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UNIVERSO TÉLMICO. 32

15-02-2016 10:06

De Paulo Samuel, membro fundador do Projecto António Telmo. Vida e Obra, publicamos hoje o texto integral da apresentação do livro António Quadros e António Telmo - Epistolário e Estudos Complementares, lido na sessão que teve lugar no passado dia 29 de Janeiro, no Porto. Co-editado pela Labirinto de Letras e pela Fundação António Quadros com o apoio institucional e científico do nosso Projecto, esta obra foi coordenada por Mafalda Ferro, Pedro Martins e Rui Lopo, que, com João Ferreira, anotaram também o epistolário. O prefácio é de António Carlos Carvalho e o posfácio de João Ferreira.

António Quadros e António Telmo
Paulo Samuel

 

O livro António Quadros e António Telmo - Epistolário e Estudos complementares apresenta-se como um livro fora do comum. Do ponto de vista editorial e gráfico não evidencia essa singularidade, que só o acto de folhear o volume permitirá apreender. A subsequente leitura, confirmará essa distinção.

Coordenado por Mafalda Ferro (da Fundação António Quadros), por Pedro Martins (do Projecto António Telmo - vida e obra) em colaboração com Rui Lopo, este livro surge a público pelo Labirinto de Letras Editores (isto é, pelo acolhimento que lhe deu o Dr. José António Barreiros), em parceria com a Fundação António Quadros. A fotografia da capa é de Carlos Aurélio e a concepção gráfica de Ricardo Campos. Na contracapa, inscrevem-se duas passagens epistolares que justificam a edição: a importância que cada um dos destinatários atribui às cartas que recebe, nas quais está ausente a banalidade do quotidiano, a confissão de transvios pessoais ou alheios, muito menos a maledicência centrada nos “outros”, de que a epistolografia, mesmo a dos intelectuais, não é isenta.

A singularidade que encontramos nesta obra desenha-se na sua estrutura e densidade. É incomum reunir num só livro – a excepção só se verifica num repositório antológico ou num dicionário de autores – tantas colaborações e referências de ordem biobibliográfica, contextualizando um núcleo central. Este é constituído pelas cartas que trocaram, ao longo de décadas, mas com maior ritmo de frequência na década de 80 do século passado, duas figuras centrais do pensamento português, referenciais no círculo que, com legitimidade, se pode dizer identitário da “Filosofia Portuguesa” – António Quadros e António Telmo.

Após as primeiras páginas que identificam a natureza do livro, oferece-se ao leitor um “prefácio”, assinado por António Carlos Carvalho, que se detém com incidência memorialista no trajecto filosófico e vivencial de ambos os epistológrafos. Um separador marca a passagem para o corpo central do livro, constituído pela transcrição das cartas, tarefa realizada por Pedro Martins e Afonso Cautela a partir dos originais autógrafos que integram os espólios dos dois pensadores. Trata-se de um conjunto de trinta e três missivas, umas mais extensas do que outras, todas importantes, embora algumas de maior relevância, escritas entre 1959 e 1991. Tivesse o livro sido publicado apenas com estes cadernos iniciais e teria a Editora Labirinto de Letras, com o apoio dos organizadores envolvidos, prestado um inestimável serviço e tributo à Cultura portuguesa, em particular junto daqueles que se interessam ou identificam com o legado filosófico da “Escola Portuense”. Porém, a edição idealizada pelos promotores revestiu-se de outra ambição e estrutura, correndo o risco, é certo, de uma configuração labiríntica, que podia, no limite, trair o essencial e responsabilizar o editor, que não poderia arguir com a atenuante da sua marca identificadora.

Objectivando com maior clareza, o que queremos dizer é que a inclusão neste livro de tão grande aparato de notas – a que acrescem estudos complementares, sínteses biográficas dos que firmaram as cartas e de outros chamados à colação, apreciações críticas cruzadas de Quadros e Telmo sobre a produção literária e filosófica de ambos, textos alheios (António Quadros Ferro e Rui Lopo), prefácio (de António Carlos Carvalho) e posfácio (do Professor João Ferreira) – obriga a um certo ritmo de leitura e separação de conteúdos. Todavia, ultrapassado o primeiro instante de estranhamento, se não intimidação, resultante da densidade dos textos, abre-se uma perspectiva ampla no reconhecimento de um manancial informativo, ensaístico e epistemológico que valoriza não apenas o quadro referencial objecto do livro, mas serve de guia para o conhecimento, aprofundado, do mapa heurístico e simbólico que identifica as duas vias que vem trilhando a “Filosofia Portuguesa” e os que lhe estão próximos, alguns na qualidade de propositores de ideias e até de teses.

Isto significa, numa leitura estritamente pessoal, que nos parece apropriado um exercício de releitura deste epistolário: numa primeira fase, seguindo, eventualmente, a sequência interna do volume, ou, em alternativa, optando por se saltar esta ou aquela parte, que não as cartas e respectivas notas; a segunda fase, ou momento, implica que após a leitura integral da obra, se retorne unicamente às cartas, relendo o seu conteúdo na sequência cronológica e alternada com que foram remetidas por cada um dos dois subscritores. É um plano semântico diferente, é uma transfiguração inesperada que ressalta dessas páginas e parágrafos, porque passam a ser lidos, ou melhor, entendidos, à luz de uma quase “gramática secreta” que deixa compreender esse “movimento do homem” que define, na condição portuguesa, o pensar autónomo, numa matriz heterodoxa. É o que permite esta inter e intratextualidade formada pelos contributos aqui presentes, que chega a induzir uma alteridade no corpus do próprio epistolário, facultada pelo registo historiográfico, documental, biográfico, ensaístico e especulativo que serve a avolumar 300 páginas que incluem, ainda, um caderno ilustrativo, com reprodução de fotografias de tertúlias filosóficas (animadas por discípulos de Leonardo Coimbra em Lisboa), de capas da revista Leonardo e facsímiles de duas cartas e de duas dedicatórias, em livro, de António Quadros e António Telmo, obtidos a partir dos originais.

Retome-se, neste ponto, a estrutura da obra. As XXXIII cartas (apresentadas sob numeração romana), dispostas num alinhamento cronológico e cruzado – o que permite o acompanhamento do diálogo epistolar travado entre ambos –, ocupam as páginas 27 a 184. Todas têm anotações, com maior ou menor extensão, de Mafalda Ferro, Pedro Martins, Rui Lopo e João Ferreira. No geral, as notas servem a explicitar determinadas passagens ou comentários que podem ser estranhos ao leitor, identificam situações, iniciativas, locais e vivências, esclarecem relações familiares ou conviviais, revelam causas determinantes ou resultados e efeitos decorrentes da acção dos dois interlocutores, propiciam sínteses biográficas, bastante completas e actualizadas, daqueles que são invocados ou acessoriamente referidos no decurso do carteio, enfim, registam pormenores e informes de inegável interesse e importância. Segue-se um “anexo” que corresponde a um texto inédito de António Telmo, encontrado no seu espólio, intitulado “O estilo de Leonardo Coimbra”, cuja hermenêutica aponta para fase madura do seu pensamento. Há uma tensão latente nessa dezena de parágrafos, própria de quem se abeira de indizível descoberta, através dos quais António Telmo procura revelar o pneuma, interpretar o “movimento do estilo” leonardino, já que na obra deste filósofo “o pensamento é a respiração do espírito”. Leonardo é o filósofo da razão poética, tal como também se quis António Telmo. Daí que o autor de Filosofia e Kabbalah questione, ou rebata, José Marinho, por este ter afirmado que se pode “conceber” pela imagem. Na verdade, é errôneo pretender que uma imagem vale mil palavras, já que para lá do subjectivismo que a percepção visual sempre implica, que a grandeza lexical vai ainda atomizar, não se pode conferir à imagem a garantia, o fundamento e imutabilidade que só o étimo legitima na palavra enquanto signo.


Uma parte ou rubrica intitulada “depoimentos” reedita texto de António Quadros titulado “António Telmo, filósofo da razão estética”. Por sua vez, a presença “crítica” de Telmo traduz-se no texto “António Quadros, a Lua e a Primavera”, versão impressa do testemunho oral que o autor prestara aquando da homenagem a Quadros, realizada enquanto Sabatina no dia 29 de Outubro de 1993, na Sociedade de Língua Portuguesa, em Lisboa. Os “estudos complementares”, que a capa e o frontispício do livro publicitam, incluem três escritos de diferente autoria e propósito: a) no primeiro, de António Quadros Ferro (neto de António Quadros), sob o título “Em memória de uma amizade”, o leitor acompanha as fases de relacionamento de António Quadros com António Telmo, os momentos da criação de revistas literárias, os projectos editoriais e a recepção dos seus livros junto dos amigos; b) o segundo constitui um levantamento, entrosado de comentário ensaístico, feito por Rui Lopo, acerca da presença de António Quadros no “debate cultural português”, no qual se descrevem os contornos de algumas das polémicas em que se envolveu o filho de António Ferro com outros intelectuais do seu tempo, de Artur Portela (Filho) a José Augusto Seabra; c) o terceiro estudo complementar corresponde a um breve mas penetrante depoimento de Pedro Martins, sob a epígrafe “Os privilégios são difíceis”, no qual o autor partilha a corrente de afecto e amizade que o liga, principalmente, a António Telmo, com o qual conviveu em tertúlia ou num relacionamento pessoal mais próximo, em Sesimbra.

As notas biográficas sobre António Quadros e António Telmo correm por conta de Mafalda Ferro e Pedro Martins aduzindo a presidente da Fundação António Quadros, numa reiterada evocação e tributo a seu pai, numerosos e diversos detalhes de ordem biográfica, sobre a vida social e familiar de António Quadros. Pedro Martins regista o essencial de António Telmo, num alinhamento biobibliográfico.

Encerra o volume, a preceder o índice geral, o “posfácio” de João Ferreira, coetâneo e comum amigo de Quadros e Telmo, professor titular da Universidade de Brasília. Para o estudioso da problemática da «Filosofia Portuguesa», este epistolário é a “expressão do diálogo de dois pensadores-filósofos com forte presença no pensamento português e na filosofia da história de Portugal contemporâneo”. João Ferreira remonta às origens da singularidade do pensamento português, realçando os contributos originados na transição de Oitocentos, em particular de Sampaio (Bruno), Cunha Seixas, Junqueiro ou Pascoaes, e chama a atenção para a importância que teve o movimento da «Renascença Portuguesa», ainda hoje pouco estudado. 

Depois, é o enraizamento no magistério leonardino, a experiência maiêutica da Quinta Amarela e a deslocação dos discípulos e do legado para as tertúlias de Lisboa, nas quais brilharam as inteligências de José Marinho e de Álvaro Ribeiro. João Ferreira aproveita a circunstância para tecer ainda algumas apreciações acerca do pensamento e da “vida conversada” de Agostinho da Silva, esse “estranhíssimo colosso”, na retina de António Cândido Franco, que teve no percurso vivencial e filosófico de António Telmo um papel fundamental.

Com este livro, António Quadros e António Telmo – epistolário e estudos complementares, cuja intimidade revela uma recíproca amizade, um diálogo sustentado em laços simbólicos e filosóficos, irmanando-os no legado da «Escola Portuense», também se celebra, afinal, o espírito da Cultura portuguesa, na sua livre expressão autóctone.

DOCUMENTA. 05

09-02-2016 17:34

[António Cândido Franco, Afonso Botelho, António Telmo, Artur Anselmo, Francisco Soares e José Manuel Capêlo]

 

O Bateleur foi o sexto livro publicado por António Telmo. Editada em 1992 pela Átrio, chancela de José Manuel Capêlo, a obra pode ser considerado uma novela segundo o critério adoptado por Álvaro Ribeiro em A Razão Animada, onde o género nos surge definido como a narrativa dos modos por que os homens e os povos vão adquirindo a consciência do mal. Com efeito, a sua trama fala-nos da inveja e enreda as figuras maiores de Fernando Pessoa e Almada Negreiros. António Telmo reuniria mais tarde esta narrativa no livro Contos, de 1999, que de novo saiu a lume pela mão de Capêlo, desta feita na editora Aríon. 

O lançamento de O Bateleur teve lugar na Galeria Nasoni, em Lisboa, no dia 10 de Dezembro de 1992. A apresentação da obra esteve a cargo de Afonso Botelho, amigo e condiscípulo de Telmo no magistério de Álvaro Ribeiro e José Marinho. Na mesma sessão, foram ainda lançados dois outros livros da Átrio: Estruturas Simbólicas do Imaginário na Literatura Portuguesa, de António Quadros, apresentado por Artur Anselmo, e Eleonor na Serra de Pascoaes, de António Cândido Franco, apresentado por Francisco Soares. Na assistência encontravam-se, entre outros, Natália Correia, Fernando Dacosta e Abel de Lacerda Botelho. E António Carlos Carvalho, que escreveria para o Diário de Notícias o apontamento que em seguida publicamos.      

[António Telmo autografando O Bateleur. Ao seu lado, António Carlos Carvalho]

 

Anotações

- Autores há que vivem numa certa «marginalidade», longe das bocas do mundo e dos tops de vendas, mas cujas obras, aparentemente obscuras, escondem uma luminosidade que não devemos ignorar e que acabará certamente, um dia, por emergir das trevas em que o mercado e a ignorância a querem sufocar. Felizmente ainda há editoras que apostam nesses «marginais» – podíamos citar os casos da Assírio & Alvim, da Guimarães, da Vega e da Átrio. Falamos nesta última até porque acaba de lançar simultaneamente três títulos de três dos tais escritores à margem das modas (mas não sinais dos tempos): «Le Bateleur», de António Telmo, «Eleonor na Serra de Pascoaes», de António Cândido Franco, e «Estruturas Simbólicas do Imaginário na Literatura Portuguesa», de António Quadros. Uma aposta desta envergadura não pode passar despercebida.

- «Le Bateleur» é a primeira carta do Tarot, como se pode ver na capa do livro de António Telmo. E constitui a chave que foi dada ao autor (pelo seu «alter ego» Tomé Natanael) para decifrar o famoso retrato de Pessoa feito por Almada Negreiros. Todo o texto (apenas meia centena de páginas, mas deliciosas de ler e profundas nos conhecimentos que encerram e nos transmitem) conduz o leitor a domínios que são caros a António Telmo desde há muitos anos e que fazem dele o mais esotérico (e por isso mais interessante), discípulo de Álvaro Ribeiro, sendo assim o mais original pensador das últimas gerações da Filosofia Portuguesa (que existe e recomenda-se), como salientou Afonso Botelho na apresentação do livro. Um texto de um filósofo do espírito para despertar os que conseguiram sair do adormecimento encantatório em que foram mergulhados pelo chamado «mundo moderno».

 

[António Telmo autografando O Bateleur. Da esquerda para a direita: Natália Correia, Jorge Preto e Abel de Lacerda Botelho]

 

- António Cândido Franco chama a atenção para um outro Pascoaes, diferente do «oficializado» e que, «com um saudosismo inofensivo atrás de si, tratado sempre mais como excepção do que como criador genial, é tão ridículo como o Camões que nos deram a estudar no liceu ou como o Pessoa que nos têm dado a conhecer hoje nos jornais, nas comemorações oficiais e até na publicidade comercial. Em meu entender, é preferível um autor esquecido, mas intacto, que um autor consagrado, mas domesticado e deturpado». Subscrevemos.

Finalmente, António Quadros, abordando outra vez as obras de Antero como de Raul Brandão, Pascoaes e Pessoa como Natália Correia ou Ruben A., sublinha que «neste período de desconfiança, de juízos apressados e de falta de maturação quanto ao essencial, convém lembrar que o imaginário de cada povo é o seu Universal, exactamente na medida em que possa revelar a sua originalidade virtual e actual, e transformar as formas estruturais extintas ou arrefecidas em arquétipos dinâmicos, em sujeitos que serão criadores de civilização, não quando se fechem em si próprios e sobre o seu passado, mas quando se abram para os mais altos horizontes futuros, pensados que sejam por uma filosofia criacionista do espírito».

- Não, não são livros de Natal, sugestões de belos presentes que enchem os olhos nesta época de presentes obrigatórios: São textos que nos aquecem a alma, quando nos desgostamos da tal apagada e vil tristeza em que ainda vivemos – até quando?

 

António Carvalho

[No primeiro plano: Natália Correia. Na fila de trás, Fernando Dacosta e Maria Violante Vieira]

CORRESPONDÊNCIA. 30

06-02-2016 20:41

CARTAS DE ANTÓNIO TELMO PARA ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO. 11

 

 

ESTREMOZ

31 de Julho de 1996

 

Meu estimado distinto Amigo

 

Infelizmente, o que tenho a dizer-lhe sobre as relações pessoais do Almada com os da filosofia portuguesa é muito pouco. Eu cheguei depois das reuniões do Palladium em que participava também o pintor que, então, publicou não me lembro em que jornal a famosa entrevista sobre a cegueira iluminada de Homero.

Claro que havia um fundo comum e uma estrela análoga para todos eles, com a fatal excepção de alguns que por ali passavam só para “abichar” (é assim que se escreve?) os condimentos necessários ao cozinhado do seu bolo literário-social. Não foi evidentemente o caso do grande pintor, tão interessado como Álvaro Ribeiro em trazer para o ensino do Estado a arte de ser português de Teixeira de Pascoaes. Para confirmá-lo basta ler o que Almada escreveu sobre Portugal.

Se eu me posso considerar um dos da filosofia portuguesa, talvez sejam de referir sobre o que me pede as minhas conversas a sós com o visionário da Nau Catrineta num dos Cafés da baixa lisboeta. Claro que, sendo então muito novo, o pintor da Nau dos Cátaros no cais de Alcântara envolvia-se para mim do prestígio de que ele gozava entre os seus pares do Café Palladium que me ensinaram a venerar Santa Catarina, patrona da filosofia, a admirar Camões que amava Catarina, a fazer da minha vida interior um Alto de Santa Catarina.

Não sei se isto lhe serve. Espero que estas águas passadas o ajudem a mover o seu moinho. As águas que passam são agora para mim as do seu livro(1) e que por três vezes fiz correr perante os meus olhos.

Não posso, no entanto, esconder-lhe que à corrente das suas ideias sobre o que poderíamos chamar de “poesia fonética” opus algumas resistências, de resto já enunciadas nas páginas que me dedica e que li com gratidão, não só pelos elogios como sobretudo por considerar discutível o que escrevi, sob certo aspecto, na minha Gramática. Resistências ou pedras que tem por fim não parar o curso das suas águas (o que é impossível e indesejável) mas desviá-las noutro sentido.

Por outras palavras: não será possível prolongar a sua visão de modo a fazer perder-se, na distancia que criasse, o valor que o António Cândido atribui aos manipuladores de "legos" (é assim que se escreve?) que, pela substituição da vogal, constitui a degradação do “logos”? Busco sempre a significação. Como muito bem diz, as palavras com referencial não significam. Designam. Anulada a sua relação com o que é referível, fica só o som e nesse som puro vê você o valor. Para mim é aí que a significação pode ou não pode surgir. Se surge é para significar o invisível puro ou o invisível que há nas coisas visíveis. Um poema como o dos índios Comanches pode, dadas certas condições, libertar energias do vasto mundo intermediário, provocando o êxtase em que o corpo participa. Mas como esse mundo tem também os seus escanos, os versos automáticos dos surrealistas captam energias bem inferiores que são as que estão implícitas em toda a fenomenologia espírita. A mais alta poesia não é, porém, a que exprime ideias (Antero de Quental) na sua forma abstracta, vestidas ou não de roupagem imagética, mas a que traduz ideias viventes (Teixeira de Pascoaes) em que o corpo delas e o que as anima são um só. Há, depois, ainda num plano mais baixo do que a poesia automática, a poesia feita a frio, literariamente calculada (Jorge de Sena) para obter efeitos no espírito daqueles que só vêem através dos livros que a cultura garante.

A poesia de Pascoaes é também poesia fonética, em que o sentido das palavras e das frases ressoam nos fonemas e, através deles, se transfigura e transubstancia. Admirável poeta é também Eugénio de Castro, que eu conheço apaixonadamente desde a minha puberdade. É um nobre e alto discípulo de Péladan.

Vou escrevendo ao correr do teclado e agora reparo que só por terem sido o resultado do seu livro as considerações que vou deixando se desculpam de um certo tom didáctico que espero não lhe seja desagradável. Falando como o Afonso Botelho, o encanto que o livro causou em mim degenerou no encantamento com que, inconscientemente, pretendo prendê-lo. Terão até sido palavras escusadas porque o António Cândido sabe bem aquilo por que divergimos e aquilo por que convergimos. Fico-lhe, como disse, muito grato pelas objecções que pôs à minha Arte Poética. Aqui em Portugal ou se elogia um escritor ou se faz o silêncio à sua volta. Livros são cartas que escrevemos. Merecem resposta franca discutindo as teses, procurando para elas novos teoremas. É o que faz nas quatro páginas que me dedica. Muito obrigado por dar existência ao que tenho pensado.

Li encantado o seu livro. Admirei a coragem das suas nobres palavras sobre os críticos literários. Fiquei radiante de o ver valorizar Eugénio de Castro e António Feliciano de Castilho, que nunca li, apesar de o Álvaro Ribeiro mo aconselhar frequentemente. Aplaudo sinceramente a sua ajuda a jovens como o Botto-Semedo, o Avelino de Sousa, o Alexandre Vargas ou o João Raposo Nunes. Ângelo de Lima tem segredos na sua loucura que talvez não estejamos em condições de conhecer. E o Raul Leal?

Um fio subtilmente luminoso separa o satanismo do paracletismo. Somos nós capazes de o discernir? Estamos, para tal, verdadeiramente interessados em vê-lo? Importa ou não distinguir um do outro?

Um grande abraço do seu muito amigo

                                                           António Telmo

Gostaria de ler o Tratado de Metrificação de A. F. de Castilho. Onde poderei obtê-lo?

 

____________

(1) Nota do Editor - António Telmo refere-se a Poesia oculta: estudos sobre a moderna lírica portuguesa. Lisboa: Vega, 1996.

CORRESPONDÊNCIA. 29

06-02-2016 19:45

CARTAS DE ANTÓNIO TELMO PARA ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO. 10

 

 

Estremoz, 8 de Junho de 1991

 

Amigo

 

No dia 24 de Junho lá estarei, a Deus praza, penso que na esplanada perto do edifício, se ainda é o mesmo, onde trabalha ou, às 17 horas, dentro do edifício. Tenho uma boa alegria a pensar no jantar juntos.

Aquilo não tem explicação, a “Dama de Oiros”, que v. prefere escrever sem iod. Lá sabe porquê. Mas é esplêndido conversar sobre o que não tem explicação como se a tivesse.

Quanto ao 5 de Outubro, falaremos depois, entre nós. O que me atrai é o conhecer esses dois grandes espíritos, de que tenho boa notícia por intermediários. Li de um fôlego o Bruno anarquista[1]. Acho óptimo, mesmo que ele não o tivesse sido. Muito mais de acordo com o nosso Bruno do que vê-lo a resfolegar impotência sobre uma mulher. No entanto, o romance é belo, se trocarmos o protagonista ou lhe dermos a verdadeira identidade. V. deve ter inspiração: o anarquismo, se somente pensamos bem quando pensamos o contrário dos outros, como dizia o Eudoro, é a doutrina dos “santos malditos” e aspirantes, que temo bem que sejamos todos. Um grande abraço do seu

 

António Telmo

 



[1] Nota do Editor – António Telmo refere-se ao opúsculo A Ideia de Deus e o Pensamento Libertário, de António Cândido Franco, Separata do n.º 55 (Inverno de 1991) da Revista A IDEIA. 

 

FOTOS COM HISTÓRIA(S). 07

06-02-2016 18:33

O fotógrafo é Agostinho da Silva. O lugar é Sesimbra. Sesimbra, o lugar onde se não morre, segundo nos conta António Telmo o que Agostinho terá sugerido. Sesimbra, uma das capitais agostinianas, estatuto que a recente criação do Gabinete de Estudos Agostinho da Silva, numa parceria do Projecto António Telmo. Vida e Obra e do Centro de Estudos Culturais e de Acção Social Raio de Luz, veio sublinhar. Não conseguimos identificar a senhora da extrema esquerda. Ao seu lado está Maria Fernanda Farinha, que gentilmente nos cedeu a fotografia, Rafael Monteiro, um dos grandes amigos sesimbrenses de Agostinho, e Maria Violante Vieira. A imagem é do final dos anos 60, início dos anos 70: ao fundo, em Argéis, sobre a Praia da Califórnia, vê-se em construção o enorme prédio onde Maria Violante iria adquirir dois apartamentos. Num deles, terá Agostinho, até ao fim da vida, a sua segunda habitação. 

DOS LIVROS. 45

26-11-2015 15:55

Dois filósofos portuenses e a simbólica do Porto

 

O portuense Sampaio Bruno baptizou um dos seus obscuros luminosos livros com o nome de Porto Culto. Se lhe lermos em voz alta as letras, esse nome soará porto oculto. E a cidade, recentemente celebrada por Dalila Pereira da Costa num livro admirável, aparecerá a cifrar e a significar ou a esconder um Porto invisível, o Porto do espírito, episodicamente assumido como culto, cultivé. A cabala está tanto mais justificada quanto, nas páginas do livro de Bruno, obscuro filósofo e filósofo obscuro, explicitamente se compara a filosofia a uma viagem ou se refere uma peregrina viagem metafísica que tem como barco a metáfora.

«A beleza suprema da metáfora!», escreve maravilhado o pesado pensador. A dolorosa experiência do exílio político fora causa de outro livro: as Notas do Exílio. Esta palavra exílio pode interpretar-se como «fora da ilha, longe da ilha». Então, o Porto donde parte forçado para França para mais tarde a ele voltar, será a ilha. Como, pois, esta interferência, o estar um no outro o mundo da experiência terrena e da experiência sobrenatural? É uma esfera a significar outra? Ou, mais do que significação, é a dupla face do ser numa só vivência?

«Viajar para quê?», pergunta Sampaio Bruno e logo responde: «Para voltar.»

Absurda viagem, que só não é inútil porque a perpassa o mistério da reintegração. Mas, esquecidos, só o vazio de ser e de pensar invade a nossa percepção diminuída. O tédio apodera-se do viajante.

O homem é, entre os animais se é animal, entre os anjos se é, como pensa Bruno, uma parcela de luz perdida, a única inteligência que experimenta o tédio. Aborrecemo-nos. Como havemos de fazer para vencer o aborrecimento? Ou nos automatizamos na rotina do trabalho ou nos damos ao prazer excessivo, ao prazer, por exemplo, de falar incansavelmente o dia todo, ou, se os deuses o concedem e a alma não falta, encontramos na vida interior, na iniciativa do pensamento, o instante repetido em que luz, mais ou menos nítida, a nossa Ideia de Deus. Essa iniciativa é, no espanto de ser que a promove, o princípio da filosofia. Mas a filosofia é, em Bruno, uma arte poética, pois tem como organon a metáfora.

O que é a metáfora?

Só na retórica primária para colegiais a metáfora é uma figura de estilo. É útil que o seja para lhe vermos o rosto. Ela é, porém, a translação do pensamento, não uma mera rotação de atributos à volta de uma mesma substância. À inútil poética que sempre diz o mesmo e que na aparência prestigiosa do movimento das imagens conta sempre aquela história de que todos estamos cansados substitui Bruno a poética da translação do sentido, pela qual este busca o outro transcendente que instaurará uma nova história, mudando a face do mundo.

Quem leva esta poética às últimas consequências é José Marinho.

Espíritos presos ao mundo sensível, ao mundo das imagens, rompemos dificilmente por essa selva da abstracção que é a Teoria do Ser e da Verdade. A primeira impressão é, pois, de que se trata de um livro de pensamento eminentemente abstracto, em que nos falta o suporte da imagem para a ilusão do pensar. Dizemos ilusão do pensar no sentido de que o pensamento não se realiza em nós mas a sua ilusão.

Mais atentos, verificamos que tudo nele é imagem, imagem é certo, «que se cinde constantemente de si», mas que, ao cindir-se, arde e deixa um rasto de luz acendendo-se e apagando-se e é, ainda, no lento e pesado esforço do nosso pensar, o pretexto para voltar a cair no mundo sensível. Escrevemos, sem dúvida, para quem leu e, sobretudo, para quem lê a Teoria do Ser e da Verdade.

A dificuldade não está em ser um pensamento abstracto. Está no articulado e na articulação das ideias, visíveis na transparência instantânea das imagens.

Há, no entanto, nesse livro, imagens que se demoram. A mais evidente é, como Bruno, a da viagem.

A teoria, isto é, a filosofia é comparada a uma viagem. Frequentemente ocorre a comparação. É dada em termos tais que assistimos a esse cindir-se de si própria da imagem, movimento no qual José Marinho vê a condição de haver imaginação ao serviço da filosofia.

A figuração sensível da viagem é a de um movimento realizado por um viajante que se desloca de um lugar para outro. Geometricamente, é a de um ponto que se desloca numa linha ou que vai formando a linha na medida em que se desloca. Então, dir-se-ia que a filosofia, enquanto viagem, procede do conhecido para o desconhecido. Muitos imaginam assim a filosofia: temos um mundo conhecido e bem iluminado, o mundo sensível ou o mundo das noções imediatas e depois uma zona de penumbra onde começa o desconhecido.

Inverta-se, porém, o movimento e parta-se do desconhecido para o conhecido. Eis, nos termos de José Marinho, a «viagem insituada», sem ponto de partida e de chegada, sem lugar ou lampo, «viagem na qual nasce o próprio viajante».

Mas o que é aqui o desconhecido?

É logo de início o próprio mundo sensível e daí o enigma primogénio da sensação. Eis que habita em nós. Não há pontos firmes e toda a dificuldade está em movermo-nos onde não há lugar.

Desta viagem disse Bruno que o barco é a metáfora. Escreveu maravilhado: «A Beleza suprema da metáfora!» Nele, porém, a imaginação ainda não se cindiu de si. A noção de insubstancial substante, central no pensamento de José Marinho, se está presente em Bruno, ainda se não assumiu nele em toda a verdade. Por isso na «Teoria» se diz que é necessário transcender (não eliminar) a imagem do veículo ou do barco. Marinho, ao dizer isto, pensava certamente em Sampaio Bruno.

O insubstancial substante é o espírito. Eis o verdadeiro promotor da metáfora humana, cósmica e divina que ao cindir une e ao unir cinde o Todo e o Nada, da visão unívoca em que tudo é para a extrema cisão em que nada é.

Eu não posso representar-me a viagem de um ponto para outro ponto, de mim para o desconhecido de mim, porque não sou o sujeito do conhecimento. A condição da «viagem insólita» é então a de me assumir como um enigma, separando-me da ilusão do mundo exterior, no início ilusão e realidade no termo, pela descoberta da minha interioridade.

«Tu que estás aí e me lês», parece dizer José Marinho, «já alguma vez te assumiste como homem interior? Saberás então que vives envolvido na própria imaginação de ti, mas é possível que ressurjas na ideia, se se rompe a auto-suficiência da tua vida mental, de que ignoras, com o ignorar próximo de quem toca o ignorado, origem e princípio da tua interioridade. É o momento fundamental em que interrogas não já pela origem e princípio das imagens que em ti e lá fora nascem, mas do teu próprio ser.»

Quem sou eu? Quem é eu?

A este momento, a esse momento, àquele momento chama José Marinho o da descoberta da subjectividade, do encoberto.

É então o sujeito do conhecimento o espírito?

Poderá dizer-se dele que é sujeito?

Aqui há o risco de ver o pensamento do nosso filósofo, ao afastar-se de Sampaio Bruno, dissolver-se numa concepção de tipo oriental em que tudo é pelo uno e fora do uno só é em modo ilusório. Esse risco foi precisamente o que ele conseguiu superar pela noção da cisão no seio da visão unívoca. E irá encher de realidade e de verdade os extremos aparentemente mais remotos onde parece não chegar a presença do Espírito. A sensação, extremo ocidental da alma, surge como um acto real de conhecimento, agora que sabemos interrogar por quem sente.

José Marinho herda do seu Mestre Leonardo Coimbra a valorização cristã da sensação. Ama o mundo exterior e as extensões cheias de luz. Dizia-me ele uma tarde nos jardins da Gulbenkian, olhando maravilhado umas flores amarelas: «Em novo não gostava do amarelo.» O sol interior rasgava, dentro de si, o espaço exterior das formas luminosas. Sim, «na instantaneidade da sensação é dado todo o imenso mundo visível».

Esta inversão destrói a perplexidade de nos sentirmos exíguos perante o enorme mundo. O imenso mundo é, afinal, apenas um relâmpago. Um relâmpago que perdura. Basta abrir os olhos.

Todavia, vemos mas o mistério subsiste, na imobilização milagrosa da luz. Melhor, só há mistério enquanto se vê.

Quem vê? Voltamo-nos para a frente como se fôssemos um espelho do que ali se patenteia, mas é por detrás de nós que está o verdadeiro objecto. Por detrás de nós? Precisamente na nuca, onde os dois olhos de Jano – os ouvidos? – contemplam o infinito da «viagem intérmina».

 

António Telmo

 

(Publicado em Filosofia e Kabbalah, 1989)

EDITORIAL. 05

20-11-2015 08:49

O tempo é o maior dos mestres

 

O Projecto António Telmo. Vida e Obra comemora hoje o seu segundo aniversário. Seria pouco afirmar que o fazemos com a satisfação do dever cumprido. Não nos move a obrigação, nem mesmo o interesse nos move. Agimos com entusiasmo.

Dentro de dias, serão publicados dois novos livros a que prestamos apoio institucional e científico: Filosofia e Kabbalah seguido de Álvaro Ribeiro e a Gnose Judaica e outros estudos, IV Volume das Obras Completas de António Telmo, e António Quadros e António Telmo: epistolário e estudos complementares. Em apenas dois anos, serão já oito os títulos que se inscrevem no universo télmico que se publicam com o concurso inequívoco do nosso Projecto.

Graças às Obras Completas em curso de publicação, ficará reposta no mercado livreiro toda a bibliografia em livro, havia muito esgotada, que António Telmo publicara até ao final da década de oitenta. Complementarmente, são já centenas as páginas inéditas, exumadas ao seu espólio, ou dispersas, que neste âmbito se reuniram em volume. Graças à acção da Zéfiro, chancela que as edita, as obras de António Telmo voltaram a ter uma presença forte e marcante no mercado livreiro, abrindo-se à descoberta das gerações novas.

A publicação de António Quadros e António Telmo: epistolário e estudos complementares, livro que será co-editado pela Labirinto de Letras e pela Fundação António Quadros, traduz bem uma exemplar e frutífera conjugação de esforços entre instituições cuja credibilidade se mede também pela forma como sabem preservar, potenciar e ampliar os espólios dos respectivos patronos, tornando-os vivos. Depois do trabalho realizado pelo nosso Projecto em 2014 em torno dos escritos agostinianos que se guardam no espólio télmico, a concretização deste novo projecto, revelando o nobre e fecundo diálogo mantido durante décadas pelos dois mais lídimos discípulos de Álvaro Ribeiro, aponta uma direcção que o futuro, por certo, irá confirmar: a necessidade de, mediante parcerias, alargar e actualizar a compreensão vivente da filosofia portuguesa, e aqui a Colecção Thomé Nathanael – Estudos Sobre António Telmo, este ano criada em parceria com a Zéfiro, poderá ser um espaço privilegiado para a realização de tal trabalho.

Nessa perspectiva se inscrevem aliás os colóquios que em Sesimbra, no âmbito das Tardes Télmicas 2015, dedicámos aos centenários da Arte de Ser Português, de Teixeira de Pascoaes, da revista Orpheu e da morte de Sampaio Bruno. Os dois primeiros tiveram já lugar e quem a eles pôde assistir testemunhou momentos de excelência. Tanto basta para que as Tardes Télmicas, pelo terceiro ano consecutivo, voltem a marcar presença, no próximo ano, na já histórica Sala Polivalente da Biblioteca Municipal de Sesimbra. Assim honramos os nossos compromissos com uma comunidade.

Mas 2016 será também o ano em que o Projecto António Telmo. Vida e Obra inicia em Lisboa uma actividade pública regular, promovendo, entre Janeiro e Julho, em parceria com a Livraria Barata e o Centro de Estudos Bocageanos a primeira edição do ciclo As Artes da Misteriosofia, cujas sessões, mensais, terão lugar naquela livraria às quintas-feiras. O programa será aqui anunciado em breve. 

Agostinho da Silva, um dos quatro mestres de António Telmo, cujo estudo, divulgação e edição intensamente marca, desde o seu início, a actividade do Projecto, continuará a ser uma das nossas prioridades. Se o ciclo de palestras Agostinho Revisitado: Novas Aproximações, ainda em cartaz no Auditório do Centro de Estudos Culturais e de Acção Social Raio de Luz, se revelou uma aposta ganha pela representatividade dos oradores, pela novidade das suas propostas e pela adesão entusiástica do público, temos agora a franca expectativa de que a sua renovação, com algumas cambiantes, na Biblioteca Municipal José Saramago, no Feijó, concelho de Almada, não ficará atrás do sucesso já alcançado. Com início a 5 de Dezembro próximo, e uma nova sessão a 16 de Janeiro, este ciclo terminará a 13 de Fevereiro, dia do aniversário de Agostinho. Em festa. Mas não se quedam por aqui as iniciativas agostinianas de matriz télmica em 2016. A edição integral em livro, com a chancela da Zéfiro, da última entrevista de imprensa do filósofo, ainda amplamente inédita, ou a realização a 15 de Outubro, no Auditório do Centro Raio de Luz, em Sesimbra, das primeiras CONSIDERAÇÕES – Encontros Anuais com Agostinho da Silva, são algumas das acções que desde já podemos confirmar. Outras se seguirão.

O Projecto António Telmo. Vida e Obra é hoje uma realidade insofismável. Dois anos bastaram para o creditar como parceiro do Clepul no Triénio Pascoalino, membro do Instituto Fernando Pessoa, colaborador de diversos municípios, associações, editoras e revistas em todo o país. E de viva voz faz soar a memória do seu patrono em importantes encontros científicos, de que o Congresso Internacional Judeus e Cristãos Novos no Mundo Lusófono, já aqui anunciado, constituirá exemplo próximo.

Tudo isto só foi possível graças à confiança por nós recebida da família de António Telmo e, em particular, de Maria Antónia Vitorino, a quem nesta hora saudamos. Não somos poucos, não estamos sozinhos, não nos isolamos no suposto privilégio exclusivo de uma geração. Aqui nos apresentamos a prestar contas do nosso trabalho em torno do legado de um filósofo. Seria bom que outros o fizessem. O tempo é o maior dos mestres.

UNIVERSO TÉLMICO. 31

10-11-2015 09:18

Publicamos hoje, na íntegra, o texto da palestra sobre Agostinho da Silva e as suas Sete Cartas a um Jovem Filósofo que Risoleta C. Pinto Pedro proferiu no passado dia 31 de Outubro, no Auditório do Centro Raio de Luz, em Sampaio, Sesimbra, no âmbito do ciclo Agostinho Revisitado: Novas Aproximações.

(In)disfarçada confissão em Sete Cartas a um Jovem Filósofo, de Agostinho da Silva

Risoleta C. Pinto Pedro

 

Uma das características dos que têm vindo a formar a egrégora da Filosofia Portuguesa é a ausência de radicalismo ou de fanatismo em relação a qualquer uma das componentes daquela: aquilo que poderíamos designar, embora sem rigor, por conteúdo e forma, ideia e expressão, mas talvez melhor: filosofia e poética. Daí a nossa originalidade. Uma poética filosófica ou uma filosofia poética, embora as duas expressões tenham diferentes correspondências, porque a ordem não é arbitrária, mas não sou a pessoa indicada para falar sobre isso.

Trago o assunto a lume, porque abordarei o Agostinho das Sete Cartas a um Jovem Filósofo como sempre tenho feito em relação a restantes partes da sua obra: do ponto de vista literário, mas não, exclusivamente, do ponto de vista da forma, porque nele, como em outros, a poética é essência e a ideia também dá forma. Assim, ao tratar da sua poética, impossível se torna deixar de lado a filosofia, ainda mais num livro que tem por título o destinatário: um filósofo enquanto jovem.

Tal como Agostinho, ou, sem querer ser papista, talvez mais ainda do que ele (porque nele, acredito, parece-me ser muitas vezes uma pose, um teatro, sinto que ele tem mais certezas do que diz…), não tenho a certeza de nada, ou de muito poucas coisas. Não estou segura de tudo o que aqui afirmo, é um afirmar que enferma de pouca firmeza, mas assumo firmemente a responsabilidade pelo que firmarei.

Andarei entre literatura, pensamento e símbolo, que afinal são a mesma coisa.

Começamos bem com o sete, com cartas, e com um jovem que é ou pretende ser filósofo. Três trunfos com pano para mangas sem batota, mas com muito jogo, neste baralho de cartas só aparentemente não de jogar.

As cartas são escritas por José Kertchy Navarro, um heterónimo de Agostinho? Vejamos. Um outro? Que não apenas no nome? Veremos.

O texto foi publicado em 1943, tal como o Diário de Alcestes, ambos em edição de autor.

A versão sobre a qual trabalhei é de 1993 e intitula-se:

Sete Cartas a um Jovem Filósofo, seguidas de outros documentos para o estudo de José Kertchy Navarro

Está organizada da seguinte forma:

Às sete cartas seguem-se  “Os Poemas em Prosa”, um “Esquema Biográfico” e uma “Nota Final”.

Debruçar-me-ei, por agora, apenas sobre as “Sete cartas…”, se houver espaço e tempo, do que duvido, o “Esquema Biográfico” e a “Nota Final”, e deixarei a parte incrustada: “Os Poemas em Prosa”, para objecto da minha próxima intervenção sobre Agostinho, em Fevereiro. De outro modo dizendo: ocupar-me-ei primeiro da coroa e depois das joias.

O destinatário das cartas chama-se Luís, ficamos a saber na primeira carta, que começa com um tema muito caro a Agostinho: a imponderabilidade das decisões:  “[…] tanto faz decidir-se depois de ter pensado bem um ponto como decidir-se atirando uma moeda ao ar;[…]”

Das cartas ao jogo de dados. Com moeda.

Os dados uma vez lançados, confirmemos, mais adiante, de que forma este jogador joga connosco:

“parece-me perfeitamente absurdo preferir uma à outra. No entanto, como lhe disse, penso sempre.”

Pensa sempre, este pensador jogador. É um filósofo que é, ao mesmo tempo, a primeira carta do tarot, o mago. O jongleur, acrobata ou saltimbanco. Tudo se lhe aplica. O filósofo que, brincando connosco, jovens aspirantes a filósofos, ri. Não de nós, mas das suas próprias acrobacias de pensamento. Sempre eticamente. Mesmo quando nos tira o tapete:

“penso sempre, porque o mundo pensa, não jogo porque na essência do universo não há jogos. Mas então porque joga você?”

Adiantando imediatamente a resposta, como retirando as palavras da boca do seu destinatário:

“o não haver jogo essencial no universo não quer dizer que não haja jogos aparentes;”.

Como se não bastasse, para atear a fogueira e aumentar a confusão nas hostes, lança, mais à frente, outra acha: “parece-me grave que você compre vigésimos e se recuse à moeda; “

Com quem está ele a falar? Com o seu jovem filósofo Luís ou consigo mesmo, que, como dirá noutro passo, nunca usou a moeda?

A imponderabilidade dos acontecimentos e das decisões, das acções e reacções com que inicia as cartas, é um tema muito agostiniano. Ele arrasta-o, aliás, ao longo da sua vida através de um ao mesmo tempo sério e irónico agradecimento aos mais adversos acontecimentos pelos quais as melhores coisas lhe foram proporcionadas. Apesar de defender, logo no início, como estando ao mesmo nível, a moeda ao ar ou a reflexão ponderada, acaba por afirmar outra vez com séria ironia, mais à frente, que nunca resolveu nada através da moeda, mas percebe-se que não o fazendo ele, não despreza o jogo que lhe faz a vida, nem despreza olhar para a moeda por ela atirada e caída. Só não o faz porque tem quem o faça por ele, uma pitonisa privada chamada Existência. Digo eu.

Este aparente diálogo, parece-me ser, afinal, um processo literário de ocultamento do monólogo interior que aqui vejo. Porque está à vista, apesar de alguma cosmética literária no sentido da verosimilhança, em partes que permitem entrever os bastidores, como alusões a conversas entre cartas, alusões a contextos conversáveis fora do universo de observação do leitor, que nos deixam com curiosidade e vontade de preenchê-las nos pressupostos contextos do entre-texto, como:

“Você tem razão num reparo que me fez:”, ou:

“A menos que você prefira vir por cá para que palremos” ou ainda “A nossa última conversa foi tão rápida e em lugar tão pouco propício”,

respectivamente do final e do início da primeira e da segunda cartas.  Outras alusões, porém, aparecem como muito pouco verosímeis. Tal é o caso, logo na primeira, quando afirma:

“como já teve ocasião de me dizer, não possuo muito o talento da construção lógica”. Atrevimento pouco plausível num jovem discípulo aspirante a filósofo. Assim sendo, se não é alguém fora dele que lho diz, não é difícil tirar as conclusões, assim ficando justificado para o leitor, o que anuncia:

“esta conversa de hoje tem fatalmente de seguir um pouco o curso errante de outras nossas conversas”.

Ora que há mais próximo deste “curso errante” que o monólogo interior?

Assim, como afirmei anteriormente noutros textos que escrevi, ele escolhe aquele de que fala. E escolhe, daquele de que fala, os aspectos espelho em que se revê. Aqui desdobra-se em si e si próprio, dá-se um nome, coloca-se como discípulo de si mesmo e discorre. E temos: “Je suis moi” ou “c’est moi lui”, ou melhor ainda: “C’est moi Luís”, para finalmente: “Luís c’est moi”.

Vejamos como se denuncia:

“você, querido Amigo, estava em transe, em plena crise de faquirismo, e tanto lhe fazia que eu o ouvisse como não; ou falava como uma torrente que rompe o dique e rola sem nenhuma possibilidade de se conter, ou, como me parece que às vezes acontece consigo, falava para se ouvir a si próprio: é o grande perigo das pessoas que falam bem: são as serpentes de si próprias, saem dos cestinhos para ouvir a música deliciosa e o que podia ser uma manifestação esplêndida de humanidade transforma-se em espectáculo de rua. Note que não o censuro nada: você faz o que pode; mas há aí um lado inferior da sua personalidade; ou talvez seja o defeito de uma qualidade.”

Agostinho alerta Agostinho. Não que ele seja exactamente isto ou se veja assim, mas talvez por vezes se tenha sentido sobre o cume, a lâmina de onde se vê o abismo, o outro lado. Nem sempre no sentido do defeito, ou da sombra, como se pode ver:

“Você tenciona, pelo que depreendo da sua carta, ser um filósofo. Não no sentido de que exporá doutrinas alheias ou construirá uma sua doutrina e se dará satisfeito com tudo isso, mas no sentido de que tentará pôr a sua vida de acordo com a sua filosofia”.

Como sabemos que Agostinho fez, tanto quanto é possível a alguém consegui-lo.

E prossegue o monólogo interior, onde vemos espelhada, quase em antecipação, a sua vida como naquilo a que hoje se chamaria programação neurolinguística, processo muito antigo, desde que existe Deus e criação:

“Um Séneca, como você talvez já saiba, teve o desprezo das riquezas, mas foi banqueiro; um santo tem o desprezo da riqueza e nunca é banqueiro: são duas atitudes diferentes. Você naturalmente vai pela primeira: se a miséria vier, paciência, se vier a riqueza, paciência também.”

Este é um livro de jogos silogísticos de nível avançado, porque a sequência dos raciocínios tem de ser procurada pelo meio da fresca e viva corrente conceptual. É um jogo, juntar as peças do puzzle e completar o raciocínio em seu esplêndido brilho. Pensamento e moeda, calculada, dramática e sorridentemente atirada por um deus.

É esta a ética de que estes textos não se alienam, uma ética tão quotidiana quanto grandiosa, humana e quase divina, tão concreta quanto abstracta. Não é possível falar da escrita de Agostinho linearmente.

Vejamos:

“Não lanço a moeda, porque não renuncio a compreender, porque não renuncio à deliberação, porque não renuncio a uma vontade em que não acredito.”

E mais à frente:

“No entanto, continuo a suplicar dos deuses, a ter como mais firme dentro em mim a inspiração de que um dia atinja o heroísmo de me atirar a todas as batalhas em que não haja esperança de vitória.”

Muito menos estoico do que o Ricardo Reis porque pede. Ricardo Reis que, nesta altura, como António Cândido Franco afiança e concordo, ainda não conheceria, mas com o qual já apresentava alguns pontos de confluência. Avant la lettre. Misteriosas comunicações. Mas afinal RR também pede… que não seja tentado pelo pedir:

“Aos deuses peço só que me concedam/ O nada lhes pedir. A dita é um jugo/ E o ser feliz oprime/ Porque é um certo estado./ […]”

Também não posso deixar de reparar nesta semelhança fonética entre o “jugo” de RR e, de Agostinho, o jogo. Não é sobre a fonética que se baseia a Gramática Secreta… de Telmo, essa que da língua tenta compreender o sopro, a respiração, a música, a presença divina?

Afinal, é a vida que vale a pena jogar e só é possível fazê-lo sem cálculo, não julgando, renunciando ao pequeno jugo:

“querido Amigo: embarcar num navio que nunca chegará, rumar por mapa e bússola ou goniómetro para o porto que não existe; meter-se uma pessoa ao maior jogo sem jogar.[…] Jogar a vida, mas não jogar nada dentro da vida.  Você, às vezes, dá-me a impressão de que, não tendo coragem para jogar a vida, se entretém em pequenos jogos dentro da vida, é fraco em tudo. Espero vê-lo um dia descer do vigésimo à cautela; a cautela convém-lhe porque é barata e sórdida.”

Seria um paradoxo, este aparente jogo de acusação, humilhação a roçar o insulto, se não estivéssemos num jogo de espelhos de José… Agostinho consigo mesmo. É esta a face do dado que atiro, receando, contudo, enganar-me. Mas só isso explica esta frequente incoerência entre o tratamento quase insolente que é dado ao destinatário da carta e a quase suplicante ternura com que se despede: 

“E passe por aqui quando puder. Sempre muito amigo.”

Nesta implícita ponte com Pessoa/Reis, não poderia deixar de aparecer Campos, segundo o seu criador: “tipo vagamente de judeu português”, através da alusão a Beethoven, e o heroísmo, a tragédia e a liberdade que associa à sua música, e isto é a força, de que havemos de falar mais tarde. A ponte de que falo, repito, sou eu que a imagino, que neste momento é muito pouco admissível o conhecimento do poeta dos heterónimos por Agostinho.

Através da admiração por Beethoven, a aproximação a uma estética musical, literária e filosófica já não baseada no equilíbrio, mas na “energia”, nas capacidades de um “gigante”, o único capaz de se dedicar à filosofia como a um sacerdócio: 

“Você vai precisar de todo o seu tempo, de toda a sua energia, de pensar de manhã até à noite nos problemas filosóficos;”.

É uma filosofia épica, ao nível da épica poética de Campos, e não um “ascetismo filosófico”, que ele declina.

Aqui reentra o judaísmo de Campos e a força necessária a quem sobreviveu em desertos e abriu mares. Mas também o de Camões, esse fiel do Amor, avesso a Roma e avesso de Roma, escravo apenas da sua Amada, que é, nesta caso, a Filosofia. Tal como Jacob no soneto de Camões, para ter Raquel, se dispõe a “servir outros sete anos” a Labão, Agostinho usa uma belíssima expressão inspirada no Poeta de quinhentos transposta para a Filosofia:

“Escravo, pois, e tão escravo que só lamentemos a brevidade da existência: que longa a tornaríamos se o pudéssemos;”

que nos faz lembrar o camoniano:

“Mais servira, se não fora/ para tão longo amor tão curta a vida!”

Assim viveu Agostinho, numa alegre e livre escravatura a tudo o que nele foi sentido como Amor, em livre e alegre assunção do sacrifício, no sentido de aproximação a Deus ou ao sagrado, mas não afastado da inquietação, essa qualidade tão presente nos judeus:

“há em mim uma inquietação que não se acalma”.

Talvez por isso precise de recorrer, de vez em quando, aos clássicos. Não é contradição, é pausa, é repouso, é respiração:

“Há um meio-termo: seja medíocre para minha segurança, querido amigo; para que eu me repouse dos meus temores.”.

Até parece que se conforma à aurea mediocritas, numa das suas frequentes e apreciadas imagens náuticas ou estética marítima, reparem na musicalidade da alegoria:

“E então vou de noite, no meu pobre barco a remos, e rodeio-o no ancoradouro, escuto o menor chapinhar na água e surpreendo-me a bater-lhe palmadas afectuosas no costado e a dizer-lhe: “Cuidado! Cuidado com as ondas de través, cuidado com os blocos na bruma, cuidado com os fundos, cuidado com os fogos!”.

Mas esta aurea mediocritas  não passa de aparência, porque logo a seguir, declara:

 “Perfeitamente absurdo.”.

Terminando a carta a reclamar, significativamente, a devolução do Whitman que teria emprestado ao seu jovem amigo, esclarecendo: “E eu, de vez em quando, leio o Whitman.”

Não nos enganámos muito quando o aproximámos de Campos, esse outro apreciador de Whitman. E da força. Essa poética de um marrano. Aproximação nossa, mas que explica o reconhecimento que iria acontecer mais tarde. Irmãos de alma mesmo separados sempre se reconhecem.

É muito interessante desmontar uma passagem, mais uma vez náutica, que se inicia com uma premissa estoica:

“não force nunca, seja paciente pescador neste rio do existir. Não force a arte, não force a vida, nem o amor, nem a morte. Deixe que tudo suceda como um fruto maduro que se abre e lança no solo as sementes fecundas.”

Não fosse o caso de mal interpretarmos, remata com um:

”Islamismo, claro.”

Entretanto já afirmara:

 “Que não haja em si, no anseio de viver, nenhum gesto que lhe perturbe a vida.”

A vida como o mais alto valor, a que se seguirá, em remate:

“ O suicídio é absurdo e condenável apenas porque me não deixaria viver.”

 E aqui temos, como Pedro Martins já demonstrou no seu livro Um António Telmo, a negação pelo recalcamento, da herança judaica. Como quem pinta um cachimbo e afirma: “Ceci n’est pas une pipe”, Agostinho exalta a vida e ao mesmo tempo é como se afirmasse: “isto não é marranismo”, que é o que diz em: ”Islamismo, claro.”. 

Contudo, é inquestionável que Agostinho, heterónimo de José, ou vice-versa, alternadamente elogia, com a mesma convicção, a exaltação e força Álvarowaltwhitmanianas ainda que não conhecesse ainda Álvaro de Campos, e a ataraxia de Séneca e Reis, este também a conhecer no futuro:

“Tudo pode esperar. Aguardemos pacientemente que em nós brote aquilo a que viemos.”

Mas só ele para transportar para o corpo, até às últimas consequências, contra todo o senso comum, o conceito de aurea mediocritas:

“como é bom ter quase excelente saúde: mas as delícias de uma gripe de quando em quando, quem dignamente as cantará? As delícias e os proveitos, porque estes toques de doença, para quem os percebe e deles faça utilidade, são das melhores dádivas dos deuses. Uma saúde perfeita é insolente, animal, e grosseira. Como são intoleráveis os doentes perfeitos. Mas o meio termo, a mediocridade, como já uma vez lhe disse, é que permite ver a arte e a vida.”.

A doença aqui ao serviço da aurea mediocritas. O corpo olhado com realismo e pinceladas naturalistas de Cesário, mais o heroísmo cru do ainda por si desconhecido Campos.

Ou então, se quisermos avançar até aos dias de hoje, o corpo visto como condição de consciência, e recordo muito particularmente o trabalho de um psicólogo e um médico alemães, psicoterapeutas, nossos contemporâneos, intitulado A doença como caminho, em que esta é reabilitada em termos de auto-conhecimento e libertada da diabolização que vem sofrendo há séculos, essa sim a verdadeira doença. Vista do lado cru e solar, a doença dança e traz à luz o que se escondia no corpo.

Para além disso, naquela bela passagem do texto de Agostinho, as estéticas naturalista e antecipadamente futurista ali abraçadas, ao serviço das ideias.

E novamente, o inquestionável diálogo consigo, o auto-conselho:

“Digo-lhe tudo isto porque você tem grandes tendências para a saúde absoluta e para forçar;”.

A herança judaica já referida, de algum modo também aqui presente, pela importância dada ao corpo, o nosso carimbo no mundo da manifestação acção.

Uma outra passagem contada como história pessoal, mas com inequívoco perfume de lenda, acerca de um pretenso amigo judeu com muita idade (“lembrava-se ainda da coluna de fumo que o tinha guiado no deserto”) a quem os amigos, como prenda de anos, devido ao seu proselitismo, decidiram oferecer um cristão para ele converter. E com uma pequeníssima narração comentada de menos de meia dúzia de linhas conseguiu matar dois coelhos: a lembrança do judeu em si e a tentação cartesiana, idealista ou kantista do seu destinatário, pois é de uma analogia que se trata: a voracidade conversora do jovem filósofo perante os “não-cartesianos, ou não-idealistas, ou não-kantistas”.

A acima referida alternância de contrárias convicções, as aparentes contradições, fruto de um processo de espelhamento, são, muitas vezes temperadas de uma incontida e inequívoca ironia, quando declara, por exemplo:

“Querido amigo, dê-me notícias suas ou apareça; aparecer é melhor, porque, no fundo, detesto a epístola.”

É muito interessante o “no fundo”, que remete para uma prática oposta ao que se afirma: Nesta obra, constituída por epístolas, e na vida, em que as cartas foram uma actividade, quase diríamos se não receássemos o excesso da avaliação, compulsiva.

Presente, a razão através de um quase incontornável raciocínio, ainda que, ao pensamento comum, possa parecer radical. Daí, em parte, o fascínio.

Também o Amor é alvo de análise e raciocínio e uma espécie de medida para a qualidade do ser. Através de uma complexa análise semântica a partir do conceito de tolerância. No desenrolar do pensamento, a palavra vai sendo associada, como em contas de rosário, a desdém, desprezo, indiferença, numa imbatível argumentação com que vai progressivamente desvelando e denunciando o conceito naquilo que aquele encerra de aparência e de preconceito. Acaba por hierarquizar os conceitos situando o Amor acima de Apolo e da Filosofia, quando esta se posiciona em relação ao mundo numa base de tolerância.

Voltando aonde estávamos, pelo meio, diaboliza a tolerância colocando-a abaixo da perseguição, reabilita a discussão, elogia a ignorância dos que não estudaram filosofia ou nem sequer sabem ler:

“mesmo quem não vale nada vale muito”,

na condição de ser amável.

Ficamos a saber que tolerar é não ser amável, logo, é não ser habitado pelo amor:

“Eles são amáveis, podem ser amados, você, porém, é estreito, e não os ama. Depois disto, como se fizesse uma grande concessão, declara que os tolera.”

Afirma, em coerência, na sétima carta:

“No seu ponto mais alto, Filosofia é uma criação perfeitamente similar à criação artística ou religiosa ou amorosa;”

É o amor sempre, mais uma vez, associado a uma ética superior independentemente dos saberes e, mais uma vez, numa total incompatibilidade com a tolerância. Num desenrolar de pensamentos a que nega a vertente argumentativa:

“Você julga que jamais alguém foi convencido por argumentos? O próprio verbo convencer se devia banir da linguagem corrente: as pessoas aderem, não são convencidas. E às suas ideias, por exemplo, hão-de aderir menos pelo que você pensar do que por aquilo que você for.”

O que entra em aparente contradição com o conteúdo das cartas, plenas de raciocínios muito próximos da argumentação, a menos que: as cartas se dirijam a si próprio e/ou tenha uma fé profunda na pessoa que é, para além da argumentação que desenvolve.

A razão e o imenso mistério que é a vida, já que é do insondável mistério humano (porque é no humano, não no divino, que o mistério habita) é do que aqui se trata.

De filósofo para filósofo. Ou de filósofo para aprendiz. Ou de um Deus criador, desafiador e insolente para um aspirante a filósofo.

O título destas cartas, meramente descritivo, a ter uma natureza interpretativa, poderia ser “Nosce te ipsum”, porque se trata, quase claramente, tão claramente quanto o encriptado pode ser claro, de um monólogo de autoconhecimento em forma de diálogo. Pela análise e pela argumentação consigo mesmo. Agostinho compulsivo professor que quando não tem alunos se usa a si para receptor da análise argumentativa sobre um pensamento ético recheado de metáforas e subtil sorriso. Às vezes, a tocar a afronta.

E como é irrequieto, por vezes está de um lado, por vezes de outro. É uma espécie de heterónimo instável, saltitante e imprevisível como ar. A partir de certa altura, previsível na sua imprevisibilidade. Ou um desdobrado pseudónimo que se reparte para melhor se encontrar. Ou conhecer. Como Deus.

Talvez a citação que se segue ajude a confirmar o que acabo de afirmar:

“O criador é uma espécie de monstro em que há o homem e o outro; quem desanima, quem se abate, quem chora é o homem: o outro, se é grande, até os desesperos utiliza.”

É isso que tenta fazer José Navarro: transformar o homem no outro. Luís é, por enquanto, o homem. Será ele José, o outro? Não temos dúvidas de que ambos são o monstro, ou, segundo ACF, o colosso.

Não é possível afirmar que cada carta tenha um tema, porque se assim parece no início de algumas, não se confirma. Há como que uma introdução através da qual, de raciocínio em raciocínio, acaba por ir parar ao tema ou temas que pretende, e que podem passar de uma carta para outra, com diferentes tons e cambiantes. Em cada carta, os temas enrolam-se, emaranham-se como cerejas.  Por vezes o tema é apenas um pretexto para tratar do seguinte ao qual o primeiro permite, retoricamente, aceder.

São estes a criação, a felicidade, o amor, a filosofia, a literatura, a coragem, a vida. Numa base ética.

A escrita está perpassada de aforismos, como em Agustina. O aforismo é filho da ausência de medo. Do medo de errar. Do risco que sempre existe em tão peremptória afirmação. Agustina tinha uma mãe que repetia provérbios, talvez lhe viesse daí uma parte da propensão para os aforismos. Que roçam, por vezes, a boutade. Não sabemos se a mãe de Agostinho repetia provérbios, mas os aforismos estão-lhe no sangue da escrita e convivem pacificamente com a complexidade.

Também ele, por vezes, entre o aforismo e a boutade. Profusamente, Agostinho é florestal, abundante. O que, num trabalho deste tipo, não facilita as coisas.

Tive de conter em mim a tentação de tudo comentar, analisar e interpretar, por duas razões: porque a filosofia não é a minha área de conforto e porque foi com o propósito do olhar literário que me propus reler estas cartas. Assim, muita tentação terei de afastar durante o caminho. Mas não todas, porque algumas estão em ligação íntima com o que pretendo observar.

Mas Agostinho e seu texto, na generosidade de sempre, oferecem-me, abundantemente, o que procuro, apenas tenho de colher. Depois de escolher. Logo na primeira carta, onde voltei ou talvez ainda me encontre, proporciona-me outro encontro, a tentação, esta já não minha, mas dos artistas em geral a que os poetas muito pouco escaparam, a começar por alguns filósofos, também não tão afastados da arte e da arte literária, nomeadamente os da Filosofia Portuguesa: expressar o que é, para eles, a arte. Aquilo a que se costuma chamar arte poética que é, afinal, uma teoria da arte, muito concretamente, como verão, uma ética da arte:

“Se um artista tem uma obra dentro de si, deve sacrificar os outros ou a obra? Nenhum artista, é claro, hesitaria na resposta: a obra nunca se sacrifica. Os artistas, querido amigo, são uma espécie de lobisomens: obedecem a um fadário, não podem deixar de sacrificar os outros em vez da obra; o que não é, nos melhores, pequeno elemento para que sofram.

[…] Se o seu caminho é o de dar, o que é lógico é que faça a dádiva mais alta: a de si próprio, a da sua obra. Se o não fizer, você toma a outra atitude, a de receber, que é sempre a do artista, considerado como criador; é evidente que, realizada a obra, ele passa a ser o que mais dá. Mas como criador é egoísta; sempre egoísta, o mais possível egoísta; talvez, de resto, o egoísmo seja aparente; talvez o artista, em vez de dar a um, se esteja reservando para dar a milhões. […] se você sacrificar a sua obra é porque não a tinha: havia apenas o desejo da obra, e nada mais. Porque se ela existisse! Você passaria por cima de tudo, esmagando tudo, sem piedade, com horror, mas sem piedade […] Quem tem uma obra, a obra o tem; quem traz mensagem a há-de ler perante o rei; arqueja, mas lê, sufoca, mas lê, e depois de ler cairá por terra, mas já a leu. É a posse mais terrível de todas, a escravatura mais completa, aquela que uma obra exerce sobre o seu criador.”

É aqui, nesta bela expressão poética da sua ética da criação, que se desenha o que é para si o real e o literário, a vida e o fingimento. Muito próximo da visão do, para si, futuro Pessoa:

“Não é quando se está em transe de amor, o único momento em que verdadeiramente se ama, que se escreve ou se compõe ou se pinta: é depois, quando o amor se abateu, quando reina o artista, quando é só em todo o campo e há do amor apenas a lembrança, […]”

Pessoa diria o mesmo de outra maneira:

“É como que um terraço sobre outra coisa ainda. Essa coisa é que é linda. “

 Daqui, desta teoria sobre a criação, passa rápida e magistralmente para uma teoria do amor: “O verdadeiro Amor é talvez impessoal” e “ao verdadeiro Amor corresponde o silêncio”, acrescentando uma das passagens, arrisco a dizer, mais belas, da sua obra, arrisco ainda mais: uma das mais belas passagens que eu já alguma vez terei lido:

“não se diz nada à rosa”

Pelo condensado, pela síntese, pela sabedoria, força e beleza, a receita integral alquímica presente nesta frase. E ainda o impessoal do sujeito, o feminino impessoal do objecto, a negação “não” e “nada” ladeando a expressão ”diz” e a associação inesperada entre o verbo e o objecto. A este nível, talvez só o verso de Silesius, “A rosa é sem porquê”, e mesmo assim tenho dúvidas.

Ao lermos a biografia de Agostinho feita por ACF, o que ressalta, e concordo, é a obra do autor. Lá está o homem, o colossal escritor, o colossal indivíduo, mas, acima de tudo, sempre, a colossal obra. Que acompanha a vida como dois carris de comboio se acompanham. Mesmo na acentuada curva que foi o pós-prisão, a chegada ao Brasil, as linhas fazem, uma um percurso mais largo que a outra, mas acompanham-se sempre.

Como, aliás, antecipa ou justifica a visão de ACF, do colosso:

“Mas você é puro sangue: tem de saltar e tem de correr; tem de dar tudo o que puder e, se eu tiver alguma espécie de influência, há-de dar mais do que puder. Há-de-se inventar você próprio a você: criar um outro Luís, melhor do que esse que possui e obriga-lo a criar, a esgotar-se todo na divina tarefa de criar.”

E avisa-se a si próprio ou continua a fazê-lo, por causa das tentações:

“Pois bem, querido Amigo, por mim, pode você estar seguro: nunca lhe permitirei que faça, do que é, uma profissão, que gele no que pareceu interessante a você e aos outros, que seja uma atitude em lugar de uma pessoa, a figura de cera de um museu, sempre o mesmo, e catalogado.”

Não sei se foram estas cartas lhe valeram podermos vê-lo hoje como

“o que é realmente vivo parte todas as molduras e regressa à liberdade da selva”,

mas não duvido que foi ele quem se valeu a si mesmo.

Houve uma moldura mais difícil de partir, a moldura da televisão, talvez nessa permaneça, ainda hoje, para alguns em parte aprisionado.

Talvez ele a tenha, misteriosamente, antecipado, como se soubesse, como em tragédia:

“Há em mim um certo gosto pela improvisação de circo: o clown nem sempre é muito lógico, mas às vezes faz perguntas embaraçosas e lança o remoque que vai ferir no mais fundo da alma o espectador inocente, o que entrou para se rir.”

Sendo ele aqui o clown e o que entrou para se rir.

Talvez precise, contra todas as suas expectativas, ainda hoje, de nós. Ou, mais uma vez, de si mesmo, através de nós. Lendo-o. Dando-o a ler. Profundamente. Pondo fim aos limitados e limitadores aforismos e citações repetidos ad nauseam. O aforismo mil vezes repetido e superficialmente interpretado pode ser o seu pior inimigo.

Sendo o seu maior amigo a obra lida, estudada, partilhada, transmitida, discutida. Acesamente, como ele gostaria. Com o respeito que é a ausência de reverência. Vejamos o que diz, numa espécie de auto-retrato, ou pelo menos assim o leio:

“Deixe firmar-se a primavera também em si, uma primavera temperada de uns arrepios de ironia, com a acidez de Março em lugar das molezas perturbadoras de Maio.”

Não deixa dúvidas, não teria gostado deste culto superficial das citações mastigadas, digeridas, cheias da moleza do prêt-à-porter, de um Espírito Santo de pacotilha que não celebra a santidade do Espírito na santidade do corpo, de meia dúzia de expressões memorizadas e mecanicamente expandidas até à auto-extinção pela fuga da alma.

Tenhamos a esperança que ele nos deixa, de que este veneno da simplificação, este macaqueio obsceno a que corajosamente se expôs não nos faça mal e não o mate. Na vida, como na morte:

 “Na minha vida, o que foi bom em si veio a ter muitas vezes consequências nada benéficas; e o contrário.”

Quem fala? Agostinho ou José Navarro? Atrevo-me a responder por ele: “José Navarro c’est moi”.

O auto-retrato, a auto-biografia, a auto-análise, implícita ou explícita, são uma quase constante. Frequentemente debate consigo, coisa a que não conseguia resistir. Faltando-lhe com quem debater, podia sempre recorrer a si mesmo. Por isso se mostra, tantas vezes, contraditório:

“no momento em que haja eternidade, nada foi útil ou prejudicial; tudo foi, simplesmente, e ninguém julgará, e ninguém será condenado.

Dirá você que, se tudo isto é assim, não haverá objectivo a atingir: seremos como a macieira que daria maçãs, mesmo que ninguém lhas comesse; que a última razão dos nossos actos não deve ser a de um alvo, mas a de uma existência, que mesmo aqui devemos abolir as causas finais. Simplesmente, querido Amigo, o espírito é finalista, tem ideias; abre-se aqui um conflito, senão entre a estrutura, pelo menos entre o aspecto do espírito e o aspecto do real;”

Talvez tenha sido esta prática de debater com ele mesmo, o laboratório onde se criou o colosso, aquele que desde muito cedo não deixava ninguém sem resposta e que muitas vezes deixava os interlocutores sem palavras.

O uso da analogia é frequente e surge no próximo exemplo a propósito do sofrimento na vida como forma de pagar o bilhete da viagem. Aqui se percebe como muitas vezes a herança estoica, que partilha com Ricardo Reis, aparece como uma máscara ou disfarce do judaísmo. É o caso da interessante metáfora do pão da vergonha que embora não apareça assim designada, é uma réplica perfeita da imagem judaica para todo o bem que se recebeu e que não se fez nada para merecer. Que começa com a criação. Explico, antes de voltar a Agostinho: perante a sua condição de ser criado à imagem perfeita do criador, a criatura sente o desconforto do desmerecimento. Ora, concordando o pai sempre com o filho e não pretendendo que a bênção se transforme em condenação, assim responde à criatura: Pois meu filho, seja como tu queres. Esta poderia ser uma narrativa da queda contada às crianças que existem em nós. Agostinho apresenta a versão para adultos:

“como queria você viver sem um tormento? Estar de graça no Teatro da vida? Não teria boa consciência, não é verdade? Pague o seu bilhete. E o bilhete é sempre sofrer.”

Aqui temos a visão judaica da queda, sem tirar nem pôr. O ganhar o pão com o suor do rosto, por sua própria vontade. O conquistar aquilo que já se é, para se merecer a si mesmo. Mas não se fica por aqui, estamos em plena doutrina da reintegração dos seres:

“aqui poderíamos dizer que a dor o levará ao que há de mais profundo e de mais nobre no ser humano”,

temperada de estoicismo.

Modera esta visão muitas vezes crua da vida, a beleza do inspirado estilo:

“chove sobre o justo e o injusto”,

neste caso, a metáfora em taça de antítese.

E, profusamente, a ironia, que constrói variadamente: ou pelo conteúdo, como qualquer página, ao acaso, poderá demonstrar:

“ao quarto argumento, todo você freme, mal se contendo: no entanto, lembra-se do estoicismo e ainda aguenta; mas ao quinto argumento, você insulta-os.”

Ou a ironia pode vir também da arquitectura frásica e da própria construção da palavra, o neologismo:

“E o mesmo com o kantismo e o pessimismo e o positivismo e tudo o restismo.”

A comparação, a analogia, a metáfora, a alegoria e a ironia são alguns dos tijolos de construção da escrita, material orgânico que não se sente como forma, tal a íntima ligação ao sentido. Formam dois grupos, a comparação estando na base das três que se seguem, e fugindo a ironia a qualquer norma.

No universo da comparação, de que nos apropriamos agora, e em termos da concepção da filosofia encontramo-lo de acordo com Álvaro Ribeiro quanto à necessidade de algum rigor no respeito pela tradição, definição e propriedade conceptual:

“Procure compreender os sistemas dos outros antes de criar um seu.” Ou: “ A filosofia que se não apoia num perfeito encadear de raciocínios e numa informação que tem de ser a mais sólida e a mais ampla, é apenas […] da pior literatura.”

Vejamos Álvaro Ribeiro n’O Problema da Filosofia Portuguesa:

“A pureza da linguagem só pode ser garantida pela escola(1); a actividade da razão só é despertada pelo ensino acroamático; a iniciação na filosofia só pode ser feita dentro de uma sociedade tradicional.[…] de nada valem as irreflectidas opiniões dos vulgarizadores de qualquer época, seita ou actividade.”

Agostinho aprovaria esta posição, que o teria defendido da actividade assassina dos vulgarizadores. E como “assassina” se aproxima de “asinina”... Agostinho, que preconiza estudo feroz para a criação de músculos, porque a relação com a filosofia terá de ser para ele, uma relação de amor. E o amor, sem a força, não o é:

“só quem é forte se apaixona” ou “sempre há força na raiz do amor”.

É muito curioso este encadear da filosofia com o amor através da sabedoria e da força. Dito de outro modo; a força como condição do amor sabedoria.

E o Amor como o supremo valor:

“que idealismo é o meu em que não entrem os materialistas?” ou

“Dirá você que uma concepção dessas, em que todos os contrários se harmonizam, só é possível em Deus. Vamos então nós desistir de chegar a Deus?”

E ainda:

“do amor sempre, porque, se é verdadeiro, ele supera a ciência e a arte, a filosofia e a política.”

“Se uma luz da caridade não brilha em si, para que lhe serve viver? Um filósofo mais?”

Mais uma vez, e sempre, uma ética de pensamento vivo. Corporizada na figura de Jesus, esse judeu-cristão:

“ou você vem a casar a filosofia com Jesus, ou então pode retirar-se, porque o mundo dispensa-o.”

 É curioso que a metáfora do casamento se materialize em Jesus, esse corpo vivo e humano de judeu. O casamento do que não é adverso ou, como diria Telmo, a “síntese superior”.

Ainda na esfera das figuras ou tropos, concretamente da metáfora, encontramos, com frequência, as da navegação, de que já vimos exemplo, mas a um pensamento e temperamento como o de Agostinho não poderiam faltar as metáforas do ar:

“Que aviõezinhos são estes que não aguentam trovoadas…”

“Você tem que ir à frente do bando, mas não muito à frente para que não percam a luz.”

 Uma excelente síntese deste ser que detestava a “altivez”, o “desprezo”, as “vaidades absurdas”.

Quanto aos finais, a estética defendida é a do “unhappy end”, a via da tragédia, que estende ao voto endereçado como remate:

“Querido amigo Luís, oxalá você falhe. […] que tudo acabe para você em desilusão e amargura;”.

Depois da maldição, o antídoto:

 “mas sempre a coragem, sempre a certeza, para o espectador, de que você a recomeçar jogava o mesmo jogo[…]. Sofrer não importa, só lhe poderá fazer bem: o que é essencial é que você nunca decline o sofrimento […] chore e lance clamores, mas renunciar, nunca.[…] Haja o que houver, suporte; quando não puder ir de pé, vá de joelhos, depois arraste-se, mas avance sempre enquanto possa e nunca largue o tesouro.”

Aqui, o tesouro é o sofrimento. Ele, a voz que liberta do conforto do sucesso, essa demoníaca tentação. Aviso a si mesmo?, repergunto-me.

Com uma admirável capacidade argumentativa digna de um pregador ou um tribuno, com um fundamento fortemente especulativo e mais ainda, falacioso, mas cujo resultado é de um brilhantismo a que é difícil ficar indiferente:

“parece que há sempre na vida um fundo de dor e a alguém terá de caber; uma renúncia, naturalmente não é mais do que uma transferência: com que direito passaria você a outro o fardo esmagador? E julga que se poderia consolar de o ter feito?”

Agostinho não mostra muita preocupação com o rigor do milímetro, o seu foco é o brilho do pensamento, o fulgor da ideia. Como ele sabe muito bem e afirma, à laia de ameaça: “literariamente sou feroz.”

De resto, a última carta pode ser, de algum modo, a chave para os três dons com que abemaldiçoa o amigo:

Que falhe,

que tenha uma vida dura

e que se sinta só.

Numa espécie de ética da amizade que define assim:

“Só maltrato os amigos”.

E eu pergunto-me: Será ele o seu melhor amigo? Quem é aqui amigo de quem? Talvez como na canção brasileira: Agostinho amigo de José, José amigo de Luís, e Luís que ainda é muito novo para ser amigo seja de quem for e muito menos de si próprio…

Que leva um autor a escrever um livro de tão duros conselhos? Talvez o medo de… amolecer?

Vejamos:

“Estou a exigir muito de si? Quem lhe há-de exigir muito senão os seus amigos? Eles receberam o encargo de o não deixar amolecer e, pela minha parte, tenha você a certeza de que o hei-de cumprir. “

Não cabe mais nada neste já longo texto, mas não poderei deixar de assinalar, do esquema biográfico de José Navarro, onde muitos elementos se cruzam com a biografia do próprio Agostinho, a informação com que se remata num gesto de auto-redenção:

“Falhou: mas para nós, que tão bem o conhecemos, que descobrimos, sob as aparências, a bondade, a ternura, a humanidade de José Kertchy, a sua figura será sempre uma inspiração e a sua lembrança um motivo de comovida saudade.”

Também para mim, em particular a sua literária ferocidade.

 

  1. Para Álvaro Ribeiro “escola” e “escol” são aqui termos equivalentes.

 

Raio de Luz, Sampaio, Sesimbra, 31 de Outubro de 2015

VOZ PASSIVA. 66

06-11-2015 00:22

Completam-se nesta data cem anos sobre o dia da partida de José Pereira Sampaio (Bruno), a quem Álvaro Ribeiro considerou como o fundador da Filosofia Portuguesa. Na passada quarta-feira, no Palácio da Independência, em Lisboa, iniciou-se o Congresso "A Obra e o Pensamento de Sampaio Bruno", que por ontem e por hoje se prolonga, desta feita na cidade do Porto, berço do filósofo. "Sampaio Bruno e António Telmo" foi o título da comunicação apresentada ao Congresso por Pedro Martins, no dia da abertura dos trabalhos. Na mesma mesa, um outro membro do Projecto António Telmo. Vida e Obra, Rui Lopo, falou sobre "O Oriente, o Orientalismo e as religiões asiáticas na obra de Sampaio Bruno".

Do primeiro, publicamos agora o texto integral da sua comunicação. 

Sampaio Bruno e António Telmo

Pedro Martins

 

 

Foi-me proposto falar sobre Sampaio Bruno e António Telmo. Sob a aparente dualidade, há, porém, um terceiro termo. Um termo médio, implícito e unitivo. Refiro-me a Álvaro Ribeiro, nome incómodo e frequentemente silenciado, que tinha António Telmo na conta do seu melhor amigo, como numa carta, ainda em vida de José Marinho, nos deixou escrito.

Durante a década do seu período formativo, entre 1952, ano da publicação do primeiro artigo, “Lusismo e obscurantismo dos estudos clássicos”, e 1963, ano da edição do livro de estreia, Arte Poética, Telmo publica vinte e seis dispersos na imprensa periódica, abarcando matérias como a linguística, a filologia e a filosofia. Uma quinta parte é especificamente dedicada a Sampaio Bruno.

São eles:

 

Em 1955: “Problemas do estilo em Sampaio Bruno”, no Diário de Notícias.

 

E em 1957:

- Uma breve nota sobre “O Centenário de Sampaio Bruno”, no 57.

- “No centenário do nascimento de Sampaio Bruno”, no Diário de Notícias.

- “Sampaio Bruno, crítico literário”, no 57.

- “Sampaio Bruno”, no Diário Ilustrado.

 

Encontramos ainda outros escritos cujos títulos nos revelam nomes de autores: recensões no 57 sobre A Razão Animada, de Álvaro Ribeiro, e sobre Estética e Enigmática dos Painéis, de Afonso Botelho, além das “Notas sobre Teixeira Rego” (que, bom será lembrar, é um discípulo de Bruno) e do artigo “Como traduzir Henrique Bergson”, ambos no Diário de Notícias

Perante tal quadro, é inquestionável e significativo o predomínio da atenção prestada a Bruno na formação do pensamento de Telmo. Note-se que não há qualquer artigo especialmente dedicado a Leonardo Coimbra. Apenas algumas referências lhe são feitas nos escritos deste período.

É fora de dúvida a influência de Álvaro Ribeiro. António Telmo esteve sempre mais próximo do autor de Escola Formal do que de José Marinho, no plano da afeição como no do pensamento. Poderia invocar os testemunhos do próprio Telmo, aliás corroborados pela correspondência dirigida ao mestre. Irei, porém, considerar apenas o segundo aspecto, o teorético, para aqui enfatizar o denominador comum que os unia: o judaísmo ou, se se preferir, o cripto-judaísmo. Dizendo isto, estamos já a escrever a palavra kabbalah.

Entre os aspectos relevados nos primeiros escritos bruninos de Telmo conta-se o do estilo. Refutando a pretensa ilegibilidade de Sampaio Bruno, não deixa, todavia, de lhe reconhecer «um obscuro, raro e estranho estilo», aliás, «enigmático», pois que mostre, «na verdade, uma forma de escrever invulgar e singular». Mas nem por isso o considera difícil, «na medida em que se oferece numa linguagem comum, embora clássica». «Dialogado, intimista, erradio e errante», este estilo «conta-nos anedotas; narra, com minúcia, episódios autobiográficos; intercala, na discussão dos temas mais difíceis, expressões vulgares.» Bruno, diz-nos Telmo, «havendo estudado a prosa portuguesa, soube que há um processo português de filosofar, diferente dos processos utilizados por outros povos» e que, acrescentarei eu em síntese, privilegiando o paradigma barroco em detrimento do paradigma clássico segundo a lição de Eugénio d’Ors, se opõe às estruturas lineares e geométricas do racionalismo, helénico ou iluminista.

Se, como Telmo faz notar, já José Marinho, contrapondo o estilo de Leonardo ao de Bruno, a este último o incluíra no «grupo de pensadores que vivem na constante exigência, mais ou menos dolorosa, de expressar uma ideia remota e obscura, sempre fugitiva», Álvaro Ribeiro, citado pelo discípulo, n’A Arte de Filosofar irá, por seu turno, observar:

 

…se para muitos pensadores é certo que na obra escrita não exprimem algo do muito que queriam dizer, para Sampaio Bruno o aparentemente descosido da sua exposição significava, pelo contrário, a perseguição oculta das suas intuições essenciais.

 

 

A metáfora constitui-se então como pedra de toque de um estilo, como o de Bruno, propositalmente obscuro. No mesmo livro, que Telmo volta a citar, escreve ainda Álvaro Ribeiro:

 

A relacionação metafórica de imagens, perfeitamente admissível num pensador que atribuiu à revelação o processo único de aproximação da verdade, mas de difícil seguimento para os pensadores que desejam que o estilo filosófico represente literariamente os processos lógicos da indução e da dedução, igualmente prosaicos, dá causa a que se diga ser a obra de Sampaio Bruno quase completamente ilegível. 

 

Conclui Telmo:

 

Estamos aqui já muito além da opinião geral. Podemos agora atribuir uma significação à obscuridade do estilo de Sampaio Bruno. Muito longe de representar deficiência de expressão, exprime um processo metafórico de transcensão para o ignoto.


Quem quiser encontrar os fundamentos da razão poética de António Telmo, não deve deixar de os procurar aqui, no âmago da razão metafórica de Sampaio Bruno, precursora da razão animada de Álvaro Ribeiro e afinal tão tributária da conversação que o autor de O Encoberto cedo entabulou com Junqueiro, um e outro inscritos no centro do hexagrama segundo o qual, na visão télmica, se define a sizígia da filosofia portuguesa, pelo diálogo incessante da poesia com a filosofia.     

O que acaba de ser dito do estilo brunino coloca-nos o problema da hermenêutica, ali onde nos remete para o plano interior do esoterismo, de cujo estudo na tradição portuguesa Sampaio Bruno se irá aliás ocupar n’Os Cavaleiros do Amor – e aqui, uma vez mais, não será difícil entrever na obra pioneira do portuense o prelúdio da genial desocultação simbólica e filológica depois operada por António Telmo. Como escreve Miguel Real:

 

«Dito de um modo muito claro: o lugar de António Telmo na cultura portuguesa releva-se por ter sido o grande pensador da segunda metade do século XX, na esteira de Sampaio Bruno e Fernando Pessoa, a teorizar o esoterismo, atribuindo-lhe um estatuto de testemunho e prova tão positivo quanto a prova factual mais concreta, furtando estes estudos à parafernália de seitas e grupúsculos marginais ao saber instituído.»

 

E que a filosofia de Sampaio Bruno se constitua ela própria como a expressão exotérica de um esoterismo, que é o da kabbalah, eis um ponto que, como veremos, o crivo decifrador do autor da História Secreta de Portugal não deixou passar em claro. 

Se, na visão télmica, o estrangeirismo sintáctico e lexical de muitos intelectuais portugueses sugere a suposta ilegibilidade de Bruno, resultante do seu estilo peculiar, idênticos preconceitos regem a dificuldade de pensamento acusada nos seus livros. No entanto, logo em 1957, diz-nos Telmo:

 

Quanto ao pensamento de Sampaio Bruno, a todos é acessível. Julgamos ser lícito utilizar análoga argumentação à de que nos servimos para com o estilo. Emerge esse pensamento das profundidades da sabedoria popular, mas o filósofo vê-se obrigado a fazê-lo defrontar as filosofias estrangeiras que, no seu tempo, se tornaram seguidas entre nós. Se a nossa educação filosófica partisse dum fundamento popular e nacional, com vinte e oito anos qualquer de nós se encontraria apto a compreender o pensamento de Sampaio Bruno em toda a sua profundidade, pois aparecer-nos-ia como um prolongamento natural da nossa mais funda sabedoria. Infelizmente somos educados para reflectir as filosofias estrangeiras e, esquecidos de que a estas é aplicável análoga relação para com as origens, vemo-nos limitados a conhecer apenas o que nelas é susceptível de versão internacionalista. Na verdade, como se torna fácil o aristotelismo, o hegelismo, o bergsonismo, uma vez desligados da essencial relação com as origens, e como é difícil Sampaio Bruno, se o queremos moldar a uma visão internacionalista!       

 

Não esclarece Telmo as profundidades da sabedoria popular e nacional de que emerge o pensamento brunino. Mas é provável que pressuponha a tradição portuguesa tal como, dois anos antes, Álvaro Ribeiro a definira n’A Arte de Filosofar, pela confluência, entre nós, das três tradições abraâmicas, e, ainda aqui, poderíamos nós dizer: pela kabbalah. Uma kabbalah onde a influência islâmica se mostra diminuta. Como em Apologia e Filosofia se afirma:

 

A luta contra o islamismo não representa só um feito da história política: do facto nos cumpre considerar a causa e os efeitos. A repugnância pelo extremo monoteísmo islâmico e pela interpretação árabe do aristotelismo configuram-se nos documentos verídicos do pensamento português. Nem a razão se aliena dos processos gnósicos, sóficos e písticos, nem a fé deixa de persistir na variação dos graus da fenomenologia religiosa.

 

O desapreço em que Bruno tem o credo islâmico afere-se n’A Ideia de Deus: «O espaço que medeia entre o rude fetichismo naturalista do selvagem e o monoteísmo grosseiro dos maometanos resulta, comparado, relativamente pequeno.» 

Que, no Diário Ilustrado, António Telmo se afoite a considerar Bruno um «notável pensador hebraico», explica-se, a meu ver, pelo consciência cúmplice de uma comum filiação, adquirida na leitura meditada do portuense ilustre e mediada pelo ensino acroamático de Álvaro Ribeiro, que em 1969, n’A Literatura de José Régio, enfim assume com razoável clareza o pendor hebraizante do seu pensamento:

 

A nossa tese, recebida da filosofia da história que entre nós foi escrita por Sampaio Bruno, é a de que a principal causa da decadência dos povos peninsulares está maravilhosamente descrita no livro O Encoberto (1904). É portanto uma interpretação religiosa, referida ao primeiro sistema de filosofia da história, seja o providencialismo messiânico da Bíblia. A Península Ibérica decaiu por consequência da expulsão dos Judeus.

A influência cultural deste povo de monoteísmo transcendente, que não reconhece representação nem representante de Deus na Terra, povo de doutores fiéis a uma Doutrina que não impõem por métodos de proselitismo, mas, que defendem pelo sacrifício da própria vida, povo para o qual são pecados mortais só o homicídio, o adultério e a idolatria, povo que considera a aliança como padrão da vida religiosa, que antecede de um ritual belo, sério e santo o próprio acto conjugal, que santifica o sábado como dia de festa da família, que pratica a oração com simplicidade, modéstia e alegria, que espera pela era messiânica de redenção da humanidade, a influência de tal povo, repetimos, ainda não foi assaz reconhecida por etnógrafos e historiadores. Este povo que vive, respeita e pratica um admirável preceito, segundo o qual «o pai que não manda ensinar um ofício ao seu filho faz dele um pedinte ou um ladrão», trabalhando destituído de instituições políticas e fixado na vida civil ou privada, foi o educador filosófico e religioso de outros povos migrantes, exerceu uma influência civilizadora que permaneceu latente e oculta depois de ser expulso da Península Ibérica. Este factor é muito mais importante do que aquele que aparece sublinhado pelo materialismo histórico, ou seja, a falta de tais homens no comércio, na indústria e na agricultura, ocupações que poderiam ser igualmente distribuídas pelas várias camadas da população católica.

 

Dois anos decorridos, em carta para Álvaro Ribeiro, escrita de Sesimbra e datada de 28 de Abril de 1971, revela António Telmo:

 

Meu caro sr. Dr. Álvaro Ribeiro

 

Com o título Sampaio Bruno e a Tradição Hebraica Portuguesa, envio-lhe o que escrevi nestes dias a partir do que por cá tinha. Parece que o escrito tem unidade e configuração para livro. Fiquei com uma cópia. Agradeço que lhe dê o destino combinado. Não referi todas as citações aos livros, porque não disponho de todos estes e porque suponho que se pode fazer em trabalho sobre as provas. Se achar que convém fazê-lo já, agradecia que mo mandasse dizer.

Assino o livro com “António Carvalho”, por razões que o sr. Dr. Álvaro Ribeiro conhece…

(...)

 

Relembro que o destinatário da missiva se chamava Álvaro de Carvalho de Sousa Ribeiro, e por isso me dispenso de aclarar o alcance das palavras do seu remetente, António Telmo Carvalho Vitorino.

Por uma outra carta, de Valle de Figueiredo para António Telmo, de 9 de Junho de 1978, ficamos a saber que Álvaro Ribeiro, significativamente, lhe indicara o nome do discípulo dilecto para a escrita do prefácio à reedição de O Encoberto, de Bruno, que as Edições do Templo tencionavam então concretizar. A reedição gorou-se, mas o prefácio ficou. Veio a lume em 2005.

Este escrito constitui, da parte de Telmo, o primeiro grande tentâmen hermenêutico do pensamento de Bruno, que, segundo o autor de A Aventura Maçónica, no seu livro de 1904

 

(…) parece querer dizer-nos (…) que o movimento sebastianista, organizado em torno das profecias de Gonçalo Eanes Bandarra, foi uma criação judaica, de fundo messiânico, lançada contra a Inquisição. Chega mesmo a sugerir, nas últimas páginas do livro, que as profecias não se refeririam a D. Sebastião, como mais tarde um D. João de Castro e um Padre António Vieira viriam dizer, mas aludiam à acção de David Reubeni, misterioso judeu alemão, que terá estado em Portugal no reinado de D. João III, era protegido pelo papa Clemente VII, dizia-se vindo do Oriente, de onde o enviara o Preste João, e tentara converter ao judaísmo o próprio imperador Carlos V através do seu discípulo Salomão Malcho, o português Diogo Pires.

   

A par daquele que o põe ao serviço da ideia católica de domínio universal, o sebastianismo, na leitura télmica de Bruno, ganha um outro sentido, em que é já a ideia judaica de fraternidade universal que o sustenta. Este segundo sentido, na visão que Telmo projecta sobre O Encoberto,

 

terá sido animado e movimentado por uma organização secreta, depois conhecida cá fora por Maçonaria, tornada activa em Portugal, segundo o mesmo Bruno, no tempo de D. João III, por intervenção do referido David Reubeni, que já ostentava um avental com os sacros símbolos da Ordem.

 

No plano do culto, o propósito de Reubeni, segundo Telmo lê em Bruno, seria o de, pela kabbalah, a Igreja se ligar à Maçonaria. E o socialismo, que O Encoberto patenteia, seria já uma projecção política desta realidade no plano da civilização. Vale a pena citar António Telmo, por mais que as suas palavras contrariem quantos, à esquerda e à direita da cruz, por desencontradas razões, porfiam em assinar à filosofia portuguesa um fundamento reacionário:

 

Podemos discordar de Sampaio Bruno, mostrando como o socialismo constitui uma degenerescência da Maçonaria. Aqueles que, de um ponto de vista esotérico ou simplesmente religioso, formam uma imagem minorativa da Maçonaria porque o socialismo ateu ou igualitário dela derive ou nela se fundamente, deveriam pensar que, também para os católicos, os caminhos sinuosos do clero não alteram a perpétua verdade da Igreja fundada por Pedro. Todavia, Sampaio Bruno vê no socialismo democrático subordinado à ideia suprema de República a aplicação ao progresso da humanidade dos princípios sóficos da Maçonaria. Assim como Leonardo Coimbra dizia ser a “mecânica” o socorro de Deus enviado ao Nada, quererá talvez significar Sampaio Bruno que o socialismo constitui o socorro que o todo homogéneo dos seres integrados envia ao nada dos seres decaídos. O fim da Maçonaria no plano político será assim a participação dos membros dispersos e dilacerados da humanidade numa grande e luminosa unidade interior. Nem um só homem poderá ficar fora do processo universal de realização da Bondade. Todos os homens, pela democracia, serão chamados a cooperar activamente na política, assumindo-se cada um como uma parcela luminosa do universo, pois, enquanto emanação superior, conquanto esquecida de si, possui a potencial dignidade de um “sacerdote-rei” maçon, de um arquitecto. Há então que correr o risco que consiste na subversão dos elementos superiores pelos elementos inferiores. Mais do que o risco, há que viver essa subversão sem a cobardia do egoísmo, a não ser que se aceite a ideia pessimista de que para sempre haverá divisão entre os que sabem e os que não sabem, entre os que podem e os que não podem.



A asserção télmica de que «o socialismo, em baixo, abrangerá tanto camitas como semitas no mesmo movimento de aperfeiçoamento moral», e bem assim a referência ao judeu português Pascoal Martins, por mor da formulação da tríade Liberdade, Igualdade e Fraternidade pelo seu discípulo Saint-Martin, preludiam já, neste escrito de 1978, algumas das coordenadas que, uma década depois, irão nortear o artigo “Sampaio Bruno, «o Encoberto», marco miliário da ideação télmica, aliás contemporâneo da axial Filosofia e Kabbalah.

Dada a ressurgência do ancestral conflito étnico entre camitas e semitas que o pavor inquisitorial revelara a Bruno, António Telmo vê nos conversos um veículo do recalcamento, debatendo em agonia os arquétipos contraditórios do velho e do novo credo, aquele relegado para o subconsciente. Esboçando uma tipologia marrana próxima daquela que já encetara no ensaio sobre “As Tradições Heterodoxas da Filosofia Portuguesa”, e que só com o prefácio ao livro de Alexandre Teixeira Mendes sobre Barros Basto, de 2007, se dirá perfeita, Telmo considera várias espécies de cristãos-novos, dos fanáticos que realizam «o mais fundo recalcamento da religião que receberam dos seus pais» aos dissimulados que continuam às ocultas a praticar a religião antiga, sem esquecer «a hipocrisia que leva a uma prática automática, sem crença, dos novos ritos e que degenerou, na sucessão das gerações, em materialismo ateu».

Há ainda uma quarta espécie, aquela a que propriamente responde O Encoberto. A dos marranos que, pela harmonização gnósica dos dois credos, alcançam uma doutrina superior. É nesse veio oculto que deveremos inscrever o cabalista David Reubeni e o seu discípulo português Diogo Pires, e por isso Bruno, nas páginas finais de O Encoberto, se demora a relatar o episódio em que estes

 

tentaram convencer o Papa a abolir a Inquisição e convencê-lo com a ideia de se trabalhar para uma síntese, verdadeiramente católica, das duas religiões. É também nessas páginas que rememora o ensino em França do judeu português Pascoal Martins, que profundamente influenciou o católico ultramontano Joseph de Maistre.

 

Do primeiro lembrará Telmo, no livro cripto-maçónico de 2006, ser sua a intenção de, também pela Cabala, ligar a tradição judaica à tradição cristã. E n’“As Tradições Heterodoxas da Filosofia Portuguesa” anotara já com incisão o surpreendente, por imprevisto, maçonismo do autor dos Serões de São Petersburgo.

Se a compatibilidade da cabala martinista com a filosofia de Bruno, que Telmo tanto frisa, por consabida não carece aqui de desenvolvimentos; e se a leitura d’A Ideia de Deus à luz da kabbalah de Isaac Lúria, já sugerida n’“As Tradições Heterodoxas…”, e plenamente demonstrada no prefácio que o filósofo redige para a reedição, em 1998, d’O Brasil Mental de Bruno, constitui mais uma façanha da sua argúcia sagaz, o que a este propósito importa firmar é o modo como, na visão télmica, a teodiceia e a filosofia da história de Sampaio Bruno oferecem expressão exotérica ao esoterismo da kabbalah.

Em livro inédito sobre a gnose judaica de Álvaro Ribeiro, prestes a sair a lume no IV Volume das suas Obras Completas, António Telmo vê no aristotelismo do mestre a expressão exotérica do esoterismo que a síntese judeo-cristã da kabbalah portuguesa representa. Significativamente, o jovem Telmo, escrevendo em 1957, refere-se por este modo a Sampaio Bruno:

 

(…) criticando o pitagorismo, que parte da noção do nada, subordinando à teologia as outras ciências que, com ela, constituem a filosofia, estruturando a física pelo estudo do movimento a partir da queda, relacionando a forma da natureza com a palavra da alma, concebendo a causa final como primeira das causas, cria uma filosofia caracterizadamente aristotélica. Discute-se muito, em certos meios, as características do nosso pensamento. Quem ler os livros do Estagirita, não só através dos comentários cristãos e islâmicos, mas também hebraicos, logo descobrirá o fio que permite seguir aristotelicamente o pensamento de Bruno, ou seguir bruninamente o pensamento de Aristóteles. Tanto é certo que somos aristotélicos sempre que lemos, traduzimos e interpretamos o notável pensador hebraico pelas verdadeiras categorias da língua portuguesa.

  

Uma última nota sobre “Sampaio Bruno, «o Encoberto» e a leitura que nele se faz d’A Ideia de Deus. O que ali mais importa reter é a caracterização da kabbalah por oposição à gnose, ou ao gnosticismo, considerado este como uma tendência para a desumanização, palavra que deve ser entendida «em relação ao homem e à mulher e ao filho de ambos». Está aqui bem patente, pela recusa do corpo, do sexo, da criação e da vida, a oposição à matriz judaica de santificação do corpo que enforma a kabbalah, entendida esta, na senda de Bruno, pelo prisma da vivificação e do des-envolvimento da matéria que, não sendo eterna, antes nos aparece impregnada, animada e purificada pelas emanações espirituais que, no palco terrenal do mundo e da história, a subtilizam e redimem. Assim se recusa o decisivo predomínio da elevação da alma que, em fuga ao mundo, segundo André Benzimra, caracteriza funcionalmente o cristianismo, e que o radicalismo gnóstico leva às últimas consequências. Daí que o filósofo da razão poética tome partido por Álvaro Ribeiro em detrimento de José Marinho, para valorizar a política como a primeira das ciências, asserção que o autor da Teoria do Ser e da Verdade, caracterizado como um céptico e um místico no juízo alvarino, não estaria em condições de aceitar. A filosofia alvarina define-se, desde o início, como um pensamento que se realiza entre a contemplação e a acção, e não entre a contemplação e o Ser. Outro tanto se poderá dizer de Sampaio Bruno e António Telmo. 

UNIVERSO TÉLMICO. 30

05-11-2015 23:23

Quem tem medo de Sampaio Bruno?

Pedro Martins

Provavelmente, este artigo de António Valdemar, dado à estampa no Público no passado dia 2, fez mais, junto do povo português, pela divulgação da vida e da obra de Sampaio Bruno, de quem por estes dias se comemora o centenário da morte, do que qualquer outra acção ou iniciativa de que há memória nas últimas décadas. Quantos, por qualquer forma, se reclamam do movimento da Filosofia Portuguesa, devem por isso estar-lhe gratos, com humildade e sem sectarismo.

Com humildade. Como convém, sempre que de um homem como Sampaio Bruno se fala. Isto o sabem quantos verdadeiramente passaram pelas mãos de um mestre. Ou pelas mãos de um verdadeiro mestre. No caso pessoal do compilador socialista-anarquista de O Brasil Mental, que de si mesmo confessa, n'A Ideia de Deus, nada mais ser do que um jacobino, nem sequer lhe foi necessário passar em loja pelas mãos dos mestres da Ordem Maçónica, cuja doutrina, de evidente origem judaica, demoradamente exalta nas páginas de O Encoberto, para saber que quem se humilha será exaltado e quem se exalta será humilhado.

Sem sectarismo. Podemos, aqui e ali, concordar com António Valdemar ou dele discordar. Mas não lhe devemos negar o talento vivo e telúrico de uma prosa ágil, sã e sábia. António Valdemar não se confunde com o cinzentismo servil do modo funcionário de viver.

Tem inteira razão António Valdemar ao reclamar ambiciosamente comemorações nacionais para Sampaio Bruno. Comemorações para o povo, com o povo, e que ao povo devolvam Bruno. O povo que, em cada momento, encarna o fluir da nação no chão da pátria. Pensará, por certo, Valdemar no envolvimento das estruturas administrativas, das principais instituições culturais do país, da comunicação social. E todos temos de reconhecer que a realidade presente se encontra ainda muito longe do que seria desejável.

Já este ano, a Biblioteca Nacional, instância de reconhecimento que representa a República, deu um importante contributo para as comemorações deste centenário brunino, com a realização de uma exposição bibliográfica e documental. Mas não poderemos exigir demasiado a uma instituição que, apesar das dificuldades com que se debate, continua a prestar aos seus leitores – hoje mesmo, ali trabalhando na investigação biográfica de António Telmo, o pude comprovar – um serviço de excelência. Nela se encontra sempre uma porta aberta às sinergias da boa vontade. Assim tem sido, por exemplo, com os Congressos que integram o triénio pascoalino; ou com as comemorações dos 250 anos do nascimento de Bocage, que por ali têm passado, exemplarmente promovidas pelo Centro de Estudos Bocageanos – e aqui será justo realçar o inexcedível entusiasmo de um fraterno amigo: Daniel Pires – e pela Câmara Municipal de Setúbal. A par das conferências e das exposições que, quer em Lisboa, quer em Setúbal, quer por esse mundo fora, começaram a ter lugar, importa salientar um impressionante esforço editorial, de parceria com a Imprensa Nacional – Casa da Moeda.

Na verdade, a melhor forma de comemorar um autor é editá-lo, ou reeditá-lo. Sem isso, de pouco valerá estudá-lo e debatê-lo apressadamente em areópagos mais ou menos cerrados. Pessoalmente, tenho pena de que Sampaio Bruno e Álvaro Ribeiro não tenham tido, nos últimos anos, fortuna editorial idêntica à que Leonardo Coimbra e José Marinho conheceram. É óptimo que estes mereçam a edição de obras completas, é de lamentar que aqueles continuem parentes pobres. Tanto mais que Sampaio Bruno há muito caiu no domínio público e alguns dos seus títulos – casos de A Questão Religiosa ou Portugal e a Guerra das Nações – nunca foram reeditados desde o seu surgimento, há mais de cem anos! Não fora a acção patriótica de um Paulo Samuel ou de um Joaquim Domingues, e o panorama encontrado seria ainda bem pior.

Claro que não estranhamos o sacer esto que sobre Álvaro Ribeiro há muito se abateu, mormente na Universidade. E, no entanto, nenhum outro filósofo português melhor estudou, interpretou e difundiu o pensamento brunino, nenhum outro filósofo português tão fielmente o restituiu à sua verdadeira matriz: a da herança judaica da cultura portuguesa. Por Sampaio Bruno, Álvaro Ribeiro e António Telmo passa a catena aurea da kabbalah e do aristotelismo, ali onde esoterismo e exoterismo formam as partes do todo da filosofia portuguesa.

Está certa, nos tempos que correm, a preocupação de António Valdemar. Preocupação tanto mais razoável quanto as comemorações dos vinte anos da morte de um outro pensador português, Agostinho da Silva, este dotado de bem maior notoriedade junto do povo, só conheceram um princípio de expressão nacional, em 26 de Novembro de 2014, graças à actuação conjugada do Projecto António Telmo. Vida e Obra, do Centro de Estudos Bocageanos e da Biblioteca Nacional de Portugal.

No seu belo escrito da passada segunda-feira, lembra António Valdemar que por longo tempo se viu Sampaio Bruno, o único homem que, em Portugal, segundo Fernando Pessoa, mostrava compreender, impedido de ingressar na Academia das Ciências, ainda que esta, mais tarde, reparasse o erro, antes de abrir indiscriminadamente a porta a carreiristas intelectuais e oportunistas políticos. E isto por uma só razão: a falta de habilitações que só um curso universitário lhe proporcionaria.

Há muito que, no Porto, nos nossos dias, um homem vem trabalhando com denodo, rigor e paixão no inventário e na recolha dos dispersos de Sampaio Bruno. São milhares e milhares de páginas que morosa, pacientemente, por ele vêm sendo resgatadas. Tal como Bruno, não o credita um título académico. Tal como Bruno, não se põe em bicos de pés. Está destinado à glória humilde dos que se não confundem com os carreiristas intelectuais e os oportunistas políticos. Chama-se este homem simples, digno e generoso José Cardoso Marques e dá ao Projecto António Telmo. Vida e Obra a honra de o integrar. Estará connosco em Sesimbra, no próximo dia 28, na sala onde António Telmo fez a sua derradeira conferência. Connosco e com Bruno. Sempre.

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