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VOZ PASSIVA. 55

30-06-2015 10:42

Risoleta Pinto Pedro apresentou, no passado sábado, na Biblioteca Municipal de Sesimbra, durante a quarta Tarde Télmica, as Páginas Autobiográficas, um dos livros agora reunidos no III Volume das Obras Completas de António Telmo. Numa viagem palavra a palavra, página a página, escrito a escrito, de que agora nos oferece o registo cartográfico. 

Sobre Páginas Autobiográficas de António Telmo

O Galo e a Rosa

Risoleta C. Pinto Pedro 

 

O pensador que da sua própria sombra extrai luz e assim nos ilumina.

Para mim, um convite para ler ou escrever sobre António Telmo não precisa de ser feito duas vezes. Antes da formulação já eu estou frente às páginas. Porque me é música para a alma, rebuçado para a mente, recreio para a criança.

Confidenciava no outro dia a um muito querido amigo que sempre pensei especialmente nos livros de António Telmo, de que destaco particularmente a Gramática Secreta, como uma reserva de luz solar na minha vida. Se tudo falhasse, havia essa luz.

Era algo assim o que eu dizia:

“António Telmo é uma espécie de semente de felicidade, algo que germina e germinará, pelo conhecimento, pela ética, pelo arrojo, pelo testemunho, pela Presença, pelo brilho elevado até na sombra. Se tentar descrever o que sinto desde sempre quando penso nos livros dele, é muito parecido com o sentimento que em criança (e recordo-me muito bem) dedicava aos brinquedos mais sonhados, mais desejados, como objectos mágicos. Algo assim: se tudo falhar existem estes livros, existe este pensamento. “

 

Agora já não tenho um pensamento catastrofista, mas as palavras pensamento de Telmo permanecem sóis. Daí o meu sentimento de felicidade por estar aqui nesta celebração convosco.

Mas não sei se António Telmo, que eu não duvido que esteja connosco, vai achar muita graça a esta minha apresentação, por, pelo menos, uma razão.

E vou já “despachar” este assunto, antes que perca a coragem.

Assim entro nas Páginas Autobiográficas:

Ao contrário de António Telmo, que com muita graça fala disso num destes textos, a propósito de umas conferências em Sesimbra, eu lerei os meus papéis:

“Ora era regra por mim estabelecida, a fim de evitar o aborrecimento dos ouvintes, que os oradores não podiam ler discurso escrito, mas deviam sim falar livremente de improviso. Para tanto é necessário coragem, inteligência, imaginação e entrega a Deus. “

O que significa que, lendo, estou aqui a fazer um “streaptease” onde me dispo de coragem, inteligência, imaginação e entrega a Deus. Ainda por cima dou-lhe razão, por isso espero que não se vão embora, quanto mais não seja pelos meus pares nesta mesa… E retomo António Telmo, a propósito de uns acidentes de percurso nas tais conferências:

“Aquele que nos foi imposto leu seus papéis e lá fomos aguentando que passasse infindavelmente as folhas até respirarmos de alívio. Este mau hábito de ler quando se fala para o público foi banido do Brasil, onde me aconteceu ver esvaziar-se uma sala cheia de ouvintes logo que o orador pegou nos papéis. O que aconteceu em Sesimbra foi bem mais interessante.

Terminada a leitura, seguiu-se o colóquio com perguntas e respostas. Um pescador ergueu o braço pedindo a palavra:

Diga-me lá! Foi o senhor que escreveu isso?

Respondeu o conferencista: - Então quem havia de ser?

E o inteligente homem do mar: Eu é que sei?! Pode muito bem ter sido outra pessoa. Como podemos ter a certeza que foi v. que escreveu isso? “
A minha sorte é que não haja aqui nenhum pescador e que se houver seja caridoso comigo.

Assim, peço-vos que não se vão embora antes de me darem uma oportunidade, e confesso já que não fui eu que escrevi tudo: a parte melhor do que vos vou dizer é obra de Telmo e o resto é meu, embora não possa apresentar nenhuma prova para além da minha palavra. Eu própria não tenho a certeza do que estou quase a jurar.

Comecemos então pelo início. Não do livro, mas de tudo:

O galo eleva-se dentro de si mesmo para soltar as cinco notas anunciadoras do Sol.

Telmo não poderia deixar de trazer o galo da infância, esse animal iniciático, o que acorda das trevas, aquele que faz essa paradoxalmente difícil passagem da escuridão para a luz.

Para matar saudades e confirmar as cinco notas, que eu sou como S. Tomé, andei a ouvir galos na internet porque já desapareceram dos quintais da minha infância e os dos telemóveis não os acho fiáveis.

Seja como for, o importante aqui é trazer perante vós, através deste iniciador que é o galo, esse outro iniciador que foi e é António Telmo, um galo na terra a recriar o céu terreno.

Mesmo os iniciadores tiveram uma infância, e sobretudo eles viveram-na intensamente, como uma dura iniciação.

Essa infância por onde constantemente viajei no início deste livro.

O silêncio do campo fazia-me pânico. Ainda não tinha lido os filósofos alemães e não podia saber que era a minha própria presença que me apavorava.

Que criança não conhece isso? É como se ele falasse por mim, por nós, por todas as crianças. Não era este tipo de conhecimento que deveríamos aprender na escola? Os filósofos deveriam manter um constante diálogo com as crianças a tranquilizá-las sobre o silêncio e outros lugares assustadores. Como faz Telmo, com coragem e bondade.

Ele teve, como eu, como todas as crianças com sorte, alguém que lhe contava histórias de terror. É melhor ouvi-las do que vivê-las.

Mas mesmo assim, assistimos aqui ao desmoronar dos mitos sobre a infância: nem Paraíso, nem inocência, nem segurança.

“A ideia que se faz da infância como de um paraíso na vida não é tão certa quanto rezam os livros, pelo menos se a minha pode servir de exemplo. Vivia num mundo hostil, povoado de medos.”

A mim, fez-me sentir muito acompanhada, este relato, a essa menina que ainda está lá atrás numa total solidão debaixo dos cobertores nocturnos a tremer com o som do vento. Também ali para os lados de Arruda.

No meio dos relatos das dores da infância a alegria da poesia:

“O meu coração maravilhado fez-se pequenino como uma espiga.”

 Telmo, meu mestre e irmão, como me ensinas sobre mim. Recito-te:

“vim a atribuir esta obsessiva sensação de instabilidade interior, que nunca mais me deixou pela vida adiante, não à minha infância”,

 mas àquilo que ele designa como “atavismo judaico”

Viveu então num perigoso Paraíso feito de árvores, rios e habitado por um lobisomem e uma bruxa. Nada lhe faltou.

Nem um padre que o absolveu para sempre, um padre que, sem o saber, estava banhado pela aura do V Império, ao dizer-lhe aquando da confissão da 1ª comunhão. “_ Vai-te! Tu não tens pecados.”

Um padre libertador, denunciador da moral hipócrita com que os adultos afligem as crianças, como ele refere mais adiante:

“moral que nos era impingida e que todas as crianças odeiam, porque estão antes do pecado original.”

Traz-nos, da infância, memórias do silêncio da igreja como se houvesse ali alguém doente, e é assim mesmo que as crianças lêem aquele inexplicável silêncio, o ar austero dos santos. O mundo dos adultos pelo olhar de um Telmo menino que nunca se esqueceu de o ter sido.

Para além das questões existenciais, estamos perante um precioso documento histórico-etnográfico, como o registo do nome que se dava aos gelados: “esquimós”

“Homens sem alma” mostra-nos cadáveres trazidos da memória da infância da Arruda, na casa mortuária, o espectáculo de “horror cadavérico”.

No início da vida, o convívio com a morte. Sem rede. A criança que Telmo foi, viveu estas experiências no horror da solidão interior, mesmo quando em grupo.

 

Mas as associações secretas já lá estavam, a vida deste homem é um continuum, não encontro hiatos, como se em cada fase da vida se cumprisse o desígnio da encarnação: leitura simbólica do mistério tão velado quanto para ele revelado no banal quotidiano. Assim, caçar pássaros, colher espargos, procurar o trevo de 4 folhas, encontrar ninhos, são associações naturais, as suas proto sociedades secretas, com seus códigos, seus segredos: os que espreitavam os cadáveres, os que lançavam fisgas ao sino da igreja, cada grupo destes actuava sob a lei do silêncio.

Mais tarde, já em Sesimbra, para onde foi viver aos 16 anos, os seus amigos eram jovens afectados pela tuberculose, cujo convívio ele não evitou. Mas há uma curiosa passagem em que conta como uma voz nocturna o avisou de que, afinal, o perigo vinha de dentro:

«“Não estejas melancólico, senão entuberculizas.”

E acrescenta, este homem que não se conformava com a aparência das coisas:

“O perigo vinha afinal, não do meu convívio com tuberculosos, mas de um estado doentio da alma: a tristeza.”

“A tristeza, descobri eu então como hoje creio, é a expressão de falta de confiança na bondade de Deus.»

Igualmente belíssima passagem poética, a página “Brisa da Terra”, que devolve ao ribeiro que corria em Sesimbra por onde existe hoje estrada, o ânimo, a respiração da água transformada em ar.

Perante estas palavras apetece repassar por todos os lugares por onde ele passou. E deixou seu carimbo, invisível e indelével.

É precioso tudo o que conta, da sua vida, das suas memórias, das suas interpretações, intuições, mas também os testemunhos que nos traz das vidas dos outros, seus companheiros de caminho.

É notável o episódio da atribuição da classificação a um exame de Álvaro Ribeiro feita pelo professor Leonardo Coimbra. Algum professor hoje teria coragem para o fazer? Classificar pelos gestos? Por aquilo que o professor sabe que o aluno sabia, mas não disse? Num tempo como o actual, em que não interessa o que se sabe, mas o que se aparenta saber, em que um exame de Português prévio à entrada na Universidade é preenchido com cruzes, isto é espantoso.  

Também de um viver fraterno e ético dentro das instituições por homens excepcionais, estas páginas são impressionante testemunho.

Mesmo no registo da biografia, do episódio, da curiosidade, Telmo nunca faz registos banais, ainda que parta do banal quotidiano, mas a extraordinária e aguda atenção àquilo que para a maioria das pessoas permanece oculto é das suas características que me encantam.

Vejamos:

“Se soubermos estar atentos, e temos a obrigação de estarmos sempre atentos, verificaremos sem dúvida que o primeiro encontro entre duas pessoas que virá a ser muito importante e até decisivo para ambas, seja um homem e uma mulher que virão a pertencer-se como marido e esposa, sejam dois homens dos quais um deles abrirá ao outro o caminho de união com o conhecimento de Deus são encontros sempre acompanhados de circunstâncias que se podem e devem interpretar como símbolos. Encontrei-me pela primeira vez com o Álvaro Ribeiro no Largo da Anunciada e daí ascendemos até ao Campo dos Mártires da Pátria. Não é difícil ver a significação destas circunstâncias.”

Para ele não era, efectivamente, difícil. Era como respirar.

Assim, tal como o mestre Alvaro Ribeiro que dispensava o acento na esdrúxula para melhor evocar ou deixar brilhar a alvorada, foi seu destino olhar os nomes como coisas vivas, símbolos, memórias da respiração de Deus a vibrar.

É como se ele tivesse um órgão a mais, responsável para olhar para as coisas pelo lado do símbolo, como se isso lhe fosse natural como estar vivo, mesmo quando fala de futebol: talvez aí ainda mais se destaque a sua extraordinária propensão.

Outras vezes, ler estas páginas é como assistir ao Génesis, um início de conto inconcluso é um privilégio de princípio do mundo…

Por muito que o leia, Telmo consegue ainda surpreender-me; encontro nele, num texto do final dos anos 60, o mesmo pensamento revolucionário que encontrei, muito mais recentemente, em Caroline Myss, uma curadora intuitiva:

 “…antes que venha a morte, e com ela o aniquilamento total de alma, corpo e espírito, é preciso fazer qualquer coisa, assim como uma confissão ou uma extrema-unção, que nos permita continuar a viver noutro plano de existência.

         Digo-o sem ironia. Com tanta seriedade como o disse Fernando Pessoa, embora na maneira como o disse arriscando ser mal entendido por críticos e outros poetas:”

Cuidadores ou curadores pelo símbolo, usando e transcendendo, revivificando, isto é, dando vida a uma prática conhecida como cristã, e dando-lhe vida, espalhando esperança de mais vida.

 

[VARIANTE A:] Para os espíritos práticos, não haverá diferença entre extrema-unção e suicídio e o tempo não está para filosofias. A autognose, para eles, de há muito que foi feita e resume-se na frase de Joaquín Costa: é preciso desafricanizar a Espanha. Ser-se europeu, é a chave do problema, expurgando de nós o mouro, o preto, o judeu, ou então transubstanciando tudo isso pela pedra filosofal do espírito ariano. Assim se chegou ao ridículo de pensar que se alterariam os caracteres craneanos dos peninsulares, se os cérebros recebessem a influência em massa duma educação de tipo europeu.

 


O conhecimento do símbolo como remédio para o veneno da vida, já tão novo interiorizado, o mesmo que alguns levam uma vida inteira sem o conseguir fazer.

 

“Encontrei da sua parte [do irmão mais velho], não obstante, uma constante hostilidade dentro do grupo. A minha carreira de escritor tornou-se dificílima. Ele não fazia mais do que obedecer à inexorável lei que opõe o primogénito ao benjamim, àquele que representa na família o princípio da revolta e do renovo. O conhecimento desta lei, pela leitura do Antigo Testamento e dos contos tradicionais, ajudou-me muito a manter uma certa impassibilidade, ao mesmo tempo que me incitava a realizar o meu destino de filósofo.”

 

Opõe ao pensamento (parcelar), o conhecimento (amplo e profundo, composto também do pensamento).

 

O texto “Páscoa no mar” tem um eco de Sermão, e poderia bem ser a introdução de um dos sermões de Vieira. Pela profundidade, pela visão aguda e divina, pela beleza.

 

“Também a alma é escura, inquieta e indefinida. Também neste dia ela revive para a harmonia e para a luz.

É um outro sol que a ilumina, mas é o mesmo.

Também ela tem algas, e tem sal e tem peixes.

E também nela os peixes se doiram e as algas reverdecem.

Olhai o rosto de um pescador; vede quanto abismo interior ele revela; vede agora a criança que ensaia, pescando à beira-mar, com curtas canas, a profissão do pai. E reparai quanta graça o seu rosto reflecte.

Neste dia, o pai é o filho, e o filho é o pai.”

Termina, até, com o que poderíamos chamar um conceito predicável:

“Neste dia, o pai é o filho, e o filho é o pai.”

 

Olha as palavras e vê luz. Acredito que o convívio com Álvaro Ribeiro, as ideias de Sampaio Bruno, a sua metafísica da língua enquanto chave-mestra,  como diz Telmo, mas também Pessoa, que transformou a Pátria em língua, que estes lhe tenham acentuado a convicção, mas já nele o verbo feito luz era candeia a iluminar-lhe o mundo. Os mestres eram aqueles que a sua luz precisava de encontrar para não iluminar sozinha.

O som que se constitui como letra é uma modalidade da luz.

E é aqui que é completamente único. No estudo e demonstração do som enquanto criação, iluminação e sustentação do mundo e, na ausência de conhecimento, também de destruição.

Tem um olhar que não se detém no que os olhos vêem, mas que constantemente eleva o que está em baixo junto do que está em cima para que adquira vida, sentido e eternidade. Uma forma de salvar o mundo da forma assim o sustentando na mesma forma sobre colunas de luz atenta.

E tanto o faz com os movimentos dos portugueses pelo mundo, como com a narrativa de Camões sobre isso mesmo, como com esse olhar de Pessoa ele próprio já transfigurador, como com os mais banais acontecimentos de cada dia. 

Porque tudo contribui para a alquimia do olhar.

Mas é um olhar que não se limita a iluminar a palavra e com a palavra, ele vê símbolo e geometria na deslocação dos povos, nas emoções dos povos, nas crenças dos povos (v. “Cabral e o novo Oriente”), como se possuísse (e não possuirá?, repito) um órgão a mais que lhe permite ver facilmente como num raio x ou numa ecografia, e aplicável a tudo.

 

A propósito de um dos textos incluídos neste volume que se destinaria a um livro, declara que esse não é um livro de viagens mas “é um livro da viagem. É um conjunto de reflexões a partir da experiência mais funda e séria do homem.”. Esta afirmação acaba por se aplicar a este outro livro que ele não conheceu, porque entretanto ele próprio viaja, e podemos aqui desenhar uma geografia da escrita e do escrito, isto é, do berço onde nasceram as escritas e ou dos locais a que aludem os escritos. São eles Almeida, Angola, Arruda, Sesimbra, Brasília,  Granada, Redondo,  e ainda Évora, Beja Porto,  Lisboa, Tomar …

Contudo a esta seriedade por si aludida mais acima, a “experiência mais funda e séria do homem.”. a ela  não é alheio o subtil sorriso:

“Mas se eu escrevo, por exemplo, “uma mesa é uma mesa” pode ser que se ponham a pensar que nisto há um sentido profundo. E é que não há?

Vou ler o Hegel.“

É magnífico o texto sobre as personas: “Três seres distintos em mim”, são muito tocantes as “Páginas Íntimas“, que poderiam ser uma síntese do portal em que se encontra o ser humano após abandonar todas as ilusões: silêncio, solidão, dúvida, nada. Esta é a grande prova da fé, a grande iniciação depois de todas as iniciações. Pungente, honesto e generoso, este grito de Telmo:

“A única esperança é a que uma tábua da nau divina em que me sonhei me possa servir de socorro no mar turvo da minha desolação. Desejei o mais alto. Procurei caminhos para ele. Perdi-me em todos.”

Este ser consegue, conjugando uma imensa simplicidade e humanidade deslizando sobre um olhar que bebe directamente na fonte dos símbolos, criar pensamentos e expressar emoções que seriam o de qualquer um de nós, comum ser. Ele e outros não muitos autores comportam-se como se me tivessem roubado pensamentos secretos, nunca por nunca verbalizados, mas que hoje, no suporte da sua viril coragem e companhia, confesso:

“Em rapaz, eu e outros da minha idade, por muito que o tentássemos, nunca nos foi dado encontrar a excepcional planta. Fi-lo muitas vezes depois. Cheguei a convencer-me que não existia o trevo de quatro folhas e que a tradição popular queria apenas significar com isso que a felicidade é impossível.”

 

Estas páginas mostram a pessoa por detrás do professor, por detrás do escritor, do autor, por detrás do mestre, por detrás do filósofo, o mistério por detrás do mistério. E no entanto como é grande, mesmo quando se mostra na sua pequenez! Ainda maior quando o faz. Só os grandes conseguem olhar-se e ver-se pequenos, aos outros não é suportável, seria equiparável, para eles, a um suicídio, uma diluição, um desaparecimento, um fenecer.

Este velho contemporâneo estoico do século XXI  afirma: De resto, o que me é contrário deixa-me mais ou menos indiferente.”   e lembra-nos o saber antigo, mas engolido, digerido, e devolvido com a chancela do real experimentado por dentro.

As páginas designadas como “Autobiografia e Sobrenatural” estão muito bem neste volume a seguir às Páginas Autobiográficas“, uma vez que umas e outras vêm da mesma fonte e jorram frescas de mistério, isto é, de vida. Alguns dos apontamentos já eram indiciados, introduzidos ou mesmo narrados nas Páginas. Aqui aparecem já não diluídos em biografia, mas concentrados em ominoso.

António Telmo valoriza o milagre, o que para ele é valorizar tudo, desde a semente que se desenvolve em árvore, às águias que se erguem no céu a apontar-lhe caminhos. Não há diferença. Como não existindo sobrenatural. Tudo é natural, mas umas coisas ocultam-se ao olhar despreparado ou não vocacionado. Tudo é uma questão de atenção ou de olhar inocente, digo, espantado. Perante todas as coisas.

Espanto que não é surpresa. Ele surpreende-se quando não vê milagre, mas espanta-se em cada segundo, quando o vê.

Fala ele de algo que muito me interessa enquanto escritora e que já aflorei há pouco: relermos no que escrevemos a antecipação do que não sabíamos que conhecíamos, sendo a metáfora o veículo:

pela metáfora é possível conhecer, embora em modo reflectido, a relação do mundo sensível com o mundo subtil imaginal”

 

Os títulos são, ou retirados das próprias palavras do texto a titular, ou do conteúdo, portanto, com palavras do organizador que no seu entender melhor traduziriam o espírito do que se diz.

Aproveito para destacar a qualidade do trabalho de organização deste livro onde se incluem os títulos e sua atribuição.

O texto síntese que consegui construir quase exclusivamente com os títulos das partes, acrescentando-lhes nada ou muito pouco, mostra, pelo menos, duas coisas:

A justeza dos títulos escolhidos a partir de cada texto e a coerência da sequência criada. Vejam:

Este livro Pórtico oferece-nos as Primeiras Memórias, desde Alter do Chão e o jogo do galo às reflexões tão à António Telmo com o engrandecimento cósmico de enigmas infantis como Quem de vinte cinco tira

Anda por aqui a infância com a sua inalienável Sombra temível do mal, em Arruda, n’O grande adro de Arruda, mas também Acontecimentos extraordinários na Sesimbra de outrora, como um vento memória de um rio a que chamou A brisa da terra

Na Escola Nacional de Lisboa é-nos apresentado um delicioso Telmo das diabruras infantis, mas não é ele apenas que é apresentado neste livro, aqui também é feita a Apresentação de Álvaro Ribeiro aos sesimbrenses e Teixeira de Pascoaes a todos nós.

Na casa de meu Pai, éramos três irmãos cruzam-se várias histórias: familiares, sentimentais e filosóficas. N’A Alocução do Sr. Aspirante Vitorino encontramos um jovem patriota procurando incentivar os seus pares, pelo discurso e recorrendo já à história. Marés faz-nos dar um salto de gigante para Sesimbra, mas é do eterno mistério do mar que se trata e poderíamos estar em qualquer praia de pescadores desde o início da humanidade. Ressalta o arquétipo. O mesmo acontece em Páscoa no mar e A caça à baleia.

António Cagica Rapaz revela, em torno dos bilhares, o amor admiração por alguém que partiu, assim como Os guizos são veículo para reflexão sobre o mundo subtil, tal como é subtil a rasteira que nos faz em Uma caçada às perdizes, que nos conduz a um inesperado caminho entre a sedução e a profunda dor existencial do acto que não se quis. É como uma mais do que sincera Entrevista a António Telmo em Sesimbra, varanda para o mundo passado e futuro, de onde se observa Cabral e o novo Oriente, mas também Brasília e Granada, a Pérsia à porta, onde foi embaixador oculto de Agostinho no Brasil e de Portugal no Mundo.

As Páginas Ibero-Americanas são séria e complexa reflexão sobre os nossos destino e identidade na Península, na Europa, na América, no mundo, e afinal no navegar no colo de Deus ou aportar ao seu porto.

A Apresentação é uma espécie de antecâmara à conferência Para a História da Cultura em Sesimbra e de Sesimbra.

A maior parte destes textos vieram De um caderno de apontamentos: como o excerto de um diálogo entre Rafael Monteiro e Agostinho da Silva.

Redondo é um comovente testemunho de um adulto que, em contexto escolar, não se esqueceu de salvaguardar o que existe de verdadeiro nas crianças e Três seres distintos em mim uma espécie de autopsicografia de fundo terminando com um enigmático “G”.

Só Deus escreve sobre Deus é um título que eu gostaria que fosse meu e Dois escritos íntimos  uma tocante e sincera confissão de “desolação”.

Dies Lunae, o discorrer do fluxo de pensamentos no café, com ciganos, mulheres, horóscopos e livros.

O número 13: página de autobiografia espiritual uma deliciosa reflexão sobre o mistério e o contágio dos números na realidade ou o contrário.

Os Sonhos de Telmo possuem uma carga adicional de mistério que imprimem um especial significado à expressão Sonho mágico que nele assume uma particular potência. É neste ambiente velado que se insere a Carta a um mestre maçon sobre o mundo subtil concluindo esta importante etapa da viagem enfrentando a sombra a que chama O quarto inimigo do guerreiro, assim fechando com dolorosa clave de lua esta comovente Autobiografia e sobrenatural.

CONCLUSÃO

Ler este livro é como conversar com um amigo que me conhece muito bem, o que não é verdade, pelo menos no mundo lógico, porque nos conhecemos de encontros raros, com muita gente à volta e sem oportunidade de pelo menos visíveis trocas profundas, embora tenha apresentado (sorte a minha!) um livro meu, na Serra d’Ossa, e tenhamos trocado uns livros e dedicatórias. Mas o meu diálogo com ele foi sempre uma conversa silenciosa em que ele, ou melhor, os seus  livros, falavam e eu escutava. Assim continua a ser. São inesgotáveis, as conversas dos livros de António Telmo. Essa uma das razões porque sinto que não partiu.

São livros em permanente e exponencial criação, ainda que depois de criados, tal como o Universo. Cada vez que abro um deles, mas em particular a Gramática Secreta, é como se nunca o tivesse lido antes. Isso voltou a acontecer-me com este livro, com estas Páginas Autobiográficas. O que é curioso é que isso não se passa apenas comigo, sua leitora, mas também com ele:

“Sempre que leio textos meus antigos, esquecidos entre os meus papéis, mais se me torna evidente que foram elaborados por uma espécie de magia. Sinto-os, pois os esqueci, como alheios. Todavia, encantam-me e seduzem-me como se ouvisse a minha alma falando-me das bandas onde sopra o Espírito.”

Ele escreve sobre a sua escrita e, para mim, sobre a minha, que assim a sinto e também sobre isto tenho escrito. Mas não só eu. Ele escreve sobre os criadores que tão bem conhece de dentro de si. Um jovem amigo, meu ex-aluno, fotógrafo, poeta e pintor talentoso, um dia, e conto isto num dos meus livros, visitando uma amiga, pára deleitado perante um quadro que fora… ele a pintar. Sem se recordar de si como o autor.

 

Este livro formado de projectos, começos, pinceladas, palavras que prometem e sugerem conclusão que nem sempre têm, pela sua natureza, porque reúne fragmentos, acaba por ter uma unidade, coerência e sentido que só o mistério explica.

Como se as palavras utilizadas tivessem uma extensão oculta que não apreendemos diretamente pelo intelecto, mas que criam um indivíduo, alma ou entidade oracular.

Um dos episódios relatados consiste na narração de um sonho de António Telmo com Álvaro Ribeiro cujo conteúdo apontava para a falsidade da morte do filósofo, logo, que todos os que acreditavam na sua morte teriam sido enganados, sendo que este mesmo sonho fora sonhado simultaneamente por uma outra pessoa. Tenho a convicção, e não brinco, que António Telmo deixou este texto registado como indício para nós, para que, cépticos de sonhos ou de percepções, saibamos que tal como o seu mestre, ele não morreu. Porque não há morte.

Estas páginas autobiográficas, se partem, como já referi, de episódios do quotidiano, biografam acima de tudo a alma, são uma biografia do mistério.

Um misterioso episódio de um encontro com um ser ominoso por altura da sua elevação ao 3º Grau num grupo de iniciados, como ele os nomeia, em que no café, um ser vindo do mundo e começando por receber relutantemente uma moeda por ele dada, como mendigo, tem algum paralelo com o vagabundo do bordão, qual vara mágica que nunca largava, que na infância visitava o pai de Telmo ou recebia a sua hospitalidade vivida em longas e mutuamente apreciadas conversas, assim o iniciando com as notícias do mundo visitado. O bordão deste misterioso visitante é um maço de cigarros da mesma marca de Telmo e acaba por o iniciar com dois beijos rituais com que antecipou o ritual. Tal como nos Contos a caneta de Pessoa é a vara mágica da figura do mago.

Vale a pena ler, em paralelo, estes dois episódios.

De salientar, com muitas estrelas, os comentários finais na Marginália, de Eduardo Aroso, Pedro Martins, Miguel Real, João Ferreira e Agostinho da Silva.

 

O estilo é, como já escrevi num outro texto, de uma terna beleza, e exemplifico:

“O mar como um seio de Deus”;

“os portugueses, como outrora os judeus, andam à procura da sua terra, que não concebem sólida e firme, imaginando-a flutuante como uma ilha e imponderável como uma metáfora.”;

“O mar, inquieto como a vida, rodeava a barca.”;

“a viagem do sol pelo sul”;

“serem os livros papéis estendidos no espaço”;

“Do Porto Culto para o Porto Oculto medeia um invisível oceano, imenso, subtil e misterioso e a barca do espírito é a metáfora, a palavra divina”;

A metáfora como um barco do espírito ou um “alucinogénio interno”. Mas barco que também é “porto”;

“Um sangue intransformável em leite. Química que transparece no viço.”

Isto é de uma extrema qualidade. E beleza. Se me permitem, concluo citando-me a partir de um outro texto que escrevi recentemente:

“António Telmo tem o talento de se inspirar na biografia transfigurando-a pela alquimia do símbolo e aprofundando-a esteticamente pela metáfora.

É curiosíssimo encontrar pelo meio da sua escrita pinceladas de biografia nas cores básicas ou em tons pastel. O efeito acaba por ser o mesmo. Quer uns quer outros sofrem um fenómeno perante os nossos olhos nunca habituados: a transfiguração, a alquimia. O processo simbólico de Telmo dilui-se na ficção, a ficção tem a originalidade do símbolo, ambas se transformam pela metáfora.”

Do galo à rosa …  jogo de mestre

Falta então a rosa anunciada pelo galo:

António Telmo, o filósofo que extrai sol da sua própria sombra, aqui relata que “Foi num adro, o da igreja de Arruda dos Vinhos, que se decidiu (no sentido da cápsula que se abre para libertar as sementes) o que vim a ser depois em participação no espírito ao longo da minha vida.”

É efectivamente no Adro de Arruda dos Vinhos que já se encontrava o chão de xadrez maçónico, era no adro que desembocava o tão marrano “Beco da Amargura”, era na sua pedra de calçada que já se desenhava a dupla cruz, rosa dos ventos anunciadora de futuro.

Mas também, ao lado da farmácia, a Travessa do Conhecimento por onde António Telmo de certeza passou, onde brincou, de onde semeou futuro numa infância já inquieta, já, sem o saber, marrana. É deste lugar de inquietação que vem o conhecimento. Por caminhos tão travessos, Senhor!

São as chispas de luz que desde menino faz saltar da escura amargura da alma, que continuam a iluminar os seus livros, a multiplicar o seu pensamento, a recriar em cada um de nós, seus leitores, a Travessa do Conhecimento.

Encontrei nestas páginas: autobiografia, oculto, filosofia, história, gramática, geometria, guematria, simbologia e tudo o que da sua obra se conhece. Sem deixar de ser Autobiografia. Isto acontece em cada texto e no todo, à imagem dos fractais em que o todo está presente nas partes. É um mistério. E é real. Arte verdadeiramente Real.

 

Sesimbra, 27 de Junho de 2015

UNIVERSO TÉLMICO. 26

26-06-2015 08:49


Na edição de hoje do jornal Raio de Luz, mensário de opinião e informação do concelho de Sesimbra, Pedro Martins, na sua habitual coluna, escreve sobre o marranismo de Herberto Helder, à luz de premissas que partem de António Telmo.



Ler mais: https://antonio-telmo-vida-e-obra.webnode.pt/news/universo-telmico-15/

Na edição de hoje do jornal Raio de Luz, mensário de opinião e informação do concelho de Sesimbra, Pedro Martins, na sua habitual coluna, escreve sobre o marranismo de Herberto Helder, à luz de premissas que partem de António Telmo.



Ler mais: https://antonio-telmo-vida-e-obra.webnode.pt/news/universo-telmico-15Na edição de hoje do jornal Raio de Luz, mensário de opinião e informação do concelho de Sesimbra, Pedro Martins, na sua habitual coluna, escreve sobre o marranismo de Herberto Helder, à luz de premissas que partem de António Telmo./

Na edição de Junho do jornal Raio de Luz, mensário de opinião e informação do concelho de Sesimbra, Pedro Martins, na sua habitual coluna, republica o prefácio que escreveu para o livro Coisas de Sesimbra, de António Reis Marques, recentemente editado pela Câmara Municipal de Sesimbra.

 

A Arte de Ser Sesimbrense[1]

Pedro Martins

 

O Município tem a sua história, às vezes assinalada por factos de importância nacional; tem a sua economia própria, a sua personalidade e tradição, etc.

O munícipe deve, portanto, conhecer a história do seu Município, estudando o que ele foi no Passado, as suas características especiais na economia, na linguagem, na paisagem, etc., para melhor compreender as suas aspirações de progresso.

Dando-se-lhe a completa independência que pretendemos, ele deveria organizar a sua instrução primária, tornando-a, por assim dizer, patriótica, sob o ponto de vista municipal, como desejaríamos ver a instrução secundária, sob o ponto de vista nacional.

E assim, em cada Município, o ensino primário abrangeria o estudo da sua própria História, para esse fim redigida por pessoa competente. A criança, depois de saber, na casa paterna, o que houve de bom exemplo na tradição familial, iniciaria o espírito no conhecimento da História pátria, pelo estudo do seu Município, aprendendo a conhecer e a amar a sua terra, os homens que nela se distinguiram e por ela trabalharam, e habilitando-se, portanto, a melhor cumprir, mais tarde, os deveres de munícipe.

Da Família deve sair o munícipe, como do munícipe deve sair o patriota.

                                              

           Teixeira de Pascoaes, Arte de Ser Português

 

 

Agostinho da Silva, que nasceu no Porto, à esquina do Atlântico, e ao colo materno galgou o Douro para resgatar a Barca de Alva, descobriu em Sesimbra, rincão «com litoral de alcantil e praia, com seu castelo e seu porto, suas encostas e seus plainos, seus ocres e seus verdes, seu arreigamento no concreto e sua pronta partida para as nuvens», o perfeito resumo de Portugal. Raros, como ele, navegaram de antemão sem barca, contra a corrente indómita, contumazes ao impossível. António Reis Marques, íntimo do filósofo por cinco lustros, está entre os poucos que o acompanham. Sabe que o futuro é um rio que se sobe até à nascente, e que no lento, dissolvente desaguar da foz tudo se esbate e se perde. De resto, de que valem cursos de água a quem Deus deu a terra toda por regaço e o mar inteiro por horizonte? Por isso só os rios não correm por cá, nesta pequena pátria pintada por Agostinho. Limiar e fronteira, mesmo a alva da barca do pensador dista ainda da fonte; mas é já bem o Nascente, luz indecisa de clarão com que Midas lhe toca as águas.

António Telmo, vindo das fragas do Riba Côa, dessa adusta Almeida paredes meias com as ameias de Castelo Rodrigo, tão vizinho de Agostinho, sulcou menininho os mares do Sul para aportar ao Namibe, onde se apossou do leão que o sestro dos deuses lhe pusera nos astros; já homem feito, cruzou o oceano, desembarcou no planalto, firmou padrão em Vera Cruz; mas só em Sesimbra encontrou o barco. E deu-o por mito à legenda com que lhe leu o brasão.

O leitor, se não sabe ao que vem, terá agora de me desculpar, que eu só sei falar de António Reis Marques na igualha de homens assim, sábios e grandes como ele, e como ele guardando o segredo que o fulgor da visão lhes concedeu.

Hoje, dezasseis anos passados sobre o dia em que tive a dita de o conhecer, julgo saber um pouco desse segredo. Fui-lhe testemunhando a sabedoria a par do saber, uma generosidade tocante, a prudência firme do conselho amigo, uma lealdade sem vacilações, a hombridade que também sabe ser humilde, o estímulo poderoso de uma confiança inabalável nas gerações novas. E, sobretudo, um amor prodigioso à terra que o viu nascer. 

Que Sesimbra, com seu hino e seu feriado municipais, lhe seja a pequena pátria, sabemo-lo logo pela leitura das primeiras páginas deste livro, Coisas de Sesimbra, que a Câmara Municipal, com inteiro mérito e plena oportunidade, decidiu agora dar à estampa: Reis Marques cria o povo a que dá voz nos jornais onde lhe descobre a imprensa; e a um governante emérito como Abel Gomes Pólvora confere até o poder soberano de emitir papel-moeda; por ele é já a Piscosa que canta Camões n’Os Lusíadas, ou não tivesse Sesimbra, depois prendada por D. Carlos, esse insólito Ti’Rei, o sinal claro de um privilégio com ter só para si a célebre edição dos piscos a que bem pode chamar sua. E ao próprio Mestre Agostinho, que tanto lhe ensinou, também António Reis Marques dá a sua lição, bem franciscana por sinal, e por isso tão portuguesa, de um cão de água que é só nosso, em seu fraterno viver com o pescador da companha.

Da língua madre que há nesta terra de mar, desse variegado falar pexito, código secreto e musical com que nos cantam e encantam os seus filhos, já António Reis Marques muito nos dissera em O Que Veio à Rede – Vocabulário, alcunhas e topónimos de Sesimbra, de 2001, como marca individuadora dessa sua outra, primeira e imediata nação. Agora, nestas Coisas de Sesimbra, reincide pontualmente, lembrando fórmulas de saudação e tratamento, relevando nomes e adágios da vida piscatória, fazendo soar pregões.

Mas depois do mar há sempre a terra, aquém do rolar das marés. Já Rafael Monteiro, fraterno mestre e amigo a quem Reis Marques não poderia deixar de prestar sentido tributo nestas páginas, memorava algures a unidade essencial do território arrábido-sesimbrense, hoje quebrada, perdida e, por isso, difícil de entender. Que uma pátria, por pequena, não vá sem a promessa de um chão onde os seus homens firmem os pés, bem o sabe o autor, e por isso nos recorda, como quem lamenta, as sucessivas perdas destacadas no mapa, minguante como a lua que, no entanto, há-de renascer. Na geração nova, a recente e espantosa descoberta de Ruy Ventura, pelo prisma da geografia sagrada, da capitalidade arrábida de Sesimbra, vem confirmar a verdade de uma escola que em Joaquim Preto Guerra (Rumina) reconhece o fundador e que através de Rafael e de Reis Marques, seus vultos maiores, chega aos dias de hoje com reconhecida vitalidade, afirmando-se num João Augusto Aldeia e no já mencionado Ventura.

A esta luz, a nota pitoresca de uma “sedição” em Alfarim ao dealbar a Primeira República é saboroso apontamento, entre tantos outros – e são dezenas sobre dezenas neste livro! – que o autor, em porfiosa, amorosa dádiva, nos foi desfiando nos últimos quinze anos, mormente na agenda cultural do município.

Sem prejuízo da adunação espiritual que lhe perfaz a integridade, é uma visão tópica e poliédrica a de António Reis Marques, e nisto em muito se aproxima da do saudoso António Cagica Rapaz, o maior escritor de Sesimbra de todos os tempos. O que este durante décadas nos ofereceu no domínio da crónica em que exímio, magistral, insuperado, pontificou por via de um humor imaginoso e inteligente vertido em narrativas que, aqui e ali, transcorrem para a ficção, propõe-nos agora Reis Marques em registos históricos ou etnográficos tão simples quão rigorosos na sua nitidez fotográfica.

Uma atenção sábia e constante ao universo piscatório, domínio onde se lhe credita um livro já clássico como As Artes de Pesca de Sesimbra, de 2000, surge aqui amplamente desenvolvida e pormenorizada. Será justo realçar, pelo fôlego que lhe anima a envergadura, o estudo sobre “A barca típica de Sesimbra”; mas as miniaturas dedicadas às espécies piscícolas que afamaram a Piscosa, na esteira da importante monografia Peixe-Espada de Sesimbra, a Preto & Branco, de 2008, e bem assim as que, a montante e a jusante, dos moços e dos arrais à antiga lota e ao primeiro molhe de abrigo, se debruçam sobre os agentes e as circunstâncias que envolvem a dinâmica da faina, constituem-se como um precioso repositório testemunhal e documental sustentado na tradição, na observação e na investigação.

A religiosidade dos homens do mar, polarizada no culto popular ao Senhor das Chagas, padroeiro em quem José Rumina reconhecia o maior político de Sesimbra e de quem o Padre Gomes Pólvora afirmava ser o único santo que havia no céu dos sesimbrenses, não poderia deixar de ter lugar de privilégio nestas páginas. Se o peculiar Cristo crucificado de Sesimbra, envolto ancestralmente em lendas miraculosas e motivando a maior procissão portuguesa a sul do Tejo, se impõe como penhor do credo próprio que esta pequena pátria consente e justifica, vários outros são os escritos que Reis Marques aqui dedica à emergência local do sagrado, dos registos de santos e dos santos populares à festa mariana de Alfarim, sem esquecer alguns sacerdotes insignes de que Sesimbra foi berço.

Estudioso e profundo conhecedor do movimento associativo sesimbrense, António Reis Marques, na senda da trilogia que dedicara já a algumas associações venerandas da sua terra – O Clube Sesimbrense – Contributos para a sua História (2003); Bombeiros Voluntários de Sesimbra – Origem, Formação e Percurso (2003); e Breve História do Clube Naval de Sesimbra (2005) –, oferece-nos agora o texto da palestra que em 2006 proferiu na sessão solene comemorativa do centenário da Sociedade Recreio Sesimbrense, o popular Refugo entretanto, infelizmente, desaparecido. Por aqui se evidencia, sem sombra de exagero, e de um modo exemplar, o valor sem preço destas Coisas de Sesimbra. Não fora a alocução de Reis Marques, enfim guardada em livro, e hoje, possivelmente, pouco ou nada subsistiria da memória, já de si imprecisa, da extinta colectividade secular, por onde, como orador, passou um Agostinho da Silva, pouco antes de a polícia política de Salazar o enfiar numa enxovia do Aljube.

Coisas de Sesimbra intitulou o autor, sem réstia de pretensão, este seu novo livro. Não poderia estar mais certo. Ao longo das suas mais de trezentas páginas, desfila em caleidoscópio, pela ordem em que viu a luz do dia, para deleite do nosso olhar, uma miríade pinturesca de pessoas, personagens, personalidades; instituições, lugares e recantos; práticas, usos, andanças; episódios graves ou picarescos, acontecimentos rotineiros ou de excepção, momentos de júbilo ou de tristeza – num encontro em que a tradição dos arcanos coexiste, convive e dialoga, de modo nem sempre pacífico, com a progressiva aspiração futurista a que Sesimbra, senhora de si, como bem o sabe Reis Marques, jamais se poderá eximir. A este propósito, vale a pena prestar atenção às notas lúcidas que o autor projecta sobre os marcos miliários da evolução turística do concelho. Há aqui um caminho a seguir.

Por uma coincidência significativa que não deve por isso atribuir-se ao acaso – e o acaso, ensina Álvaro Ribeiro n’A Razão Animada, é apenas o instante entre o caos e o cosmos –, surge este livro no ano do centenário da Arte de Ser Português de Teixeira de Pascoaes, profeta maior da nossa condição que concebia o Município como um ente relativamente independente, mediando a Família e a Pátria.

Quem tiver atentado na longa epígrafe com que encimei este escrito, poderá depois verificar, pela leitura do livro que agora tem entre mãos, como o seu autor, discípulo fidelíssimo do mago do Marão, o poderia ter intitulado, se a modéstia o não tolhesse, Arte de Ser Sesimbrense. Tanto basta para nos irmanar.

 

Cotovia, Sesimbra, 2 de Maio de 2015.

 


[1] Prefácio ao livro Coisas de Sesimbra, de António Reis Marques, Sesimbra, Câmara Municipal de Sesimbra, 2015.

 

UNIVERSO TÉLMICO. 25

24-06-2015 10:13

Onde a terra se acaba. 04[1]

Agostinho da Silva

Novamente se incomodaram muito os amigos por não ter aparecido assinatura no último artigo que me publicou este nosso jornal; acho, porém, que talvez estejam errados e que o acontecimento nos dá ocasião a que outra vez reflictamos sobre o assunto.

A primeira nota que há a pôr é que, apesar de já ter defendido, neste mesmo lugar, que seria muito bom entrarmos todos no anonimato, apenas declarando o nome quando nos fossem exigidas responsabilidades por tal ou tal opinião expressa, lá fui assinando minha prosa, não sei se por hábito adquirido, se por supor que no jornal assim o prefeririam, se, como me inclino a crer, porque, apesar da teoria, fazem costumes, solicitações e agrados que, muitas vezes, vezes demasiadas, nos demos mais à teoria do que à prática e, no fim de contas, não pelas qualidades, mas pelos defeitos, sejamos levados a ter sempre gosto por encontrarmos em letra redonda nosso pequeno nome.

Hábito antigo o de todos nós, algum tempo perdido, readquirido depois. Sabe-se dos homens da Antiguidade, e fora algumas dúvidas dos historiados, quem esculpiu tal estátua, modelou tal cerâmica, compôs tal tragédia ou simplesmente inventou em praça pública uma anedota célebre. Com a revolução cristã, correspondeu a um conceito novo da comunidade de irmãos reverentes, obedientes e de mente voltada para seu pai celeste, a forma cooperativa de propriedade, a educação mútua, o templo em que pintores, escultores ou arquitectos trabalhavam com tal anonimato que só às vezes pelo recibo de pagamento ou por um documento de contacto é possível, discriminando os artistas, atribuir autores às obras.

Parece, no entanto, que não estavam os tempos maduros para o cristianismo, que muitas conversões eram de interesse e não da mudança de espírito posta por Cristo como acto fundamental e que até entre pessoal da Igreja havia pagãos e se tendia de mais a ver Roma não como o altar de Deus, mas como o trono de César. Com o Renascimento, que foi muito mais de latinos que de gregos, triunfou o direito cesarista, julgou-se o homem centro do mundo, constituiu-se a ciência como independente da moral, celebrou-se o triunfo da propriedade privada e libertou-se o juro, instituiu-se a escola como formadora das classes possidentes e dirigentes e, acompanhando o movimento, passaram os autores a assinar ciosamente as suas obras, que, além de tudo, se usaram já não como elementos de educação e como sinais de devoção mas como penhores de uma valia e como adornos de um poder.

Não assinar é, portanto, em última análise repudiar tudo isso e considerar que o que vale é a obra comum, sem o insignificante pormenor das nossas glórias vulgares e apenas com atenção ao avanço geral da Humanidade se formos bastante felizes para nele colaborar, e com humildade perante o Espírito que a todos nos pode iluminar e que a nenhum de nós pertence. Tão convicto estou disto que espero um dia poder mostrá-lo na prática, agradecendo aos jornais em que colabore que me não ponham o nome em artigo nenhum.

Tudo estaria, por conseguinte, em termos excelentes se eu não tivesse de facto assinado o artigo; como, porém, o assinei, e nisso esteve o erro, pode cair sobre alguém a suspeita, e há gente sempre disposta a levantar hipóteses destas de que propositadamente me tenham cortado o nome, o que representaria na verdade um notável exemplo de falta de carácter e de honestidade ou que tenha havido, no trabalho, um descuido imperdoável, uma desatenção absurda, aliás desmentida pela excelente apresentação gráfica de nosso jornal. Fica então assente que nunca mais assinarei coisa alguma que aqui se publicar; pôr o nome ou não pôr o nome ficará inteiramente ao critério da direcção; a mim me basta que as ideias expostas possam ser úteis a alguém, por acordo ou desacordo: ambos óptimos, se conscientes, críticos e em plena lealdade de quem o pense, lealdade consigo e lealdade com os outros.



[1] Publicado em O Sesimbrense de 5 de Dezembro de 1971.

 

 

 

 

CORRESPONDÊNCIA. 25

17-06-2015 22:05

[Ernst Jünger]

 
 

CARTAS DE ANTÓNIO TELMO PARA ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO. 08

 

Estremoz, 15 de Fevereiro de 2002

 

Meu caro Amigo António Cândido

 

Fiquei a sonhar com o livro de Ernst Jünger que me prometeu emprestar quando lho devolvessem. Se não se fizer lembrado… É o que ensina sobre filtros mágicos. A quintessência do mundo vegetal e a sua relação com as diferentes sephiras.

Devo ir à cerimónia de entronização do Manuel Patrício[1]. Lá nos veremos. Até lá, um abraço do seu

 

                                                           António Telmo



[1] Nota do editor - Manuel Ferreira Patrício foi Reitor da Universidade de Évora entre 2002 e 2006.

 

DOS LIVROS. 43

09-06-2015 12:39

O albatroz

 

Tenho por verdade dividir a história de Sesimbra na era de Jesus em Antes do Albatroz e Depois do Albatroz. Albatroz ou alcatraz.

Explico-me. O primeiro morro que vemos à direita da povoação entrando pelo mar ainda hoje se chama o morro do Alcatraz. É que ali havia um pássaro desse nome que todos os anos aparecia. Elevava-se no espaço e mergulhava a pique no mar donde emergia instantes depois com um peixe capturado. Passávamos horas a assistir a este espectáculo.

Um ano depois deixou de vir. Já se sabe porquê. O mar não era o mesmo. Começava a pertencer aos turistas, às máquinas, aos mergulhadores, aos óleos derramados, à intoxicação.

Poderíamos também dividir a história da Sesimbra cristã em dois períodos, os mesmos que o albatroz marcou, num que acaba quando o pescador começa a saber nadar e noutro em que ele já entra na água seminu como qualquer gringo. A mim espantava-me que os homens do mar não soubessem, na sua generalidade, nadar e dizia-o ao Rafael Monteiro. «Também eu, respondia-me ele, não sei nadar e o mar é o meu domínio espiritual.»

Atrevo-me a imaginar por este modo: entrar nu no mar era como devassar as entranhas do corpo de um deus. E falo em entranhas porque, neste momento, o mar se me configura como um touro arremetendo impetuoso contra as rochas ou desfazendo-se na praia docemente como se seguisse a capa de um toureiro. A suprema arte marítima era cavalgar esse touro nos dias de tempestade.

O nome do nobre animal diz-se de duas maneiras: touro e toiro. Em touro o ditongo ou enrolado pelo r exprimirá o que há no animal de força negra, o instinto do sangue, a convulsão desse mesmo sangue obscuro, uma espécie de fogo fumoso comandando a violência da arremetida. Dizem-me que a composição química da água do mar é a mesma que a do sangue. Mais uma razão, a ser verdade, para vermos no mar um touro. Dizendo isto, recordo-me por contraste da serena tranquilidade das águas da baía de Sesimbra e aparece-me o nome do animal escrito com i (toiro) que é a letra luminosa por excelência.

Hoje que vivemos numa época posterior ao albatroz é difícil que se encontre muita gente que veja no que venho escrevendo mais alguma coisa que uma série de fantasias sem qualquer correspondência na realidade. Mas eu escrevo antes do desaparecimento do albatroz porque escrevo em saudade. A saudade põe estranhas relações entre as coisas. Ainda a propósito de touros e de touradas eu lembro-me de ter escrito n'O Sesimbrense (1972) um diálogo no qual pela primeira vez, creio eu, se estabelecia uma relação entre as zonas sísmicas e as zonas tauromáquicas. O espectáculo não era propriamente um espectáculo; era um ritual, em que se domavam as forças subterrâneas representadas no touro.

Esse mundo subterrâneo aparece hoje à superfície da terra cobrindo o globo a toda a volta. Basta pensarmos que pelas estradas de todo o mundo, de dia e de noite, correm incessantemente os automóveis, os jeeps, os camiões, por tal sorte que se interpõe entre a terra e os astros um autêntico corpo de metal, sempre em movimento pela força daquela substância tenebrosa que faz as guerras e os bancos.

Os homens, entretanto, vão-se entretendo com o futebol. Tu, deusa fantasia, que me estás mostrando a verdade, diz-me agora porquê o futebol e o desporto? Os antigos gregos associavam intimamente o desporto, de que eles são os grandes promotores, aos funerais. Quer dizer: durante os funerais, praticava-se atletismo e vários jogos então muito em voga, como, por exemplo, a luta. Julgavam que assim aplacavam a alma do morto, evitando ao mesmo tempo que os fantasmas saíssem, da terra a empecer os vivos.

A bom entendedor meia palavra basta. 

 

António Telmo

 

(Publicado em Congeminações de um Neopitagórico, 2006/2009)

INÉDITOS. 54

02-06-2015 10:13

Pessoa e Camões[1]

Fernando Pessoa escreveu de Luís de Camões, que almejou superar, ser ele mais «italiano» do que português, isto apesar de ter criado Os Lusíadas que são, com a Mensagem, os poemas heroicos da nossa raça. Está à vista que tinha em mente a estreita relação do poeta lírico com os poetas italianos de Dante até Petrarca, que ele terá imitado e até traduzido dando as traduções como se fossem originais.

Fernando Pessoa segue aqui um critério académico indigno do seu alto e soberano espírito. Não colhe no entanto o eco de uma corrente subterrânea que, desde a poesia trovadoresca vem fluindo até Camões e que se afunda mais a partir de D. João III para ressurgir nos poetas da filosofia portuguesa e nos filósofos de razão poética de Sampaio Bruno até Pedro Sinde e até, mais proximamente, Pedro Martins.

Dizê-la subterrânea é metáfora. Não se confunda com subconsciência mas sim com supraconsciência.

Se Fernando Pessoa tivesse conhecido o grande Comentário de Manuel de Faria e Sousa às Rimas de Luís de Camões não teria decerto afirmado, com algum desdém, ser o autor d’Os Lusíadas um poeta italiano, por isso uma cópia em Portugal de Petrarca ou de Bernardo de Tasso.

Teria sem dúvida visto que a corrente espiritual que em Itália recebeu o nome de Fideli d’Amore, vem directamente da poesia trovadoresca medieval e isto por tal modo que Camões está tão perto de D. Dinis como de Dante, ambos bem activos na transformação da Ordem do Templo, aparentemente extinta, na Ordem de Cristo e na Ordem da Fé Santa, uma e outra criações dos Rosacruz abalados nas Caravelas para o longe inatingível, onde ficaram até hoje ignorados dos homens-demónios que passaram a governar nas esferas menores onde habita a dor e o cisma.

 

António Telmo

____________

 

[1] Título da responsabilidade do editor.

 

UNIVERSO TÉLMICO. 24

26-05-2015 17:17

CARTAS DE AGOSTINHO DA SILVA PARA RUY VENTURA. 06


 

6

[carimbo do correio – Lisboa, 22.9.1993; cartão]

 

            21.9.93

 

            Querido Amigo

            Espero que, passado todo este tempo, já não haja mais, com o internamento de seu Pai, os problemas de que falou (9). Toda a religião que vale é apenas a crença que se pode ter seguido que não é demonstrável por matemática, e que é, quanto a mim, a Credibilidade Absoluta, aquilo que é totalmente o de que nós todos temos uma centelha, o sermos todos criadores, mais ou menos apreciados, o que não importa; seja como for criemos. E para o enjoo que tanta vez o diário traz, o mesmo remédio que se usa a tudo [?]: Olhar o horizonte, e escutar o grito da chegada, mesmo que o não haja. O grande abraço do A. (10)

 

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Notas de Ruy Ventura:

 

(9) Referência a Joaquim Baptista Ventura, meu pai, e ao seu internamento nos hospitais de São José e da Cruz Vermelha, ao longo de várias semanas, devido a um acidente de trabalho ocorrido na Sociedade Corticeira Robinson, de Portalegre, onde então trabalhava como operário.

(10) Esta foi, de facto, a última carta que recebi de Agostinho da Silva. Depois dela, chegaram a minha casa, então na aldeia de Carreiras (Portalegre), apenas algumas das suas “folhinhas”, pelas quais esperava ansiosamente. Recordo que a derradeira correspondência da minha parte terá sido um postal ou cartão a desejar-lhe as boas festas natalícias. Tudo isto há-de estar guardado no seu espólio, se o tempo ou alguém não se encarregou de lhe dar descaminho.

 

DOS LIVROS. 42

24-05-2015 15:18

Mombaça, terra do mal

 

Ao dobrar o cabo da Boa Esperança, dir-se-á que Vasco da Gama se tornou um homem novo, liberto da Hybris, do orgulho desmedido, da violência, do sangue. O que é que, na narrativa d’Os Lusíadas, nos permite dizer isto? Eu compreendo que a inflexão da rota para Oriente, para aquele Oriente que Camões insistentemente diz ser o fim da viagem, se deva interpretar simbolicamente como uma «viragem» na alma. Porém, onde é que está isso afirmado explicitamente por Camões?

No meu texto dos Teoremas de Filosofia digo que Deus é o Amor. Direi agora que o Amor, o puro Amor é o Espírito Santo.

Dobrado o Cabo, as forças negativas reagem. Sempre a um momento de exaltação do intelecto divino em nós se seguem terríveis obstáculos. Os iniciados sabem isto, mas com alguma atenção todos o podemos verificar no próprio curso das nossas vidas, se nesse «todos» o desejo do melhor tiver algum lugar.

Aqui, n’Os Lusíadas, esse momento da reacção das forças do mal teve como nome «Mombaça».

Baco, sabendo que viriam dois exploradores informar-se das terras e de qual a qualidade das suas gentes, mascarou-se de sacerdote católico e celebrou missa para assim agradar aos dois exploradores.

Significativo é, porém, o facto de, nessa missa, se ter fingido o culto ao Espírito Santo, donde devemos depreender que o poeta considerava tal culto aquele que exactamente identificaria a religião dos portugueses.

Os dois navegadores, vendo isto, de joelhos na terra, puseram «os sentidos naquele Deus que o Mundo governava».

Este é o verdadeiro Deus, o Espírito Santo e, por este modo, o falso Deus adorava o verdadeiro:

 

Ali tinha em retrato afigurada

Do alto e Santo Espírito a pintura,

A cândida Pombinha debuxada

Sobre a única Fénix, Virgem pura;

A companhia santa está pintada

Dos Doze, tão torvados na figura

Como os que, só das línguas que caíram

De fogo, várias línguas referiram.

 

Aqui os dous companheiros conduzidos

Onde com este engano Baco estava,

Põem em terra os giolhos, e os sentidos

Naquele Deus que o mundo governava.

(…)

(Canto II, 11-12)

                                   

Como se pode ver, aquele Deus que o mundo governava, é o Espírito Santo. Mas não é o que mais nos importa aqui para entendimento de toda a articulação interior do grande poema épico. O que devemos ver na estrofe é que para Baco, o inimigo, o melhor meio de enganar os portugueses é pô-los a assistir à missa que era a sua verdadeira missa. Em vez do Crucificado, está o alto e santo Espírito, está a pomba pairando sobre a única Fénix, estão os doze, figurados no momento em que, meio atónitos, vêem cair as línguas de fogo e se vêem de súbito com o dom das línguas, isto é, não só de as falarem, como de saberem encontrar a verdade em todas as Tradições.

 

António Telmo

 

(Publicado em Luís de Camões, 2010)

 

UNIVERSO TÉLMICO. 23

21-05-2015 23:30

Risoleta Pinto Pedro publicou há pouco, no seu blogue A Luz das Casas, o magnífico ensaio sobre O Estranhíssimo Colosso - Uma Biografia de Agostinho da Silva, de António Cândido Franco, que generosa, gentilmente partilha agora com os leitores da página do Projecto António Telmo. Vida e Obra, de que, tal como Cândido Franco, é membro autor. Ambos serão aliás oradores, a 31 de Outubro, na segunda sessão do ciclo de palestras Agostinho Revisitado: Novas Aproximações, que o nosso Projecto promove este ano em parceria com o jornal Raio de Luz, de Sesimbra. Les beaux sprits se rencontrent...

Considerações acerca de uma colossal estranheza

Risoleta C. Pinto Pedro

Sobre: O Estranhíssimo Colosso,

Uma Biografia de Agostinho da Silva

Por António Cândido Franco

 

É sobre a minha mesa da cozinha que recebo Agostinho e o sol da Primavera. Esta Primavera ficará mais doce na memória, porque aconteceu o teatral renascimento de Agostinho num espectáculo único para mim encenado enquanto espectadora. Sobre a mesa e ao sol, esta personalidade tão complexa e tão simples, cujo interesse e área de acção vai do estudo das moscas à política mundial com Jânio Quadros.

O homem que recusou pensões e títulos e devolvia a parte que não gastara dos subsídios que lhe eram atribuídos para projectos, assim criando embaraços técnicos institucionais, porque não estava previsto. O homem que dava quase tudo o que recebia, porque não precisava, já que os seus únicos gastos eram com viagens e a fransciscana única refeição por dia. O homem que afrontou todos os poderes que se opuseram à sua realmente inalienável liberdade, o homem que não trocava nada por uma boa conversa, que fazia mais facilmente amizade com o porteiro do que com o embaixador, mas que não desprezava ninguém, o homem que traduzia do latim e do grego, como quem traduz do inglês, que estudava quando os outros dormiam, ia fazer conferências aonde o convidavam e pelo meio de um sem número de outras coisas ainda escrevia livros a um ritmo e qualidade muito acima do normal.

É desse homem que tão incompletamente acabo de descrever que tratam as setecentas e tal páginas do livro que me vai acompanhar durante umas semanas.

Garrett começa à janela as suas Viagens e eu também próxima de uma janela de onde vejo árvores, é sobre a mesa da cozinha que viajo. Depois da louça lavada e tudo em ordem, sento-me perto da janela e aí recebo, saudosa, Agostinho e o sol. Abro o livro e deixo vir até mim o passado. Para ser rigorosa, é mais do futuro que se trata. É na Primavera que se passa esta leitura, e quando começo a escrever este texto, ainda estou na Primavera do biografado, saudoso Agostinho da Silva. Pela narrativa rigorosa e expressiva de António Cândido Franco, seu biógrafo, torno-me personagem de uma infância que no tempo me teria sido inalcançável. Dia após dia a leitura prosseguiu até à aparentemente impossível e quase indesejada última página e eis o que ficou em mim:

Esta biografia tem a forma de relato comovente e épico em tom paradoxalmente lírico, terno e sorridente, que exemplifico facilmente, bastando-me abrir, quase ao acaso, o livro:

“Esta do meu plantígrado se pôr em pé na asa de um avião em voo só mesmo para Agostinho. É outro leão de ouro para pôr no mostrador da sua biografia. Nem Sinatra se atreveu a tanto; ficou-se só pelo cantar à chuva. Que pobreza, ao pé da grande dança cósmica de Agostinho na asa de um avião em voo!”

Lê-se esta biografia sobre o morto mais vivo do mundo e queremos ressuscitá-lo. Pela leitura o faremos. Precisamos dele.

Escrevi num outro lugar, a propósito de mortos e vivos:

“Há muito quem se amofine com o estado de graça em que entram os mortos na boca dos vivos uma vez ausentes desta comunidade.

A mim aborrece-me mais que os vivos se maltratem por palavras, obras e intenções.

Se a morte traz aos que partiram algum estado de graça, apenas vejo aí uma graciosa mudança dos vivos em relação aos que não o são.

Diria mais, talvez o sentido do morrer seja, pelo menos por enquanto, ensinar os vivos a verem as qualidades para as quais estão obnubilados durante a vida dos outros.

Beneficiam os mortos com isso? A mim parece-me que mais ganham os vivos do que os mortos, porque aprendem a criar novos filmes com suas línguas, aí onde antes apenas destilavam veneno nasce um alquímico cuspo de beijo ou amor.”

Também numa biografia não vejo necessidade de fazer criação de larvas, e ainda que as haja, porque sempre as há, estamos no mundo delas, cumpre ao biógrafo o esforço de compreender fraquezas , reveses e condições, aparentes deslizes e desaires.  Como competiria a um médico de mortos.

Com a vida de Agostinho, não tem o biógrafo de fazer grande esforço para apresentar a estrela, ela brilha com luz própria, mas não há vida sem sombra, e é o que se percebe na passagem que segue:

“Este exame de consciência roeu-o por dentro. […) Mas Agostinho não era um triste que ficasse a chorar os pecados em que caíra. Se errara, havia que alterar a direcção e seguir por diante. “

Quem quiser aprofundar-se nestas páginas encontrará um olhar sem maquilhagem, mas fundo, profundo e misericordioso. Como o do “mestre”.

A biografia de Agostinho possui, além de outras de que falarei, uma particularidade que é um mérito: a escolha do eixo, ou tronco mais ou menos visível, consoante a parte da vida em que se encontra, no qual vai plantando os ramos. Esse tronco é o Agostinho escritor, aquele que não tem sido, pelo menos para o grande público, que mais o conhece por via das entrevistas televisivas, o revelado.

“… andando no desconhecimento geral, chegam para fazer um escritor aos 18 anos.”

Não que ACF confunda biografia com percurso literário, mas porque nesta exuberante selva que foi esta exuberante vida é necessário seguir um trilho, o mais desenhado no chão, tanto mais se o mais expressivo trilho tiver sido, também, o mais ocultado.

O escritor está, então, feliz e generosamente presente nesta biografia, com especial dedicação à vertente deliciosa que é a do criador de heteronímia para… os heterónimos. E entretanto “mata” os heterónimos para que não possam queixar-se. Ou denunciá-lo.  ACF fala, preferencialmente, de pseudónimos, um rol infindável de pseudónimos, muito antes de Pessoa ter entrado no horizonte de vida de Agostinho. 

Paralelamente à actividade literária, com ela e através dela, vai-nos conduzindo pelos meandros da vida do seu biografado e para que não nos percamos nem fiquemos para trás, que a tentação de saborear é grande (quem quiser apenas o alimento mais frugal dos factos pode limitar-se a ler a cronologia que ocupa cinco páginas no fim), para que não nos desorientemos, dizia, vai-nos puxando por um fio narrativo às vezes sorridente, pelo gracioso método de retomar acontecimentos anteriores. Sem duvidar da nossa memória. Com bondade. Com rigor e vivacidade.

Com ele, passei a fazer parte da infância de Agostinho e desconfio, até, que alguns fios do tempo se cruzaram realmente.

Revi o Porto que não fez, julgava eu, parte da minha infância, mas afinal o Porto que eu não conhecia é o de hoje. Este é, ou tornou-se-me, estranhamente familiar.

Viajei com Agostinho pelas galáxias até divisar o sítio onde, por quase engano, nasceu. Mas como é sempre possível, enquanto se está vivo, corrigir um erro, lá foi parar, ainda nos primeiros tempos, onde era seu propósito. Podia ter ficado logo pelo resto do mundo, mas este homem gostava de viajar. Era preciso afastar-se para ter o prazer de se aproximar. Além disso, para quê nascer apenas num lugar, só para um país, se se pode viver ao mesmo tempo quase em dois? Como o compreendo, eu alentejana nascida virada para Espanha, sul da Europa e norte de África.

Talvez por ter faltado a Agostinho um GPS ao nascer, este livro vem acompanhado de um GPS de última geração.

À semelhança da selva, onde A. também viveu, a sua vida é um longo emaranhado de lianas pelo qual o biógrafo nos vai conduzindo e criando, de vez em quando, como nos aeroportos e espaços de grande confluência de gente, pontos de encontro. Esses pontos são sinopses onde agremia determinados aspectos da vida de Agostinho já narrados, nunca os mesmos, com que nos orienta no espanto que é impossível não partilharmos com ele, por muito que tenhamos acompanhado, mais ou menos perto, mais ou menos de longe, esta admirável vida.

Essas analepses ou recuos temporais, concentrados, pegam com um talento notável, nas pontas de várias páginas aparentemente dispersas reunindo-as em coerência; uma aranha antiga pode fazer a síntese:

“… quem diria que Agostinho se levantava das duas e meia para as três, para trabalhar de seguida – com uma única paragem às quatro da manhã para audição das Sonatas de Beethoven tocadas por Fritz Kreisler e leitura do Larousse Ilustrado – até às nove da manhã. Momento em que entrava nas explicações – que Ruben A. Diz que ele aviava como quem come figo. Era o que dizia quem lá estava e é o que pode pois interessar esta biografia. Mais tarde, em Santa Catarina, foi com uma negra tarântula tropical a passear-lhe na mão, a rir, sem a mais pequena preocupação, que o meu Silva recebeu Lourenço e esposa. E quem o diz é quem o viu. É pois esse ponto negro que melhor o retrata nesse período. “

Esta, uma das imensas e sempre criativas, novas, surpreendentes sinopses em jeito de analepses (acaba de ser inventado um estilo novo), apesar de feitas com acontecimentos narrados, aqui elegantemente rematada por uma prolepse:

“Agora é tarântula na mão, amanhã será puma na cama. Espere o leitor para ver. “

 

O estilo abrange arcaísmos, como “nanja”, “bonda” “destarte”  e outros, neologismos como é o caso deste a nível da conjugação:  “adolescera”,  passando pelo uso original da metáfora, riquíssima:  “tricotar letra no papel”, “talha dourada verbal”, “quando abriu os olhos, era apóstolo de Agostinho”, “escrever uma biografia de Agostinho da Silva é andar com o mundo ao colo”, a alegoria de uma quase insuportável beleza, a propósito da agonia dos últimos dias:  “Era um castanheiro centenário cujas raízes já não tinham forças para chupar a terra. Já as partes baixas estavam secas e ainda as folhas teimavam em despontar.”, o humor: “Foi por um triz que se salvou de ser frei Agostinho da Selva.”, passando pelo coloquial, “Boa malha, ó Silva!”,  “é tanga, meu!”, “dar cana”, ou mesmo o calão, a par da linguagem mais elaborada e culta. Mesmo nas páginas mais recheadas de listagens e exaustiva informação, nunca há monotonia ou tédio nesta montra lírica, informativa, exclamativa, dialogante, coloquial…

Como texto biográfico, saliento a habilidade para conduzir subtilmente o leitor pelo meio de indícios, dúvidas, até lhe apresentar a prova documental. Outras vezes (mais raras) é mesmo com a dúvida que o deixa. Então ficciona-a. Assumidamente. Abertamente, à vista do leitor, com a sua cumplicidade. Assim lhe dando (ao leitor, à dúvida) honra e dignidade:  “Agostinho palestrou no departamento de Machado da Rosa. Aposto que a conversa, de que não conheço registo, nem mesmo a mais pequena referência, meteu no público muito açoriano […] e de mistura, claro, muito Império do Espírito Santo.”

O tom, de um risonho humor e ironia : “nem uma palavra deixou. Foi e acabou. Ponto de exclamação.”, aparece temperado com generosas camadas de entusiasmo e espanto: ”Boa malha, ó Silva! Assim é que é! Fazia afinal o preparo de alguém que não estava disposto a esperar por uma revolução para viver num país livre; comportava-se como homem livre e bastava.”

O biógrafo não consegue e não se esforça por esconder a admiração pelo biografado.

ACF introduz, ou segue os passos do mestre num novo estilo de biografia que, sem abrir mão do rigor, se liberta do frio espartilho pseudo-científico.

A admiração e o nunca ultrapassado espanto do biógrafo vão avivando as páginas, se é que estas disso necessitavam: “Que obra!”, “Notável! Não é?”, “este homem  foi uma excepção. E que excepção!”, “Que malha, dia meu!”. Entre inúmeras outras emocionadas  exclamações.

E interpreta o que vê: “Só o sonho justifica tanto ânimo.”

Às vezes não sabe ou não tem a certeza ou não consegue provar e afirma-o:

“não sei”, “que agora não encontro”, “Não garanto, mas é muito aceitável que…”, “Impossível saber. Presumo porém que…”, “Pode ser que sim”, “Não digo nem que sim nem que não. Passo.”, “Não me admiraria que…”, “Não me custa imaginar…”.

No entanto sabe os seus limites, afirma:

“Posso ser solto de palavra, mas tenho por ponto de honra ser escrupuloso.”

O biógrafo que se conhece. E respeita.

Quando inventa, anuncia que está a fazê-lo desta deliciosa e sedutora forma que vai buscar ao modelo de inocência, o menino que nele vive: “Esta dos condutores que iam à bola com ele não é da minha testemunha, é minha, só minha. Às vezes deixo-me embalar e o resultado é este, dou por mim a inventar.”

Um estilo pessoalíssimo, um “dolce stil novo” que, se não se inspira, é certamente inspirado pelo biografado na sua faceta de biógrafo.

Vejamos:

“Sem pudor, que era escusado, pegava de conversa com o seu escolhido e ia com ele de passeio, a céu aberto, […] de modo que o leitor pudesse seguir a sua presença. Dito doutro modo: a biografia era o modo de dizer que Montaigne estava vivo e respirava.”

Refere-se este trecho a Agostinho biógrafo. Mas se experimentarmos substituir os tempos verbais pelo presente e “Montaigne” por “Agostinho” não há aqui nada que não se ajuste ao biógrafo António Cândido.  Na biografia Agostinho está vivo e respira, neste passeio a céu aberto com António Cândido.

E aqui temos o que poderíamos designar como uma Arte Poética aplicada à biografia, de que ambos comungam. Fazer biografia é restituir o sujeito à vida para o leitor. Um trabalho… colossal! E, provou-se … possível!

Veja-se outra passagem e avalie-se se não seria possível afirmá-lo sobre esta biografia:

“a biografia de Montaigne por Agostinho da Silva é um livro poético com largos recursos criativos que não pode ser tido como um repositório documental nem como o fruto asséptico dum historiador; ele é antes o resultado de uma operação delicada de selecção e montagem, que passa primeiro pela percepção de uma alma e depois pela criação de um modelo mimético, quase dramático, capaz de restituir no papel a vida desse arcano eterno.”

A biografia de Montaigne, e a biografia de uma montanha, uma mesma concepção acerca do que é fazer uma biografia de alguém que não acreditava na morte, que era o caso de Agostinho, logo, apenas como vivo, ou trazendo-o à vida, se pode falar dele. Tal foi o feito de ACF.

Aproximamo-nos da relação com o biografado.  De que forma se lhe refere?

Não serei exaustiva, nem sequer respeito a ordem, mas não resisto a “exemplificar”:

“meu jovem”, “meu moço”, “…meu Plutarco…”, “o meu exilado”, “o meu aldeão”, “meu pedestre”, “  meu macróbio”, “o meu maduro”, “o meu Hércules”, “o meu Silva”, “meu mestre”, “o meu biografado”, “anormal que sacava vintes”, “Adamastor de Palhavã”, “Aquele lapuz”, “meu Tertuliano, “o meu doutor”, “o meu anormal”, “o meu Atlante”, “meu bicho”, “meu cavaleiro andante”, “meu George”, “O meu escritor”, “o meu inventivo”, “meu novel professor”, “o meu bandeirante”, “meu celtibero”, “meu zagal”, “o meu cigano”, “o meu chefe”, “o meu crítico”, “o meu rústico”, “o meu templário”, “meu boieiro”, “meu berbere”, “o ecuménico do candomblé”, “o meu despreocupado”, “O velho grisalho de terno preto”, “meu astuto”, “o meu índio”, “meu velho índio”, “meu homem”, “este meu bárbaro”, “o meu doido”, “o meu filósofo”, “o meu brincalhão”, “o meu despachado”, “o meu falador”, “o meu mestre-sola”, “o meu meileca”, “o meu pião”, “o meu campestre”, “meu soldado”, “o meu velho”, “meu irreverente”, “o meu vagabundo”, “meu danado”, “índio da Itatiaia”, “o meu sáurio”, “meu peixe”, “incêndio de generosidade e génio”, “o meu socorrista do sertão”, “meu sátrapa”, “um tripeiro de Campanhã, um Zé dos Anzóis qualquer…”, a que acrescenta: “… que chega a conselheiro da Presidência do Brasil aos 55 anos”

Às vezes senti por detrás o sorriso, mais frequentemente o espanto, a admiração, muitas vezes a incontida emoção.

Certas designações tanto podem comparecer com ou sem o possessivo, é o caso de “Atlante” e “anormal”.

Verificamos que a maioria das vezes usa o possessivo, com ou sem o artigo, com que cria ou desfaz intimidade, outras o deítico espacial: “aquele” com que o distancia para melhor o observar?, enquanto que outro deítico espacial associado ao possessivo “este meu” o puxa para junto de si e se apropria dele; “meu Silva” é frequente e atravessa todo o livro, talvez com incidência no início, algumas expressões são absolutamente isoladas, servem para um retrato instantâneo, há uma evolução de trato, diria de confiança ao longo do livro, um maior à vontade, também isso evolui com a vida de Agostinho, alguns epítetos não são o que parecem, quando o designa como “anormal” é ao nível da épica que o eleva, o ser especial, diferente, o Titã, o divino em aparência humana. “Anormal” quase substitui uma interrogação de espanto ou quase incredulidade ou incapacidade para integrar tanta grandeza. Também aqui está presente o neologismo, como as mães que nem sabem que mais nomes inventar para os filhos… e criam nomes novos, usam os insultos como cúmulo de ternura, alternam entre substantivos e adjectivos. Algumas expressões poderiam ser de uma mãe orgulhosa do filho que teve: “é um caso raro, se não único, de dar saltos e gritos de vitória.”.

Um biógrafo apaixonado pelo biografado (nem seria possível escrever uma biografia assim sem essa condição…) : “O meu doido”, de onde extravasa todo o amor, ternura e admiração que cabem num coração.

Agostinho, lendo esta biografia, teria posto de lado a admiração, como a carne que não comia, mas não teria sido insensível ao amor, ele que toda a vida o respirou e recriou. Nem ao humor; acima de tudo ter-se-ia divertido com a sua própria imagem, com o riso refletido dela, ele que nunca se levou demasiado a sério. Eliminava da sua vida os problemas próprios para ficar mais disponível para os dos outros, como na biografia, a páginas tantas, é dito.

Quase poderíamos recriar a vida de Agostinho com uma boa listagem (que não seria esta minha caótica e incompleta lista) dos epítetos utilizados, exaustiva e seriada.

Não se pense, todavia, que este herói, pela excepcionalidade, aparece nebuloso, mental e diáfano. Não. Ele é bem corporal. Às vezes a descrição é quase animalesca, e desta forma ainda mais o eleva: “recebeu, quando calhou receber, […] quarto onde metesse corpo em leito decente e manjedoura modesta mas limpa onde arrumasse dente.”

“Agostinho é um varão seguro, espadaúdo, bíceps rijo e teso.”

Avançando na leitura, há quatro momentos especialmente dolorosos: aquele que corresponde ao tempo da prisão política,  o acidente do filho Pedro, a fase das Conversas Vadias e a doença, que no fim da vida acabou por levá-lo. De resto, até os problemas são divertimento e animação, para Agostinho. E para nós, que com ele vamos aprendendo.

Mas é doloroso, faz mal ao coração recordar o período destas entrevistas televisivas, onde o ouro foi algumas vezes desvalorizado pelo outro. Um homem de idade avançada brilhando de vivacidade e futuro e, em alguns casos, não em todos, jovens bolorentos fedendo a naftalina. Foi o que viu quem esteve atento, é o que a biografia confirma.

Agostinho que acreditava, como testemunho encontrado mais à frente no livro, que as doenças reflectem o que nos fez mal na vida, não terá ficado bem do esforço que o coração teve de fazer nestes duelos desiguais opondo coração e mente, inocência e preconceito, sabedoria e resistência.

 

Não referi as muitas considerações sobre educação, sobre política, sobre amor e sexo, crítica social, crítica literária. De biógrafo e biografado. Lá estão, mas não se confundem. Uma abraça a outra, uma dá colo à outra. Não era possível caber tanta coisa neste texto já longo.

Ler este livro torna-nos melhores. Porque nos recorda o que de melhor pode existir num ser humano, como inteligência, coragem, talento, resistência, modéstia, generosidade, humildade, misericórdia, criatividade, espontaneidade, fé, compaixão, entusiasmo, optimismo, desprendimento, solidariedade, liberdade, fraternidade, frontalidade…

E também porque o livro é a prova de que a literatura e a arte podem ser uma forma de justiça pela reunião do amor com a sabedoria e a beleza.

Não consigo imaginar alguém lendo este livro a espernear. Embora já tenha havido quem o fizesse. Deve ser um enorme sofrimento. Como se nos pusessem à frente a melhor e mais divina das iguarias, mas por razões obscuras não pudéssemos mostrar o nosso prazer e fôssemos obrigados a deliciar-nos, mas ao mesmo tempo fazendo caretas e contorcendo-nos obscenamente de agonia a fingir que não gostamos. Deve ser doloroso. Mas é possível, porque já aconteceu. Mistérios. Ou talvez não.

Não vou esmiuçar, o ambiente está perfumado de Agostinho e seu biógrafo, não quero estragá-lo, mas  quem tiver curiosidade sobre a explicação para um ou outro feroz ataque com que o livro foi recebido, explicações não faltam.  Bastariam as páginas entre 276 e a 284 para, numa certa óptica, ajudar a compreender acicate tão cerrado a esta biografia.  Que, aliás, não é ela, a biografia, que incomoda, mas flashes de biografias outras que, em nome da verdade, aqui aparecem. Como diria o Garrett das Viagens¸ ele poderia descrever a estalagem desta ou daquela maneira, ao gosto da época, dos leitores, dos críticos, o problema é que nada disso lá estava…

Esta biografia na aparência épica, em V cantos, épica pelo tema, pelo herói, pelo tom, pela extensão, apenas aparentemente o é. É biografia, não é épica. É que, para além de uma ou outra passagem em que assume brincar com os factos, não há aqui ponta de invenção. O homem era mesmo assim, um muito, mas mesmo muito estranho colosso. Não há volta a dar-lhe e outro título também não poderia ter, para não deixar de ser fiel à vida:

“Um homem sem medida… na bitola comum.”

Mesmo assim, uma ou outra vez acontece a necessidade de relacionar a extensão e a tarefa com o valor e a acção:

“É por esta e por outras invulgaridades que o meu Silva merece longa biografia.”

“Mas é por isso mesmo que ele merece vir aqui. Se não fosse este seu espírito livre, não estaria eu aqui, tantos anos depois dos sucessos, a falar deles.”

Quanto  mim, direi sem pudor que estou ainda em espanto como em criança perante qualquer tipo de grande monumento. Como é possível tal livro, tal vida?

Este livro talvez pudesse também intitular-se “Da felicidade”, porque afinal de contas de outra coisa não falou Agostinho desde que falou: Como podemos ser felizes e criadores e assim espalharmos a felicidade no mundo?

Contudo, este título não daria conta do monumento realizado e da monumental forma de o fazer. Nem da estranheza perante a grandiosidade da vida e da obra.

ACF percebeu a dificuldade em abraçarmos a complexidade desta vida, pelo que, como professor que não deixa de ser, para além do poeta, do investigador e do escritor também aqui presentes no seu livro, foi fazendo resumos, sinopses, sínteses, elipses, revisões da matéria. E que matéria!

Como se tivéssemos de prestar provas. E não teremos de prestar provas à nossa própria vida depois de lermos sobre esta Vida?

Será o próprio biógrafo que se sente em prova?  Ou talvez solidário com o leitor, entre o III e o IV  capítulos, o Brasil ficando para trás:

“Quem passa a prova do Brasil na biografia de Agostinho está safo.”

Quem é que está safo? Ele? Nós? Nem me passa pela cabeça pensar que poderia ser Agostinho. Agostinho, se tivesse ficado no Brasil, ainda estaria vivo. Este cantinho mental era demasiado pequeno, as artérias não cabiam em espaço tão acanhado.

E assim terminou o gigante, aquele que não precisava de descansar. As últimas páginas são comoventes, a narrativa do abandono do sopro faz-nos sentir mais sós, como se ele voltasse a abandonar-nos em cada leitura.

Por isso prefiro concluir as minhas impressões sobre esta tese na forma de biografia, com um início.

A tese deste livro seria, na minha atrevida especulação:

No princípio é o verbo, isto é, o livro faz a defesa, no meu entender com muita propriedade, justiça, arte e competência, de que o seu biografado foi especial e quase miraculosamente visitado pelo sopro, tendo, para além da espantosa vida que viveu, um raro talento na área do verbo, que se expressa quer na comunicação oral, quer na palavra escrita.

Quem leu, quem ler, julgará este meu atrevimento.

 

Maio de 2015

 

UNIVERSO TÉLMICO. 22

21-05-2015 11:39

CARTAS DE AGOSTINHO DA SILVA PARA RUY VENTURA. 05

 



 

5

[carimbo do correio – Lisboa, 14.8.1993; meia folha A4]

 

            13.8.93

 

            Irmão Ruy

            E quem sabe se não seremos todos um dia de uma Ordem Geral dos Irmãos Servidores, que só daqui a muito[s], muito[s] anos tenha estatuto e cuja Regra essencial seja a de nunca mandar, mas servir, e com gosto e com agradecimento. As Folhinhas, conto eu, não vão acabar, vão agora ser irregulares e decerto aparecerão selos para elas se valerem a pena, o que é discutível. Está bem? Suas coisas e ideias andando firmes? […]

            do A.

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