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EDITORIAL. 32

21-08-2024 00:00

Do tempo

1. Os amigos despediram-se de António Telmo num sábado, em 8 de Agosto de 2010, num almoço realizado no Vale do Infante, na Serra d’Ossa, entre o Redondo e Estremoz, lugares marcantes da sua vida. O filósofo deixar-nos-ia alguns dias depois, a 21 desse mesmo mês.

Ao assinalarmos hoje o transcurso de mais um ano sobre a data da sua partida, uma nota de tristeza acresce: a do passamento de João Tavares, amigo que, durante décadas, integrou o círculo de António Telmo. Foi também em Agosto, foi também num dia 8. Evocamo-lo hoje nesta página, noutra peça.

 

2. Uma das características mais marcantes da obra e do pensamento de António Telmo é a da lucidez. Uma lucidez que, de tão diáfana, parece vencer a barreira do tempo e aproximar-se de uma prognose quase profética. Pense-se na denúncia do infantilismo, por certo da maior acuidade num país que, como o nosso, se vai transformando num imenso parque de diversões, sendo Lisboa a capital dessa imensa Disneylândia, ou na antevisão de uma homogeneização que o movimento woke procura levar hoje até às últimas consequências. É, por isso, cada vez mais importante ler e reler António Telmo. Não se trata, para cada um de nós, de estar antes ou à frente do seu tempo, mas de simplesmente se ser o seu tempo, afrontando-o e questionando-o. Aliás, a melhor forma de se ser moderno.

 

3. Em Julho visitámos a Fundação António Quadros, em Rio Maior, onde Mafalda Ferro, inquebrantável guardiã de uma memória feita de nomes e gerações, e também membro do nosso Projecto, nos recebeu com amizade e lhano trato. Ali nos ofereceu as mais recentes edições de – e sobre – António Quadros: a segunda edição, revista e enriquecida de A Paixão de Fernando P, o romance inédito do filósofo, saído a lume em 2023; e António Quadros nos 100 anos do seu nascimento, com as actas do Congresso do centenário. E ali visitámos a magnífica exposição, patente na Biblioteca Municipal Dr. Laureano Santos, sobre os 60 anos da revista Espiral, que a Mafalda superiormente concebeu e ergueu. A mostra traz memórias várias, mas também, graças à investigação que lhe esteve subjacente, uma revelação surpreendente para própria história da filosofia portuguesa: depois do 25 de Abril de 1974, António Quadros ponderou relançar esta revista.

E a Espiral foi uma estação especialmente importante na obra de António Telmo. No número duplo 4/5 (Ano I, Inverno 1964-65, pp. 37-41) desta revista, no artigo “Da língua portuguesa”, o filósofo emprega pela primeira vez em letra de forma a expressão “razão poética”, cerne do seu pensamento. Percebe-se a importância que lhe atribuía por ter sido esse o único disperso, entre quantos publicou até à sua partida para Brasília em 1966, que posteriormente recolheu em livro. Encontra-se hoje em Filosofia e Kabbalah, que é também o seu livro axial, já traduzido em língua francesa.

 

4. Há um ano foi Miguel Real quem viu ser-lhe atribuído o Prémio Matriz Portuguesa – Cultura e Reconhecimento 2023. No mês passado, em Coimbra, António Cândido Franco recebeu o Grande Prémio de Literatura Biográfica Miguel Torga APE / Câmara Municipal de Coimbra 2023. No próximo dia 30 de Setembro Daniel Pires recebe na Biblioteca Nacional de Portugal essa mais do que justa distinção que será o Simpósio de Homenagem “Daniel Pires, Mestre dos Investigadores”. São três distintos membros do nosso Projecto. Aqui fica o nosso regozijo. E, se nos permitem, o nosso orgulho, também. Parabéns!!! 

VOZ PASSIVA. 143

21-08-2024 00:00

Partir antes de si mesmo

Risoleta C. Pinto Pedro

O capítulo “O Esoterismo d’Os Lusíadas” do III volume das Obras Completas, onde António Telmo afirma, sobre Camões, que «nasceu depois de si próprio», é como muitas outras páginas, de uma actualidade impressionante. Transcrevo o que acrescenta:

«Vê claramente a decadência da Pátria. Espalha pelas estrofes de Os Lusíadas a crítica à nobreza, ao clero e à “plebe ruda”. Chega a pensar numa expedição do Amor e das suas várias potências, à terra portuguesa dos homens, que curasse pela medicina das chagas ou da iniciação, de acordo com as possibilidades de cada um («conforme a qualidade for das chagas»), uma sociedade em que, já como hoje e ontem, todas as leis eram feitas contra o povo. Ter-se-á associado clandestinamente a outros, tentando voltar as coisas. As prisões, o exílio, a perseguição a que foi sujeito no Oriente, ainda não receberam uma explicação correcta, mas podem recebê-la, a partir de agora, se soubermos decifrar nos devidos termos o seu amor com Natércia. Com Natércia ou Catarina, a Pura.»

Não confunde com o povo, contra quem «todas as leis eram feitas», a «plebe ruda» e realmente não são o mesmo. A «plebe ruda» faz parte da «sociedade corrupta, semimorta, sem ideal, apagada, vil e austera» formada a partir de 1513. O povo é, como hoje, algo distinto. Esta descrição que faz da sociedade de então parece assustadoramente actual.

A minha grande interrogação é: como é que Portugal ainda resiste? Talvez por ter como Velho Testamento, como alguém disse, Os Lusíadas: cristão, judeu e árabe, apesar de «os judeus que não fugiram do país» terem tido de se converter ao catolicismo. «Entre as duas crenças» reinou a inquietação, o temor e a divisão.

E se a Inquisição considerava a inteligência «o principal indício de judaísmo», Telmo considera-a, em outros textos, o principal indício de bondade.

Partiu num dia 21 de Agosto, há catorze anos, antes de si próprio, o filósofo que também chegou depois de si mesmo.

E «viu claramente a decadência da Pátria».

 

21 de Agosto de 2024

 

UNIVERSO TÉLMICO. 79

10-06-2024 11:20

 

A Heresia Portuguesa – Da Inquisição à Revolução: O País Subterrâneo*

Pedro Martins

                         Na foto: Fiama Hasse Pais Brandão

 

Entre as acusações que, n’O Labirinto da Saudade, Lourenço endossa aos autores da Filosofia Portuguesa encontra-se a de cultivarem um estilo peremptório. Não obstante, será o próprio, num dos ensaios desse livro, a exarar:

 

Mas seja qual for a interpretação ideológica de Camões, não é possível para ninguém, separar o seu canto épico da apologia histórica de um povo enquanto vanguarda de uma Fé ameaçada na Europa do tempo e de um Império igualmente guarda-avançada da expressão comercial e guerreira do Ocidente. É essa «a matéria» textual e moral do Poema. Não tem outra e é absurdo fingir que possa tê-la.[1]

 

Tão terminante asserto seria assaz de estranhar em autor que mal sofre de terceiros os seus juízos categóricos, se outras passagens daquela obra nos não oferecessem novos exemplos da sua própria concludência. Como quer que seja, parece o filósofo ter sido bastante claro na rejeição liminar de quaisquer leituras que se distanciem do Camões arauto de uma cristandade que na Fé e no Império encontra a sua essencial vinculação cultual, cultural e civilizacional. Fá-lo em 1977, num texto sobre as comemorações do 10 de Junho desse ano, em que, pelas vozes de Jorge de Sena e de Vergílio Ferreira, haviam estado em foco a emigração e as comunidades portuguesas. Nele deixará ainda escrito:

 

A «emigração» simbólica de que Camões seria agora o exemplar e mítico patrono, não muda de conteúdo com o novo carisma. Ela foi expansão, conquista, descoberta, gesta desmedida de pequeno povo convertido em ferro de lança da burguesia empreendedora e mundialista do Ocidente. Foi um fenómeno imperialista, ao mesmo tempo religioso e cultural, de absoluta boa consciência, como os tempos pediam e pedem sempre aos que têm meios para os levar a cabo, exemplo ímpar de energia vital e histórica. É desta «emigração» planetária que Camões foi o cantor patético e violento, o cruzado intelectual e moral consciente de sê-lo, mesmo se nela não foi humanamente mais, como a poetas pode suceder, que um marginal e génio, codilhado e mal pago.[2]

 

Confrange a visão trivial: a cauta sensaboria do camonismo de Estado revela já, num filósofo que o regime emergente tenderá a entronizar, a devoção irrefragável de um catecismo putativamente laico.

Logo em 1979, um ano após o surgimento de O Labirinto da Saudade, Fiama Hasse Pais Brandão inicia a publicação na imprensa de uma série de estudos sobre Camões com que intenta revelar um perfil cripto-judaico e cabalístico do poeta. Serão depois reunidos em O Labirinto Camoniano e Outros Labirintos, de 1985. Perscrutando com assombrosa e arguta erudição as minúcias indiciárias que formam multidão no corpus textual do vate (mas também na sua biografia ou na sua iconografia), considera Fiama ser a iniciação esotérica e mística o motivo central da obra de Camões, numa encruzilhada em que confluem a Kabbalah, a alquimia e a gnose templária e em que se descobrem teses tão estimulantes (e escoradas em sólidos argumentos) como essa de os dez cantos de Os Lusíadas corresponderem às dez sephiroth da Árvore da Vida; ou essa outra de os varões assinalados serem, na circunstância da epopeia, os portadores do sinal, sinal duplo, o do povo judeu e o dos Cavaleiros de Cristo, a data de 1497 assinalando dois factos capitais no reinado de D. Manuel I: o termo do prazo de conversão dos Judeus e subsequente cominação de expulsão e a partida para a viagem à Índia de Vasco da Gama – e estes serão, segundo Fiama, os dois sentidos exotéricos que irão entrelaçar-se ao longo do poema, sem prejuízo dos sentidos esotéricos, ou ocultos, para os quais os primeiros se irão abrir.

Igualmente surpreendente se revela o estudo sobre o significado de alguns nomes proeminentes de Os Lusíadas, tais como os de Veloso, Leonardo ou Gama, em que a autora, com funda sabedoria, pode descerrar significados judaicos e cabalísticos; ou a leitura percuciente da Carta III, que mostra como Camões nela terá plausivelmente cifrado a sua judeidade, aludida, por exemplo, na adopção do termo matador.

Bosquejo tão breve como o que vem de ser feito não oferece sequer uma pálida imagem do labor exegético e hermenêutico que Fiama consagrou a Camões. Trata-se, na verdade, da perquirição apaixonada e prodigiosa de um espírito de superior inteligência e inesgotável ciência, em que cada hipótese se enuncia até ao limite das possibilidades de uma investigação sempre em diálogo com os vislumbres do seu desenvolvimento poliédrico, e que tanto engloba os progressos da autora como os contributos doutrem, sejam os de um Faria e Sousa no século XVII, sejam as asserções coevas de uma Maria Antonieta Soares de Azevedo, de um António Telmo ou de um Helder Macedo.

Por si só, o contínuo desvelamento, pela autora, deste Camões judeu, marrano e cabalista, esteado na razoada desocultação probatória de uma linguagem dúplice, deveria, em princípio, sustentar a legitimidade da sua própria afirmação. Não foi isso, todavia, que sucedeu. Mas, bem vistas as coisas, seria ingénuo esperar que algo diferente ocorresse. Na sua magistral demonstração da correspondência dos dez cantos da epopeia com as dez esferas da árvore cabalística, que saiu primeiro a lume nas edições de 22 e 29 de Fevereiro de 1980 d’O Jornal, escreve, a dado passo, Fiama, procurando explicar o Canto X pela sefira Malcuth, o Reino, morada da Shekinah:

 

O rio, do conhecimento ou inteligibilidade de Deus, que é, numa das suas faces, a História, e que começou a correr no terceiro Sefirah, como já vimos, deve agora, no décimo Canto, desaguar no grande mar; assim se compreendem as referências do poeta ao «imenso lago» (X, 79) onde a Ninfa recolheu o vaticínio. Mar da Cabala é expressão consagrada entre os cabalistas e exprime o conhecimento de Deus até à margem do possível. (O mar do Texto de Deus, que a nau colocada no rosto da Bíblia hebraica de Ferrara, figura. A questão fundamental da Fé (Emouna) está, aí, simbolizada pelo golfinho, símbolo da fidelidade).[3]

 

Neste parágrafo se revela um profundo conhecimento da Kabbalah, das estruturas e do dinamismo do intermundo sefirótico e da própria tradição hebraica na vastidão da sua globalidade. Da maior importância vem a ser a nota, com o número 21, que, a final, lhe surge associada: «A expressão Fé e o Império de Os Lusíadas, terá de perder definitivamente as conotações com que tem estado confundida e ligar-se, de facto, ao ideário desse Poema (…).»[4]

Como, porém, convencer da plausibilidade de uma tal interpretação quem, como Eduardo Lourenço, proclamara já estritamente cristianíssimos, dois anos antes, a Fé e o Império que definem o horizonte da epopeia camonina? Como levá-lo, em sua tibieza, afinal tão provinciana, a largar a cartilha redutora do camonismo de Estado? Essa mesma cartilha que tudo mede pela ignorância com que compassa a ausência do próprio espanto, e que levara já um Hernâni Cidade, ainda em 1972, segundo revela Fiama, a fazer vista grossa, em nota de rodapé, ao primeiríssimo dos sinónimos que Bluteau, em seu proverbial Vocabulário, consigna de matador, palavra já nossa conhecida e que quer, antes de mais, dizer: judeu?

A bravata d’O Jornal pode bem ter sido a gota de água que fez transbordar a taça da paciência de Lourenço, sempre tão cioso da pureza política e teológica do seu cruzado. Mês e meio depois, na edição de 17 de Abril de 1980, sob o título “Camões e a religião”, noticia A Capital: «Eduardo Lourenço e António José Saraiva tomarão parte num debate sobre “A religião de Camões”, a partir das 21 e 30 de hoje, no Centro Nacional de Cultura. Estarão em causa, segundo se prevê, as relações do poeta com a cabala, mas muitas outras questões deverão surgir num colóquio que promete ser animado.»

Nessa noite, o jornalista e escritor António Carlos Carvalho esteve lá; e não gostou do que presenciou. A carta que, logo no dia seguinte, escreveu a Fiama, e de que aqui se dará longo excerto, encerra um extraordinário testemunho do que então se passou:  

 

(…) Este seu amigo, de vez em quando, gosta de se armar em cavaleiro andante e tomar a defesa dos fracos e dos oprimidos. Neste caso, não se tratava de «fraqueza» sua, mas de ausência – e na sua ausência houve uns senhores que se permitiram dizer mal de si, desdenhando do trabalho que anda a fazer. Fui obrigado a intervir … Eu lhe conto: o AJS e o EL invocaram o seu nome e os seus artigos como representantes de uma certa tendência para fazer a leitura cabalística dos “Lusíadas”. Artigos que consideraram “fantasistas”. (O AJS confessou mesmo que não tinha conseguido acabar de ler um deles devido aos argumentos apresentados…) e “cabala”, a que se referiram em termos desdenhosos.

Perante tanto disparate fui obrigado a fazer duas lamentações: 1) lamentei que a Fiama não estivesse presente e que estivesse a ser queimada em efígie – mas talvez fosse a sua sorte, porque de outro modo sairia dali condenada, de «sambenito» e vela na mão, talvez devido à proximidade do antigo Palácio da Inquisição; 2) lamentei que a Cabala fosse tratada daquela maneira, demonstrando que nada se sabia do assunto…

De facto, «perdi a cabeça». E ainda bem, porque obriguei o EL a deixar bem claro que não se tratava de queimar a Fiama, que até considerava o seu trabalho muito válido, etc., etc.; simplesmente não conseguia acompanhar o seu vôo. Quanto ao AJS, ficou mudo e quedo.

Enfim, nada de novo na frente ocidental.

Foi, de facto, pena que a Fiama não quisesse ou não pudesse estar presente para esclarecer muita coisa. Mas presumo que decidiu ficar no silêncio criativo dos seus livros. Devo reconhecer que nada se aprende nestes monólogos em público. Mas também só lá fui porque «pressenti» que iam atacá-la e eu, o cavaleiro andante, devia estar presente para defender a sua «honra»…

Não se incomode com este ladrar dos cães. O seu trabalho é vital – tem o dever de o prosseguir. Ao menos eu, e todos os judeus de religião, ou de coração, estamos consigo.

 

Desconheceria acaso Eduardo Lourenço a sentença priscilianista segundo a qual ninguém tem o direito de condenar o que não sabe, o que não lê, o que não quer investigar?[5]

De António José Saraiva é sabido que, na esteira de Benzion Netanyahu, sustentou tese revisionista pela qual negava, entre nós, a existência, pelo menos significativa, de judaizantes, propugnando assim a ocorrência de uma efectiva assimilação dos marranos portugueses na sociedade cristã do século XVI, posição claramente minoritária que lhe valerá arrostar uma polémica com I. S. Révah. Como quer que seja, não admira, a esta luz, que Saraiva, enfileirando com Lourenço, procurasse impugnar a existência de um Camões marrano… Não se julgue, porém, que este episódio havido com Fiama foi caso único. Outro, muito semelhante, se registara três anos antes.

Com efeito, em 1977, Helder Macedo dera a lume a versão portuguesa do seu livro Do Significado Oculto da Menina e Moça (uma primeira versão da obra, em língua inglesa, datava de 1971). O próprio autor, em nota à segunda edição, nos contará o que então se passou:

 

A recepção que o livro teve quando da sua primeira publicação foi algo polarizada, sendo essa polarização – que aliás persiste – desde logo cristalizada em duas reacções opostas. A primeira foi que a Academia das Ciências de Lisboa lhe atribuiu o seu prémio para ensaio de 1977, o Prémio General Casimiro Dantas; a segunda foi que o eminente erudito Eugenio Asensio achou necessário ir fazer uma conferência pública no Centro Cultural de Paris, posteriormente publicada, que consistiu de um ataque cerrado ao meu livrinho. Não sei qual das duas formas de reconhecimento me honrou mais.

A devida modéstia obriga-me no entanto a esclarecer que a reacção do mestre Eugenio Asensio não terá sido devida apenas ao que houvesse de original no meu pecado, pois desde havia muito vinha tentando travar a tendência, encabeçada por Américo Castro, de se detectar criptojudaísmo em todos os possíveis interstícios da cultura renascentista hispânica. Acontece, no entanto, que não é essa a minha perspectiva. Considero que as convergências culturais manifestadas na obra de Bernardim Ribeiro não são necessariamente generalizáveis a outros autores, embora não possa deixar de acentuar que equivalentes convergências entre o judaísmo e o cristianismo também estiveram na base do que veio a tornar-se o Sebastianismo. Acho apenas que o problema não pode ser elidido, como tantas vezes tem sido, quando não simplesmente neutralizado numa estéril querela entre ortodoxias e heterodoxias.[6]            

 

            Que balanço se pode fazer hoje, quase um quarto de século passado sobre a escrita destas linhas de Helder Macedo, autor a quem, de resto, se deve igualmente um luminoso ensaio sobre o Camões iniciático?

            Algo realmente mudou?

 

*

*     *

 

Alçada ao clamor das parangonas, a morte de Eduardo Lourenço levou ao extremar de todos os panegíricos. Chegou-se, aliás, ao ponto de se afirmar o bastante para envergonhar uma nação ancestral: fora ele que nos ensinara a pensar. Deste prisma, o Dicionário de Luís de Camões, publicado em 2011 e coordenado por Vítor Aguiar e Silva, dir-se-á ter sido uma lição bem estudada. Embalde nele se buscarão verbetes sobre Telmo, Fiama ou Maria Antonieta Soares de Azevedo, pese embora a relevância inexorável destes nomes de camonistas. Tão pouco temas como o judaísmo ou o esoterismo ali receberam a menor atenção. Pior será o facto de Telmo não chegar sequer a existir para o Dicionário e Fiama somente aí ser referida uma vez, pela menção ocasional, envolta em prudente assepsia, da sua «controversa interpretação judaizante» das cartas camoninas[7]. Já Lourenço e Saraiva (este último, também como camonista) se topam reiteradamente, inamovíveis na sua ciência, nos índices do final do volume.  

Já n’O Labirinto Camoniano lembrara Fiama ser «sempre mais fecundo, em relação ao passado, compreender do que corrigir»[8]. Excepto quando de algo ainda pouco ou nada se sabe, caso em que tudo estará já em esconder. Assim se evidencia o péssimo serviço que o Dicionário de Camões, seja por desconhecimento ou por deliberação, veio prestar à cultura portuguesa, sonegando aos seus leitores, com laivos reaccionários de insofrido conservantismo, a consideração exaltante de alguns dos veios mais perigosos – e, por isso mesmo, mais vivificantes – da obra e do pensamento camoninos.

Recentemente, no início de 2022, o JLJornal de Letras, Artes e Ideias, como lhe competia, deu primaz destaque de capa à comemoração dos 450 anos de Os Lusíadas. Bem pôde então José Carlos Seabra Pereira, no início do ensaio com que ali se abre o dossier do tema, evocar, promissor, os nomes de Dalila Pereira da Costa e de Helder Macedo, que o Camões iniciático continuou, porém, prudentemente encerrado na câmara-escura do oblívio. Conhecerá, ao menos, Seabra Pereira a aproximação que António Telmo, na sua conferência na Sala dos Espelhos do Palácio Foz, em 1980, dois meses depois do “auto-de-fé” da Rua António Maria Cardoso, logrou estabelecer entre a viagem iniciática de Os Lusíadas e a experiência mística de Dalila tal como esta a relatara em A Força do Mundo? Por muito que o professor católico de Coimbra comece por proclamar o alvoroço e o início que sempre Camões suscitará, não há nele o menor assombro, o mais leve sobressalto, sequer uma suspeita de arrojo. Ramerrão somente, posto que envolto, aqui e ali, numa profusão modernaça de diálogos com a contemporaneidade. E nem mesmo a menção, a final, das camoninas cartas, teve o condão de exumar, por breves instantes, a «controversa interpretação judaizante» de Fiama. Tudo velho e relho.



[1] Idem, p. 122.

[2] Idem, pp. 124-125.

[3] Fiama Hasse Pais Brandão, O Labirinto Camoniano e Outros Labirintos, p. 67.

[4] Idem, p. 72.

[5] Moisés Espírito Santo, Origens do Cristianismo Português, p. 186.

[6] Helder Macedo, Do Significado Oculto da Menina e Moça, Lisboa: Guimarães, 1999, p. 8.

[7] Vítor Aguiar e Silva (Coord.), Dicionário de Luís de Camões, Lisboa: Caminho, 2011, p. 245.

[8] Fiama Hasse Pais Brandão, op. cit., p. 49.

 

DOS LIVROS. 74

10-06-2024 10:47

O camonismo de Estado*

A imagem que, ao longo dos séculos, o camonismo de Estado formou e difundiu mostra o autor de Os Lusíadas como um plagiador de Petrarca na lírica, de Virgílio na épica, de Platão na filosofia; um homem de inegável talento, mas sem iniciativa criadora, servo em religião do catolicismo, mentiroso pelo uso da mitologia romana, pior cronista do que João de Barros; um sensual hesitante entre a atracção do sexo e a sua sublimação. Quatrocentos anos se aborreceram os portugueses com esta imagem à qual atribuíram um sentido não muito diferente do retrato do Presidente da República em exercício, obrigatoriamente pendurado nas repartições públicas. Por ironia ou sarcasmo pintaram o plagiador – homem de algum talento, servil e beato, mentiroso e sensual – com uma coroa de louros sobre a cabeça severa de guerreiro. Em cima escreveram: Luís de Camões, Príncipe dos Poetas; e puseram por baixo a palavra «Pátria». 

 

António Telmo

 

(Publicado em Luís de Camões e o Segredo d’Os Lusíadas seguido de Páginas Autobiográficas, 2015)

______

* Título da responsabilidade do editor.


 

CORRESPONDÊNCIA. 66

26-05-2024 13:04

Carta de Max Hölzer para António Telmo de 11 de Setembro de 1977 


8 (nativité de la sainte Vierge)

 

C’est le jour où je voulais un peu compléter ces lignes – mais aujourd’hui, hélas!, c’est le 11,

Quelques indications pour vous.

Si vous étudiez les lois – jusque dans le châp. 10[i] – essayez : le sens – que vous avez peiné à toutes forces de chercher --, il faut le relier avec, retrouver dans « l’expérience ». Pour cela, efforcez-vous de «toucher» en vous, de vous diriger «en vous vers» l’origine* de la pensée, du sentiment (peut-être ?), de la conscience de tout ce que vous avez pu rassembler, à l’origine, où – je dirais – il n’y a pas «encore» tout cela. Sentez, en même temps, que vous faites tout cela – peut être dans un effort et une détente du même effort  qui ne compte plus avec rien, ni avec le temps, ni avec votre rien.[ii]

 

Si je pense à tout ce que je voudrais vous « communiquer », que vous devriez vous « communiquer» -- je voudrais partir tout-de-suite pour « Portugal ». Mais là aussi, je dois résister. Je travaille inlassablement, et il le faut, parce que «dans le monde» nous sommes toujours de nouveau «perdus»… Vous le comprendrez un jour, horrifié – et heureux.

Ecrivez-moi un peu, comme les réunions se sont passées.

J’ai l’intention de vous rencontrer – avec le « cercle intérieur » -- la prochaine fois, pour commencer, à Porto même. Ce serait peut-être un bon « départ » ?

Fidèlement à vous

Max H.



[i] É duvidoso se se trata de 10 ou 20.

[ii] Uma mancha de tinta não permite a certeza em relação a esta palavra.

 

VOZ PASSIVA. 142

02-05-2024 00:01

António Telmo, Platão e o ritmo

Risoleta C. Pinto Pedro 

Soube-se, há poucos dias, por pergaminho encontrado nas cinzas do Vesúvio, qual o lugar onde teria sido enterrado Platão: o jardim da Academia de Atenas, que fundara. Dá-se a morte cerca do ano de 348 a.C., mas é de vida que hoje aqui venho falar. Estar sepultado num jardim é uma forma de estar vivo, e António Telmo foi um dos que deram vida a Platão, lendo-o, pensando-o e escrevendo-o.

O documento, que já fora encontrado em 1750, foi agora mais revelador devido a novíssimas técnicas de decifração.

Mas por que razão aqui trago hoje esta notícia, em dia de aniversário?

Por aquilo que diz o Expresso, e cito:

“Na sua última noite, Platão terá ouvido a música proveniente de uma flauta de uma escrava trácia, e, apesar de lutar contra a febre que o consumia e de estar à beira da morte, ainda criticou a artista, apontando-lhe falta de ritmo.”

Ora alguns dos textos mais importantes de Telmo sobre a Poesia, essa música das palavras, referem, precisamente, a importância do ritmo. Não um ritmo exterior feito de repetições, rima e outros artifícios que todos os poetas e os artesãos da Poesia conhecem, mas um ritmo interno, uma respiração que antecede as palavras.

Por diversas vezes e em diversas partes da sua obra o expressa:

«Ah! O refrão é para ser ouvido cantado pelo coro dos anjos no grande silêncio do mundo […]»

(“Diálogos de Thomé e Nathan” in Cogeminações de um Neopitagórico.

Di-lo também em verso:

«Com doce cadência certa

Que fascine o pensamento

E dê som ao insonoro

E me adormeça por fora

E me desperte por dentro.»

“Poesia”, in Viagem a Granada

Também em “Teixeira de Pascoaes, o Poeta da Natureza” chama a atenção para a quebra do automatismo dos lugares-comuns da língua, que encontra em Caeiro e Pascoaes, hábeis em, cada um à sua maneira, fazerem ruir a descrição do mundo.

Quando afirma, a propósito da metáfora, que nem tudo está nela, mas quase, este “quase” é o ritmo oculto que mesmo sem rima, que mesmo sem refrão, que mesmo sem repetições, aproxima a poesia da música através de algo misterioso que não é do domínio do físico, mas que está lá.

E que se expressa pela palavra, pela imaginação e pelo ritmo.

Ou, como diz:

«O ritmo, porém, antes de ser oral é mental».

Um ritmo «encantatório» dissolvido em sons «cheios de ‘espírito’», o que podemos ler na sua Arte Poética, texto fundamental, juntamente com a Gramática Secreta, para compreender o poder hipnótico deste ritmo de que fala e que tem uma importância fundamental na sua reflexão sobre a Poesia. Como Platão, uma das suas reiteradas referências, aquele que, soube-se agora, uns dias antes do aniversário de Telmo, esse profundo conhecedor da literatura e da filosofia clássicas, procurava na música, mesmo à beira da travessia da Grande Porta, o ritmo que Telmo buscava na Poesia.

VOZ PASSIVA. 141

02-05-2024 00:00

1976, A Evolução dos Cravos

(Libreto para ópera com música de Vítor Rua)

Risoleta C. Pinto Pedro

 

I ACTO

 

A um canto não muito iluminado da cena ainda oculta, do lado esquerdo do palco, uma mesa de oráculo com uma bola de cristal destacando-se pelo brilho. De um lado e do outro da mesa, oráculo e consulente apresentam-se de perfil. O oráculo tem uma máscara estereotipada de mago. O consulente apresenta uma face que poderia ser a de qualquer homem português. Por cima deste pequeno cenário, letras luminosas ostentam o nome do lugar e do oráculo: ORÁCULO OUROBORUS. Uma imagem encima as letras, representando o arquétipo: a serpente mordendo a cauda. O consulente tem o rosto melancolicamente apoiado na mão.

Oráculo: Que faz o filósofo aqui? Que quer de mim, com ar de dor, ó pensador?

Consulente: Nada pretendo! Emendo: enviado sou. Por amizade, enfim, vim. Não acredito no que do futuro diz. (Com desprezo) É pó de giz.

Oráculo: Como?, se nada eu disse? (Em tom de revelação) O chamado foi meu.

Consulente (Com escárnio, apontando): Ridícula!, a bola de pretensa luz comprada em Taiwan…

Oráculo: Ela sabe coisas que o filósofo, de inteligente mente, não entende.

Consulente (Ironicamente): Não percamos mais tempo, já que aqui estou… quer aproveitar para… doutrinar?

Oráculo: Posso dizer-lhe, mas não acredita…

Consulente: Tente, tente… vá!, valente!

Oráculo (em tom muito grave): Você é o único homem capaz de derrubar… Salazar! Só… com seu pensar!

Consulente (levanta-se e atira ao chão a cadeira): Está a brincar! Olhe que dá azar!

Oráculo (mantendo a calma e conservando-se sentado): Nunca falei tão a sério! Está a postos, o cemitério!

Consulente (Indignado): Sabe o que diz? Nunca desejei e não desejo a morte de ninguém! (Mudando de tom) Desejo, isso sim, simbólica, claro, uma queda da cadeira onde se mantém…

Oráculo (em aparte): O filósofo já vê mais do que o oráculo!

Consulente (em aparte): O homem é doido perigoso. E doido eu, que cá vim! Nem estou em mim! (Afastando-se e despedindo-se com um gesto vago) Passe bem!

Oráculo: Não se esqueça: você é o único homem capaz de derrubar Salazar, mas… (solenemente e bem alto) não o faça!

Consulente (Esboçando o gesto de voltar atrás, mas saindo): Chamar-lhe louco é pouco! (Bate com a porta).

Oráculo (Sonhador. Misterioso. Acariciando a bola.): Milhares, cantando, o farão por si. Não suje as mãos nem a mente. Eles têm cravos.

(Vai-se iluminando o lado direito do palco, com exactamente o mesmo gabinete do oráculo. Este conserva a máscara estereotipada de mago, o consulente tem uma máscara de rosto onde é imediatamente identificável o perfil de Salazar. O ditador tem um corpo normal, mas a cabeça-máscara é enorme, desproporcionada. A cadeira onde se senta dá-lhe um ar ridículo por infantilmente pequena, tanto quanto a cabeça, por ser titanicamente grande.)

Oráculo (em aparte, para o público): Aqui se consuma a queda. O ditador vai saber o que ninguém lhe quer dizer.

Salazar (Coloca uma das mãos sobre a bola em jeito teatral de posse e estende a outra ao oráculo): Oráculo, oráculo meu! No teu cristal vês alguém mais patriota do que eu?

Oráculo (Retira ostensiva e quase violentamente a mão de Salazar de cima da bola, e segura a outra mão, que olha atentamente, mostrando um ar ao mesmo tempo maravilhado e espantado): Não!!!

 Salazar (triunfal): Eu sabia!

Oráculo: Espere, sim, não… (o ditador vai-se remexendo na minúscula cadeira, desconfortável) vejo um homem… mas, ao contrário de si, não tem mãos de sangue. Sozinho, fica exangue!  (Recuando subitamente, e derrubando a sua cadeira, foge, e já parcialmente fora de cena, grita): Não vejo só um homem! … vejo milhares, vejo milhões! E cantam com mãos limpas, perfumadas com flores!

(Salazar contorce-se horrendamente e cai da minúscula cadeira, ficando inerte no chão. Apaga-se a luz).

EDITORIAL. 32

02-05-2024 00:00

Uma inspiração constante

 

A personagem do Filósofo (à direita, na foto), consulente do oráculo Ouroborus, que domina o I Acto da ópera 1976, A Evolução dos Cravos, que, com libreto de Risoleta C. Pinto Pedro e música de Vítor Rua, estreou no Fórum Luísa Todi, em Setúbal, nos passados dias 12, 13 e 14 de Abril, inspira-se directa e notoriamente em António Telmo e no episódio da sua ida ao astrólogo e quirólogo Hórus, em 1965.

Depois de ter já passado igualmente pela Casa da Música Jorge Peixinho, no Montijo, uma semana depois, no dia 19 do mês transacto, 1976, A Evolução dos Cravos subirá ainda ao palco do Grande Auditório Francisca Abreu do Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães, no próximo dia 18 de Maio, às 21:30, no âmbito do V Festival de Canto Lírico de Guimarães. Na ocasião, pouco antes do início do espectáculo, Pedro Martins apresentará o libreto da ópera, que será então lançado.

Dois dias antes, a 16, na Escola de Medicina Tradicional Chinesa, o mesmo Pedro Martins irá lançar, com a chancela da Zéfiro e o selo da Colecção Nova águia, o seu mais recente livro, A Heresia Portuguesa – Da Inquisição à Revolução: o país subterrâneo, em que, de uma perspectiva diacrónica que não pode deixar de evocar a História Secreta de Portugal de António Telmo, propõe novas leituras hermenêuticas de Camões, Rodrigues Lobo, a Academia dos Singulares, António José da Silva, Pascoaes, Agostinho da Silva e Álvaro Ribeiro e considera que só com o 25 de Abril de 19i74 se estabeleceu em definitivo entre nós o livre-pensamento religioso.

Dois exemplos que revelam como, a três anos do centenário do seu nascimento, António Telmo, sobre ser uma inspiração constante - ou o eixo da roda, como dele dizia Rafael Monteiro -, se constitui ainda, pelo legado da sua vida, da sua obra e do seu pensamento, como uma referência tão imprevista como significativa da Liberdade que a Revolução dos Cravos, de que agora se comemorou meio século, veio trazer aos Portugueses.

UNIVERSO TÉLMICO. 78

07-04-2024 17:45

Risoleta C. Pinto Pedro e a portugalidade*

Paulo Jorge Brito e Abreu

 

 

(dedico o meu labor ao Arcano da Estrela)

 

«Porque nós somos cooperadores de Deus; vós sois
lavoura de Deus e edifício de Deus.» São Paulo, in «Primeira Carta aos Coríntios», 3: 9

 

De Risoleta C. Pinto Pedro (S. Vicente, Elvas, 14/ 07/ 1954), eu tenho, na minha banca de trabalho, o «Kronos Inversus», dado a lume, dessarte, por Edições Sem Nome. São, no fundo, 17 sonatas, ou sonetos, de aticismo e acribia. Ou seja, a libertária, o livre-pensamento, se casa, aqui, com a harmonia das esferas. E a Musa, amaviosa, se congraça e enlaça com a Santa Kabbalah. Como é já raro, em dias nossos, a Autora é uma Alumbrada, e a rima ajuda o lente a ficar alumiado. De Risoleta, então, eu digo o mesmo que disse, há vários lustros, sobre a Luz e a Liberdade de Carlos Carranca (Figueira da Foz, 09/ 11/ 1957 – Lisboa, 29/ 08/ 2019): Risoleta não foi nada para o banal, nem para o comando, ela nasceu para cantar, ou declamar, ao som de uma guitarra. Pra tudo embelezar, de boamente, ao seu derredor. Como ela diz, «verbi gratia», na lauda número 9: «Hoje leio os poetas que não penso, / Junto letras em modo de canção. / Em sonetos muitos, novos, os condenso, / Apoiado numa rima e num guião.» Ou seja, é, da Autora, é, da Risoleta, a monda e o mundo mágico-simbólico. Quero eu, afinal, aqui dizer: em mágica, ou ática, conotação, o significante, nesta cifra, determina e precede o significado. E o sujeito poético é, simultaneamente, espectáculo, trama, actor e espectador. E em «sacrum facere», portanto, Risoleta denomina, ela nomeia, o sagrado e o adro. E entre a vigília e o sonho, a Autora recebe, deveras, dos deuses, para dadivar, solerte, aos homens. Pitonisa, na verve, Risoleta, o deus Apolo mata a Píton, e Pitágoras é decerto o Áugure pítico. Ou como assevera, a sagrada, no último soneto: «Que aquilo que escrevo esqueça o atroz. / O que me inspirares seja limpo e sério, / Que andam as gentes em busca da voz / De amor, alegria, do santo mistério.» É uma vez, e uma voz, de alacridade, é a alegria fantástica das alegorias. É Risoleta que faz conciliábulo, e sempre e sempre em busca da acácia, do Arnaut (Penela, Cumeeira, 28/ 01/ 1936 – Coimbra, 21/ 05/ 2018), da Palavra perdida. Tamanha pureza só achamos, nós outros, em Minerva, ou Essénia, Fraternidade. Ou diríamos que é, na didascália, o escol e a escola da «Sophia» Portuguesa??? Quer ela razoar: a Lusitânia, aqui, é uma citânia de Luz. E como em poucos Poetas do nosso Portugal, as palavras, no carme, são seres vivos, Poesia é professar, e confessar, uma clarificação. Pois é, no Parténon, a lis e o lai do com-preender. E clareando, abertamente, na clareira do Ser.

 

Uma vez aqui chegada, prima, a Risoleta, por insólito e sinal, e eis, aqui, uma insígnia selecta: é «O Sol do Tarot de Sintra», é, no lausperene, o «Liber Mundi» perene. Sendo o Tarot, deveras, uma Arte Real, sendo a Poesia, tão-só, uma Arte magistral, e magnificente. Uma Arte em que os Numes são mitos e metáforas, o cabal, a Kabbalah e a Fonte Cabalina. As imagens, o magismo, o batel e a batalha do magista «Bateleur». E eis o símbolo, a irmandade, a «communio» presuntiva e por isso presente. Ou melhor: sendo animal metafísico, o homem é do Hermes o animal simbólico. E o «inversus» de que fala a Autora deste livro, ele não é, nada mais, que o Dependurado estreme. É aquele que se sacrifica por o alar, e o bem-estar, da comunidade. E é daí que nos vem o ofício do Poeta, é daí que nos advém a comunicação. A Filologia, Magia ou Metaciência, as imagens, os Mitos e as metáforas: é aqui que se situa, sitiada, a pitonisa e o palmar, a Risoleta Pinto Pedro. Sendo, as imagens, como infere o ledor, a letra e a linguagem, o meio de expressão do subconsciente. E sendo, o soar, a rima e «personare», e sendo, o soneto, a catarse e a purga. E se a métrica é do metro, Poesia é malabar, Poesia é portanto o matemático Arquitecto. Esse Arquitecto tudo fez, no início do mundo, de acordo com o número, o peso e a medida (Sb, 11: 20), e por isso as palavras, nesta Poesia, são pesadas, são pensadas, compensadas na prensa. Pois pensar é pôr o penso no fel e na freima, na ferida narcísica – e disso nos fala, com força, o Teatro, e disso nos falam Mistérios de Elêusis… A música, desse modo, é a Alma da Geometria. E a marcha está para a dança como está, a preste prosa, para a Poesia perene. Pois se Deus geometriza, segundo Platão (428/ 427 – 348/ 347 a. C.), o esquadro e o compasso são terminantes, relevantes, para o alor e a feitura da Obra do futuro. Ou como asserta Risoleta, na lauda 25: «O melhor, meu amor, é viver, é o sabor, / A água abençoada, e rir sem ser por nada / Até Deus memorar que também Ele é actor.» E sendo, o «Tarô», anagrama de «Ator». Que em Risoleta divisamos: não o fácil nem o fútil, não a cara, dessarte, mas as máscaras muitas. Um misto de similar, meu Deus, e simular, a «Alêtheia» que revoga o letargo e o Leteu. E em Psicodrama, isagoge, ou mistagogia, o fingir, desse modo, o laborar a ficção. O jogo, amavioso, que é só próprio do jogral. E o rimar, no romanço, e no preste romanceiro. Assim na terra, por isso, como no Céu: no Céu, desta sorte, com as Estrelas; na terra, cauta e culta, com as letras e o lais do «Kronos Inversus». Alterando, sempre e sempre, o soturno, invertendo o Saturno e a caducidade. Transmudando, como o faz o Saltimbanco, a verdade em mentira e a mentira em verdade: e eis, «verbi gratia», «O Sol nas Noites e o Luar nos Dias», e eis o fasto e o Fado, eis o lema e emblema da Natália Correia (Fajã de Baixo, São Miguel, Açores, 13/ 09/ 1923 – Lisboa, 16/ 03/ 1993). Quero eu dizer: se a Poesia, aqui, é superior à História, a Autora e actriz do «Kronos Inversus», ela faz, do seu drama, uma trama narrativa. Sendo a lenda, sempre e sempre, uma legenda. E lendo, com atenção, Risoleta, inferimos nós outros feericamente: não é a Arte que imita a vida, a vida, isso sim, é que imita uma Arte estreme. E a «imago» é pois magista, e tem no poster o «teenager» a guitarra do Cantor. «É que todos, / Sem o ser, se mascaram de Minerva», nos diz, na Musa, a maviosa, «São máscaras usadas como pele, / Indiferentes ao vírus tão temido / E tementes de quem com zelo vele. // Por isso os vejo da janela aberta / E não tento fingir o olhar contido, / Morto sob a máscara que me encoberta.» Pois seguindo, agora, e segundo Lord Byron (Londres, 22/ 01/ 1788 – Missolonghi, 19/ 04/ 1824), a mentira é a verdade duma mascarada, o Carnaval, no carme, é essência da Poesia. Quero eu dizer: Risoleta é lilial. Sua Poesia, forte e fértil, se baseia nas imagens, Poesia é qual a sorte dos jogos malabares. E voltamos a dizê-lo: as metáforas, os Mitos, as mentiras, uma guisa e uma laia de banda desenhada. Tem razão, por isso mesmo, o Robert Desoille (Besançon, 29/ 05/ 1890 – Paris, 10/ 10/ 1966): na escola, sideral, do sonho acordado, imaginar, então, é como fazer, e o «songe» é qual a sorte de mágica lanterna. Sendo, a Magia, o surto e o discurso do subconsciente. O subconsciente de Freud (Freiberg in Mahren, 06/ 05/ 1856 – Londres, 23/ 09/ 1939) e Janet (Paris, 30/ 05/ 1859 – Paris, 24/ 02/ 1947), a maior descoberta do século XIX; e aqui nós alteamos, realçamos e alçamos o Abade, luso-goês, José Custódio de Faria (Goa, Candolim, 30 ou 31/ 05/ 1756 – Paris, 20/ 09/ 1819). Ou seja: de acordo, curial, com Egas Moniz (Avanca, Estarreja, 29/ 11/ 1874 – São Sebastião da Pedreira, Lisboa, 13/ 12/ 1955), também na Psicanálise Portugal é pioneiro.

E que mais, Amigo ledor? Com que símbolos, e signos, nos enleva Risoleta? O símbolo, acima de tudo, do livre-pensamento, ela o faculta, facilita e bem preste o habilita. Quero eu dizer: tal como no passo bíblico da escada de Jacob, o Morfeu informa Orfeu, e ela recebe do divino pra dadivar à Humanidade: é que o Nume é pois o número, e a Poeta, ao ser a porta, ela é, também, a pontifical. Ou melhor: a serpente mercurial ela preside, e reside, nesta Poesia. Pra Risoleta a Beleza, na linha de Schelling (Leonberg, 27/ 01/ 1775 – Bad Ragaz, 20/ 08/ 1854), é o invisível, indizível, tornado sensível, ela é o objectivar da Ideia platónica. Do Arquétipo, afinal, em termos e teores do Carl Gustav Jung (Kesswil, Turgóvia, Suíça, 26/ 07/ 1875 – Kusnacht, Zurique, Suíça, 06/ 06/ 1961). A talho de foice, seguindo e segundo Max Heindel (Aarhus, Dinamarca, 23/ 07/ 1865 – Oceanside, Califórnia, 06/ 01/ 1919), a palavra «Mação» tem origem no egípcio «Phree Messen», e significa, ou tipifica, os «Filhos da Luz». E quem acende, nas trevas, essa Luz, é sempre o primeiro a dela, e com ela, se beneficiar. Que Risoleta está, aqui, em missão, e a Luz é uma cruzada, uma Santa cruzada, que alenta e alimenta a razão animada, é ciência selecta, consciente e deveras saliente. Escrever isto é dizer: lindamente e ledamente, tem realizado, Risoleta, seminários e estudos sobre Fernando Pessoa (Lisboa, 13/ 06/ 1888 – Lisboa, 30/ 11/ 1935), Teixeira de Pascoaes (Amarante, 02/ 11/ 1877 – Amarante, Gatão, 14/ 12/ 1952), Agostinho da Silva (Porto, Bonfim, 13/ 02/ 1906 – Lisboa, 03/ 04/ 1994) e António Telmo (Almeida, 02/ 05/ 1927 – Évora, 21/ 08/ 2010). No que está, belamente, acalentada e companhada por Pedro Martins (Lisboa, 22/ 01/ 1971), Manuel Cândido Pimentel (Vila Franca do Campo, S. Miguel, Açores, 01/ 08/ 1961), António Cândido Franco (Lisboa, 13/ 07/ 1956) e Paulo Borges (Lisboa, 05/ 10/ 1959). Que é preciso prosseguir, propugnar e propalar o solerte 57, o Movimento, afinal, da Cultura Portuguesa.

E vamos, agora, à Numerologia. Se Risoleta foi nada a 14/ 07/ 1954, somando o dia com o mês obtém-se o número, deveras, da sua Missão. Ora 14 + 7 = 21, e 2 + 1 = 3. É o símbolo da comunicação, caroal, e da criatividade. Em suma: desenvolvendo, dessarte, o seu estético senso, a Autora torna mais belo tudo o que está ao seu derredor. Calculemos, então, seu Caminho da Vida: 1954 + 21 = 1975, e 1 + 9 + 7 + 5 = 22, que é o chamado Número Mestre. Esse é o número das vidas de António Manuel Couto Viana (24/ 01/ 1923 – 08/ 06/ 2010), Émile Coué (26/ 02/ 1857 – 02/ 07/ 1926), Sigmund Freud (06/ 05/ 1856 – 23/ 09/ 1939), Fernando Grade (Estoril, 01/ 04/ 1943), Mário Máximo (Lisboa, 19/ 09/ 1956), Karl Abraham (Bremen, 03/ 05/ 1877 – Berlim, 25/ 12/ 1925), Pierre Janet (30/ 05/ 1859 – 24/ 02/ 1947), Marie Curie (07/ 11/ 1867 – 04/ 07/ 1934), Maria da Conceição Valdez Telles de Menezes (Lisboa, 13/ 04/ 1958), Paul McCartney (Liverpool, 18/ 06/ 1942), Josemaria Escrivá de Balaguer (09/ 01/ 1902 – 26/ 06/ 1975), Zeca Afonso (02/ 08/ 1929 – 23/ 02/ 1987) e Annie Besant (01/ 10/ 1847 – 30/ 09/ 1933). E o Professor, professo, Agostinho da Silva (13/ 02/ 1906 – 03/ 04/ 1994). E, ademais, «last but not least», Tenzin Gyatso, Sua Santidade o 14.º Dalai Lama (Taktser, 06/ 07/ 1935). Sendo o 0, ou 22, o Arcano do Louco não é o parvo «stricto sensu», ele é o êxtase, a «divina loucura», o «puer aeternus» que existe no homem. É uma espécie de «pralaya», do Nirvana, do incriado, desta feita, e do incognoscível. Atentemos, dessarte, na ciência matemática: 22/ 7 = 3, 14, e este cálculo dá o Pi, que é o número irracional. Por isso o 22 é o número dos génios, é mirífico mergulho no inconsciente. Em contacto, nitente, com o inédito e o novo, o 22 funciona à margem das regras, mas é o Nume e o número dos Construtores das Catedrais. Ou melhor: oscilando entre a sabedoria e a despreocupação, ora eis aqui o símbolo dos que oram, e laboram, para toda a Humanidade. Que a lavra de Risoleta é falante e aflante, ela é causa de progresso, dinamismo e civilização. E o campo de acção dos 22 são os organismos políticos, os centros de poder, as gradas, grandiosas, instituições culturais. E sendo, o 22, o precursor e pioneiro, ora eis aqui o trilho do anticonformismo, da acracia, ou nos lemas e emblemas, ora eis aqui o número de Risoleta Pinto Pedro. E sendo a Cruz em forma de T, a 22.ª letra do alfabeto hebraico, ela é, afinal, a Cruz com asas egípcia, a «Crux ansata» do hermetismo e o «Ankh», afinal, do povo das pirâmides. E «Tau» significa, também, o «sendeiro» ou a «senda», quer dizer, o «caminho da Cruz». Se alia aqui, Pinto Pedro, à Sabedoria Divina: o Tau pertence, exclusivamente, aos Iniciados, e Adeptos, de cada país. De toda esta plêiade, bastariam os nomes de Marie Curie, Sigmund Freud e Annie Besant pra ilustrar, e fazer jus, ao número 22. Nunca será de mais dizê-lo: são 22 os Arcanos Maiores do Livro de Thoth, 22 são os capítulos do sagrado Apocalipse. Quanto à Annie Besant, deveras, ela tem que se lhe diga: além de presidir, de 1908 a 1933, à Sociedade Teosófica, ela fez parte, ou participou, na Ordem do Templo da Rosa-Cruz e, outrossim, na Ordem Maçónica Internacional «Le Droit Humain». E falemos, ora, falemos em termos de Numerologia Comparada. Sem salamaleque, dessarte, mas com cortesia, o filósofo e filadelfo Pedro Martins foi nado, ou nasceu, como já vimos, em Lisboa, em 22 de Janeiro de 1971. É que o dia de nascimento é crucial, e relevante, pra definir, dessarte, o carácter da pessoa. Senão, vejamos nós: o londrino Francis Bacon, que foi político, filósofo, empirista e cientista, ele tem, como data natal, 22 de Janeiro de 1561. E o grado Lord Byron nasceu, ou foi nado, em Londres, a 22 de Janeiro de 1788. Uma vez aqui chegado, medite o ledor: no dizer de João Belo (Cebolais de Cima, 25/ 06/ 1959), «não é por acaso que nada é por acaso». Tem o Vate, ledamente, a lúcida razão: é que no Pitagorismo, os números não são, somente, aleatórios, eles são grávidos e prenhes de carga simbólica. E nascendo, Risoleta, no dia 14, a sua vibração é 4 + 1 = 5. Quer dizer: mercuriana de gema, ela é uma artista nata. Versátil, curiosa, afectiva, deveras e imaginativa. Ela entusiasma-se, veramente, com as palavras e os sons; não sendo, propriamente, uma «outsider», ela é uma avigorada, apaixonada, por a Cultura Portuguesa. Ou não fosse, a lâmina 5, a carta, no Tarot, do Sumo Sacerdote, quero eu dizer, do letrado ou do «clerc». É que o Friedrich Hegel (Estugarda, 27/ 08/ 1770 – Berlim, 14/ 11/ 1831), ele tinha, dessarte, toda a razão: as grandes cousas, neste mundo, só se fazem com paixão. Como é facto e como é feito, a Arte, para o tudesco, ela é sita na esfera do Espírito Absoluto. E quanto, agora, à Risoleta? Não sendo geronte, por isso, mas deveras generosa, ela sente-se atraída por o novo, o exótico, o miráculo, dessarte, e o mirabolante. Queremos dizer: ela foge do cânon, da rotina e do ramerraneiro. Temperamento oblativo, ou imaginativo, é dada, dessarte, a pressentimentos, a capacidades oratórias e por isso premonitórias. Só assim se explica o fulgor, e alor, duma lavra que é sua, e só por isso no afã, e só na faina Risoleta se sente feliz. Meditemos, deveras, nós outros: António Quadros nasceu, ou foi nado, a 14 de Julho de 1923. António Gabriel de Castro e Quadros Ferro o Autor, o feitor e promotor de «Portugal, Razão e Mistério» (Março de 2020), «Portugal, Razão e Mistério» seu testamento literário. E foi, cabalmente, de uma artista que eu falei, ela é estado e ela é estudo da especulação. O que nos leva, agora, a demandar: para onde nos leva, lilial, a Risoleta??? O que nos traz, dessarte, seu canto e o quinto??? E a resposta é: a essência, a súmula da Rosa, o Menino Jesus. O Império, mavioso, da Paz Universal…….

Tomar, 20/ 12/ 2023

SIC ITUR AD ASTRA

PAULO JORGE BRITO E ABREU

 

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* Texto originalmente publicado em TRIPLOV em 20/12/2023.

 

DOS LIVROS. 73

07-04-2024 16:18

Entrevista à revista LER,

conduzida por Francisco José Viegas

 

            Hoje podemos dizer que chegou a um ponto em que tem uma obra regular, com alguma insistência em pontos fundamentais. Comecemos pelo princípio. Como é que se aproximou dos assuntos do esoterismo?

             Bom, eu tenho um interesse por esses temas desde que me conheço, desde muito pequenino…

            Mas quando é que reparou que se interessava realmente por estas coisas, quais foram as suas primeiras leituras?

            Eu vivia em Arruda dos Vinhos, e na biblioteca municipal havia uns livros. Um dia, tinha eu dez anos, apanhei um que se chamava Ciências Ocultas, e o que me maravilhou nele foi que, entre muitas coisas que lá havia e que eu não percebia, se dizia uma coisa espantosa: que nas nuvens se podia ler o destino. Isto impressionou-me muito, e eu passei a ir para o campo, deitar-me de barriga para o ar a ver passar as nuvens e a ver se era capaz de ler o meu destino. Nunca fui capaz, mas aquela beleza das nuvens impressionou-me e ficou a fazer parte de mim. É aí que nasce tudo, é nesse impulso que começa a minha tendência para esses temas.

            Mas isso foi aos dez anos. Depois, teve uma aprendizagem…

            Sim, conheci pessoas. O primeiro que conheci versado nesses assuntos foi o Álvaro Ribeiro, e foi por ele que entrei para o chamado movimento da Filosofia Portuguesa. E o Álvaro Ribeiro é que me ia abrindo o caminho para a cabala, o esoterismo, tudo em conversas confidenciais… A partir daí interessei-me muito. Depois comecei a ler sobre isto e conheci outras pessoas, como o Agostinho da Silva, com quem privei tanto cá como em Brasília (a minha filha até é afilhada dele)… Acho que o Álvaro Ribeiro era um homem das ciências místicas. Eram afins, mas não bem a mesma coisa.

            E quando começou a ler estes temas, lia o quê?

            Naquela altura, nos meus vinte anos, as livrarias não tinham literatura esotérica. Uma vez apareceram, na Sá da Costa, uns livros de ciências esotéricas, que, aliás, foram logo apreendidos no dia seguinte. Eu só tive tempo de comprar um… E lembro-me que um dia apareceu A Teodiceia da Cabala, de Warrain[1] (que eu cito na minha Gramática Secreta). Era um livro grande, bonito, que continha a sabedoria do mundo, como eu o sentia. Eu ia com um amigo, quando o vi, e disse-lhe “Que pena não ter dinheiro.” Quando saímos da livraria, ele tirou o livro debaixo do casaco e deu-mo. Não sei se podem escrever isto, trata-se de um furto na Sá da Costa, mas é por aí que começam os meus estudos de cabala, tudo começou com esse livro.

            Os estudos que fazia tinham alguma coisa a ver com estas matérias?

            Não. Eu andava na faculdade de Letras, em Clássicas, e nada disto era ensinado, claro – tinha um grande desinteresse por aquilo que me ensinavam e nem ia às aulas, pagava até aos contínuos para me tirarem as faltas… A universidade não teve influência nenhuma em mim. Hoje, a universidade está diferente, já se abriu a este mundo do mistério, mas naquela altura era completamente positivista. Só encontrei o que desejava em homens como o José Marinho, que não tinham nada a ver com a universidade.

            Talvez também com o Leonardo Coimbra…

            Sim, mas esse não o conheci. Ele era de facto um inspirador daquilo tudo.

            Disse que as conversas que teve com Álvaro Ribeiro eram em tom confidencial. A “filosofia portuguesa” não comportava questões esotéricas?

            O Álvaro Ribeiro era uma pessoa muito secreta. Toda a obra dele tem um entendimento superficial que pode levar a pensamentos hostis, no sentido de uma orientação conservadora e reaccionária. E, por outro lado, há nele muito material que está cifrado, que não se vê: é preciso ler bem para entender o que está por baixo e perceber que ele era um revolucionário. Muito mais, por exemplo, do que o Agostinho da Silva. O Álvaro Ribeiro foi anarquista, foi marxista, depois fundou o Movimento de Renovação Democrática. Nesse tempo havia uma grande hostilidade em relação ao esoterismo, e era preciso cifrar tudo para que o leitor pudesse descobrir sozinho. Sobretudo depois do 25 de Abril, as coisas mudaram muito.

            Qual era a sua relação com as tertúlias políticas de Lisboa?

            Nunca participei nos meios políticos. Fui convidado, mas não aceitei e tive problemas.

            Como?

            Quando vim do Brasil, usava barba. E o ministério do Veiga Simão pediu-me para ir fundar a escola do Redondo. E eu vim. Nesse tempo ainda se fundavam escolas – agora abrem-se escolas. E quem ia fundar uma escola tinha, também, de escolher os professores, etc.. Quando lá cheguei, apareceram-me os políticos da terra a impor os professores, mas eu não deixei. Entre os que escolhi, pelo menos dois eram contra a situação, o que, aliado às minhas barbas, fez com que isto chegasse ao Governador-Civil e, depois, ao ministério. Lá fui eu a Lisboa. O director-geral perguntou-me: “Você é a favor da situação?” E eu disse: “Não, sou contra.” E ele perguntou-me o mesmo que vocês agora: “Mas pertence a alguma coisa?” E eu disse que não. “Então volte lá para o Redondo, que tem o nosso apoio”, respondeu-me ele. A partir daí não tive mais problemas.

            Tinha ido para o Brasil quando?

            Teria perto de quarenta anos, foi antes de vir para o Redondo.

            Foi aí, nesses três anos, que esteve mais perto do Agostinho da Silva.

            Sim, e depois também cá, em Lisboa. Eu era professor de Latim e de Literatura Portuguesa no Centro de Estudos de Literatura Portuguesa[2] fundado pelo Agostinho da Silva. Mas antes de ir para lá aconteceu-me um episódio que posso contar, muito curioso. Eu estava em Lisboa sem trabalhar, e um amigo meu apareceu e disse-me para eu ir com ele àquele astrólogo, o Hórus. Eu não queria, disse que não estava interessado nessas coisas da astrologia. Bom, ele lá me levou, pagou-me a consulta e então aconteceu esta coisa extraordinária: pegou-me na mão, perguntou a hora e data de nascimento e disse: “Isto é uma coisa impressionante, você é o único homem que pode derrubar o Salazar.” E adiantou: “Mas não o faça, não o faça.” Isto era em Agosto, e ele disse que no próximo mês de Fevereiro eu ia para o Brasil e que no dia um de Outubro iria conhecer aquela que viria a ser a minha mulher. Disse também que tudo o que eu quisesse conseguia da vida, e era verdade. Foi verdade. Conheci a minha mulher no dia um de Outubro e fui para o Brasil no mês de Fevereiro. O que tem graça é que eu tinha bilhete para trinta e um de Janeiro, mas uma pequena avaria no avião atrasou o voo e só saí de cá em Fevereiro.

            Como é que reagiu quando o homem lhe disse isso?

            Ri-me, como é natural. Contei à família, aos amigos, e nem sequer via como é que podia ir para o Brasil. Logo a seguir abriram as aulas, e eu, na reunião de professores, conheci a minha mulher. Era o dia primeiro de Outubro… nessa altura as aulas começavam a um de Outubro. Chegando ao Natal, recebi um telefonema do António Quadros a dizer que tinha falado com o Agostinho da Silva e que queriam que eu fosse para lá. Olhe, o chão até me caiu debaixo dos pés. Ele perguntou-me se eu não queria ir. E como o Hórus me tinha dito para dizer que sim a tudo, lá respondi: “Claro que sim.” E fui em Fevereiro, como estava marcado. Foram tempos espantosos, graças aos momentos que passei com o Agostinho da Silva.

            Tais como?

            Havia uma aldeia perto de Brasília que se chamava Taguatinga e que tinha um clube, o Clube de Taguatinga. E esse clube era de um contínuo do Centro de Estudos Portugueses, o Teodoro, um senhor negro muito divertido. Fomos lá, e o clube consistia em quatro paredes de madeira, sem tecto e com uns bancos corridos de onde se viam as árvores gigantescas que estavam lá fora. Nós todas as semanas íamos lá fazer umas palestras, e toda a gente da terra assistia àquilo. O Teodoro levantava-se e apresentava-nos assim: “O senhor professor Agostinho da Silva vai falar sobre São Jorge.” Ou: “O senhor professor António Telmo vai falar sobre Dom Sebastião.” E nós, que não levávamos nada preparado, chegávamos lá e falávamos, e aquela gente ouvia-nos religiosamente. Outro episódio curioso: havia um senhor do Alentejo que era latifundiário da Vidigueira, mas muito de esquerda, muito dado às esquerdas. Um dia arruinou-se, e a situação aqui ficou muito complicada para ele, ainda por cima sendo de esquerda no Alentejo de então e no Portugal da altura. Bom: escreveu-me a pedir um lugar – eu falei com o Agostinho da Silva e ele disse que sim, que fosse, que se lhe conseguia alguma coisa. Arranjámos uma viagem paga e tudo. Antes, ele perguntou pela casa, porque ia com a mulher e os filhos. Nós arranjámos, no serrado, um chalé, que eram quatro paredes e um telhado de madeira… Eu é que disse que era um chalé, mas aquilo era uma casa gigantesca, sem divisões e, portanto, com condições muito rudimentares, sobretudo para quem vinha de um latifúndio, de um monte. Imaginámos que podíamos dividir aquilo em compartimentos, mas mandei-lhe dizer que havia um chalé bom para ele. Respondeu-me que a mulher tinha ficado muito feliz com a boa notícia, e claro que eu e o Agostinho nos rimos bastante por causa disso. O homem chegou lá e só queria ver o chalé. Quando os levei lá, ele ficou completamente surpreendido, vendo que aquilo não era, não diria inadequado, mas pouco parecido com um chalé. Ele, um revolucionário, estava no papel de um burguês, a queixar-se das condições… Foi dormir para um hotel e arranjou uma bela duma casa, por intermédio do reitor da universidade. Tudo se resolveu, como se resolvia sempre. Há também a história do bispo João Ferreira, que depois deixou a igreja, ele era franciscano. Falou com o Agostinho da Silva e preparou-se para ir para lá fundar uma faculdade de Teologia, que não era mais do que uma construção inacabada no meio do Atlântico. Em cima tinha umas divisões, e eu e o Agostinho passeávamos por lá e ele imaginava: ali fica um cristão, ali um budista, ali um islamita, e sonhava-se com uma teologia universal. O bispo, finalmente, chegou, acabadinho de fazer uma operação à vesícula, com uma dieta rigorosa. Nós soubemos disso e levámo-lo a comer uma feijoada à brasileira. O homem ficou curado, essa é que é essa, e lá ficou à espera do seu lugar até que perguntou quando é que se fundava mesmo a universidade. E o Agostinho da Silva respondeu-lhe: “Olhe, vá para o serrado, sente-se em cima de uma pedra, pense em Deus e está fundada a universidade de Teologia.” Um dia, ele veio ter comigo e disse: “Isto é muito bonito mas eu não tenho que comer.” O Agostinho da Silva, entretanto, fugiu para a Baía, e tive de ser eu a resolver o problema, pondo-o na universidade, falando com o reitor, contando-lhe as dificuldades do senhor que acabou por ficar a ensinar literatura portuguesa. Depois, encontrei o Agostinho da Silva que, entretanto, tinha voltado da Baía e que ia a fugir de mim. Mas eu disse para ele não fugir, que o homem já estava instalado. E ele responde: “Não me diga! Então vamos tomar um café com ele…”

            O que é que unia todas essas loucuras umas às outras?

            O prazer da vida, a certeza de que isto não era para se levar muito a sério. O sentido da liberdade, da liberdade interior, dando largas à nossa vida…

            Regressa do Brasil e vai para onde?

            Fui para Granada. E aqui há outra história muito interessante, que ainda não foi contada. O Agostinho da Silva tinha um sonho, que era o domínio do mundo por Portugal. Consistia esse sonho em pôr um português em cada lugar do mundo, e, por isso, tinha um em Macau, outro no Japão, outro na Índia… Bastava ele conhecer alguém que mostrasse interesse que ele perguntava: “Para onde é que quer ir?” Se respondesse quero ir para a Pérsia, era capaz de ir mesmo para a Pérsia.

            Mas como é que se pagavam essas embaixadas?

            Tinha uns capitalistas que lhe tratavam disso. Um deles era o Vinhas. Quando eu vim do Brasil, perguntou-me: “Então, você vai mesmo para aquela pasmaceira do Chiado? Não quer ir pôr um padrão num lado qualquer do mundo?” E eu disse “Quero.” “Para onde?”. Espanha, respondi eu. Fiquei de escolher a cidade e escolhi Toledo, e ele disse: “Óptimo, boa escolha. Toledo é mesmo para si.” E falou-me de Toledo, um discurso belíssimo sobre Toledo. No dia seguinte, cheguei ao pé dele e disse que Toledo, afinal, não me convinha, que preferia era Córdoba. Ele respondeu: “Essa é que é boa para si.” E fala-me de Córdoba. Fui mudando, até que sugeri Granada, e a descrição que ele me fez agradou-me muito mais. Quando cheguei a Lisboa fui falar com um capitalista, de cujo nome não me lembro agora. Ele recebeu-me atrás de uma secretária, como um capitalista a sério. Disse que eu podia partir no dia seguinte e que todos os meses iria receber um cheque no valor de uma quantia enorme, muito boa. Fui, e todos os meses recebia o cheque. Não fazia nada em Granada, lia, andava por aqui e ali, ia a umas conferências, a umas bibliotecas e quase só isso. Até que escrevi ao Agostinho da Silva a perguntar o que é que estava ali a fazer. Ele responde-me: “Você está aí e pensa. Pensando, Portugal domina isso tudo.” Eu lá fiquei, um ano. E depois, ao fim de um ano, escrevi-lhe a dizer que já não queria lá ficar mais, que estava um bocado cansado daquela vida. Ele lá me escreve: “Óptimo, tem toda a razão. Venha.” Isto, para conhecer o Agostinho, é importante.

            Mas nunca se interrogou sobre o que estaria por detrás disso?

            Sabe, aqueles capitalistas eram homens que tinham pelo Agostinho da Silva uma admiração espantosa, e aquilo para eles era muito pouco dinheiro. Nunca investiguei quais eram as relações políticas desses homens quer com o regime, quer com o Agostinho da Silva. Mas tinham por ele muita admiração.

            Quais eram os outros representantes de Agostinho da Silva?

            Quando eu fui falar com esse senhor, estava lá uma rapariga mulata, que me disse o nome mas que eu esqueci. Estávamos lá à espera, eu olhei para ela e perguntei: “Então para onde é que vai?” E ela, que ia para Malta. Havia para aí umas dez ou doze pessoas espalhadas pelo mundo.

            Mas havia aí plano. O que é que pensava disso?

            Era só isto, ter portugueses espalhados pelo mundo. Eu concordava, era assim que via o nacionalismo místico. Sabe que isto, pela política, era muito difícil. Era melhor assim.

            Viviam na pele de uma espécie de embaixadores secretos de Portugal, de espiões?

            Era uma presença. Desde que pensássemos.

            Nunca teve de fazer nenhum relatório sobre o que se passava em Granada?

            Nunca fiz relatório nenhum, nada. Só pensava. Lia muito. Andava pelos sítios.

            Finalmente, veio para Portugal.

            Pois, vim para Tomar. Vim cheio de dinheiro, que tinha poupado das mesadas mensais. Estava em Tomar e vi uma casa com uns escritos e disse à minha mulher: “Vamos morar para aqui.” Ficámos lá seis meses. Depois fui para Sesimbra, e depois é que fui convidado para o Redondo. Apareceu-me lá o Agostinho da Silva, olhou para mim e disse: “Então agora está em Sesimbra, hã? Ó homem, você tem de arranjar um modo de vida…” Fui para o Redondo.

            Por esta altura, já tinha começado a escrever…

            Quando vim para Estremoz, tinha apenas um livro, que era o Arte Poética, escrito aos trinta e seis anos. A Arte Poética passou completamente despercebida… A História Secreta de Portugal só surgiu depois do 25 de Abril, porque se passam fenómenos estranhos durante os períodos revolucionários e há uma maior abertura a outras ideias. A História Secreta foi escrita durante a revolução, sempre ali na mesma mesa do café… [n.d.r.: Café Águias d’Ouro, em Estremoz]

            O que o levou a escrever a História Secreta de Portugal?

            Eu acho que o escritor não programa… Eu não tenho cor politica, nunca foi uma coisa que me interessasse muito. Embora, evidentemente, tenha as minhas posições, as minhas indignações. Também me indigno… Mas nesse meu livro o objectivo era o de ajudar os portugueses a criar um nacionalismo místico, que fosse como um suporte de tudo quanto se passa. E acho que isso está a aparecer.

            Mas escrever sobre o nacionalismo naquela altura não podia ser considerado como uma recuperação dos ideais conservadores do Estado Novo?

            Mas o livro até é a favor do 25 de Abril. O Estado Novo não tem nada a ver com os Dom Afonso Henriques nem com os Jerónimos… Aliás, a própria politica de esquerda foi muito favorável, o livro agradou a toda a gente. O Assis Pacheco, por exemplo, escreveu um bom artigo sobre o livro.

            Acha, então, que há “um desígnio português”?

            Pois, esse é o tema do meu último livro. Eu acho que sim.

            Nesse sentido, o que lhe sugere a ideia do Quinto Império?

            Não serão, de certeza, o império americano nem o russo. É um novo estádio da Humanidade, onde as pessoas serão mais inteligentes, mais livres, mais amigas umas das outras, mais criadoras…

            Não quer definir isso de uma maneira mais concreta?

            É um bocado difícil, mas vamos lá ver. A história de Portugal é como uma roda, com os seus raios. Um raio representa a era dos reis, outro a dos sacerdotes, o outro do clero, e o outro da plebe. O quinto império é o centro da roda, e o quinto tem de começar por cada um de nós. Deixamos de ter uma vida descentrada, temos de passar a dançar à volta de um centro – esse centro é um centro secreto, é onde está Deus. Se cada homem fizer isso, nasce o nacionalismo místico. E isso não tem nada a ver com qualquer ideia de ditadura, é um lugar onde todos nos entenderemos.

            Mas para isso teremos de passar uma fase de decomposição…

            Que é a que existe actualmente. Os Portugueses formam uma entidade, mas temos de andar à luta até ao fim, sobreviver aos conflitos, a coisas horríveis como a Inquisição, mas por fim tudo isto será integrado num centro e transfigurado. Cada português poderá então ser, ele mesmo, o Quinto Império.

            Isso não conduz a uma concepção dos Portugueses como um povo superior? Isso é perigoso…

            Pois, eu acho que devemos pensar assim. Embora a gente saiba que não é assim, devemos pensar dessa maneira, porque de outro modo estamos a pensar que os outros é que são superiores e ficamos debaixo deles.

            É por isso que reage desfavoravelmente à integração de Portugal na União Europeia?

            Não sou eu que reajo. É um dado exacto, no horóscopo que Fernando Pessoa fez de Portugal.

            Sim, mas identificado em 1986 como uma grande ameaça à independência do País. Comunga dessa opinião?

            E quem sou eu para julgar a opinião dos astros? Mas se quer a minha opinião, fora do horóscopo, eu acho que é fatal o que se está a passar – já somos uma província da Europa, somos um país de turismo e pouco mais.

            É um risco para a independência?

            Sim, eu acho que Portugal acaba. Acaba enquanto entidade política, mas mantém-se o nacionalismo místico dentro de cada um – tal como a diáspora judaica, que mantém a pátria dentro de cada judeu. E repare que os judeus nunca deixaram de se sentir superiores, nem nunca perderam as suas tradições.

            Mas ao povo judeu está subjacente uma religião, uma prática, uma tradição, os seus livros místicos…

            O filósofo judeu Maimónides escreveu um livro com o objectivo de dar uma nova unidade ao povo judaico, o Guia dos Perplexos. E cada judeu que vai hoje a Israel leva consigo o Guia dos Perplexos. E o Zohar, evidentemente. E é também esse o papel de um Agostinho da Silva, responsável por uma doutrinação que mantenha os portugueses unidos para sempre…

            E essa previsão de que Portugal finda enquanto entidade política acaba por radicar na tal ideia de Agostinho da Silva, de espalhar os portugueses pelo Mundo…

            Claro, é isso mesmo.

            Qual é a sua relação com as filosofias e as letras judaicas?

            Eu acho que Portugal, quando nasceu, queria ser no mundo o mesmo que o velho Israel não tinha conseguido ser. É por isso que a nossa bandeira era azul e branca. Todos os sábios e reis que conviveram com eles queriam fazer de Portugal o Portugal-Israel. Repare, o Rei Dom Manuel pede ao Papa para que o Arcanjo São Miguel seja reconhecido como o Anjo de Portugal, São Miguel é também o Arcanjo de Israel. Quando se deu a expulsão dos judeus, muitos escreveram que tinham perdido a sua pátria. Isto tem um enorme valor.

            Mas há três dimensões nessa sua interpretação. Pode ter sido uma intenção declarada, pode ter sido coincidência e pode ter sido uma conspiração absoluta. Nesse sentido, toda a sua obra aponta para uma teoria da conspiração que sobrevive em função de alguém que orienta o nosso desígnio numa linha pré-determinada…

            O que há, é uma intenção. Parece-me natural que exista um fio condutor em tudo isto.

            Quer dizer que, desde a batalha de São Mamede, há uma intenção histórica que se transmite de pai para filho, ou é uma entidade que gere tudo isto?

            A minha tese é a seguinte: Portugal é uma organização iniciática. De resto, Fernando Pessoa dizia que existia uma ordem Templária, activa mas completamente encoberta, de quem ninguém sabia nada senão ele. E disse também que ela se havia de revelar proximamente. Mas ninguém sabe o que é essa ordem. Essa ordem é Portugal.

            Isso não será apenas uma criação poética?

            Não é, não. Eu percebo onde é que querem chegar. Querem também ter a certeza disso, não é? Se há uma coisa que eu procuro mostrar nos meus livros, é que Camões, o Manuelino, a língua portuguesa, tudo isto constitui a expressão de uma sabedoria intencional que é a de uma organização iniciática, à qual pertencia o próprio Camões. Tudo isto foi já revelado pelo Sampaio Bruno.

            E qual é que é o seu papel nessa organização iniciática?

            Sou um médium literário. Penso, sonho, imagino e interpreto coisas que coincidem com essa intenção. Eu penso que, com o Manuelino, a organização se calou. Fala-se muito na retirada do Graal para o reino do Preste João. Fala-se também na retirada dos Rosacruzes. Mas quando se deu a destruição da Ordem dos Templários em França, Dom Dinis transformou-a na Ordem de Cristo. E os Rosacruzes, que eram uma reunião de espíritos, estavam em Portugal, e isso está ainda hoje expresso em símbolos. Depois, o Dom Afonso V teve o pressentimento disso e passou a estudar a Cabala. Portugal foi escolhido, não sabemos por que razão – talvez por razões ligadas à geometria sagrada… –, como o país para realizar isso. Só que, a determinada altura, viram que não conseguiam. Ou, por outra, viram que tinham de abandonar o País a si próprio até à completa decomposição, para depois surgir uma coisa nova. Isto porque tem de haver sempre aquilo que os alquimistas chamam a obra ao negro, que existe também nas estações, onde a seguir ao Inverno vem a Primavera. Tem de se descer até ao fundo do abismo…

            Estamos no Inverno?

            Não, nós agora estamos no Outono, que é a época da decomposição.

            Pode então dizer-se que precisamos de morrer para ressuscitar?

            Exactamente. Não há pessimismo neste último livro, há apenas realismo. Há pessoas que já reagiram ao livro dizendo: “Isto é uma desgraça, Portugal vai bater no fundo, o que é que vamos fazer…” Mas isto não acaba hoje nem amanhã, tudo continua. A pressa que temos é sempre o erro de todos os revolucionários.

            Essa frase é politicamente lapidar.

            Pois.

            Quais são os escritores que estiveram atentos a estes fenómenos?

            O maior de todos é o Sampaio Bruno, mas também o Teixeira de Pascoaes, o Agostinho da Silva, o Álvaro Ribeiro, o José Marinho… mas até um Herberto Hélder, uma Fiama Hasse Pais Brandão – que estão um bocadinho mais à margem, mas que são uma inspiração…

            Já falou na roda, que o centro dessa roda é Deus. Quer isso dizer que devemos voltar a nossa vida para Deus?

            Pois, devemos tentar. Sabe, eu acho que não há ateístas. Há os crentes declarados, há os ateus (que o não são) e há os antiteístas (que são os mais teístas, porque andam sempre a bater em Deus). A minha ideia de divino é perfeitamente compatível com a do conceito judaico-cristão.

            E Deus é a grande coincidência ou o grande conspirador?

            Isso são perguntas… não posso responder.

            Mas repare que é possível dizer, a partir das suas palavras, que Deus é o grande conspirador… Partindo do princípio de que há um desígnio.

            Altos são os desígnios do Senhor…

 

(Publicado em Viagem a Granada seguida de Poesia, 2016)

 



[1] N. do O. – No texto das edições anteriores, erradamente: A Filosofia da Cabala, de Warran. Trata-se, na verdade, de La Théodicée de la Kabbale, de Francis Warrain.

[2] N. do O. – Em rigor, Centro de Brasileiro de Estudos Portugueses.

 

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