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INÉDITOS. 108
02-05-2025 00:00
Ao redor de O Bateleur[1]
Contaram-me que os inimigos de Fernando Pessoa, sabendo que ele estava todos os sábados com uns amigos no Café Montanha, davam a essas reuniões o nome de sabatánicas. O que significa, como se vê logo, que as reuniões não só eram aos sábados, como se faziam sob a inspiração de Satã. Os inimigos de Fernando Pessoa envolviam, assim, no mesmo ódio o poeta e o sétimo dia da semana, referindo-os a Satan, para o que tinham, sem dúvida, justas razões pois esse dia é, de facto, o dia de Saturno e o poeta nasceu sob a sua influência:
“Sagra sinistro a alguns o astro baço.”
Mas a verdade é que tais tertúlias eram para o poeta um dos modos, e não o menor, de prestar culto a Deus. Aqueles, como esses inimigos do poeta, que perdem o tempo em conversas dessultórias, onde gastam grosseiramente o divino dom da palavra, são incapazes de imaginar que se possa prestar culto a Deus por um procedimento, superior a todos os ritos, que é o da comunicação dos espíritos pelo pensamento.
À porta de todas as Igrejas onde se pratica a missa negra está gravada esta legenda: “É proibido pensar.” Por isso talvez é que Dante considerou o Inferno o lugar próprio para “aqueles que perderam o dom do intelecto.”
Não devemos surpreender-nos da reacção que nos espíritos inferiorizantes provoca a existência de homens que elevam esse dom a uma superior dignidade. São o excepcional num mundo de mediocridades e são-no na tranquila serenidade do espírito que irrita os violentos porque, ignorando eles completamente o que o pensamento seja, não podem nada contra ele. Podem sim impedir que desses espíritos venha a melhor influência. O processo mais praticado pelos mágicos negros consiste em crismar o “outro” com o nome que os define a eles.
Por isso, quando me contaram aquilo das “reuniões sabatánicas” de Fernando Pessoa, passou-me pela mente o miserável espectáculo de prestigiação, perfeita manifestação de hipocrisia que significaria muito pouco se não estivesse ao serviço de um bem mais inquietante processo de saturnificação da imagem do poeta.
Não há dúvidas quanto ao primeiro ponto, pelo qual se caracteriza a glorificação do poeta como uma perfeita hipocrisia. Tudo quanto defendem hoje aqueles que organizaram as comemorações está combatido nos escritos do poeta-filósofo. Pode pôr-se em dúvida se terá sido monárquico ou republicano, mas inegável é que foi, e de modo bem activo, anti-socialista, anti-comunista, anti-sindicatos, anti-ensino universitário, anti-maçonaria azul, anti-modernista. Foi, se nos colocarmos no ponto de vista dos inferiores, um reaccionário completo. Escreveram-no muitas vezes na face agitada e mais ingénua, mais brutal e menos hipócrita muitos dos que agora o comemoram.
O processo de saturnificação é que é mais difícil de aprender, porque mais dissimulado.
Como o poeta já morreu há muitos anos, temos de pensar que a magia negra só pode ter vindo a pretender duas coisas: uma é a que se disse, dar uma imagem que saturnifique todo aquele que dos seus livros se aproxime e o veja a uma luz que não foi a que o poeta quis transmitir. A segunda é bem mais terrível: pretende atingir o poeta no outro mundo.
Sabe-se que a magia não atinge o espírito, mas a imagem que lhe é suporte. O que é terrível é que pode atingir a imagem vivente servindo-se, é claro, de uma imagem morta e, por isso, manipulável: um retrato, por exemplo.
O suporte escolhido para movimentação deste duplo fim mágico foi o conhecido retrato pintado por Almada Negreiros.
António Telmo
[1] Título da responsabilidade do editor. A organização do texto, mormente no tocante à localização do seu penúltimo parágrafo, é conjectural.
CORRESPONDÊNCIA. 72
02-05-2025 00:00Carta de Max Hölzer para António Telmo de 15 de Fevereiro de 1978
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Le 15 fevrier 1978
Mon cher Ami –
ayant envi de vus répondre tout-de-suite (je ne recevais votre lettre qu’après une semaine à cause des grèves – merci !), je voudrais respecter votre ordre:
Si vous voulez traduire Z’ev Ben Shimon Halevi, je vous conseille de traduire le livre sur « Adam kadmon and tke kabbalistic tree » (je cite le livre approximativement). Vous avez raison qu’il y a assez de parallèles entre cette vue Kabbal. Et G. – mais, si G. connaissait assez bien l’essentiel, il (G.) est beaucoup plus « complexe » -- ce qui a des conséquences déterminantes pour nous. Vous comprenez. Les détails qui participent même à une structuration très complexe, ne sont jamais « remplis » de cet « espace autre », dans cette sorte d’explication , qui nous pouvaient aider dans notre propos : entrer de notre vivant sur le seuil du… Tout. Alors, vous pouvez décider… (J’aimerais mieux, que vous traduisez p.e. « Views from the Real World », seulement parce que ces discours demandent d’une façon sine qua non le « complètement » par chacun des « lecteurs »…) Vous savez que j’estime les livres de Sh. Ben H., notamment celui-là ; mais l’explication de l’octave, comme il la donne, est un « jeu d’enfants » -- .
Deuxième points [sic] : j’aimerais de participer à une de vos prochaines réunions… Mais d’abord, je dois aller en Autriche, et j’utilise l’occasion d’un prix littéraire ( !) pour y visiter la tombe de mes parents, visite que je ne pensais pas réaliser les dernières années. J’y serai en commencement de mars. Donc… Entretemps : tenez bien, cherchez à représenter pour les autres – entre vous trois, et surtout pour ceux du « cercle de lecture » -- un « fond » ou un « arrière-fond », qui se fait sentir, et sentir, sans que vous cherchiez à expliquer, convaincre etc. Vous, me comprenez. Ce qui compte, c’est « l’être ».
3e point : l’exercice, du matin, n’a rien à faire avec le douche. J’espère qu’il n’y a pas de malentendu. Seulement, laissez couler l’eau du robinet sur vos mais ouvertes, et faites à la fois attention à l’eau, à votre respiration normale (en i[i] l’air qui est « infini » et vous penètre, et que vous faites sortir partiellement), et à votre « tout » (« rappel »).
C’est tout.
J’espère que Francisco S. s’est rétabli bien.
Étudiez, pendant trois semaines, tous les trois jours, le chapitre sur les « Influences » dans « Views from the Real World ». Un conseil. Cherchez à comprendre de quoi il s’agit. Dites cela à Francisco et à Carita, s’il vous plaît.
J’aimerais beaucoup à venir vous voir, à ce moment même.
Remémorez-moi à votre femme et à vos enfants avec mes vœux sincères.
Brigitte est à Francfort, elle viendra demain.
De tout cœur, je vous embrasse –
Max H.
P.S. Nous avons – avec G. – commencé [?] avec nous-mêmes : c’est-à-dire, des images si complètes comme dans les livres de Sh. Ben H. nous mettent en face de quelque fonctionnement idéal, aussi dans le contrebalancement des fautes et des manquements, et dans cette convergence quasi-complète, cela ne peut pas manquer de nous faire acquérir ces images comme nous l’avons fait toujours. . Tandis que l’étude du « système » de G. ne peut être faite qu’avec une progression de la « connaissance » de nous-même qui est la tâche la plus ardue, mais fondamentale pour tout : nous ne saisissons même pas encore ce que cela pourrait être… Vous touchez à certaine chose, et cela a même des conséquences au milieu de la vie, et se tondre est un commencement juste, la chose la plus importante – car sans cela, rien -- ; d’autant plus important que vous trouvez la force de vous ouvrir, et de laisser ouvertes les « questions » et les « vues », de ne pas les laisser fermer par une « connaissance » qui tout en restant relative, n’est pas la vôtre. Confiez-vous à des antenes, contenus qui vous renvoient à vous-même, à votre inquiétude, et qui savent faire cela à partir de leur communication « ouverte » avec l’Être… Mais pour nous, il n’y a, pratiquement, un seul, dans la situation où nous sommes, si nous le voyons telle qu’elle est…
INÉDITOS. 107
23-04-2025 10:50Rascunho de uma carta para Pinharanda Gomes, presumivelmente motivada, em preito de gratidão, pela saída a lume de “António Telmo e as Gerações Novas", recensão que este último publicara em O Diabo de 17 de Agosto de 2004, não sabemos se este escrito inédito de António Telmo se tornou definitivo na volta do correio. Vale, porém, por si mesmo, como coisa preciosa, entre a nota de testemunho geracional que revela e o apontamento de gramática secreta que encerra.

Rascunho de uma carta para Pinharanda Gomes
Meu caro Amigo,
Recebi hoje mesmo o jornal, que já conhecia por tê-lo comprado. Muito obrigado e também pela sua generosidade com que vive as palavras sobre alguma coisa que eu tenha feito na vida.
Depois da evocação que deixou na Brotéria sobre o meu irmão e da comum relação com a filosofia portuguesa em que juntou filósofo e pensador sinto-me orgulhosa da minha família pelo sangue e pela alma, onde o meu Pai está presente e onde está presente o Pinharanda Gomes.
Não me julgo pois, como diz, o único continuador vivo do excelso movimento filosófico ou de pensamento, não podendo esquecer tudo quanto o meu Amigo e o Braz Teixeira têm imaginado cada uma seu modo (imaginar é para mim, desde que conheço o Luís de Camões, a actividade mais elevada da alma) contribuindo ambos para manter cada vez mais em acto aquele movimento.
Tudo afinal, neste mundo em que cada vez mais encarnam os diabos, se resume nisto: cá andamos nós. Cá pelo fonema é íntimo e profundo; andamos é a relação dessa profundidade com outras profundidades, o nós.
Cá andamos nós. Que Deus nos ajude pelos caminhos diversos, pelo mesmo caminho!
Do seu velho amigo
António Telmo
CORRESPONDÊNCIA. 71
23-04-2025 10:16Carta de Max Hölzer para António Telmo de 18 de Janeiro de 1978
18.1.78
Mon cher António Telmo,
encore une fois nos lettres se sont croisées – il parait qu’il y ait « quelque chose » sur le chemin. – merci pour tout !
Je veux vous dire tout-de-suit mon consentement : inviter les deux « nouveaux éléments » dans le « cercle de lecture ». Ce qui concerne Manuel João Calado, j’espère que je le peux prendre lors de ma proche venue dans votre « cercle intérieur ». – Vous constatez avec moi que vu tous les « événements » du dernier temps depuis novembre, la « chose » montre comme des pulsations, pareil à celles qui animent les nombres, signe d’une « certaine » vie, -- et et d’une vie certaine, bien que jamais assurée.
Je suis très attentif à tout ce que vous m’écrivez de vous-mêmes, et content. Ce que vous dites de vos « difficultés » , cela ne peut pas ne pas être actuel jusqu’à la fin de notre vie – et encore… Nous sommes toujours mis devant des contradictions, comme p.e. le « péril de Diable » de hâter, vouloir « accélérer » les choses, et le fait que « notre temps » est bref. La chose importante est notre présence ici et maintenant : et évidemment, là il n’y a rien à « acquérir », ni science, ni « spiritualité » -- ce cela que font les gens de tous bords, les gens de « ce monde » qui, pourtant, ne sommes pas présents, ni ici, ni ailleurs. Je crois que vous avez bien commencé, je veux dire que votre point de « départ » était bon, juste, et que vous l’avez compris très tôt. À partir de là. Tout devient ou devrait devenir toujours plus « subtil », mais ce n’est pas une chose à « mesurer ». La « compréhension » se fait se fait, se développe par l’expérience, dans l’expérience d’abord. C’est pourquoi la compréhension d’un écrit comme le B, ne peut être que presque nul chez les autres, surtout du cercle G. (il ne peut pas leur le [sic] dire, naturellement) ; mais la mienne n’st nullement accomplie, loin de cela… L’espace, cher António Telmo, dans lequel nous nos mouvons est vaste, et notre monde intérieur, si riche qu’il paraît, est (encore) petit et une chose « incompréhensible » comme le B, avec ses aspects « énormes », la « disparité » voulue, les « lacunes », ne peut être qu’un point dans les repères intermédiaires dont les autres nous devrons créer « nous-mêmes » á partir de toutes nos « facultés », tous nos « centres » qui se « retrouvent » dans le « fonctionnement » de ce monde à nous (et dans l’égo accaparant)…
[i]C’était peut-être trop -- ? Je vous embrasse amicalement. Max
CORRESPONDÊNCIA. 70
03-01-2025 10:08Carta de Max Hölzer para António Telmo de 26 de Janeiro de 1978
Paris, le 26 janvier 78
Mon cher ami António Telmo,
Votre lettre du jour des « innocents » m’avait fait beaucoup de bien, je sentais ce qu’elle m’amenait de mon ouverture, d’une égale châleur[sic] intérieure -- . Je sens qu’entre nous quatre, après et avec cette oscillation très secrète entre 3 et 4, nous pouvons parler la prochaine fois sur un niveau plus subtil – correspondant mieux à certaines expériences que vous faites. Je ne peux pas vous parler de mon travail, mais au centre de celui-ci se forme toujours la possibilité d’une tranche de chemin que j’espère de partager avec vous.
Vous avez commencé ce qu’on appelle dans la Kabbale « le chemin de la sincérité » -- et je la sens, cette sincérité avec et envers vous-même, dans tout ce que vous m’écrivez. Sentez que le « rappel », bien dit, n’est pas « exercice », -- il est nous. Nous-mêmes sont « l’exercice ». Observez ses « mouvements » en vous. Je ne peux pas dire plus, maintenant. –
Essayez, peut-être, le matin, immédiatement après le réveil, si possible : d’aller au bain, et devant le courant d’eau dans le bain, sentir votre respiration, en dirigeant fermement mais gentiment l’attention sur l’air et l’inhalation et l’exhalation (sans rien en modifier le naturel et l’habituel), puis, en même temps diriger l’attention sur l’eau coulant dans vos mains que vous mettez dessous, paumes ouvertes et jointes en haut, comme si vous aviez l’intention de boire. Maintenez cette attention double, ou partagée, tout en cherchant vous-même sentir présent de la tête aux pieds, quelques minutes. Si vous tirez un « bénéfice » de cela, je vous indiquerai quelque chose supplémentaire la prochaine fois.
L’exercice de la détente devrait être bien fait avant d’aller à l’autre de laisser circuler cette « sensation spéciale » -- .
Je dois terminer. (Il est importante d’expérimenter qu’on peut faire le « rappel » ; et de le faire autant que possible momentanément.)
Une prière. Laissez-me savoir sitôt que vous l’avez combinée, toute réunion future, et l’endroit. Tout bien à vous,
et de tout cœur ! M
DOS LIVROS. 78
03-01-2025 09:55
Abertura
(excerto)
Em 30 de Março de 1971, Álvaro Ribeiro escrevia-me uma carta donde destaco as seguintes linhas:
Espero publicar um opúsculo intitulado “Mestrado e Magistério”. É um escrito de ocasião, fogoso e piramidal. Protesto contra o mal que se diz na imprensa sobre ensino esotérico e exotérico. Não sei desistir. Pinharanda Gomes pôs em foco o meu nome ao editar “Liberdade de Pensamento e Autonomia de Portugal”. A querela da filosofia portuguesa ainda não terminou. Quando se pronunciará sobre o problema, António Telmo?[1]
Com a habitual precisão no uso dos termos, mostra que “esotérico” é um relativo. Relativo a exotérico. A absolutização do termo por homens com a responsabilidade dum René Guénon levou a confundir exotérico com vulgar, o que torna, neste caso, inentendível que se proteste contra o mal que se diz na imprensa sobre ensino… exotérico. O movimento da filosofia portuguesa que Álvaro Ribeiro criou em 1943 é um movimento exotérico. Compreende-se toda a importância da adjectivação quando o comparamos com o movimento contra a filosofia portuguesa, urdido por António Sérgio. Por muito valoroso que consideremos este, não nos é lícito caracterizá-lo como exotérico, porque não é relativo a nenhum esoterismo, em suma não é portador de um ensino encoberto.
A referência a Pinharanda Gomes no contexto, deixa-nos em dúvidas sobre o papel que este notável polígrafo desempenha na querela. Pela minha parte, pretendo com este livro participar na discussão, animado pelas palavras que Álvaro Ribeiro me enviou, quando publiquei sete anos depois a Gramática Secreta da Língua Portuguesa:
Em tempos dediquei um volume de “Estudos Gerais” a quem quisesse dizer-se meu discípulo. Comecei pelos estudos triviais de gramática. Vejo agora com alegria que só o António Telmo chegou a prestar-me atenção.
E mais adiante:
Só o António Telmo, figurando na Árvore Sefirótica a sua doutrinação fonética, parece respeitar a essência do que para Pitágoras, e até para Euclides, se chama verdadeiramente um teorema, apesar da indignação de Hegel no seu grande livro de “Lógica”.
Na referida carta de 30 de Março de 1971 convidava-me a falar sobre “Filosofia e Kabbalah”, dizendo assim:
Ser-nos-ia agradável que António Telmo viesse a Lisboa falar sobre “Filosofia e Kabala”. Sei que hoje conhece bem esse assunto, especialmente na feição sefardim. Lembro-me das nossas conversas sobre interpretação kabalista das doutrinas de Freud sobre a polaridade dos sexos e a mediação da libido, o prazer e a morte. Ultimamente, ao retocar nuns textos de Kant, verifiquei que a psicanálise descobre nos estudos do grande filósofo a profundidade do subconsciente judeu. Não deverá ser novidade para a erudição alemã. Certo é, porém, que o pietismo cristão em que o filósofo foi educado pela mãe admite a tradução para o hassidismo polaco. A leitura da obra de Martin Buber permite a fertilidade da comparação.
Kant dá, efectivamente, expressão laica a certas teses do judaísmo. Fichte, Schelling e Hegel são mais goim, pagãos ou cristãos. É útil rever e reler a obra de Kant.
Consciente ou inconscientemente, o nome de Kant funciona aqui como um termo de substituição para o nome de Álvaro Ribeiro. Propõe-me falar sobre “Filosofia e Kabbalah” e logo, depois de referir o carácter sefardim dos meus estudos e das nossas conversas sobre a polaridade dos sexos (tese fundamental da sua filosofia), surge a lembrar Kant, a subconsciência judaica do grande filósofo e a possibilidade de converter o pietismo cristão de educação maternal no hassidismo askenazim. Quando lemos, na Dedicatória do “Livro de José Régio”, «quanto a minha mãe devo na formação dos meus melhores sentimentos e, neófito, ter aprendido as primeiras orações cristãs, para saber a existência de Deus», o paralelismo já não oferece quaisquer dúvidas e logo compreendemos que a piedade cristã em que o filósofo Álvaro Ribeiro foi educado pela mãe admite a tradução para o sefardismo peninsular. Não ignorava, de certo, que o seu mestre Leonardo Coimbra, quando iniciado na Ordem Maçónica, escolhera para si o nome de Kant. Na verdade, o filósofo alemão obsidia o criador do Criacionismo contra quem demoradamente luta, em numerosas páginas dos seus livros. Dada, porém, a identificação consciente de Leonardo com Kant, a melhor imagem para figurar essa luta é a de Jacob com o Anjo. O autor d’A Alegria, a Dor e a Graça, de um livro que ostenta na sua arquitectura as três colunas da Árvore Sefirótica, converte o sefardismo em cristianismo; Álvaro Ribeiro procede segundo o movimento inverso, interpretando, como veremos, o catolicismo nos termos da Kabbalah. Ambos têm por alvo ou enteléquia aquela síntese que é a essência da filosofia portuguesa.
Em 30 de Março exortou-me o Amigo a falar em Lisboa sobre “Filosofia e Kabbalah”. Chegado o momento de o fazer, cumpro o que me é distribuído, e, depois de ter lido e relido a obra de Álvaro Ribeiro, apresto-me a compor um livro com o verdadeiro título, consciente ou inconscientemente sugerido na carta.
Uma “estranha inquietação” se apossa de mim quando me disponho a fazê-lo. É este um sentimento misterioso muito conhecido dos pensadores alemães, que para ele têm uma palavra intraduzível nas outras línguas: Unheimlichkeit. Heimlich é o que é íntimo; unheimlich essa estranheza inquietante. Schelling define unheimlich «como o que deveria ficar escondido, secreto, mas se faz manifesto».
O medo indistinto ao sobrenatural que assiste no íntimo de uma comunidade esotérica ou o receio «dos homens com face de demónio», qual teria sido o motivo que levou Álvaro Ribeiro a explicitar o seu judaísmo somente aos 64 anos num livro que trazia projectado «há mais de três decénios»?
Refiro-me à Literatura de José Régio. Ao escrever este livro, o autor pensava fechar com ele a sua carreira de escritor e também que a sua vida chegava ao fim:
Eis, enfim, chegado o último dia, termo desejado de um caminho doloroso e dolorido.
O Livro de José Régio é o décimo na obra do filósofo, caso não contemos os dois opúsculos sobre Sampaio Bruno e sobre Leonardo Coimbra. Constitui a chave ou fecho dos outros nove. Desempenha, realmente, nessa obra, o papel de “Malcuth”, décima sephira, representativa da Shekinah e da Comunidade Judaica. Logo a seguir à sua publicação, Álvaro Ribeiro casa. Escreverá ainda dois livros, o primeiro Uma Coisa que Pensa, dedicado à Maria Júlia que o convenceu a «continuar a manifestar o seu amor pela Pátria», sinal de que não fora isso e a obra teria terminado com o livro da Plenitude. O título Uma Coisa que Pensa é extraído de Descartes, mas significa, para além das pazes com o cartesianismo original, a condição do homem, uma coisa que está para aqui que pensa, reduzido ao pensamento, nele encontrando o valor, e à extensão dolorosa do corpo. Procuramos em vão nesse livro a indicação da bibliografia do autor. Somos remetidos para a bibliografia assinalada por Pinharanda Gomes, como se o filósofo já se considerasse morto ou passado à história.
Dois anos depois de Uma Coisa que Pensa (1975) começará a publicação das Memórias de um Letrado, em três volumes, dos quais o último tem a data de 1980. Um ano depois morre. Neles lembra e recorda o itinerário do seu pensamento, tal como se foi formando e desenvolvendo a partir do magistério de Leonardo Coimbra. Memórias de um Letrado é a cifra de Memórias de um Kabalista, de quem conhece os segredos subtis das letras do alfabeto.
É impossível compreender dentro das relações humanas habituais a hostilidade que Álvaro Ribeiro sofreu dos meios intelectuais em que foi obrigado a viver. Era um diplomata. Tinha o segredo da duplicidade, que é, como se sabe, o saber falar a língua do outro. Nunca agrediu ninguém nos seus escritos, com excepção para José Marinho, aliás o seu grande Amigo de toda a vida, porque, consciente do próprio valor, era incapaz de inveja.
Também a hostilidade para com o povo judeu constitui um enigma que os historiadores e sociólogos não conseguem decifrar. Culpam-no da morte de Cristo, mas ainda muito antes de Cristo tinha já sido perseguido e humilhado. Em Portugal, o enigma assume a mais evidente singularidade.
António Telmo
(Publicado em Filosofia e Kabbalah seguida de Álvaro Ribeiro e a Gnose Judaica e outros estudos, 2015)
[1] N. do O. – As cartas de Álvaro Ribeiro para António Telmo estão publicadas em Cadernos de Filosofia Extravagante: Interiores, Zéfiro, Sintra, 2012, pp. 132-137.
DOS LIVROS. 77
10-12-2024 09:47[Traço a estrela de David][1]
Traço a estrela de David
O signo de Salomão
E a cruz que as divide
E sinto-me cristão.
Traço o Homem de alto a baixo
Da esquerda p’à direita
E na figura não acho
A esfera plena e perfeita.
CORRESPONDÊNCIA. 69
10-12-2024 09:41
Carta de Max Hölzer para António Telmo de 27 de Dezembro de 1977
27.12.77
Mon cher ami,
Noël à Borbe, sentir le calme éveil de la terre, dans la solitude tout unificatrice de l’âme, et pas seul, avec votre femme, vos enfants, dans votre maison – éveil de la terre à elle-même, à ce qui ne fut jamais tracé sur elle, mais qui concerne toute femme, toute vie, anticipation du sentiment demandé qui se donne parce que « la face est tournée vers la face », -- les distances aussi cachent une possibilité « positive » -- l’espace aussi répond si nous abandonnons, inclusivement, inclusivement [?] les étroitesses en nous. J’ai plusieurs pays de naissance, et le dernier en datte – c’est Portugal.
Vous étiez à Sesimbra – dites-moi en quelques mots comment, d’après vous, les choses se passaient. Une « grande purification », en et par nous tous, s’est exprimée en deux « cercles ». – Dites à Godinho qu’il m’écrive s’il y a des questions. – E vous aussi, posez les questions auxquelles vous croyez ne pas pouvoir répondre – et mêmes[sic] les autres… Où êtes-vous avec (dans) le livre de Ouspensky ? – Une ouverture toujours, sans cesse, nouvelle est nécessaire pour maintenir un accès vivant, sur la hauteur de la recherche, parce qu’il n’y a plus de continuité extérieure – ouverture et « rappel ».
J’ai travaillé, depuis mon retour, et mes « tous les plans ». Et je voudrais bien être avec vous – « prochainement ».
A vous, à votre femme, à vos enfants, mes pensées chaleureuses. Et une bonne année 78 ! Je vous embrasse amicalement. Aussi de Brigitte.
Max
P.S. Faites-moi, s.v.pl., une liste des participants du « cercle de lecture ». Et écrivez-moi les dates des prochaines réunions !
CORRESPONDÊNCIA. 68
27-09-2024 11:37
Carta de Max Hölzer para António Telmo de 9 de Novembro de 1977
Paris, le 9 nov. 77
Mon cher ami,
enfin que je peux vous dire mon arrivée : ce sera si tout va comme prévu, le mercredi, le 16, à 18.50 à la gare (Sta Apollonie, je crois), le train que je peux joindre le matin à Madrid.
Merci pour tout, cher ami, aussi pour l’invitation de passer quls.[sic] jours à Borbe : je voudrais bien, mais ne veux pas me fixer encore. En premier lieu je crois que nous devons essayer de faire autant des réunions que possibles, le 18, 19, et la semaine suivante.
Contactez tous, aussi les dames ou la dame qui souhaitent venir.
Vous avez bien fait.
La « cristallisation » du groupe, oui, C. Silva m’a écrit aussi dans ce sens : j’en suis heureux, et, bien sûr, pas seulement en personne. Si la vie, et la création ont un sens, c’est bien dans cette direction que nous devons chercher – ce « sens » nous appelle, nous a fait la vie. Il n’engendre pas de « concurrence », tout en lui, ainsi l’amitié, devient toujours plus vivant…
Je suis très heureux dans l’attente d’être avec vous.
Je vous embrasse –
Max H.
D’être avec vous à Borbe, cela serait déjà une récompensation… [sic]
DOS LIVROS. 76
04-09-2024 13:02
[Fazer versos naturais][1]
Fazer versos naturais
Que se possam conversar
Mas que escondam lá por dentro
O que não é p’ra contar.
Com doce cadência certa
Que fascine o pensamento
E dê som ao insonoro
E me adormeça por fora
E me desperte por dentro.
Cada palavra um sentido
Duas um casamento
Donde nasça o imprevisto
Como trazido num vento.
Donde nasça o nunca ouvido
Donde nasça o nunca visto.
E, porém, tão natural
Que, ao vê-lo, se ouça dizer
Que é coisa de trazer
Nesta vida tal e qual
Como se já se soubesse
Como se fosse o que havia
Dentro de aquele que lê
E se antes não o sabia
Acorda do que o adormece
E vê.
António Telmo
(Publicado em Viagem a Granada seguida de Poesia, 2016)
[1] Nota de Risoleta C. Pinto Pedro: Só por si, este poema inédito é uma arte poética e contém alguns importantes elementos da sua concepção de Poesia: o jogo entre o revelar e o ocultar, o ritmo encantatório mas despertador de uma consciência superior, a metáfora criando sentidos inesperados e operando no mistério, a simplicidade com que se revela a complexidade, o desconhecido que se mostra sem se desvendar.
