INÉDITOS. 14
À semelhança de A Dama de Oiros, Um Conto Policial, O Batoteiro ou O Contador de Histórias e a Mesa de Bilhar, o fascínio do jogo domina este conto inédito de António Telmo, passado entre Estremoz e Évora.
A história sonhada do jogador de Poker
Há quarenta noites que perdia continuamente e estava agora sem recursos, endividado por todos os lados, mas não podia deixar de jogar porque era o mesmo que morrer. Nesta situação, só um milagre! Faltavam três dias para receber o ordenado. Teria coragem para arriscá-lo, logo que o recebesse, deixando a mulher e os filhos sem pão para comer? Se perdesse mais uma vez, o que faria depois?
Pensava: “Se nunca ninguém se governou a jogar, porque é que somos tantos a teimar?”
Recordou a última jogada da noite anterior, em que arriscara toda a cave e a perdera. O outro só ganhava com o valete de paus e o valete de paus saiu.
Decidiu: “Vou deixar isto de uma vez para sempre”. Mas sentia uma grande tristeza.
Ah! Se ele pudesse substituir o jogo por outra coisa qualquer em que não arriscasse o dinheiro e a vida, mas que fosse na mesma fascinante! Uma amante? Nem pensar nisso. Era arriscar à mesma o dinheiro e a vida. Além disso, ele era um homem casado e honesto, amigo da casa e dos filhos e já tinha quarenta anos. A lembrança dos filhos comoveu-o. Lembrou-se de si quando era pequeno e sentiu vontade de chorar. Viu-se numa ribeira a caçar pássaros com uma fisga. Quase que deu um salto. A caça! Aí estava a solução:
– “É isso mesmo, vou vender a espingarda.”
Vendeu-a nessa mesma tarde por metade do seu valor. Tinha de novo dinheiro para ir jogar. Mas tinha de esperar pela noite. Aos sábados, era uma estupidez não haver batota à tarde. O que é que haveria de fazer até à hora do jantar? Pensou em ir para casa ver televisão. A televisão aborrecia-o e não se sentia disposto a ler ou a conversar. Pensou profundamente como um general antes de uma batalha e resolveu ir conhecer a parte antiga da cidade. Há quinze anos que vivia em Estremoz e nunca ali tinha ido.
– Vou ver esse famoso Castelo e, entretanto, passa o tempo.
Lá em cima, depois de se ter estafado por íngremes ruelas, a alta torre medieval não despertou nele qualquer entusiasmo e pôs-se a observar de perto um casal de turistas que, de cabeças sobre as costas, olhavam para as ameias. O homem dirigiu-lhe a palavra:
– Qual é a data de construção desta torre?
– É do tempo do rei D. Dinis. Do Rei de Ouros.
– Eu sei. – disse o outro muito sério – Do rei avarento. Aquele que tinha por mulher a rainha Santa Isabel. Não é dela aquela estátua? – e apontou a estátua da Santa.
– Sim, a Dama de Copas. – ciciou o jogador.
A mulher riu cristalinamente.
– Foi aqui que se deu o milagre das rosas? – perguntou ela. Antes que pudesse responder, o que parecia marido interpelou-a:
– Porque é que te ris?
– De nada. Lembrei-me do milagre das rosas por causa deste senhor ter chamado ao rei Rei de Ouros e à rainha Dama de Copas.
Sorriram os dois e, fazendo uma leve vénia com a cabeça, afastaram-se para tirar uma fotografia à estátua da santa.
Fosse como fosse, mais isto mais aquilo ou mais aquilo mais isto, tanto fazia, chegou finalmente a hora do jogo. Noite adiante foi perdendo a espingarda… Sempre que sobre a mesa caía o Rei de Ouros, exclamava:
– Aposto tanto no rei D. Dinis.
E o mesmo quando caía a Dama de Copas:
– Aposto tanto na rainha Santa Isabel.
Os outros riam e ele perdia.
Em dado momento de uma dessas apostas, um deles, de quem não gostava e com quem mantinha um convívio difícil, enterrou-lhe na alma irritada esta frase como uma espada:
– Este está à espera do milagre das rosas ao contrário.
– Ao contrário?
O outro não teve tempo de responder.
– O pão dos meus filhos não vem para aqui. – e atirou-lhe com o baralho de cartas contra a cara. O agressor levantou-se ofendido e seguiu-se uma cena de pancadaria em que foi tudo pelos ares. Foi o nosso homem dali para o hospital com o fígado espetado por uma faca. De Estremoz transportaram-no para Évora, onde foi operado de urgência. Tocou os confins da morte, mas regressou. A convalescença foi demorada. Um dia, a mulher perguntou-lhe:
– Queres que te traga livros?
– Não. Traz-me um baralho de cartas.
Ficou a mulher preocupada:
– Não me digas que vais pôr-te a jogar com algum enfermeiro.
– Não é nada disso. Depois te explico. Traz-me um baralho de cartas. Tenho visto coisas que não sabia que existiam.
O que ele tinha visto era o próprio pensamento, que não sabia que tinha.
E o pensamento era uma corrente de significados que, no seu espírito, se revestiam de formas e de figuras que eram as cartas de jogar. A Dama de Copas era, de facto, a Dama do Amor. Mas o rei D. Dinis não era o Rei de Ouros, era o Rei de Paus. E os paus ardiam em fogo e esse fogo caía em gotas nos corações das copas e as espadas tocavam e feriam os corações e o sangue transmudava-se em ouro animado de vida que se movia incessantemente em círculo. E sentia a alma apaixonada e liberta no palácio do seu corpo.
Na véspera daquela visita da mulher, falara nisso ao doente que ocupava a outra cama do seu quarto. Este tinha-lhe dito muito sério:
– O senhor tenha cuidado. O fígado tem atirado muitos para o manicómio. – e explicou que a loucura era um corte da realidade e o espírito ficava do lado de cá dela sem saber o que fazer e apareciam aquelas maluqueiras.
Não. As cartas que ele via não podiam ser maluqueiras. Se fossem maluqueiras, como é que ele podia saber que o rei D. Dinis não era o Rei de Ouros, mas sim o Rei de Paus? Foi para ter a certeza que assim era na realidade e não só no seu espírito que pediu à mulher que lhe trouxesse um baralho de cartas.
No dia seguinte, ela veio mais o baralho, mas encontraram-no muito doente, cheio de febre e de suor, agitando-se constantemente. Com muito custo, conseguiu dizer:
– Trazes o baralho?... Dá-o cá.
Tomou-o das mãos da mulher, mas não teve força para se levantar na cama e para abrir o baralho.
– Procura-me aí o Rei de Ouros e o Rei de Paus e mostra-mos.
A mulher obedeceu-lhe, fazendo um grande esforço para não chorar. Pôs-lhe diante dos olhos os dois reis. Como havia pouca luz no quarto, debruçou-se para ver melhor o rosto do marido. Os olhos tinham uma estranha fixidez. Estava morto.
Temos muita pena de não podermos dizer ao leitor a conclusão a que chegou.
António Telmo