UNIVERSO TÉLMICO. 31

10-11-2015 09:18

Publicamos hoje, na íntegra, o texto da palestra sobre Agostinho da Silva e as suas Sete Cartas a um Jovem Filósofo que Risoleta C. Pinto Pedro proferiu no passado dia 31 de Outubro, no Auditório do Centro Raio de Luz, em Sampaio, Sesimbra, no âmbito do ciclo Agostinho Revisitado: Novas Aproximações.

(In)disfarçada confissão em Sete Cartas a um Jovem Filósofo, de Agostinho da Silva

Risoleta C. Pinto Pedro

 

Uma das características dos que têm vindo a formar a egrégora da Filosofia Portuguesa é a ausência de radicalismo ou de fanatismo em relação a qualquer uma das componentes daquela: aquilo que poderíamos designar, embora sem rigor, por conteúdo e forma, ideia e expressão, mas talvez melhor: filosofia e poética. Daí a nossa originalidade. Uma poética filosófica ou uma filosofia poética, embora as duas expressões tenham diferentes correspondências, porque a ordem não é arbitrária, mas não sou a pessoa indicada para falar sobre isso.

Trago o assunto a lume, porque abordarei o Agostinho das Sete Cartas a um Jovem Filósofo como sempre tenho feito em relação a restantes partes da sua obra: do ponto de vista literário, mas não, exclusivamente, do ponto de vista da forma, porque nele, como em outros, a poética é essência e a ideia também dá forma. Assim, ao tratar da sua poética, impossível se torna deixar de lado a filosofia, ainda mais num livro que tem por título o destinatário: um filósofo enquanto jovem.

Tal como Agostinho, ou, sem querer ser papista, talvez mais ainda do que ele (porque nele, acredito, parece-me ser muitas vezes uma pose, um teatro, sinto que ele tem mais certezas do que diz…), não tenho a certeza de nada, ou de muito poucas coisas. Não estou segura de tudo o que aqui afirmo, é um afirmar que enferma de pouca firmeza, mas assumo firmemente a responsabilidade pelo que firmarei.

Andarei entre literatura, pensamento e símbolo, que afinal são a mesma coisa.

Começamos bem com o sete, com cartas, e com um jovem que é ou pretende ser filósofo. Três trunfos com pano para mangas sem batota, mas com muito jogo, neste baralho de cartas só aparentemente não de jogar.

As cartas são escritas por José Kertchy Navarro, um heterónimo de Agostinho? Vejamos. Um outro? Que não apenas no nome? Veremos.

O texto foi publicado em 1943, tal como o Diário de Alcestes, ambos em edição de autor.

A versão sobre a qual trabalhei é de 1993 e intitula-se:

Sete Cartas a um Jovem Filósofo, seguidas de outros documentos para o estudo de José Kertchy Navarro

Está organizada da seguinte forma:

Às sete cartas seguem-se  “Os Poemas em Prosa”, um “Esquema Biográfico” e uma “Nota Final”.

Debruçar-me-ei, por agora, apenas sobre as “Sete cartas…”, se houver espaço e tempo, do que duvido, o “Esquema Biográfico” e a “Nota Final”, e deixarei a parte incrustada: “Os Poemas em Prosa”, para objecto da minha próxima intervenção sobre Agostinho, em Fevereiro. De outro modo dizendo: ocupar-me-ei primeiro da coroa e depois das joias.

O destinatário das cartas chama-se Luís, ficamos a saber na primeira carta, que começa com um tema muito caro a Agostinho: a imponderabilidade das decisões:  “[…] tanto faz decidir-se depois de ter pensado bem um ponto como decidir-se atirando uma moeda ao ar;[…]”

Das cartas ao jogo de dados. Com moeda.

Os dados uma vez lançados, confirmemos, mais adiante, de que forma este jogador joga connosco:

“parece-me perfeitamente absurdo preferir uma à outra. No entanto, como lhe disse, penso sempre.”

Pensa sempre, este pensador jogador. É um filósofo que é, ao mesmo tempo, a primeira carta do tarot, o mago. O jongleur, acrobata ou saltimbanco. Tudo se lhe aplica. O filósofo que, brincando connosco, jovens aspirantes a filósofos, ri. Não de nós, mas das suas próprias acrobacias de pensamento. Sempre eticamente. Mesmo quando nos tira o tapete:

“penso sempre, porque o mundo pensa, não jogo porque na essência do universo não há jogos. Mas então porque joga você?”

Adiantando imediatamente a resposta, como retirando as palavras da boca do seu destinatário:

“o não haver jogo essencial no universo não quer dizer que não haja jogos aparentes;”.

Como se não bastasse, para atear a fogueira e aumentar a confusão nas hostes, lança, mais à frente, outra acha: “parece-me grave que você compre vigésimos e se recuse à moeda; “

Com quem está ele a falar? Com o seu jovem filósofo Luís ou consigo mesmo, que, como dirá noutro passo, nunca usou a moeda?

A imponderabilidade dos acontecimentos e das decisões, das acções e reacções com que inicia as cartas, é um tema muito agostiniano. Ele arrasta-o, aliás, ao longo da sua vida através de um ao mesmo tempo sério e irónico agradecimento aos mais adversos acontecimentos pelos quais as melhores coisas lhe foram proporcionadas. Apesar de defender, logo no início, como estando ao mesmo nível, a moeda ao ar ou a reflexão ponderada, acaba por afirmar outra vez com séria ironia, mais à frente, que nunca resolveu nada através da moeda, mas percebe-se que não o fazendo ele, não despreza o jogo que lhe faz a vida, nem despreza olhar para a moeda por ela atirada e caída. Só não o faz porque tem quem o faça por ele, uma pitonisa privada chamada Existência. Digo eu.

Este aparente diálogo, parece-me ser, afinal, um processo literário de ocultamento do monólogo interior que aqui vejo. Porque está à vista, apesar de alguma cosmética literária no sentido da verosimilhança, em partes que permitem entrever os bastidores, como alusões a conversas entre cartas, alusões a contextos conversáveis fora do universo de observação do leitor, que nos deixam com curiosidade e vontade de preenchê-las nos pressupostos contextos do entre-texto, como:

“Você tem razão num reparo que me fez:”, ou:

“A menos que você prefira vir por cá para que palremos” ou ainda “A nossa última conversa foi tão rápida e em lugar tão pouco propício”,

respectivamente do final e do início da primeira e da segunda cartas.  Outras alusões, porém, aparecem como muito pouco verosímeis. Tal é o caso, logo na primeira, quando afirma:

“como já teve ocasião de me dizer, não possuo muito o talento da construção lógica”. Atrevimento pouco plausível num jovem discípulo aspirante a filósofo. Assim sendo, se não é alguém fora dele que lho diz, não é difícil tirar as conclusões, assim ficando justificado para o leitor, o que anuncia:

“esta conversa de hoje tem fatalmente de seguir um pouco o curso errante de outras nossas conversas”.

Ora que há mais próximo deste “curso errante” que o monólogo interior?

Assim, como afirmei anteriormente noutros textos que escrevi, ele escolhe aquele de que fala. E escolhe, daquele de que fala, os aspectos espelho em que se revê. Aqui desdobra-se em si e si próprio, dá-se um nome, coloca-se como discípulo de si mesmo e discorre. E temos: “Je suis moi” ou “c’est moi lui”, ou melhor ainda: “C’est moi Luís”, para finalmente: “Luís c’est moi”.

Vejamos como se denuncia:

“você, querido Amigo, estava em transe, em plena crise de faquirismo, e tanto lhe fazia que eu o ouvisse como não; ou falava como uma torrente que rompe o dique e rola sem nenhuma possibilidade de se conter, ou, como me parece que às vezes acontece consigo, falava para se ouvir a si próprio: é o grande perigo das pessoas que falam bem: são as serpentes de si próprias, saem dos cestinhos para ouvir a música deliciosa e o que podia ser uma manifestação esplêndida de humanidade transforma-se em espectáculo de rua. Note que não o censuro nada: você faz o que pode; mas há aí um lado inferior da sua personalidade; ou talvez seja o defeito de uma qualidade.”

Agostinho alerta Agostinho. Não que ele seja exactamente isto ou se veja assim, mas talvez por vezes se tenha sentido sobre o cume, a lâmina de onde se vê o abismo, o outro lado. Nem sempre no sentido do defeito, ou da sombra, como se pode ver:

“Você tenciona, pelo que depreendo da sua carta, ser um filósofo. Não no sentido de que exporá doutrinas alheias ou construirá uma sua doutrina e se dará satisfeito com tudo isso, mas no sentido de que tentará pôr a sua vida de acordo com a sua filosofia”.

Como sabemos que Agostinho fez, tanto quanto é possível a alguém consegui-lo.

E prossegue o monólogo interior, onde vemos espelhada, quase em antecipação, a sua vida como naquilo a que hoje se chamaria programação neurolinguística, processo muito antigo, desde que existe Deus e criação:

“Um Séneca, como você talvez já saiba, teve o desprezo das riquezas, mas foi banqueiro; um santo tem o desprezo da riqueza e nunca é banqueiro: são duas atitudes diferentes. Você naturalmente vai pela primeira: se a miséria vier, paciência, se vier a riqueza, paciência também.”

Este é um livro de jogos silogísticos de nível avançado, porque a sequência dos raciocínios tem de ser procurada pelo meio da fresca e viva corrente conceptual. É um jogo, juntar as peças do puzzle e completar o raciocínio em seu esplêndido brilho. Pensamento e moeda, calculada, dramática e sorridentemente atirada por um deus.

É esta a ética de que estes textos não se alienam, uma ética tão quotidiana quanto grandiosa, humana e quase divina, tão concreta quanto abstracta. Não é possível falar da escrita de Agostinho linearmente.

Vejamos:

“Não lanço a moeda, porque não renuncio a compreender, porque não renuncio à deliberação, porque não renuncio a uma vontade em que não acredito.”

E mais à frente:

“No entanto, continuo a suplicar dos deuses, a ter como mais firme dentro em mim a inspiração de que um dia atinja o heroísmo de me atirar a todas as batalhas em que não haja esperança de vitória.”

Muito menos estoico do que o Ricardo Reis porque pede. Ricardo Reis que, nesta altura, como António Cândido Franco afiança e concordo, ainda não conheceria, mas com o qual já apresentava alguns pontos de confluência. Avant la lettre. Misteriosas comunicações. Mas afinal RR também pede… que não seja tentado pelo pedir:

“Aos deuses peço só que me concedam/ O nada lhes pedir. A dita é um jugo/ E o ser feliz oprime/ Porque é um certo estado./ […]”

Também não posso deixar de reparar nesta semelhança fonética entre o “jugo” de RR e, de Agostinho, o jogo. Não é sobre a fonética que se baseia a Gramática Secreta… de Telmo, essa que da língua tenta compreender o sopro, a respiração, a música, a presença divina?

Afinal, é a vida que vale a pena jogar e só é possível fazê-lo sem cálculo, não julgando, renunciando ao pequeno jugo:

“querido Amigo: embarcar num navio que nunca chegará, rumar por mapa e bússola ou goniómetro para o porto que não existe; meter-se uma pessoa ao maior jogo sem jogar.[…] Jogar a vida, mas não jogar nada dentro da vida.  Você, às vezes, dá-me a impressão de que, não tendo coragem para jogar a vida, se entretém em pequenos jogos dentro da vida, é fraco em tudo. Espero vê-lo um dia descer do vigésimo à cautela; a cautela convém-lhe porque é barata e sórdida.”

Seria um paradoxo, este aparente jogo de acusação, humilhação a roçar o insulto, se não estivéssemos num jogo de espelhos de José… Agostinho consigo mesmo. É esta a face do dado que atiro, receando, contudo, enganar-me. Mas só isso explica esta frequente incoerência entre o tratamento quase insolente que é dado ao destinatário da carta e a quase suplicante ternura com que se despede: 

“E passe por aqui quando puder. Sempre muito amigo.”

Nesta implícita ponte com Pessoa/Reis, não poderia deixar de aparecer Campos, segundo o seu criador: “tipo vagamente de judeu português”, através da alusão a Beethoven, e o heroísmo, a tragédia e a liberdade que associa à sua música, e isto é a força, de que havemos de falar mais tarde. A ponte de que falo, repito, sou eu que a imagino, que neste momento é muito pouco admissível o conhecimento do poeta dos heterónimos por Agostinho.

Através da admiração por Beethoven, a aproximação a uma estética musical, literária e filosófica já não baseada no equilíbrio, mas na “energia”, nas capacidades de um “gigante”, o único capaz de se dedicar à filosofia como a um sacerdócio: 

“Você vai precisar de todo o seu tempo, de toda a sua energia, de pensar de manhã até à noite nos problemas filosóficos;”.

É uma filosofia épica, ao nível da épica poética de Campos, e não um “ascetismo filosófico”, que ele declina.

Aqui reentra o judaísmo de Campos e a força necessária a quem sobreviveu em desertos e abriu mares. Mas também o de Camões, esse fiel do Amor, avesso a Roma e avesso de Roma, escravo apenas da sua Amada, que é, nesta caso, a Filosofia. Tal como Jacob no soneto de Camões, para ter Raquel, se dispõe a “servir outros sete anos” a Labão, Agostinho usa uma belíssima expressão inspirada no Poeta de quinhentos transposta para a Filosofia:

“Escravo, pois, e tão escravo que só lamentemos a brevidade da existência: que longa a tornaríamos se o pudéssemos;”

que nos faz lembrar o camoniano:

“Mais servira, se não fora/ para tão longo amor tão curta a vida!”

Assim viveu Agostinho, numa alegre e livre escravatura a tudo o que nele foi sentido como Amor, em livre e alegre assunção do sacrifício, no sentido de aproximação a Deus ou ao sagrado, mas não afastado da inquietação, essa qualidade tão presente nos judeus:

“há em mim uma inquietação que não se acalma”.

Talvez por isso precise de recorrer, de vez em quando, aos clássicos. Não é contradição, é pausa, é repouso, é respiração:

“Há um meio-termo: seja medíocre para minha segurança, querido amigo; para que eu me repouse dos meus temores.”.

Até parece que se conforma à aurea mediocritas, numa das suas frequentes e apreciadas imagens náuticas ou estética marítima, reparem na musicalidade da alegoria:

“E então vou de noite, no meu pobre barco a remos, e rodeio-o no ancoradouro, escuto o menor chapinhar na água e surpreendo-me a bater-lhe palmadas afectuosas no costado e a dizer-lhe: “Cuidado! Cuidado com as ondas de través, cuidado com os blocos na bruma, cuidado com os fundos, cuidado com os fogos!”.

Mas esta aurea mediocritas  não passa de aparência, porque logo a seguir, declara:

 “Perfeitamente absurdo.”.

Terminando a carta a reclamar, significativamente, a devolução do Whitman que teria emprestado ao seu jovem amigo, esclarecendo: “E eu, de vez em quando, leio o Whitman.”

Não nos enganámos muito quando o aproximámos de Campos, esse outro apreciador de Whitman. E da força. Essa poética de um marrano. Aproximação nossa, mas que explica o reconhecimento que iria acontecer mais tarde. Irmãos de alma mesmo separados sempre se reconhecem.

É muito interessante desmontar uma passagem, mais uma vez náutica, que se inicia com uma premissa estoica:

“não force nunca, seja paciente pescador neste rio do existir. Não force a arte, não force a vida, nem o amor, nem a morte. Deixe que tudo suceda como um fruto maduro que se abre e lança no solo as sementes fecundas.”

Não fosse o caso de mal interpretarmos, remata com um:

”Islamismo, claro.”

Entretanto já afirmara:

 “Que não haja em si, no anseio de viver, nenhum gesto que lhe perturbe a vida.”

A vida como o mais alto valor, a que se seguirá, em remate:

“ O suicídio é absurdo e condenável apenas porque me não deixaria viver.”

 E aqui temos, como Pedro Martins já demonstrou no seu livro Um António Telmo, a negação pelo recalcamento, da herança judaica. Como quem pinta um cachimbo e afirma: “Ceci n’est pas une pipe”, Agostinho exalta a vida e ao mesmo tempo é como se afirmasse: “isto não é marranismo”, que é o que diz em: ”Islamismo, claro.”. 

Contudo, é inquestionável que Agostinho, heterónimo de José, ou vice-versa, alternadamente elogia, com a mesma convicção, a exaltação e força Álvarowaltwhitmanianas ainda que não conhecesse ainda Álvaro de Campos, e a ataraxia de Séneca e Reis, este também a conhecer no futuro:

“Tudo pode esperar. Aguardemos pacientemente que em nós brote aquilo a que viemos.”

Mas só ele para transportar para o corpo, até às últimas consequências, contra todo o senso comum, o conceito de aurea mediocritas:

“como é bom ter quase excelente saúde: mas as delícias de uma gripe de quando em quando, quem dignamente as cantará? As delícias e os proveitos, porque estes toques de doença, para quem os percebe e deles faça utilidade, são das melhores dádivas dos deuses. Uma saúde perfeita é insolente, animal, e grosseira. Como são intoleráveis os doentes perfeitos. Mas o meio termo, a mediocridade, como já uma vez lhe disse, é que permite ver a arte e a vida.”.

A doença aqui ao serviço da aurea mediocritas. O corpo olhado com realismo e pinceladas naturalistas de Cesário, mais o heroísmo cru do ainda por si desconhecido Campos.

Ou então, se quisermos avançar até aos dias de hoje, o corpo visto como condição de consciência, e recordo muito particularmente o trabalho de um psicólogo e um médico alemães, psicoterapeutas, nossos contemporâneos, intitulado A doença como caminho, em que esta é reabilitada em termos de auto-conhecimento e libertada da diabolização que vem sofrendo há séculos, essa sim a verdadeira doença. Vista do lado cru e solar, a doença dança e traz à luz o que se escondia no corpo.

Para além disso, naquela bela passagem do texto de Agostinho, as estéticas naturalista e antecipadamente futurista ali abraçadas, ao serviço das ideias.

E novamente, o inquestionável diálogo consigo, o auto-conselho:

“Digo-lhe tudo isto porque você tem grandes tendências para a saúde absoluta e para forçar;”.

A herança judaica já referida, de algum modo também aqui presente, pela importância dada ao corpo, o nosso carimbo no mundo da manifestação acção.

Uma outra passagem contada como história pessoal, mas com inequívoco perfume de lenda, acerca de um pretenso amigo judeu com muita idade (“lembrava-se ainda da coluna de fumo que o tinha guiado no deserto”) a quem os amigos, como prenda de anos, devido ao seu proselitismo, decidiram oferecer um cristão para ele converter. E com uma pequeníssima narração comentada de menos de meia dúzia de linhas conseguiu matar dois coelhos: a lembrança do judeu em si e a tentação cartesiana, idealista ou kantista do seu destinatário, pois é de uma analogia que se trata: a voracidade conversora do jovem filósofo perante os “não-cartesianos, ou não-idealistas, ou não-kantistas”.

A acima referida alternância de contrárias convicções, as aparentes contradições, fruto de um processo de espelhamento, são, muitas vezes temperadas de uma incontida e inequívoca ironia, quando declara, por exemplo:

“Querido amigo, dê-me notícias suas ou apareça; aparecer é melhor, porque, no fundo, detesto a epístola.”

É muito interessante o “no fundo”, que remete para uma prática oposta ao que se afirma: Nesta obra, constituída por epístolas, e na vida, em que as cartas foram uma actividade, quase diríamos se não receássemos o excesso da avaliação, compulsiva.

Presente, a razão através de um quase incontornável raciocínio, ainda que, ao pensamento comum, possa parecer radical. Daí, em parte, o fascínio.

Também o Amor é alvo de análise e raciocínio e uma espécie de medida para a qualidade do ser. Através de uma complexa análise semântica a partir do conceito de tolerância. No desenrolar do pensamento, a palavra vai sendo associada, como em contas de rosário, a desdém, desprezo, indiferença, numa imbatível argumentação com que vai progressivamente desvelando e denunciando o conceito naquilo que aquele encerra de aparência e de preconceito. Acaba por hierarquizar os conceitos situando o Amor acima de Apolo e da Filosofia, quando esta se posiciona em relação ao mundo numa base de tolerância.

Voltando aonde estávamos, pelo meio, diaboliza a tolerância colocando-a abaixo da perseguição, reabilita a discussão, elogia a ignorância dos que não estudaram filosofia ou nem sequer sabem ler:

“mesmo quem não vale nada vale muito”,

na condição de ser amável.

Ficamos a saber que tolerar é não ser amável, logo, é não ser habitado pelo amor:

“Eles são amáveis, podem ser amados, você, porém, é estreito, e não os ama. Depois disto, como se fizesse uma grande concessão, declara que os tolera.”

Afirma, em coerência, na sétima carta:

“No seu ponto mais alto, Filosofia é uma criação perfeitamente similar à criação artística ou religiosa ou amorosa;”

É o amor sempre, mais uma vez, associado a uma ética superior independentemente dos saberes e, mais uma vez, numa total incompatibilidade com a tolerância. Num desenrolar de pensamentos a que nega a vertente argumentativa:

“Você julga que jamais alguém foi convencido por argumentos? O próprio verbo convencer se devia banir da linguagem corrente: as pessoas aderem, não são convencidas. E às suas ideias, por exemplo, hão-de aderir menos pelo que você pensar do que por aquilo que você for.”

O que entra em aparente contradição com o conteúdo das cartas, plenas de raciocínios muito próximos da argumentação, a menos que: as cartas se dirijam a si próprio e/ou tenha uma fé profunda na pessoa que é, para além da argumentação que desenvolve.

A razão e o imenso mistério que é a vida, já que é do insondável mistério humano (porque é no humano, não no divino, que o mistério habita) é do que aqui se trata.

De filósofo para filósofo. Ou de filósofo para aprendiz. Ou de um Deus criador, desafiador e insolente para um aspirante a filósofo.

O título destas cartas, meramente descritivo, a ter uma natureza interpretativa, poderia ser “Nosce te ipsum”, porque se trata, quase claramente, tão claramente quanto o encriptado pode ser claro, de um monólogo de autoconhecimento em forma de diálogo. Pela análise e pela argumentação consigo mesmo. Agostinho compulsivo professor que quando não tem alunos se usa a si para receptor da análise argumentativa sobre um pensamento ético recheado de metáforas e subtil sorriso. Às vezes, a tocar a afronta.

E como é irrequieto, por vezes está de um lado, por vezes de outro. É uma espécie de heterónimo instável, saltitante e imprevisível como ar. A partir de certa altura, previsível na sua imprevisibilidade. Ou um desdobrado pseudónimo que se reparte para melhor se encontrar. Ou conhecer. Como Deus.

Talvez a citação que se segue ajude a confirmar o que acabo de afirmar:

“O criador é uma espécie de monstro em que há o homem e o outro; quem desanima, quem se abate, quem chora é o homem: o outro, se é grande, até os desesperos utiliza.”

É isso que tenta fazer José Navarro: transformar o homem no outro. Luís é, por enquanto, o homem. Será ele José, o outro? Não temos dúvidas de que ambos são o monstro, ou, segundo ACF, o colosso.

Não é possível afirmar que cada carta tenha um tema, porque se assim parece no início de algumas, não se confirma. Há como que uma introdução através da qual, de raciocínio em raciocínio, acaba por ir parar ao tema ou temas que pretende, e que podem passar de uma carta para outra, com diferentes tons e cambiantes. Em cada carta, os temas enrolam-se, emaranham-se como cerejas.  Por vezes o tema é apenas um pretexto para tratar do seguinte ao qual o primeiro permite, retoricamente, aceder.

São estes a criação, a felicidade, o amor, a filosofia, a literatura, a coragem, a vida. Numa base ética.

A escrita está perpassada de aforismos, como em Agustina. O aforismo é filho da ausência de medo. Do medo de errar. Do risco que sempre existe em tão peremptória afirmação. Agustina tinha uma mãe que repetia provérbios, talvez lhe viesse daí uma parte da propensão para os aforismos. Que roçam, por vezes, a boutade. Não sabemos se a mãe de Agostinho repetia provérbios, mas os aforismos estão-lhe no sangue da escrita e convivem pacificamente com a complexidade.

Também ele, por vezes, entre o aforismo e a boutade. Profusamente, Agostinho é florestal, abundante. O que, num trabalho deste tipo, não facilita as coisas.

Tive de conter em mim a tentação de tudo comentar, analisar e interpretar, por duas razões: porque a filosofia não é a minha área de conforto e porque foi com o propósito do olhar literário que me propus reler estas cartas. Assim, muita tentação terei de afastar durante o caminho. Mas não todas, porque algumas estão em ligação íntima com o que pretendo observar.

Mas Agostinho e seu texto, na generosidade de sempre, oferecem-me, abundantemente, o que procuro, apenas tenho de colher. Depois de escolher. Logo na primeira carta, onde voltei ou talvez ainda me encontre, proporciona-me outro encontro, a tentação, esta já não minha, mas dos artistas em geral a que os poetas muito pouco escaparam, a começar por alguns filósofos, também não tão afastados da arte e da arte literária, nomeadamente os da Filosofia Portuguesa: expressar o que é, para eles, a arte. Aquilo a que se costuma chamar arte poética que é, afinal, uma teoria da arte, muito concretamente, como verão, uma ética da arte:

“Se um artista tem uma obra dentro de si, deve sacrificar os outros ou a obra? Nenhum artista, é claro, hesitaria na resposta: a obra nunca se sacrifica. Os artistas, querido amigo, são uma espécie de lobisomens: obedecem a um fadário, não podem deixar de sacrificar os outros em vez da obra; o que não é, nos melhores, pequeno elemento para que sofram.

[…] Se o seu caminho é o de dar, o que é lógico é que faça a dádiva mais alta: a de si próprio, a da sua obra. Se o não fizer, você toma a outra atitude, a de receber, que é sempre a do artista, considerado como criador; é evidente que, realizada a obra, ele passa a ser o que mais dá. Mas como criador é egoísta; sempre egoísta, o mais possível egoísta; talvez, de resto, o egoísmo seja aparente; talvez o artista, em vez de dar a um, se esteja reservando para dar a milhões. […] se você sacrificar a sua obra é porque não a tinha: havia apenas o desejo da obra, e nada mais. Porque se ela existisse! Você passaria por cima de tudo, esmagando tudo, sem piedade, com horror, mas sem piedade […] Quem tem uma obra, a obra o tem; quem traz mensagem a há-de ler perante o rei; arqueja, mas lê, sufoca, mas lê, e depois de ler cairá por terra, mas já a leu. É a posse mais terrível de todas, a escravatura mais completa, aquela que uma obra exerce sobre o seu criador.”

É aqui, nesta bela expressão poética da sua ética da criação, que se desenha o que é para si o real e o literário, a vida e o fingimento. Muito próximo da visão do, para si, futuro Pessoa:

“Não é quando se está em transe de amor, o único momento em que verdadeiramente se ama, que se escreve ou se compõe ou se pinta: é depois, quando o amor se abateu, quando reina o artista, quando é só em todo o campo e há do amor apenas a lembrança, […]”

Pessoa diria o mesmo de outra maneira:

“É como que um terraço sobre outra coisa ainda. Essa coisa é que é linda. “

 Daqui, desta teoria sobre a criação, passa rápida e magistralmente para uma teoria do amor: “O verdadeiro Amor é talvez impessoal” e “ao verdadeiro Amor corresponde o silêncio”, acrescentando uma das passagens, arrisco a dizer, mais belas, da sua obra, arrisco ainda mais: uma das mais belas passagens que eu já alguma vez terei lido:

“não se diz nada à rosa”

Pelo condensado, pela síntese, pela sabedoria, força e beleza, a receita integral alquímica presente nesta frase. E ainda o impessoal do sujeito, o feminino impessoal do objecto, a negação “não” e “nada” ladeando a expressão ”diz” e a associação inesperada entre o verbo e o objecto. A este nível, talvez só o verso de Silesius, “A rosa é sem porquê”, e mesmo assim tenho dúvidas.

Ao lermos a biografia de Agostinho feita por ACF, o que ressalta, e concordo, é a obra do autor. Lá está o homem, o colossal escritor, o colossal indivíduo, mas, acima de tudo, sempre, a colossal obra. Que acompanha a vida como dois carris de comboio se acompanham. Mesmo na acentuada curva que foi o pós-prisão, a chegada ao Brasil, as linhas fazem, uma um percurso mais largo que a outra, mas acompanham-se sempre.

Como, aliás, antecipa ou justifica a visão de ACF, do colosso:

“Mas você é puro sangue: tem de saltar e tem de correr; tem de dar tudo o que puder e, se eu tiver alguma espécie de influência, há-de dar mais do que puder. Há-de-se inventar você próprio a você: criar um outro Luís, melhor do que esse que possui e obriga-lo a criar, a esgotar-se todo na divina tarefa de criar.”

E avisa-se a si próprio ou continua a fazê-lo, por causa das tentações:

“Pois bem, querido Amigo, por mim, pode você estar seguro: nunca lhe permitirei que faça, do que é, uma profissão, que gele no que pareceu interessante a você e aos outros, que seja uma atitude em lugar de uma pessoa, a figura de cera de um museu, sempre o mesmo, e catalogado.”

Não sei se foram estas cartas lhe valeram podermos vê-lo hoje como

“o que é realmente vivo parte todas as molduras e regressa à liberdade da selva”,

mas não duvido que foi ele quem se valeu a si mesmo.

Houve uma moldura mais difícil de partir, a moldura da televisão, talvez nessa permaneça, ainda hoje, para alguns em parte aprisionado.

Talvez ele a tenha, misteriosamente, antecipado, como se soubesse, como em tragédia:

“Há em mim um certo gosto pela improvisação de circo: o clown nem sempre é muito lógico, mas às vezes faz perguntas embaraçosas e lança o remoque que vai ferir no mais fundo da alma o espectador inocente, o que entrou para se rir.”

Sendo ele aqui o clown e o que entrou para se rir.

Talvez precise, contra todas as suas expectativas, ainda hoje, de nós. Ou, mais uma vez, de si mesmo, através de nós. Lendo-o. Dando-o a ler. Profundamente. Pondo fim aos limitados e limitadores aforismos e citações repetidos ad nauseam. O aforismo mil vezes repetido e superficialmente interpretado pode ser o seu pior inimigo.

Sendo o seu maior amigo a obra lida, estudada, partilhada, transmitida, discutida. Acesamente, como ele gostaria. Com o respeito que é a ausência de reverência. Vejamos o que diz, numa espécie de auto-retrato, ou pelo menos assim o leio:

“Deixe firmar-se a primavera também em si, uma primavera temperada de uns arrepios de ironia, com a acidez de Março em lugar das molezas perturbadoras de Maio.”

Não deixa dúvidas, não teria gostado deste culto superficial das citações mastigadas, digeridas, cheias da moleza do prêt-à-porter, de um Espírito Santo de pacotilha que não celebra a santidade do Espírito na santidade do corpo, de meia dúzia de expressões memorizadas e mecanicamente expandidas até à auto-extinção pela fuga da alma.

Tenhamos a esperança que ele nos deixa, de que este veneno da simplificação, este macaqueio obsceno a que corajosamente se expôs não nos faça mal e não o mate. Na vida, como na morte:

 “Na minha vida, o que foi bom em si veio a ter muitas vezes consequências nada benéficas; e o contrário.”

Quem fala? Agostinho ou José Navarro? Atrevo-me a responder por ele: “José Navarro c’est moi”.

O auto-retrato, a auto-biografia, a auto-análise, implícita ou explícita, são uma quase constante. Frequentemente debate consigo, coisa a que não conseguia resistir. Faltando-lhe com quem debater, podia sempre recorrer a si mesmo. Por isso se mostra, tantas vezes, contraditório:

“no momento em que haja eternidade, nada foi útil ou prejudicial; tudo foi, simplesmente, e ninguém julgará, e ninguém será condenado.

Dirá você que, se tudo isto é assim, não haverá objectivo a atingir: seremos como a macieira que daria maçãs, mesmo que ninguém lhas comesse; que a última razão dos nossos actos não deve ser a de um alvo, mas a de uma existência, que mesmo aqui devemos abolir as causas finais. Simplesmente, querido Amigo, o espírito é finalista, tem ideias; abre-se aqui um conflito, senão entre a estrutura, pelo menos entre o aspecto do espírito e o aspecto do real;”

Talvez tenha sido esta prática de debater com ele mesmo, o laboratório onde se criou o colosso, aquele que desde muito cedo não deixava ninguém sem resposta e que muitas vezes deixava os interlocutores sem palavras.

O uso da analogia é frequente e surge no próximo exemplo a propósito do sofrimento na vida como forma de pagar o bilhete da viagem. Aqui se percebe como muitas vezes a herança estoica, que partilha com Ricardo Reis, aparece como uma máscara ou disfarce do judaísmo. É o caso da interessante metáfora do pão da vergonha que embora não apareça assim designada, é uma réplica perfeita da imagem judaica para todo o bem que se recebeu e que não se fez nada para merecer. Que começa com a criação. Explico, antes de voltar a Agostinho: perante a sua condição de ser criado à imagem perfeita do criador, a criatura sente o desconforto do desmerecimento. Ora, concordando o pai sempre com o filho e não pretendendo que a bênção se transforme em condenação, assim responde à criatura: Pois meu filho, seja como tu queres. Esta poderia ser uma narrativa da queda contada às crianças que existem em nós. Agostinho apresenta a versão para adultos:

“como queria você viver sem um tormento? Estar de graça no Teatro da vida? Não teria boa consciência, não é verdade? Pague o seu bilhete. E o bilhete é sempre sofrer.”

Aqui temos a visão judaica da queda, sem tirar nem pôr. O ganhar o pão com o suor do rosto, por sua própria vontade. O conquistar aquilo que já se é, para se merecer a si mesmo. Mas não se fica por aqui, estamos em plena doutrina da reintegração dos seres:

“aqui poderíamos dizer que a dor o levará ao que há de mais profundo e de mais nobre no ser humano”,

temperada de estoicismo.

Modera esta visão muitas vezes crua da vida, a beleza do inspirado estilo:

“chove sobre o justo e o injusto”,

neste caso, a metáfora em taça de antítese.

E, profusamente, a ironia, que constrói variadamente: ou pelo conteúdo, como qualquer página, ao acaso, poderá demonstrar:

“ao quarto argumento, todo você freme, mal se contendo: no entanto, lembra-se do estoicismo e ainda aguenta; mas ao quinto argumento, você insulta-os.”

Ou a ironia pode vir também da arquitectura frásica e da própria construção da palavra, o neologismo:

“E o mesmo com o kantismo e o pessimismo e o positivismo e tudo o restismo.”

A comparação, a analogia, a metáfora, a alegoria e a ironia são alguns dos tijolos de construção da escrita, material orgânico que não se sente como forma, tal a íntima ligação ao sentido. Formam dois grupos, a comparação estando na base das três que se seguem, e fugindo a ironia a qualquer norma.

No universo da comparação, de que nos apropriamos agora, e em termos da concepção da filosofia encontramo-lo de acordo com Álvaro Ribeiro quanto à necessidade de algum rigor no respeito pela tradição, definição e propriedade conceptual:

“Procure compreender os sistemas dos outros antes de criar um seu.” Ou: “ A filosofia que se não apoia num perfeito encadear de raciocínios e numa informação que tem de ser a mais sólida e a mais ampla, é apenas […] da pior literatura.”

Vejamos Álvaro Ribeiro n’O Problema da Filosofia Portuguesa:

“A pureza da linguagem só pode ser garantida pela escola(1); a actividade da razão só é despertada pelo ensino acroamático; a iniciação na filosofia só pode ser feita dentro de uma sociedade tradicional.[…] de nada valem as irreflectidas opiniões dos vulgarizadores de qualquer época, seita ou actividade.”

Agostinho aprovaria esta posição, que o teria defendido da actividade assassina dos vulgarizadores. E como “assassina” se aproxima de “asinina”... Agostinho, que preconiza estudo feroz para a criação de músculos, porque a relação com a filosofia terá de ser para ele, uma relação de amor. E o amor, sem a força, não o é:

“só quem é forte se apaixona” ou “sempre há força na raiz do amor”.

É muito curioso este encadear da filosofia com o amor através da sabedoria e da força. Dito de outro modo; a força como condição do amor sabedoria.

E o Amor como o supremo valor:

“que idealismo é o meu em que não entrem os materialistas?” ou

“Dirá você que uma concepção dessas, em que todos os contrários se harmonizam, só é possível em Deus. Vamos então nós desistir de chegar a Deus?”

E ainda:

“do amor sempre, porque, se é verdadeiro, ele supera a ciência e a arte, a filosofia e a política.”

“Se uma luz da caridade não brilha em si, para que lhe serve viver? Um filósofo mais?”

Mais uma vez, e sempre, uma ética de pensamento vivo. Corporizada na figura de Jesus, esse judeu-cristão:

“ou você vem a casar a filosofia com Jesus, ou então pode retirar-se, porque o mundo dispensa-o.”

 É curioso que a metáfora do casamento se materialize em Jesus, esse corpo vivo e humano de judeu. O casamento do que não é adverso ou, como diria Telmo, a “síntese superior”.

Ainda na esfera das figuras ou tropos, concretamente da metáfora, encontramos, com frequência, as da navegação, de que já vimos exemplo, mas a um pensamento e temperamento como o de Agostinho não poderiam faltar as metáforas do ar:

“Que aviõezinhos são estes que não aguentam trovoadas…”

“Você tem que ir à frente do bando, mas não muito à frente para que não percam a luz.”

 Uma excelente síntese deste ser que detestava a “altivez”, o “desprezo”, as “vaidades absurdas”.

Quanto aos finais, a estética defendida é a do “unhappy end”, a via da tragédia, que estende ao voto endereçado como remate:

“Querido amigo Luís, oxalá você falhe. […] que tudo acabe para você em desilusão e amargura;”.

Depois da maldição, o antídoto:

 “mas sempre a coragem, sempre a certeza, para o espectador, de que você a recomeçar jogava o mesmo jogo[…]. Sofrer não importa, só lhe poderá fazer bem: o que é essencial é que você nunca decline o sofrimento […] chore e lance clamores, mas renunciar, nunca.[…] Haja o que houver, suporte; quando não puder ir de pé, vá de joelhos, depois arraste-se, mas avance sempre enquanto possa e nunca largue o tesouro.”

Aqui, o tesouro é o sofrimento. Ele, a voz que liberta do conforto do sucesso, essa demoníaca tentação. Aviso a si mesmo?, repergunto-me.

Com uma admirável capacidade argumentativa digna de um pregador ou um tribuno, com um fundamento fortemente especulativo e mais ainda, falacioso, mas cujo resultado é de um brilhantismo a que é difícil ficar indiferente:

“parece que há sempre na vida um fundo de dor e a alguém terá de caber; uma renúncia, naturalmente não é mais do que uma transferência: com que direito passaria você a outro o fardo esmagador? E julga que se poderia consolar de o ter feito?”

Agostinho não mostra muita preocupação com o rigor do milímetro, o seu foco é o brilho do pensamento, o fulgor da ideia. Como ele sabe muito bem e afirma, à laia de ameaça: “literariamente sou feroz.”

De resto, a última carta pode ser, de algum modo, a chave para os três dons com que abemaldiçoa o amigo:

Que falhe,

que tenha uma vida dura

e que se sinta só.

Numa espécie de ética da amizade que define assim:

“Só maltrato os amigos”.

E eu pergunto-me: Será ele o seu melhor amigo? Quem é aqui amigo de quem? Talvez como na canção brasileira: Agostinho amigo de José, José amigo de Luís, e Luís que ainda é muito novo para ser amigo seja de quem for e muito menos de si próprio…

Que leva um autor a escrever um livro de tão duros conselhos? Talvez o medo de… amolecer?

Vejamos:

“Estou a exigir muito de si? Quem lhe há-de exigir muito senão os seus amigos? Eles receberam o encargo de o não deixar amolecer e, pela minha parte, tenha você a certeza de que o hei-de cumprir. “

Não cabe mais nada neste já longo texto, mas não poderei deixar de assinalar, do esquema biográfico de José Navarro, onde muitos elementos se cruzam com a biografia do próprio Agostinho, a informação com que se remata num gesto de auto-redenção:

“Falhou: mas para nós, que tão bem o conhecemos, que descobrimos, sob as aparências, a bondade, a ternura, a humanidade de José Kertchy, a sua figura será sempre uma inspiração e a sua lembrança um motivo de comovida saudade.”

Também para mim, em particular a sua literária ferocidade.

 

  1. Para Álvaro Ribeiro “escola” e “escol” são aqui termos equivalentes.

 

Raio de Luz, Sampaio, Sesimbra, 31 de Outubro de 2015