UNIVERSO TÉLMICO. 51

12-04-2017 00:00

Amor e maus-tratos, O estranhíssimo paradoxo

Risoleta C. Pinto Pedro

 

(A propósito de um artigo do senhor Paulo Trigo Pereira)

 

Dizem alguns psicólogos, no que ao relacionamento amoroso se refere, que ignorar o outro é uma das mais eficazes formas de maltratar. 

Escreve o senhor Paulo Trigo Pereira um lamento sobre o estado em que se encontra a vida amorosa de Agostinho com o poder instituído em Portugal. Ou vice-versa... digo eu.

Pelo caminho faz referência a uma biografia que afirma «falhada». 

Nem um nem outro assunto são novos.

O Projecto António Telmo. Vida e Obra (PAT.VO) e o Gabinete de Estudos Agostinho da Silva (GEAS) que não devem ser confundidos com a Associação que usa o nome de Agostinho e a que o senhor Paulo Trigo está ligado, lamentando, repito, o referido GEAS, mas de forma activa, não propriamente o estado em que se encontra o amor das instituições por Agostinho, mas o ocultamento em que se encontra a sua obra, o que inviabiliza dramaticamente a comunicação amorosa com todos aqueles para quem escreveu, tem levado a cabo uma série de iniciativas (publicações, colóquio, conferências… a continuar...) fazendo a parte que, institucionalmente não lhe cabendo, acaba por substituir-se a quem, institucionalmente lhe cabendo, não o faz. Quanto a isto, estamos conversados. Uns escrevem lamentos, outros operam, assim contribuindo todos para o equilíbrio no mundo. Agostinho teria achado perfeito.

Quanto à tal «falhada» biografia de Agostinho, como por enquanto só existe uma, apenas poderia o senhor Paulo Trigo estar a referir-se ao magnífico e belíssimo trabalho de António Cândido Franco, O Estranhíssimo Colosso. Aqui temos um paradoxo.

Sabemos que o livro tem setecentas e tal páginas, apesar de tudo recomendamos a sua leitura. Não por ser um livro perfeito (haverá algum?), mas para cada um poder avaliar por si, sem ficar sujeito àquilo que os outros decidem dizer. Agostinho teria gostado igualmente disto. Também por ser um interessante modo de actualizar criativamente o cânone de Agostinho no que se refere às biografias. Com um sorriso ora irónico, ora triste, mas sempre amoroso, apaixonado pelos factos e pela humanidade e grandiosidade do seu biografado, assim escreve António Cândido Franco, tal como Agostinho escreveu as suas biografias. No caso do seu biógrafo, em versão macro, como não poderia deixar de ser, por se tratar de um Colosso. O livro é grandinho e não alberga banalidades. Não alimenta vícios.

É um livro colossal em todas as suas dimensões. 

Tal como escrevi na altura, quando fiz a recensão do livro de António Cândido, recensão posteriormente publicada no meu livro A Literatura de Agostinho da Silva, essa alegre inquietação (publicado pela Zéfiro, na colecção Nova águia, em 2016 e lançado durante o Colóquio do GEAS dedicado à sua literatura, o terceiro livro de uma série recente dedicada ao nosso escritor filósofo):

 

«Um estilo pessoalíssimo, um ‘dolce stil novo’ que, se não se inspira, é certamente inspirado pelo biografado na sua faceta de biógrafo.

Vejamos:

‘Sem pudor, que era escusado, pegava de conversa com o seu escolhido e ia com ele de passeio, a céu aberto, […] de modo que o leitor pudesse seguir a sua presença. Dito doutro modo: a biografia era o modo de dizer que Montaigne estava vivo e respirava.’

Refere-se este trecho a Agostinho biógrafo. Mas se experimentarmos substituir os tempos verbais pelo presente e ‘Montaigne’ por ‘Agostinho’ não há aqui nada que não se ajuste ao biógrafo António Cândido.  Na biografia, Agostinho está vivo e respira, neste passeio a céu aberto com António Cândido.

E aqui temos o que poderíamos designar como uma Arte Poética aplicada à biografia, de que ambos comungam. Fazer biografia é restituir o sujeito à vida, para o leitor. Um trabalho… colossal! E, provou-se … possível!»

 

Mais à frente:

 

«Um biógrafo apaixonado pelo biografado (não seria possível escrever uma biografia assim sem essa condição…): ‘O meu doido’, de onde extravasa todo o amor, ternura e admiração que cabem num coração.

Agostinho, lendo esta biografia, teria posto de lado a admiração, como a carne que não comia, mas não teria sido insensível ao amor, ele que toda a vida o respirou e recriou. Nem ao humor. Acima de tudo ter-se-ia divertido com a sua própria imagem, com o riso refletido dela, ele que nunca se levou demasiado a sério.»​

 

 Escrevi também:

 

«Não consigo imaginar alguém lendo este livro a espernear. Embora já tenha havido quem o fizesse. Deve ser um enorme sofrimento. Como se nos pusessem à frente a melhor e mais divina das iguarias, mas por razões obscuras não pudéssemos mostrar o nosso prazer e fôssemos obrigados a deliciar-nos, mas ao mesmo tempo fazendo caretas e contorcendo-nos obscenamente de agonia a fingir que não gostamos. Deve ser doloroso. Mas é possível, porque já aconteceu. Mistérios. Ou talvez não.

Não vou esmiuçar, o ambiente está perfumado de Agostinho e seu biógrafo, não quero estragá-lo, mas quem tiver curiosidade sobre a explicação para um ou outro feroz ataque com que o livro foi recebido, explicações não faltam. Bastariam [certas]​ páginas [...]​ para, numa certa óptica, ajudar a compreender acicate tão cerrado a esta biografia. Que aliás, não é ela, a biografia, que incomoda, mas flashes de biografias outras que, em nome da verdade, aqui aparecem. Como diria o Garrett das Viagens¸ ele poderia descrever a estalagem desta ou daquela maneira, ao gosto da época, dos leitores, dos críticos, o problema é que nada disso lá estava…»​

 

Para se escrever e falar sobre a obra de Agostinho não chega ter-lhe apertado a mão. Para se escrever sobre o livro de António Cândido Franco não é suficiente ter-lhe folheado as páginas. 

É preciso ler um e outro. Ler leva tempo, é certo. São escolhas que se fazem.

Quanto a Agostinho, há que divulgá-lo. Por isso alertei também, noutra parte do referido livro, para a moda das citações a que se vem resumindo, tão injustamente, a divulgação do seu pensamento e da sua obra:

 

«deste culto superficial das citações mastigadas, digeridas, cheias da moleza do prêt-à-porter, de um Espírito Santo liofilizado de pacotilha que não celebra a santidade do Espírito na santidade do corpo, de meia dúzia de expressões memorizadas e mecanicamente expandidas até à auto-extinção pela fuga da alma.

Tenhamos a esperança, que ele nos deixa, de que este veneno da simplificação, este macaqueio obsceno a que corajosamente se expôs, não nos faça mal e não o mate. Na vida, como na morte.»

 

Um dos venenos foram as referidas entrevistas televisivas, de que viria a arrepender-se. Compreende-se.

​"Há um outro Agostinho da Silva", afirma o senhor Paulo Trigo.

De acordo. Só que neste momento está escondido nas bibliotecas particulares e alfarrabistas. 

"E há outras leituras", acrescenta o senhor Paulo Trigo.

​Pois há. Mas para isso precisamos dos livros. Que estão esgotados há anos, que não são reeditados. E os manuscritos, tantos deles transcritos em labor, esse sim, de amor, por que razão não podem ser publicados, divulgados? Talvez o senhor, pela sua ligação à Associação, possa esclarecer-nos. Quer?

 

Este é o verdadeiro paradoxo actual de Agostinho. Venham os livros. O amor virá naturalmente, por atracção. Com ou sem "inteligentzia nacional", com ou sem "instituições públicas". Uma designação muito vaga que mais oculta do que revela. O que se compreende. Quem quiser pensar um pouco. Atravessando superficialidades e paradoxos. 

 

11-04-2017