deputado a apresentar um título de bibliografia passiva agostiniana que na última década tenha saído a lume com a chancela da AAS, ou com o apoio desta.
Há, é certo, a biografia de Agostinho da Silva que António Cândido Franco publicou em 2015, com algum apoio da AAS, que sobretudo se mostrou muito empenhada em promover sessões públicas de lançamento da obra, mas a essa mesma biografia considera-a o senhor deputado «uma larga “biografia falhada” (de não recomendável leitura)». Tendo em conta o cargo que o senhor deputado vem mantendo nos órgãos sociais da AAS, e que já em 2015, quando O Estranhíssimo Colosso – Uma Biografia de Agostinho da Silva saiu a lume, detinha, e tendo ainda em conta que António Cândido Franco será, ao que sabemos, dedicado sócio daquela associação, não se poderá deixar de estranhar a oportunidade e a adequação desta afirmação. Mas quanto ao funcionamento institucional da dita associação, do qual, de resto, talvez o senhor deputado esteja longe de estar inteiramente ciente, já nada verdadeiramente poderá surpreender.
Já agora, poderá o senhor deputado explicar por que não há vislumbre de actas do colóquio agostiniano que em Fevereiro de 2016 se realizou na Faculdade de Letras de Lisboa com o apoio da AAS? Por que não se disponibilizam, pelo menos, os vídeos desse colóquio, que teve emissão em live streaming?
Quem ler o escrito de senhor deputado Paulo Trigo Pereira, pode ser levado a pensar que continuamos hoje a assistir a um pujante, ou pelo menos efectivo, movimento editorial tendo por objecto a obra agostiniana. Não é assim. A verdade é que há onze – onze!!! – anos não é publicado, seja a que título for, mormente no âmbito da actividade da AAS, qualquer livro de Agostinho da Silva, com excepção das Cartas de Agostinho da Silva para António Telmo e de Agostinho da Silva – A Última Entrevista de Imprensa, ambos com os selos do Projecto António Telmo. Vida e Obra e do GEAS – Gabinete de Estudos Agostinho da Silva. Conhece, senhor deputado?
O assunto é deveras misterioso, tendo em conta a legião de admiradores que Agostinho concita, mas não parece que se tenha alguma vez cruzado com a curiosidade do senhor deputado.
Já que o senhor deputado fala no espólio do filósofo, será capaz de nos explicar por que não vêm a lume quaisquer inéditos de Agostinho? Por que parou, de todo, o trabalho de investigação que sobre esse espólio vinha sendo feito no seio da AAS até há alguns anos? E estará realmente o senhor deputado em condições de explicar o que na verdade se passa com o espólio de Agostinho? Sabendo-se que, há dois anos, a Assembleia Geral da AAS decidiu entregá-lo à BNP, conviria que o senhor deputado esclarecesse quem está em falta: se a AAS, se a BNP. E porquê. Os cidadãos agradeceriam.
Diz o senhor deputado que os poderes públicos não querem saber de Agostinho. Quem cedeu à AAS a sua actual sede, numa zona histórica e central de Lisboa? Uma autarquia local. O protocolo, esse, é do conhecimento público. Estranho é que, nestas condições, seja uma outra autarquia, noutro distrito, a dezenas de quilómetros de distância, a principal destinatária da escassa actividade pública que a AAS ainda desenvolve.
Louvavelmente, o senhor deputado pôs a fasquia muito alta, como Agostinho aliás merece. Erigiu-o à condição de problema nacional. Talvez devesse, por isso, começar por olhar para a sua própria casa – aquela que tem Agostinho por patrono – e explicar ao país o que por esta tem, ou não, sido feito em prol da posteridade agostiniana. Estou em crer que isso conferiria legitimidade acrescida às suas reivindicações. Receio, todavia, que lhe seja difícil explicar a decadência. Aí, porém, importará lembrar que foi o senhor deputado que começou esta conversa.