INÉDITOS. 33
O grande adro de Arruda[1]
Acabei de ler, lentamente reflectindo, a sua carta e o seu admirável texto de aproximação católica ao Agostinho da Silva.
Digo aproximação a pensar numa frase que um dia me confidenciou o José Marinho: «Das igrejas só amo o adro.» Foi num adro, o da igreja de Arruda dos Vinhos, que se decidiu (no sentido da cápsula que se abre para libertar as sementes) o que vim a ser depois em participação no espírito ao longo da minha vida. Ali havia uma porta manuelina pela qual trepávamos brincando, por onde saíam e entravam o padre, um simpático velho alentejano, e as suas ovelhas, por onde entravam os caixões que se abriam lá dentro expondo o horror cadavérico de homens sem alma; e havia também o grande sino que eu fazia vibrar com uma pedra da fisga, simultaneamente contente e receoso do que me parecia um pecado contra a Igreja, mas um belo pecado pelo valor da pontaria e de produzir por mim próprio o divino som. Os jogos sucediam-se (pião, berlinde, botão, malha) ao longo do ano numa ordem litúrgica certa, que nenhum individualmente dos rapazes conhecia, mas que vinha não sabíamos de onde cumprindo-se sem erro ou desvio. Só saíamos do adro para caçar pássaros, colher espargos, procurar o trevo de quatro folhas ou encontrar ninhos. Dividíamo-nos em grupos que funcionavam como uma associação secreta. Ai do que dissesse a um de outro grupo em que árvore dos vastos campos se encontrava um dos muitos ninhos que eram propriedade do grupo. A fisga que leva a morte aos corações alados que são os pássaros, a caça aos ninhos, o espreitar dos cadáveres expostos, as pedradas no sino da igreja e também o jogo continham um elemento de mal que hoje me arrepia e espanta quando sinto saudades da infância subitamente despertadas por ouvir um pássaro cantar. O adro, os adros, a sensação de liberdade, os grandes adros como o de Arruda, onde se fazia o arraial de Agosto, onde conhecemos a nossa primeira namorada no meio de tanta gente alegre.
Não digo mais. Não é próprio de uma carta que responde a tão profundamente pensado escrito sobre o Agostinho da Silva e a uma carta de reflexão sobre o mistério do tempo vir com as minhas recordações só para dizer, com o José Marinho, que o importante não é entrar na igreja, mas sair dela, depois de nela ter estado. (…)
António Telmo
[1] Título da responsabilidade do editor. Dactiloscrito encontrado no espólio. Trata-se de um esboço ou projecto de uma carta destinada a um convivente de António Telmo não identificado no texto, que presumimos ter sido escrito em 2006 ou 2007, atento o contexto agostiniano e a referência pessoal a um terceiro, feita nos dois derradeiros períodos do original, que aqui se não transcrevem por razões de reserva da vida privada. Desconhecemos se chegou a ser enviada a carta de que este escrito, tão relevante no plano autobiográfico como no da ideação de António Telmo, parece ter sido uma versão preparatória.