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INÉDITOS. 52
02-05-2015 11:0488 ANOS DEPOIS: ANTÓNIO TELMO, SEMPRE!
Homens sem sono[1]
O problema que se põe é o de saber se, entre nós, há homens despertos activos, homens-galos, não no sentido puramente estético do termo, mas naquele que Boitaca associou aos descobridores do Caminho pelo galo que anuncia o nascer do sol no alto da coluna e que talvez explique a etimologia do nome de Portugal. O enigma ainda inexplicado do 25 de Abril, é o aparecimento em jornais, televisão e rádio de uma expressão referida aos que fizeram o 25 de Abril: a de “homens sem sono.” Quaisquer que tenham sido as consequências do 25 de Abril, penso que foi um facto positivo, não pelas razões que têm sido dadas, mas porque abanou um povo adormecido, o fez estremecer e se, no campo político e social, tudo está aparentemente na mesma, é possível que os “homens sem sono” se tenham servido de conhecidos autómatos para abrir a janela no quarto onde o país dormia. Continuo a pensar que qualquer coisa mudou na casa de Portugal, qualquer coisa que ignoram políticos, psicólogos, sociólogos, mas que germina – ainda obscura semente de luz – como um suave movimento que pode ser encontrado se estivermos subtilmente atentos.
O que germina é a Pátria, que se lançou no 25 de Abril, cansada de ser Bragança ou de ser Salazar, mas que não quer ser Soares, Cunhal ou Freitas do Amaral. Há ou não homens despertos que saibam que a trombeta sonora, composta de sete sons, do galo primigénio da raça soará na hora exacta da noite excessivamente densa? Por enquanto, se acena a ouvirmos, não queremos acreditar e negamos. Três vezes a negamos. Negámo-la em 1640, quando confundimos D. João IV com D. Sebastião, em 1820 com as ideias francesas, em 1928 com Salazar e em 1974 com Spínola. É preciso acertar com o sinal do Encoberto. Só que o Encoberto por definição não tem sinal.
Por quê o galo?
O galo, de que Portugal é o porto, tem as seguintes características que convém meditar profundamente:
1. Bela plumagem, cauda em espiral e crista vermelha.
2. É polígamo.
3. Ergue-se erecto e altivo sobre as patas.
4. Marca pelo canto os tempos essenciais do curso do sol.
5. O seu canto ascende numa tríplice cadência, despertando as potências adormecidas da alma. É a manifestação sonora de Kundalini.
Claro que os “cientistas” que estudam as sociedades se riem destas disquisições poéticas e irreais. É uma das regras da ocultação. Tudo se passa como se Portugal não tivesse nome. É “este país…”, talvez definitivamente morto com o “Pai Rosacruz” mostrado por Pessoa, aquele que “conhece e cala”. Ver o problema da existência ou morte da Pátria através das imagens de um galo, aproveitando uma vaga associação etimológica, um puro acaso de sons, se não é a ironia que, por contraste, lembra as galinhas que tomaram conta do terreiro, é, quando muito, coisa de literato simbolista. Outra regra, senão a mesma, da ocultação.
Há, porém, coincidências espantosas para lá daquela já referida dos “homens sem sono”. Há, de novo, o encoberto de Massamá, desta vez de monóculo, que foi vencido e logo se ocultou para dar veracidade ao símbolo. Muita gente se contentaria com um símbolo (os monárquicos, por exemplo, desde que o símbolo os garantisse contra os que não são símbolos). Há os cravos, as chakras! Há a era do Aquário, na boca dos chacais e de Costa Gomes. Há, por cima disto tudo, o País de Gales, a Galiza, a Gália, uma grande comunidade antiga que aqui tinha seu Porto, seu Porto Culto, como dizia Bruno ou Oculto, porque lido em voz alta soa na mesma.
Tudo aparece, neste tempo que vivemos, como uma grande paródia simbólica da verdade da Pátria. Uma grande paródia simbólica onde, apesar de tudo, o mesmo está! Eis um sinal do fim da Pátria. Surge com as ideias que a formam na forma de uma grande curiosidade. Eis o sinal que não se vê.
António Telmo
VOZ PASSIVA. 50
02-05-2015 10:51António Telmo: da arte pela arte à arte ao serviço de uma causa, que caminho?
Risoleta C. Pinto Pedro
[António Telmo na Universidade de Brasília, em 2 de Maio de 1966]
António Telmo tem o talento de se inspirar na biografia transfigurando-a pela alquimia do símbolo e aprofundando-a esteticamente pela metáfora.
É curiosíssimo encontrar pelo meio da sua escrita pinceladas de biografia nas cores básicas ou em tons pastel. O efeito acaba por ser o mesmo. Quer uns quer outros sofrem um fenómeno perante os nossos olhos nunca habituados: a transfiguração, a alquimia. O processo simbólico de Telmo dilui-se na ficção, a ficção tem a originalidade do símbolo, ambas se transformam pela metáfora.
Já me aconteceu ler ficção de autores que apreciei na escrita divulgativa, levemente ensaística ou mesmo de autoajuda, ter apreciado estas, e não gostar das tentativas ficcionais. Posso ter apreciado essa outra inicial vertente e quando se metem à ficção senti-la como um desapontamento. O que é normal, a escrita de divulgação, de formação, de reflexão tem características próprias e a ficção literária, dentro dos infinitos estilos compostos por cada um, também. Um autor de ficção pode pretender escrever um texto normal, comum, pragmático e informativo, e tropeçar na metáfora, enrolar-se na musicalidade, afogar-se no fluxo do literário. Também é normal. Com isto, não quero dizer que não possa acontecer a caneta com dupla vocação. Ou oficina. Pode até acontecer, no exercício da modernidade, ambas se confundirem. Acontece, mas nem sempre. Por isso me encanta a escrita de António Telmo, que consegue manter o seu estilo, presente no texto reflexivo ou de reflexão, e na ficção. Que se interpenetram, sem se confundirem. As doses são rigorosamente medidas (no athanor do seu inconsciente?) para criar ora uma coisa ora outra, produzindo resultados diferentes com os mesmos ingredientes. Chama-se a isto autenticidade. Não precisa de se afastar do seu estar, pensar ou sentir para criar isto ou aquilo. Penetra e fecunda o texto com a sua essência e Deus faz o resto. Porque sente que aquele seu menino está com ele na arte e no serviço. E é esta a minha “tese” (com aspas, porque a expressão é forte, reconheço, e a minha proposta é humilde) que está indelevelmente fixada nas páginas escritas por António Telmo: nem arte pela arte, nem arte ao serviço, mas arte com e como serviço. Arte realmente…. real.
Abril e Maio de 2015
VOZ PASSIVA. 49
01-05-2015 19:43Protréptico Télmico
Pedro Vistas
Dentre os vultosos nomes da luminar escola portuense, António Telmo terá sido quem melhor tipificou a feição renascentista que, duma ou doutra sorte, estes eméritos lusos foram espargindo. A dita escola e, sobretudo, o Grupo da Filosofia Portuguesa (ao qual pretendem pertencer alguns que lá não têm morada real, e pertencerão outros por indesmentível condição, mesmo que sem título de propriedade), foram a maturação e a cons-ciência reflexa do movimento da Renascença Portuguesa. O seu magistério consistiu, pois, em fazer renascer, reviver, ressuscitar, o que foi dado como morto, foi tão vital quanto isto o desígnio deste escol, e, por ser isto o que está em causa, assim se compreendem as letais forças de resistência que, quais prisioneiros, reagem contra a metánoia visada. Custa sair do leito de morte a enfrentar o dia novo e vivo com o qual se há-de coincidir até sê-lo. Como em todos os Renascimentos, este nosso, essencial, fez-se de uma multidisciplinaridade que pretendia concorrer para um ápice transdisciplinar, sintético e certeiro, que rasgasse os Véus de Ísis até uma visada objectiva e real, além de todas as perspectivas. Telmo foi quem mais se destacou nesta pluralidade uni-versal, ressubstantivando a filosofia com a inamissível dimensão teológica, sem esquecer a identidade ontológica dessa ontopoiética, aproveitando as artes para uma pedagogia que superasse o materialismo, o positivismo, o sociologismo, o historicismo, e o didacticismo, e reaproveitando os instrumentos gnosiológicos que estas parasitagens métricas haviam escusado para repor a criatividade (na linha do criacionismo), a realização espiritual, e o compromisso de cumprimento da Verdade vivida, para isso resgatando a astrologia, a numerologia, a kabbalah, ou uma filosofia da história universal e escatológica que entendesse a História como a ciência do porvir. A completude renascentista é de tal ordem que Telmo não afasta sequer aquele que é o mais desatendido e inexperimentado ensinamento da Paideía lusíada, a via heteronímica de Pessoa como método de condução personalística ao fulcro essencial, como no-lo mostra Tomé Natanael. Mas, mais do que polímato, Telmo assim atalhou caminho para o dito ápice transdisciplinar, pois o seu esfíngico rosto, face terceira de Janus, depunha o olhar no deslumbramento do Mistério vivo e impensável, na ratio essendi da vida. Nada mais inútil para a nossa civilização de século XXI, constituída por critérios de avaliação, parametrizações conformes, índices de produtos, e o mais, que melhor se diria “e o menos, se tal for, ainda, possível”. De que serve uma sabedoria encarnada, que demande transformação interior para ser lida, que devolva ao exercício filosófico valências tão esdrúxulas quanto a intermediação entre o Uno e o múltiplo, para que presta um autor que implica, mais do que explica, e que afaste por tolos, com gnosticismos indesvendáveis, os que nos recintos previstos são tidos como eruditos-de-aplauso, evidenciando-os como, afinal, iliteratos?
Telmo não serve a esta civilização. Serve a outra, à futura essencial de Sempre, a sua obra não é proveitosa para os estrangeirados que vivem em Portugal porque foi sobretudo erguida como luzeiro para os lusos entretanto apagados, indiferenciados, extintos na globalização do Vazio funcional. A Renascença é hoje mais do que nunca pertinente porque hoje, mais do que nunca, é inútil. Portugal é uma necrópole imensa a precisar de renascimento se quiser ainda vir a Ser.
Por exemplo da suma inutilidade da obra télmica, veja-se a reflexão da língua como instrumento ontopoiético, neste momento de imbecilidade (dizemo-lo pela etimologia) de tropeço. O filósofo ensaia a correspondência da língua com a kabbalah, identificando o que considera ser a estrutura sagrada do português, isto num momento a-histórico em que se delapida a língua por critérios desbussolados e utilitaristas, e para o qual a palavra sagrado só cabe em estudos de ciências religiosas, e desculpada entre aspas. Já para Telmo, inútil, pouco moderno, a língua encerra não apenas valências ontológicas mas também espirituais, e a sua constituição, que diferencia as línguas (inutilidade que contraria a tenção de uniformização presente que indiferencia pela anulação de identidade), é pars divinae mentis, não acidental. Se a palavra sagrado, faz sorrir de condescendência, noções desta ordem enfurecem o laicismo que é hoje o totémico facho liderante das consciências, o seu incontestável bezerro doirado. Destruindo o senso-comum que se vende como iluminação mental, Telmo avisa que a ortografia é indissociável da valência gnosiológica da língua, o que, a não ser uma cabal inutilidade mentirosa, nos poria hoje, ante a presente normalização, na mais néscia amputação de possibilidades, cerceados por uma norma estupidificante e afilosófica. Mas Telmo sabia que a perversão da língua não é, também ela, acidental. Há dinâmicas perversoras, dissolutivas, que fazem parte da organicidade da vida e que se servem dos decisores tanto quanto mais automáticos estes sejam. Justamente por isto é que o cumprimento vocacional pode salvar o mundo, repondo a naturalidade, a concordância com a Natura.
Telmo é, felizmente, inútil. Tanto quanto a própria filosofia de que foi fiel seguidor, digno representante, mestre comprovado entre pares. Convocam-se, pois, todos os inúteis a entrarem nesse círculo sagrado onde a utilidade não tem lugar por ser completamente preenchido pela Verdade.
UNIVERSO TÉLMICO. 17
29-04-2015 20:41CARTAS DE AGOSTINHO DA SILVA PARA RUY VENTURA. 02
2
[carimbo do correio – Lisboa, 24.5.1993; ficha bibliográfica]
22.5.93
Caro Amigo
O que escrevo é de todos – e esteja por e para tal inteiramente à vontade (4). Seu texto perfeito, e muito grato pela transcrição (5). A comunidade certa para Portugal tem agora início da parte do Brasil, que aqui delegou no Embaixador José Aparecido de Oliveira, e que é ainda imaginação dos do culto [do] Espírito [Santo] que passaram às Américas no [século] XVI. Comunidade dos Povos da Língua Portuguesa. Um dia iremos mais em frente e seremos uma Comunidade Mundial dos Povos de Línguas Ibéricas. Pense só na extensão disto. Veja só quanto mundo. Das Baleares a Timor, apesar de qualquer sentença contra Xanana (6). Capital? Cada um a tenha dentro de si – e, no mapa, a adore como lhe for próprio, em todos os aspectos do concreto e do transcendente.
Afectuosamente do A.
____________
Notas de Ruy Ventura:
(4) Esta primeira frase diz respeito ao pedido de autorização que lhe dirigira para reproduzir um texto seu numa revista cultural (ou “fanzine”) que estava concebendo, com António de Oliveira Cavaco (hoje professor em Castelo Branco), na Escola Superior de Educação de Portalegre, onde éramos ambos alunos. Chamar-se-ia A Mosca. Motivos que não vêm agora ao caso impediram no entanto a sua saída.
(5) Agostinho da Silva agradece aqui um texto de opinião que publiquei no jornal Correio Beirão, de Moimenta da Beira, por essa data, no qual transcrevia excertos de um ensaio seu (se a memória não me atraiçoa). Fui levado a colaborar nesse periódico beirão pelo poeta Orlando Neves, que então também dirigia a revista cultural Sol XXI, onde editei alguns dos meus primeiros poemas.
(6) Xanana Gusmão estava, na altura, preso numa cadeia indonésia como prisioneiro político. Depois da independência de Timor-Leste foi presidente da república e primeiro-ministro deste jovem país.
UNIVERSO TÉLMICO. 16
28-04-2015 21:14Em contagem decrescente para o início das TARDES TÉLMICAS 2015 e para a apresentação em Sesimbra de O Estranhíssimo Colosso - Uma Biografia de Agostinho da Silva, de António Cândido Franco, iniciamos hoje a publicação da série de quatro artigos, sob a rubrica "Onde a terra se acaba", que o autor de A Vida de Lamennais escreveu, no ano de 1971, para O Sesimbrense. Estão reunidos em Textos e Ensaios Filosóficos II, volume editado pela Âncora em 1999.
Onde a terra se acaba. 01[1]
Agostinho da Silva
Tem-se dito, e ninguém ainda o apregoou melhor que Ramalho Ortigão, que é a Holanda o resultado de uma luta contínua entre o mar e a terra, com a saída final de que a terra vencerá o mar e poderão um dia as mais sólidas e fecundas vacas do mundo substituir a até lembrança das velas que outrora correram cantos de império e tanto contribuíram, para além de todas as violências e erros, para que paire na atmosfera uma nostalgia de trópico e seja hoje a Holanda o único país europeu, isto é, de além-Pirenéus, em que o homem de cor não sente nenhuma espécie de distinção racial.
Pois o mesmo, de luta entre mar e terra, se poderia dizer de Portugal, aqui, porém, com o mar sempre vencendo, desde Fuas Roupinho e a plantação de Leiria até uma emigração que só não continua transatlântica porque o Brasil é longe e seu dinheiro incerto, pois que parece mais prezar esse país, «o que ninguém segura», as aventuras de investimentos arriscados do que as certezas orçamentais dos saldos positivos.
Sempre vencendo o mar, e contra ele protestando o Velho do Restelo e as mulheres de luto, a ciência de um Alberto Sampaio e a inteligência límpida de um Sérgio.
Parece, no entanto, que estamos atingindo o tempo de terminar a polémica. Ajudada, como é costume na História, tanto pelo que parece favorável como pelo que de momento se poderia lamentar, a industrialização da agricultura se impõe ao mundo, simultaneamente penetrando nas quase sempre duras cabeças dos políticas a ideia de que seria útil especializar-se cada país na produção mais própria de suas condições naturais. Tudo terá como resultado que cada vez menos gente terá que se ocupar dos campos e que até os hoje 6 por cento da população agrícola nos Estados Unidos nos parecerão de futuro exorbitância inútil.
Portugal se cobrirá de floresta, de pomares e canteiros, jardim à beira-mar plantado como dizia o poeta, mas sem os pobres, pelos quais não deu, pois era ministro e académico, pobres que não escaparam à sensibilidade de um António Nobre, que lhes viu nas chagas as mais vivas flores de seu país quase perdido. A sua força, porém, estará sempre no mar e no anseio de distância e no quem está longe; o horizonte de nossos rumos é o da linha sempre indistinta de céu e águas, não o de picos de montanha ou de monótonos plainos; e mora nosso rei mítico na ilha que nunca se descobre ou que se descoberta logo desapareceria para além de todos os quadros de espaço e tempo em que decorre nossa vida comum.
Navegar, porém, não postula miséria; servir o mundo não deve significar sempre abandonar-se a si próprio; unir os povos, tal é a nossa missão, não implica separar-nos do nosso próprio povo. Ninguém mais deverá embarcar porque é pobre; ninguém mais deverá, porque é ignorante em Portugal, ir ser escravo na França; que nunca ninguém mais se meta à estrada por só na estrada, e longe, ser livre, e ele. É a nossa fórmula de abastança, para lá de capitalismo e de socialismo, que temos de levar aos outros; é a nossa invenção educadora, a de deixar que gente cresça no saber, que nos será carga de novas naus; é a nossa crença no poder e na liberdade do espírito, sopro de Deus, que nos será agora um impulso de vento. Que Sesimbra o medite, pois que, por ela, ao mar se desce e ao mar se abraça.
CORRESPONDÊNCIA. 22
27-04-2015 20:17CARTAS DE ANTÓNIO TELMO PARA ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO. 05
Estremoz, 21 de Agosto de 1990
De António Telmo a António Cândido Franco
Vale!
Se falasse consigo sobre o belo livro de versos[1] que me enviou não me limitaria a dar-lhe os parabéns, mas teria de fazer-lhe algumas perguntas para poder, consoante as respostas, entrar deste ou daquele modo na intimidade dos seus poemas. Todas as perguntas convergiriam para esta: Sendo aquilo a que v. chama cosmologia ôntica ou ontologia cósmica duas expressões germânicas da velha relação do microcosmos com o macrocosmos, a direito ou no avesso, gostaria de saber se essa relação é actualizada e vivida no momento em que escreve ou se, antes, dela teve maior ou menor experiência. Eu sei que o leitor não deve meter o nariz onde não é chamado e o que lhe é entregue como o primeiro dado é o poema. Mas sei também a diferença que há entre um médio (medium) literário com a sua tripeça verbal que fabrica as metáforas de sete léguas e um espírito que é activamente livre na experiência daquela relação. Seja como for, já li três vezes o seu livro, fascinado pela sua beleza e profundidade. Envio-lhe um grande abraço. Até um dia destes.
Seu
António Telmo
[1] Nota do editor – António Telmo refere-se, por certo, ao livro de António Cândido Franco Corpos Celestes, Lisboa, Limiar, 1990.
UNIVERSO TÉLMICO. 15
23-04-2015 14:59Na edição de hoje do jornal Raio de Luz, mensário de opinião e informação do concelho de Sesimbra, Pedro Martins, na sua habitual coluna, escreve sobre o marranismo de Herberto Helder, à luz de premissas que partem de António Telmo.
Lad
Pedro Martins
O primeiro poema que li de Teixeira de Pascoaes devo-o ao poeta Herberto Helder. Descobri-o, pelos meus dezoito anos, nas páginas de Edoi Lelia Doura, a antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa que o escritor organizou para a Assírio & Alvim, casa editora que já por esses dias dava à estampa as obras do mago do Marão.
Deu-se o caso em Lisboa, no quarto de estudante onde o António Ladeira então se demorava pela capital, na Rua Marquês de Sá da Bandeira, paredes meias com a Fundação Calouste Gulbenkian e o seu jardim deleitoso de sombras, à distância de alguns passos no passeio fronteiro.
Certo dia, a senhoria do Ladeira, Dona Hortense, dona de casa e da casa, sólida senhora já avançada na idade, pasmou num ai de credo quando me viu irromper, em tropel, qual avejão, pelo corredor dos seus aposentos na companhia do seu jovem hóspede. Revestido de um pano preto, quadrilátero que na praxe lisbonense de Direito, nascida, anos antes, de um levantamento de rancho na cantina, fazia as vezes do traje académico coimbrão, mais lhe terei sugerido o causídico de toga que ainda o não era do que o sofrido estudante de leis cumprindo a agrura lutuosa das penas com que ensaiava esvoaçar. Nos dias subsequentes, a memória da minha presença ecoava ainda entre aquelas paredes, sob a fórmula respeitosa observada pela Dona Hortense, sempre que me mencionava ao António Ladeira: “Aquele seu amigo adbogado...” Não estou lembrado de que a proprietária trocasse o v pelo b ao pronunciar a última palavra. Pode muito bem ter sido o ponto de pilhéria que o Ladeira, esse marau de fina inventiva, acrescentava então ao conto, como por certo competia ao escolar irreverente de Estudos Portugueses que, à distância de alguns quarteirões, cursava com distinção Línguas e Literaturas Modernas na Universidade Nova, à Avenida de Berna.
Por essa altura, estávamos ainda todos à procura dos caminhos. O Ladeira trocara a Junqueira pela Senhora de Fátima, mandando às malvas a Comunicação Social. No DN Jovem, editado pelo generoso Manuel Dias, despontava já o meu amigo letrado como um dos mais promissores poetas da novíssima geração. A promessa, de resto, haveria de se cumprir à distância de um oceano, só que o país persiste desatento. Pela minha parte, versado no Eça haurido no sótão da Quintinha, escrevinhei in illo tempore algumas prosas miméticas para o imberbe suplemento do Notícias, imitando com denodo os escritores então em voga, de Saramago a Lobo Antunes. A coisa não deve ter saído mal de todo, pois a um primeiro prémio logo se me sucedeu um segundo, para não mais repisar o pódio ilusório. Sáfara, a lógica jurídica, em infusões assépticas, derribou-me o estro, mas da bravata resta ainda um escrito laureado na Antologia do DN Jovem, vez primeira que me vi em volume.
Do que eu e o Ladeira então fazíamos nestas páginas do Raio de Luz, já lá vai um quarto de século, fica a promessa de escritura para crónica futura, que bem virá a calhar neste ano de quarentena. Na verdade, releva da melhor prática que o plumitivo aprovisione temas no alfobre da sua inspiração e para mais, ao contrário do que lhe é costumado, o bom do António Marques meteu-se em empenhos quanto ao destino desta minha narrativa. Pelo correio electrónico, indagou-me há dias se eu não quereria escrever sobre Herberto Helder. Não lhe soube dizer que não.
O poeta morrera havia pouco e o nosso director topou-lhe o obituário na página digital do Projecto António Telmo. Vida e Obra. Façam o favor de a visitar. Como então ali se escreveu, o filósofo de Arte Poética tinha Herberto em altíssima conta. A par de Fiama Hasse Pais Brandão, com quem desvelou o Camões gnóstico e cabalista, via nele uma inspiração contínua. E, em preito de homenagem ao escritor, seguia-se, nessa lembrança electrónica, a publicação do final de um estudo que dediquei ao autor de Os Passos em Volta, perspectivando-lhe este genial livro de contos à luz da condição marrana que, até prova em contrário, presumo ser a sua. Poderão encontrá-lo, lá para o fim de Maio, no meu próximo livro, passe a publicidade.
Será bem pouco, reconheço, como credencial para a evocação de um dos maiores poetas portugueses das últimas décadas. Meu caro António Marques, neste ponto deveria simplesmente passar o chá ao António Ladeira, para aqui recordar uma das magníficas expressões com que o António Cândido Franco, n’O Estranhíssimo Colosso, nos dá a beber das suas fontes. Entregava-lhe o bule fumegante e, sem mais, chegava-lhe a minha xícara, pois quando o Ladeira partiu para a América, pouco tempo depois da nossa histórica entrevista com o Agostinho da Silva, já ele levava fisgada, no bornal, a dissertação de doutoramento sobre Herberto Helder que brilhantemente viria a concretizar em Santa Bárbara, na West Coast. Qual Rodrigues Soromenho do século que passou, voltou costas à pequena Califórnia que no Caneiro se arrima a Argéis, acenou longamente à Fortaleza, por uma última vez mirou na lonjura o farol sinalizando a doca e, qual seta despedida, assentou praça no outro lado do mar, nessoutra Califórnia onde as praias são miríade. Sei-o agora numa universidade do Texas, depois de haver leccionado por Yale, numa passagem meritória que a minha colecção de t-shirts, graças à sua generosa lembrança, ainda hoje permite atestar.
Vai a crónica a mais de meio e dou-me conta de que ainda mal falei de Herberto. Não é o mesmo que falar mal, nem eu disso seria capaz em tratando-se do poeta admirado da Última Ciência, mas pressinto que o leitor, se acaso não demandou outras paragens do nosso jornal, já topou à légua este meu jeito esquivo e atrapalhado de me furtar à incumbência que aceitei.
Bem vistas as coisas, quem, inocentemente, me meteu neste imbróglio foi o António Cândido Franco, e por isso me parece de justiça trazê-lo de novo à colação, um mês após a exaltação do Colosso que nos ofereceu. Há mais de dois anos, pediu-me colaboração para A IDEIA, revista de cultura libertária que então passou a dirigir. Tinha em mente dedicar dois números ao surrealismo em Portugal e deu-me a escolher entre Herberto Helder e Ernesto Sampaio. Fui pelo primeiro. Estudei-lhe Os Passos em Volta e, para minha surpresa, deparei-me nessa prosa mágica com um poeta de funda religiosidade, aquela que se cumpre na demanda que da descrença vai à crença, para, aqui e ali, se fixar num humilde agnosticismo. Bem sabendo que Herberto, tal como Telmo, descendia de gente de nação, não me custou ver nesse seu livro autobiográfico o testemunho do judeu errante, inteligente e inquieto como o Santo Ofício os perscrutava. Homens assim respeitam-se, e muito, ainda que não pensem como nós.
António Telmo considerava, pelo curso dos séculos, vários tipos de marranos ou cristãos-novos. Os que degeneram no fanatismo religioso, modo odiento e violento de a sua dissimulação adquirir segunda natureza; os que, pela prática automática, mecânica, sem crença, do ritual a que o novo e imposto credo os obriga, desembocam no materialismo ateu; os que brava e ocultamente persistem no culto velho, refinando pela metáfora a hipocrisia diplomática a que se veêm forçados; e os que superiormente fazem a síntese dos dois credos antagónicos, ambos tidos por verdadeiros e sublimes. É este o caso do próprio Telmo, como é também o de Agostinho.
Mas o filósofo admite a possibilidade de outros resultados. Será o caso de Herberto, numa falta de fé que a si mesma se procura superar pelo exercício da metáfora. Ocluso, jacente, soterrado, o seu judaísmo emerge do subconsciente pelo sortilégio das imagens exaltadas que nos dizem palavras como terra, corpo, mulher, mãe, vida, casa, quarto. Tudo isto transportam Os Passos em Volta, numa deriva circular que em espiralada ascensão se soergue. Estará também, admito, na sua poesia em verso, mas para dessa nos falar falta-nos aqui o António Ladeira.
Se há frase de Herberto que sempre me fascinou pela sua estranheza é aquela em que nos diz que um poeta está sentado na Holanda, a mesma que, para todos os efeitos, nos levou Espinosa, filósofo que não poeta, e onde o nosso Sampaio Bruno, fundador da filosofia portuguesa, conheceu a metanoia transfiguradora do seu pensamento, à sombra presumível da sinagoga de Amesterdão. Sempre que releio essa frase, vejo nela um ciclope sentado à beira do mapa, imaginando, lá para o Setentrião, a faixa de perímetro que os Países Baixos resgataram ao mar.
Uma figura assim majorada resulta inverosímil, colossal. Diz bem com a grandeza de Herberto, pois que por ela, afinal, de si ele nos fale. A mesma grandeza que pressenti no torvelinho cósmico do “Vento do Espírito”, as primícias de Pascoaes que um dia, em Lisboa, como no princípio vos contei, o poeta da Madeira me proporcionou.
E eis que, de um mês para o outro, em tempo de anões, fomos de um colosso para um gigante. A passos largos, como os de Agostinho, e em volta, como os de Herberto. Às voltas tenho eu aliás andado com esta minha narrativa, na esperança de que se avistem, no contador, ao fundo do ecrã, as mil e quinhentas palavras da ordem. Não sei se o nosso director se vai dar por satisfeito, mas não lhe soube dizer que não. Para o Herberto, meu caro Marques, melhor seria que batesses à porta do nosso amigo americano. Ele sabe da poda. Parece que este ano vem por aí, com alguma demora, e talvez então te saiba falar do que eu agora não pude escrever. Estou a vê-lo, sorriso leve nos olhos, a parodiar-nos, qual Roger Moore, na esplanada do Café Pipau: My name is Lad. Tony Lad.
UNIVERSO TÉLMICO. 14
22-04-2015 09:31SeZimbra
Pedro Martins
É conhecida a oposição de António Telmo ao acordo ortográfico. O filósofo sabia bem os riscos de dementação que a sua aplicação envolveria. Infelizmente, vai-se vendo todos os dias que assim é. Mas há motivos para ter esperança.
Na era fria e desoladora da electrónica, recebi ontem uma carta. Anónima. Sem remetente, claro está. Nada que me apoquente.
Fui porém compensado pelo esmero do lavor depositado na identificação do endereço do destinatário. Em lugar da palavra Sesimbra, alguém escreveu Sezimbra. Com Z na sílaba do meio. Mas Sesimbra com o Z justiceiramente traçado em cruz, à Zorro. Um Z gótico.
Ora Sesimbra, tal como Sintra, já se escreveu com C. Na inicial maiúscula, claro está. Nessa altura, o nome da terra grafava-se Cezimbra. Cá está o Z. Cá está o Zorro.
Mais tarde, terá evoluído para Sezimbra. Com o Z de novo. De Zorro. Claro que estas mutações não são lineares. Envolvem períodos de hesitação na grafia. Levou tempo a que Sesimbra, finalmente, se fixasse na fórmula actual, escrita com os dois SS quais serpentes a lembrarem a sombra ominosa do mal.
Vejo assim que o remetente, apesar do seu anonimato, optou por grafia mais benévola. E, sobretudo, bem mais saborosa, no jeito quase arcaico com que deu corpo ao nome da capital da Arrábida. Por isso lhe estou grato. Por este belo e nobre gesto de resistência.
Como quer que seja, já Almada Negreiros, pelo final dos anos 60, consoante nos conta António Telmo, que então o visitou em Lisboa com Rafael Monteiro, asseverava que Sesimbra era tão bela que nem uma bomba atómica a poderia destruir. Agostinho da Silva, que via na Piscosa um microcosmo de Portugal, disse de outro modo a mesma coisa. Chamou-lhe o lugar onde se não morre...
INÉDITOS. 51
21-04-2015 21:54Que o final de A Verdade do Amor, de António Telmo, esteve para ser outro, ficáramos já a sabê-lo por um trecho das suas Páginas Autobiográficas, parte integrante do III Volume das Obras Completas do nosso patrono, a sair a lume em Junho com a proverbial chancela da Zéfiro. No espólio télmico conserva-se, inédita, a primitiva versão da última cena, que agora damos a conhecer ao leitor.
Última cena
Ao meio, arde uma fogueira. É noite de São João. Um aluno entra de capa e batina, despe-se e lança-se para as chamas que se levantam, alegres. Seguem-se outros até doze. No lado direito da cena, sentados em grandes cadeiras, vestido de negro, um coro de sacerdotes católicos.
Coro, levantando-se e os braços solta uma exclamação prolongada e soturna de indignação e espanto.
Os estudantes dançam em volta da fogueira. Dançam com ela e saltam-na. Surge uma rapariga lindíssima. É a Natália. Diz:
“Por este rito queimamos o velho hábito secular de andarmos vestidos de preto, como se Cristo, apesar de ter ressuscitado, continuasse eternamente morto. Vede! Eu sou a filosofia, como a ensina Leonardo. Quem me ama pode andar vestido de luto?
“Triste e pesada como uma cruz é a religião de nossos pais.”
Alguns rapazes pegam nela e atiram-na por cima das chamas para que outros a recebam nos braços. Ela vem para a frente dançar com um de cada vez. Começa a soar um harmónio.
Uma voz canta:
1
Como é bom dançar
Ao som do harmónio
Sem pensar
Que o toca o demónio,
Ter Lilith por par
No adro da igreja
E todos a dançar
E ninguém com inveja.
2
Tão contente está Lilith
No seu trajo de campónia
Que se esquece que é demónia
E enteada de Afrodite.
Ao som do harmónio
Todos batem palmas…
Está tão feliz o demónio
Que se esquece das almas.
Cala-se o harmónio e a voz prossegue:
3
Ah! Mas fora da dança
Renasce a inveja.
Calou-se o harmónio
No adro da igreja.
Findou a festança.
Só há o demónio
E a demonia.
E esta balada
Na noite calada
Na noite vazia.
CORO de sacerdotes
Ai!, ai!, ai de nós!
António Telmo
UNIVERSO TÉLMICO. 13
21-04-2015 10:44CARTAS DE AGOSTINHO DA SILVA PARA RUY VENTURA. 01
1
[carimbo do correio – Lisboa, Patriarcal, 30.4.93; folha A4]
27.4.93
Meu prezado Amigo
Sua carta, tão preciosa por seus originais, chegou mesmo e muita alegria me deu, não só pelas páginas sobre Régio (1) como pelo seu próprio e excelente Poema (2). Junto vão as três Folhinhas de agora. Se algum dia vier por Lisboa terei muito gosto em que nos conheçamos e me pode avisar pelo telefone 3424036, de que chegará. De novo, muito obrigado e um abraço a nosso Nicolau Sayão [sic] (3).
Afectuosamente do
A.
____________
Notas de Ruy Ventura:
(1) Referência a um texto sobre o autor de Fado, lido por mim aos microfones da Rádio Portalegre em data que não posso precisar.
(2) Não recordo que poema terei enviado a Agostinho da Silva (talvez esteja no seu espólio, à guarda da Associação que tem como incumbência o estudo e a divulgação da sua vida e da sua obra). Será certamente um daqueles que depois incluí no meu primeiro livro, Arquitectura do Silêncio, galardoado em 1997 como o Prémio Revelação de Poesia, da Associação Portuguesa de Escritores, e editado em 2000 pela Difel.
(3) Nicolau Saião (Monforte, 1946), poeta e pintor relacionado com o movimento surrealista, com quem coordenei o suplemento cultural Fanal, editado no jornal O Distrito de Portalegre, do qual saíram 36 números entre Abril de 2000 e Junho de 2003. Foi ele quem me incitou a escrever, pela primeira vez, a Agostinho, bem como a Matilde Rosa Araújo, de quem fui amigo até à hora da morte.