CORRESPONDÊNCIA. 30

06-02-2016 20:41

CARTAS DE ANTÓNIO TELMO PARA ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO. 11

 

 

ESTREMOZ

31 de Julho de 1996

 

Meu estimado distinto Amigo

 

Infelizmente, o que tenho a dizer-lhe sobre as relações pessoais do Almada com os da filosofia portuguesa é muito pouco. Eu cheguei depois das reuniões do Palladium em que participava também o pintor que, então, publicou não me lembro em que jornal a famosa entrevista sobre a cegueira iluminada de Homero.

Claro que havia um fundo comum e uma estrela análoga para todos eles, com a fatal excepção de alguns que por ali passavam só para “abichar” (é assim que se escreve?) os condimentos necessários ao cozinhado do seu bolo literário-social. Não foi evidentemente o caso do grande pintor, tão interessado como Álvaro Ribeiro em trazer para o ensino do Estado a arte de ser português de Teixeira de Pascoaes. Para confirmá-lo basta ler o que Almada escreveu sobre Portugal.

Se eu me posso considerar um dos da filosofia portuguesa, talvez sejam de referir sobre o que me pede as minhas conversas a sós com o visionário da Nau Catrineta num dos Cafés da baixa lisboeta. Claro que, sendo então muito novo, o pintor da Nau dos Cátaros no cais de Alcântara envolvia-se para mim do prestígio de que ele gozava entre os seus pares do Café Palladium que me ensinaram a venerar Santa Catarina, patrona da filosofia, a admirar Camões que amava Catarina, a fazer da minha vida interior um Alto de Santa Catarina.

Não sei se isto lhe serve. Espero que estas águas passadas o ajudem a mover o seu moinho. As águas que passam são agora para mim as do seu livro(1) e que por três vezes fiz correr perante os meus olhos.

Não posso, no entanto, esconder-lhe que à corrente das suas ideias sobre o que poderíamos chamar de “poesia fonética” opus algumas resistências, de resto já enunciadas nas páginas que me dedica e que li com gratidão, não só pelos elogios como sobretudo por considerar discutível o que escrevi, sob certo aspecto, na minha Gramática. Resistências ou pedras que tem por fim não parar o curso das suas águas (o que é impossível e indesejável) mas desviá-las noutro sentido.

Por outras palavras: não será possível prolongar a sua visão de modo a fazer perder-se, na distancia que criasse, o valor que o António Cândido atribui aos manipuladores de "legos" (é assim que se escreve?) que, pela substituição da vogal, constitui a degradação do “logos”? Busco sempre a significação. Como muito bem diz, as palavras com referencial não significam. Designam. Anulada a sua relação com o que é referível, fica só o som e nesse som puro vê você o valor. Para mim é aí que a significação pode ou não pode surgir. Se surge é para significar o invisível puro ou o invisível que há nas coisas visíveis. Um poema como o dos índios Comanches pode, dadas certas condições, libertar energias do vasto mundo intermediário, provocando o êxtase em que o corpo participa. Mas como esse mundo tem também os seus escanos, os versos automáticos dos surrealistas captam energias bem inferiores que são as que estão implícitas em toda a fenomenologia espírita. A mais alta poesia não é, porém, a que exprime ideias (Antero de Quental) na sua forma abstracta, vestidas ou não de roupagem imagética, mas a que traduz ideias viventes (Teixeira de Pascoaes) em que o corpo delas e o que as anima são um só. Há, depois, ainda num plano mais baixo do que a poesia automática, a poesia feita a frio, literariamente calculada (Jorge de Sena) para obter efeitos no espírito daqueles que só vêem através dos livros que a cultura garante.

A poesia de Pascoaes é também poesia fonética, em que o sentido das palavras e das frases ressoam nos fonemas e, através deles, se transfigura e transubstancia. Admirável poeta é também Eugénio de Castro, que eu conheço apaixonadamente desde a minha puberdade. É um nobre e alto discípulo de Péladan.

Vou escrevendo ao correr do teclado e agora reparo que só por terem sido o resultado do seu livro as considerações que vou deixando se desculpam de um certo tom didáctico que espero não lhe seja desagradável. Falando como o Afonso Botelho, o encanto que o livro causou em mim degenerou no encantamento com que, inconscientemente, pretendo prendê-lo. Terão até sido palavras escusadas porque o António Cândido sabe bem aquilo por que divergimos e aquilo por que convergimos. Fico-lhe, como disse, muito grato pelas objecções que pôs à minha Arte Poética. Aqui em Portugal ou se elogia um escritor ou se faz o silêncio à sua volta. Livros são cartas que escrevemos. Merecem resposta franca discutindo as teses, procurando para elas novos teoremas. É o que faz nas quatro páginas que me dedica. Muito obrigado por dar existência ao que tenho pensado.

Li encantado o seu livro. Admirei a coragem das suas nobres palavras sobre os críticos literários. Fiquei radiante de o ver valorizar Eugénio de Castro e António Feliciano de Castilho, que nunca li, apesar de o Álvaro Ribeiro mo aconselhar frequentemente. Aplaudo sinceramente a sua ajuda a jovens como o Botto-Semedo, o Avelino de Sousa, o Alexandre Vargas ou o João Raposo Nunes. Ângelo de Lima tem segredos na sua loucura que talvez não estejamos em condições de conhecer. E o Raul Leal?

Um fio subtilmente luminoso separa o satanismo do paracletismo. Somos nós capazes de o discernir? Estamos, para tal, verdadeiramente interessados em vê-lo? Importa ou não distinguir um do outro?

Um grande abraço do seu muito amigo

                                                           António Telmo

Gostaria de ler o Tratado de Metrificação de A. F. de Castilho. Onde poderei obtê-lo?

 

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(1) Nota do Editor - António Telmo refere-se a Poesia oculta: estudos sobre a moderna lírica portuguesa. Lisboa: Vega, 1996.