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CORRESPONDÊNCIA. 75

23-09-2025 13:14

Carta de António Telmo para Francisco Soares, de 26 de Dezembro de 1995

 

Estremoz, 26 de Dezembro de 1995

 

Meu caro Amigo

 

É-me grato acusar a recepção do seu livro[1] e dar notícia da minha sua leitura na quadra do Natal, pois assim posso desejar-lhe as maiores felicidades materiais e intelectuais para o ano de 1996, e fazer votos que tão bela reflexão sobre a Monarquia encontre leitores tão atentos e dedicados como eu e obtenha a ressonância que o seu valor merece.

Dizia Álvaro Ribeiro que pensar consiste em pesar as palavras, de modo a que a filologia se torne aventurosamente filosofia. O seu texto é o perfeito exemplo disso. A Pátria em exílio ressurge em escritos como o seu.

Tenciono fazer outras leituras. Não calcula como fico contente por ver que homens como o Francisco Soares, o António Cândido Franco ou o Paulo Borges, erguendo a alma ao espírito, forcejam por criar uma escola de Filosofia Portuguesa num meio que lhe é radicalmente adverso.

Vamos ver se, em breve, o vou visitar a Évora-Monte.

Até lá, um abraço do

 

António Telmo

 



[1] Fábula da Captação do Elemento Desvairado, Lisboa: Átrio, 1995.

 

 

CORRESPONDÊNCIA. 74

21-08-2025 15:18

CARTAS DE ANTÓNIO TELMO PARA ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO. 14

 

Estremoz

 24-11-89

 

Meu caro Amigo

 

Li, de seguida, fraternal e interessadamente, todo “O Mar e o Marão”[1]. Antes, porém, de falarmos sobre o que importa, devo-lhe uma explicação do meu silêncio depois da sua última carta.

Procurei o livro de Joseph de Maistre no caos dos meus livros dos outros e, como não consegui encontrá-lo para lho enviar, esperei que, mais tarde ou mais cedo, aparecesse, coisa que arreliadoramente não aconteceu ainda. Como não emprestei o livro a ninguém, tê-lo-ei eu deixado esquecido em qualquer parte? Quanto aos originais que me enviou, o silêncio deixou-lhe certamente toda a liberdade. A revista Princípio, aliás feita, não se publica já. Causa próxima: ficarmos sem resposta às perguntas à Fiama que quisemos entrevistar. A minha amizade e admiração por ela permanecem, no entanto, inalteráveis.

Voltemos ao mar e ao Marão. Uma amiga minha assistiu à sua conferência no Iade e ao colóquio que se lhe seguiu e falou-me com entusiasmo de si e da sua comunicação, mostrando-se indignada com o modo como o trataram, no colóquio, os cristãos-novos envergonhados[2]. Tive pena de não ter podido estar lá.

Seríamos dois marranos corajosos num momento difícil da arte diplomática, porque a filosofia portuguesa aparece, nos Jorges Pretos[3], a defender teses que lhe são contrárias.

Passei o seu estudo a um dos meus próximos, o João Rêgo[4], que ficou impressionado e pretende contactar consigo.

Pelo que me diz respeito, tudo me falou no seu escrito e, sobretudo, a felicidade como se movimenta em themuria. A identificação de Marános com marrano, sendo uma chave falsa, abriu-lhe a porta do melhor entendimento de Pascoaes. O erro está no início de todos os descobrimentos. V. conhece já todos os segredos cabalistas do primeiro grau, como, por exemplo, a repetida criação de novo do mesmo pensamento, de que são maravilhosa manifestação as páginas poéticas do seu escrito. 

O António Cândido Franco espanta-me por ter chegado de fora da filosofia portuguesa em ressonância perfeita com o que ela tem de melhor. Não há, porém, na sua reflexão nenhuma referência de Álvaro Ribeiro. Será que ainda não encontrou a chave para o ler?

            Um grande abraço do companheiro

                       

                                               António Telmo



[1] N. do O. - Livro de António Cândido Franco, publicado em 1989. Na sua origem esteve uma conferência subordinada àquele mesmo título e proferida, em 20 de Junho desse ano, no IADE, a convite do seu Director, o filósofo António Quadros.

[2] N. do O. – Referência à controvérsia gerada pela conferência de António Cândido Franco, desde logo no período de debate com a assistência que se lhe seguiu. Também na imprensa escrita se colheram ecos dessa celeuma: no semanário Expresso, o jornalista António Cabrita publicou uma reportagem crítica da conferência.

[3] N. do O. – Diplomata. Discípulo de Álvaro Ribeiro e José Marinho, com estudos publicados nos domínios da Filosofia, da História e da Heráldica. Jorge Preto interpelou António Cândido Franco no debate que se seguiu à conferência em apreço.

[4] N. do O. – Membro do círculo de António Telmo. Médico. Nasceu em 1957 e faleceu em 2007, vítima de um acidente de aviação. Publicou a antologia, por si organizada e apresentada, A Medicina em Álvaro Ribeiro (1992). Postumamente, mas logo em 2007, saiu a lume Contos da Coluna de Meio

 

EDITORIAL. 34

21-08-2025 15:08

A memória vivente

Passam hoje quinze anos sobre a partida de António Telmo para a Grande Viagem.

E hoje mesmo, num arquivo de Lisboa, teve continuidade o trabalho de investigação que Pedro Martins e Risoleta C. Pinto Pedro estão a realizar há já dez anos e que, assim se espera, irá culminar, em 2027, na edição de uma biografia do filósofo da razão poética. Hoje mesmo, pois, António Telmo renasceu um pouco mais para a memória vivente dos homens.

Acreditamos que algumas surpresas advirão dessa obra. Estamos certos de que permitirá um conhecimento mais profundo, e mais rigoroso, da vida no nosso patrono. A cada um, porém, o seu retrato, único e inconfundível, de António Telmo.

 

VOZ PASSIVA. 147

13-06-2025 11:22

HISTÓRIA SECRETA DE PORTUGAL, António Telmo*

Paulo Pereira

 

Foi com este livro que a Vega se estreou no plano editorial; agora reeditado, aparece em situação curiosamente simbólica, já que esta editora procede, de momento, a um esforço sério de relançamento. A actual edição repete a primeira integralmente, perdendo-se, porém, a qualidade, já de si escassa das fotografias originais; em contrapartida, ganhou uma nova capa de excelente grafismo.

A obra em apreço data de 1977, ano importante para o campo da «história mítica», da especulação esotérica e dos conhecimentos de âmbito «tradicional» entre nós; já que foi este texto de António Telmo, bem urdido e sem sensacionalismos, que suscitou o reganho de interesse por este meio de aproximação heterodoxa às evidências materiais  e espirituais do passado, de resto bem mais sérios do que à primeira vista parecem (e contra o que alguns detractores, ajudados por charlatães e escudados no argumento ideológico, gostam de fazer crer).

António Telmo situa-se na linha de Julius Evola e René Guénon, «patriarcas» dos estudos tradicionais na perspectiva ocidental, integrando-os, todavia, na corrente da Filosofia Portuguesa. Através da interpretação mítico-simbólica, reconstitui uma «ciclologia» da História de Portugal (Ciclo dos Reis, do Clero e do Povo), relendo os seus mais significativos testemunhos culturais, como sejam a poesia galaico-portuguesa, a simbologia manuelina e o Mosteiro dos Jerónimos (assim pela primeira vez interrogados), Camões, Vieira ou Pessoa. É bem evidente o empenhamento «prospectivo» e «escatológico» do autor, claramente antimaterialista. Mas quer se concorde ou não com este finalismo histórico, o certo é que as reflexões de Telmo permanecem, em muitos domínios, sedutoras. (Vega, colecção «Janus»-Série História, 1986, 166 págs., 750$00).  

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* Publicado em Expresso (A Revista), de 29 de Novembro de 1986, p. 11-R.

CORRESPONDÊNCIA. 73

18-05-2025 12:16

Carta de Max Hölzer para António Telmo de 12 de Março de 1978

Abtei Seckau, le 12 mars 1978

 

Mon cher ami, votre lettre m’a accompagné, fidèlement, mais jusqu’â ce « maintenant » dans une assez grande cellule des Bénédictins, entourée de montagnes qui vont vers le nord d’une hauteur majestueuse encore couverte de neige, -- mais là encore le temps est bref – jusqu’à ce « maintenant » je ne pouvais pas vous répondre. Bien merci, donc, pour votre lettre ! Ce que vous m’écriviez sur votre manière de « lire » et de l’entendement m’a touché, ma montré que votre regard, ou si je peux le dire ainsi, la direction de votre regard a changé. Et si tôt. Et vous le dites très bien : « pergunta que só agora formulo » et « em relação ao estado de alma”, “compreensão sempre adiada”, et qui est pourtant vue. Toujours mise en question, comme nous-mêmes, non pas un « doute », mais par ce qui nous dépasse, notre inconnu.

Vous trouvez la clé pour le chapitre sur les Influences en cherchant à comprendre pourquoi on doit être passif pour la « libération » des nous, et « combattif » dans le cas des autres, et ce qui nous « advient » en moyen de l’âme ou de l’autre conduite.

Ce sont plus que trente ans que je n’étais pas ici – les vieux amis sont morts. Le temps est bref, deux jours et demi, mais je me suis exposé à tant des impressions que je ne pourrai les clarifier que dans le futur.

Les réliefs [sic] sur la colonne dont je vous envoie une photographie répondent peut-être à vote description de votre état d’âme évoqué para la lecture et indépendamment d’elle.

Demain commence le « long retour » par le train.

Je vous embrasse et vous communique mes vœux cordiaux pour vous, votre famille, et le travail.

Max H.

 

VOZ PASSIVA. 146

18-05-2025 11:18

Filosofia e Kabbalah de António Telmo – Guimarães Editores, 1989*

D. S. Bruno

 

 

Quer estejamos ou não directamente empenhados na filosofia oculta, aquela que constitui uma das margens do possível filosofar, o indagar nos limites a relação do homem com o cosmos na plenitude intransigente de colocar sempre a interrogação como valor supremo, os livros de António Telmo constituem uma salutar demanda desses mistérios a que nunca vamos dando resposta mas que nos pressionam sempre para a interrogação do que não tem vindo a ser satisfatoriamente problematizado. Autor de algumas obras de inteligente questionamento das omissões da nossa cultura oficial, nomeadamente em História Secreta de Portugal, O Segredo d’Os Lusíadas e Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões, «kabbalista» devoto no fascinante inquérito linguístico de Gramática Secreta da Língua Portuguesa, aqui o temos de novo a interrogar incomodamente os nossos saberes feitos, numa colectânea de ensaios que, começando com as relações do caçador com o seu cão, passa pela gnose no seu sentido hermético, aborda a língua e os seus não ditos e a filosofia de tradição nacional, terminando por inquirições sobre a nossa grande poesia da demanda, nomeadamente a de Fernando Pessoa e de Camões, mas sem esquecer os «mistérios» de Gomes Leal, que ocultam a verdade cósmica do ser Pessoa. Se o positivismo científico não sai avançado de uma obra como esta, a pesquisa em torno do simbólico só pode ser beneficiada por ela.

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* Publicado em Diário de Notícias, de 1 de Abril de 1990.

  

 

 

VOZ PASSIVA. 145

02-05-2025 08:51

Brincar aos Polícias e Ladrões

(Em dia de aniversário de António Telmo)

Risoleta C. Pinto Pedro

Um dos encontros dos biógrafos de António Telmo com vista à futura biografia, deu-se com dois companheiros de escola, em Arruda, de cujos testemunhos destaco um, particularmente comovente:

«O Tó era o melhor, era bestial, eu dava-me muito bem com ele. E reitera: não há dúvida, o Tó Vitorino foi sempre o que andou mais comigo. O Tó era uma criança de quem toda a gente gostava.»

E a que brincavam? À fisga, à bola, ao pião, ao botão… Outras vezes iam até à Pipa, o rio que passa por ali abaixo onde tomavam banho nus. Brincavam aos polícias e ladrões todo o serão, até às onze da noite. O que era, na época, para as crianças, muito mais seguro do que estarem hoje sozinhas frente a um computador, no isolamento e no silêncio do quarto e expostos… a todo o tipo de perigos. Cada um, ora desempenhava o papel de polícia, ora o de ladrão, e esta narrativa fez-nos viajar rapidamente até a “Um Conto Policial”, cuja história nos dispensamos de contar, mas de que não resistimos a citar: «todo o polícia tem em si um ladrão». A tão prematura aprendizagem do olhar isento e não unívoco.

Os Contos de António Telmo são alguns dos mais curiosos documentos, difíceis de classificar, entre a ficção, a memória biográfica, a reflexão filosófica, a crítica literária… E neles, como exemplificamos acima, encontramos um pensamento complexo em que apenas conseguiremos penetrar se nos despirmos da dicotomia, do preconceito, do lugar-comum, do “prêt-à-penser”.

A expressão «todo o polícia tem em si um ladrão», se à primeira leitura pode desencadear em nós um sorriso, uma vez transportada para a vida, para a experiência e para a realidade, começa a ser muito mais dura de roer, porque desarruma os índios e os cow-boys e já não sabemos onde estamos nós.

Também escreveu um dia que as lutas no futuro (que são o nosso presente) seriam, não do bem contra o mal, mas do mal contra… o mal. O que torna o bem muito mais difícil de encontrar e por isso maior o desafio para os… polícias?

António Telmo cedo revelou um pensamento muito próprio e singular capacidade de olhar as coisas para lá da aparência. Por isso, a apreciada brincadeira aos polícias e ladrões, longe de o fracturar em dois ausentes, acrescentou-lhe, e à humanidade, uma considerável dose de sombra sem a qual muito difícil será encontrar essa pedra rara que decompõe e ajuda a conhecer, não direi a luz, que aqui nos é inacessível, mas as suas várias partes, como demonstra, e ele tão bem mostra, a árvore da Kabbalah.

 

2 de Maio de 2025

VOZ PASSIVA. 144

02-05-2025 00:00

FILOSOFIA E KABBALAH, António Telmo*

Paulo Pereira

 

A Filosofia Portuguesa constitui como que um reduto intelectual muito peculiar. Procura demonstrar a especificidade nacional de um pensamento, quer remontando às origens do filosofar português, quer estruturando-se em torno de uma «escola» que pode ser qualificada de heterodoxa, baseada em grande medida nos escritos e ensinamentos de Álvaro Ribeiro, Leonardo Coimbra e José Marinho. Para seguirmos pela senda da «etimologia» – uma prática querida a tais pensadores –, a Filosofia Portuguesa é uma forma de radicação (no sentido de «raiz») e de radicalização da provável irredutibilidade do filosofar, enquadrando-o numa concepção mística da nacionalidade. Consequentemente, não é de admirar que seja aqui que se acolhe boa parte do pensamento hermético português contemporâneo, posto que a impossibilidade de traduzir sem trair o portuguesismo filosófico para outras línguas molda um território de cumplicidades intelectuais muito particulares, fundamentadas, para mais, na forma de exercer o pensamento como uma razão dinâmica, uma hermenêutica espiritual, conforme proposto nos trabalhos de Leonardo ou Marinho.

António Telmo é um dos filósofos que se movem nesta área. Em certo sentido, é representante daquilo a que podemos chamar a «via reactiva» do hermetismo – de que René Guénon foi o mais destacado defensor. O mundo moderno caiu no materialismo extremista e o progresso (como ideia moderna) é antes um mal do que uma virtude. Telmo caminha por este trilho, e em «Filosofia e Kabbalah» mostra-o claramente. Daí que nesta recolha de textos dispersos (alguns dos quais originais), aqueles que parecem francamente reaccionários (como o que dedica à «perversão da linguagem»), devam antes ser interpretados como «regressistas», já que o escopo político é, aqui, o que menos interessa.

Autor de História Secreta de Portugal e de Gramática Secreta da Língua Portuguesa (livros que influenciaram muito mais gente do que é suposto admitir), Telmo, nos melhores textos da recolha, revela uma disponibilidade e uma inteligência invulgares (e até um estilo) aptos a produzir aquela escuta do silêncio necessária a todo o acto hermenêutico, escuta dos símbolos também, e respectiva inscrição num sistema de relações entre o microcosmos e o macrocosmos. Este sistema de relações é, em alguns casos, baseado na geometria sacra da Árvore dos Sephirot da kabbalah – representação dos dez poderes ou emanações de Deus na terra. Kabbalah hebraica, é claro, mas também kabala cristã, ou seja Tradição, senão mesmo Tradição oculta quando cabala é o mesmo que cabalarias ou cavalarias, sentido que reúne no mesmo momento o filosofar e o poetar, conforme o entendiam os poetas medievais e renascentistas.

A 1ª parte do livro é mais literária, nela se escondendo, porém, um sentido submerso de todas as «coisas», como quando Telmo chama ironicamente a atenção para a coincidência das regiões das touradas com as zonas de maior actividade telúrica portuguesa, ou quando fala na «caça» e no jogo de «cartas» como exercícios singulares de entendimento do mundo e do Eu.

A 2ª parte, dedicada à filologia, estrutura-se em torno de um aristotelismo que vê «que a alma é a forma do corpo» (pág. 39) e mostra como a linguagem é investida de razão, pondo em evidência uma «“lógica subterrânea” que constitui (…) o elemento fundamental de que a razão de apropria para ser ela própria» (pág. 41); aí, curiosamente, o autor recorre à psicanálise freudiana revisitada pela sugestão do cabalismo enquanto resume, igualmente, as suas teses acerca da lógica cabalística dos elementos (e não «fonemas» da língua portuguesa, sistema que leva a «pensar as letras como significantes, senão como significados» (p. 54).     

A 3ª parte interpreta os contributos de filósofos e poetas para o pensamento nacional, cobrindo os legados de Pessoa, Régio e Pascoaes (um dos triângulos) de Leonardo, Ribeiro e Marinho (outro triângulo), desenhando assim um hexagrama em cujo centro se encontram Sampaio Bruno e Junqueiro, numa espécie de «arquitectura» dos princípios da Filosofia Portuguesa.

Por último, consagra especial atenção à poesia de Pessoa (analisando segundo idênticos preceitos o poema «Na Sombra do Monte Abiegno») e de Camões, procedendo, ao mesmo tempo, a uma leitura esotérica de Os Lusíadas, de que importa registar a interpretação que faz da personagem do «Adamastor» um avatar do Adão-Astral.

Aforismos diversos (sobre a «Árvore» ou sobre a «Esfera Armilar») vão ritmando estas páginas de Telmo, que requerem atenção e empatia, mesmo para aqueles cuja desconfiança por estas matéria é grande: se as lerem, é quase certo que ficam seduzidos. Se não, resta-lhes admitir que descobriram um pensador rigoroso, que sabe usar e legitimar a linguagem. E que com isso se preocupa.

(Guimarães Edit., 1989, 198 págs., 1500$00).    

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* Publicado em Expresso (Suplemento Cartaz), de 13 de Abril de 1990, pp. 31-32.

EDITORIAL. 33

02-05-2025 00:00

Nada será como dantes

Uma revista de divulgação cultural de grande circulação, subordinada à temática “Portugalidade - Identidade, cultura e alma lusa”, publicou recentemente três artigos de António Telmo sem que a prévia autorização dos herdeiros houvesse sido obtida para o efeito. Este facto, ou o procedimento que o produziu, não pode deixar de evocar a situação tenebrosa que, há mais de uma década, se abateu sobre o universo télmico e que motivou a criação do Projecto António Telmo. Vida e Obra. Merece, de resto, ser ponderado em conjunto com as opções editoriais do número em apreço daquela revista.

Trazer para a sua capa o Padrão dos Descobrimentos de Cottinelli Telmo encerra todo um programa. Independentemente da valia artística do monumento, e do seu direito de cidade, ninguém, por certo, desconhecerá que o padrão foi um expoente da Exposição do Mundo Português e vale como símbolo do Estado Novo. Tenha, pois, muito bom proveito quem assim pretenda ilustrar a portugalidade e a alma lusa.

Só António Telmo não cabe nos labirintos do mago das Finanças, esse “menino mimado do Vaticano”, como justamente chamou a Salazar o seu biógrafo Yves Léonard. Contanto haja boa-fé, bastará uma quarta classe das antigas, daquelas de que tantos, saudosos, ainda se ufanam, para perceber o que quis Telmo significar ao verberar na História Secreta de Portugal a “paródia mnésica” do salazarismo.

Ler, como se lê algures naquela revista, que Agostinho da Silva foi incomodado pelo Estado Novo, releva, por certo, de uma outra incomodidade que só a passagem pelo divã de Freud poderá mitigar. Afinal de contas, foi só passar pelo catre da enxovia do Aljube, pernoita chique a valer e então muito na moda, e seguir de rota batida para os trópicos de Vera Cruz num exílio assaz voluntário. E vivam a liberdade de Hayek e os privilégios exclusivos à CUF de Alfredo da Silva! No meio disto tudo, alguém, por certo, há-de escapar...  

Ficamos ainda a saber, a pretexto dos malefícios do positivismo, que a Seara Nova, com as suas costas largas (tão largas que nela coube, por muitos anos e por direito próprio, um Sant’Anna Dionísio a defender Leonardo Coimbra e a publicar os seus próprios livros), hostilizou Pascoaes, Pessoa e Régio. Essa mesma Seara de quem Telmo, porém, pôde belamente escrever que «era uma promessa de pão, uma messe, uma missa, uma mensagem dirigida à acção imediata, esteada em razões susceptíveis de serem ensinadas onde houvesse mente de homem». No mesmo texto em que apostrofa «aqueles traidores que teimam em ver a luz nas labaredas da Inquisição».

Tanto a Seara hostilizou Pascoaes que, pasme-se, deu chancela à segunda edição do Regresso ao Paraíso e publicou as cartas que o vate escreveu a Suzanne Jeusse, tradutora francesa do longo poema mítico de 1912. Para início de hostilidade, não está mal.

De Pessoa, publicou a Seara postumamente, em 1937, o fabuloso poema anti-salazarista intitulado “Liberdade”, aquele que nos fala do prazer de não cumprir um dever, de ter um livro para ler e não o fazer. Neste caso, não foram propriamente livros, mas, na ordem das muitas dezenas, senão centenas, os números da Seara Nova que ficaram por ler. Só assim se explica não ter havido do plumitivo a percepção de que José Régio, anos a fio, foi figura de proa da Seara e só a abandonou num gesto de solidariedade – imagine-se! – com António Sérgio.

Que o devocionismo fanático ou o antissemitismo de acendalha possam sugerir a plenitude de uma actividade filosófica é aleijão para Rilhafoles cuidar. A Escola Portuense, esteada em Sampaio Bruno, é uma tradição filosófica politicamente liberal e de livres-pensadores religiosos, que respeita todos os credos, de qualquer natureza, nos limites da civilização.

Mas todos os limites são passados quando assistimos à ofensa da memória de Jaime Cortesão, que – escreveu recentemente alguém num livro de homenagem a António Quadros – só não aderiu ao Estado Novo porque, além de carregar a mácula ontológica da judeidade, seria vaidoso e cobarde.

Nada será como dantes.               

INÉDITOS. 108

02-05-2025 00:00

Ao redor de O Bateleur[1]

 

Contaram-me que os inimigos de Fernando Pessoa, sabendo que ele estava todos os sábados com uns amigos no Café Montanha, davam a essas reuniões o nome de sabatánicas. O que significa, como se vê logo, que as reuniões não só eram aos sábados, como se faziam sob a inspiração de Satã. Os inimigos de Fernando Pessoa envolviam, assim, no mesmo ódio o poeta e o sétimo dia da semana, referindo-os a Satan, para o que tinham, sem dúvida, justas razões pois esse dia é, de facto, o dia de Saturno e o poeta nasceu sob a sua influência:

“Sagra sinistro a alguns o astro baço.”

Mas a verdade é que tais tertúlias eram para o poeta um dos modos, e não o menor, de prestar culto a Deus. Aqueles, como esses inimigos do poeta, que perdem o tempo em conversas dessultórias, onde gastam grosseiramente o divino dom da palavra, são incapazes de imaginar que se possa prestar culto a Deus por um procedimento, superior a todos os ritos, que é o da comunicação dos espíritos pelo pensamento.

À porta de todas as Igrejas onde se pratica a missa negra está gravada esta legenda: “É proibido pensar.” Por isso talvez é que Dante considerou o Inferno o lugar próprio para “aqueles que perderam o dom do intelecto.”

Não devemos surpreender-nos da reacção que nos espíritos inferiorizantes provoca a existência de homens que elevam esse dom a uma superior dignidade. São o excepcional num mundo de mediocridades e são-no na tranquila serenidade do espírito que irrita os violentos porque, ignorando eles completamente o que o pensamento seja, não podem nada contra ele. Podem sim impedir que desses espíritos venha a melhor influência. O processo mais praticado pelos mágicos negros consiste em crismar o “outro” com o nome que os define a eles.

Por isso, quando me contaram aquilo das “reuniões sabatánicas” de Fernando Pessoa, passou-me pela mente o miserável espectáculo de prestigiação, perfeita manifestação de hipocrisia que significaria muito pouco se não estivesse ao serviço de um bem mais inquietante processo de saturnificação da imagem do poeta.

Não há dúvidas quanto ao primeiro ponto, pelo qual se caracteriza a glorificação do poeta como uma perfeita hipocrisia. Tudo quanto defendem hoje aqueles que organizaram as comemorações está combatido nos escritos do poeta-filósofo. Pode pôr-se em dúvida se terá sido monárquico ou republicano, mas inegável é que foi, e de modo bem activo, anti-socialista, anti-comunista, anti-sindicatos, anti-ensino universitário, anti-maçonaria azul, anti-modernista. Foi, se nos colocarmos no ponto de vista dos inferiores, um reaccionário completo. Escreveram-no muitas vezes na face agitada e mais ingénua, mais brutal e menos hipócrita muitos dos que agora o comemoram.

O processo de saturnificação é que é mais difícil de aprender, porque mais dissimulado.

Como o poeta já morreu há muitos anos, temos de pensar que a magia negra só pode ter vindo a pretender duas coisas: uma é a que se disse, dar uma imagem que saturnifique todo aquele que dos seus livros se aproxime e o veja a uma luz que não foi a que o poeta quis transmitir. A segunda é bem mais terrível: pretende atingir o poeta no outro mundo.

Sabe-se que a magia não atinge o espírito, mas a imagem que lhe é suporte. O que é terrível é que pode atingir a imagem vivente servindo-se, é claro, de uma imagem morta e, por isso, manipulável: um retrato, por exemplo.   

O suporte escolhido para movimentação deste duplo fim mágico foi o conhecido retrato pintado por Almada Negreiros.

 

António Telmo



[1] Título da responsabilidade do editor. A organização do texto, mormente no tocante à localização do seu penúltimo parágrafo, é conjectural.

 

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