DOS LIVROS. 42
Mombaça, terra do mal
Ao dobrar o cabo da Boa Esperança, dir-se-á que Vasco da Gama se tornou um homem novo, liberto da Hybris, do orgulho desmedido, da violência, do sangue. O que é que, na narrativa d’Os Lusíadas, nos permite dizer isto? Eu compreendo que a inflexão da rota para Oriente, para aquele Oriente que Camões insistentemente diz ser o fim da viagem, se deva interpretar simbolicamente como uma «viragem» na alma. Porém, onde é que está isso afirmado explicitamente por Camões?
No meu texto dos Teoremas de Filosofia digo que Deus é o Amor. Direi agora que o Amor, o puro Amor é o Espírito Santo.
Dobrado o Cabo, as forças negativas reagem. Sempre a um momento de exaltação do intelecto divino em nós se seguem terríveis obstáculos. Os iniciados sabem isto, mas com alguma atenção todos o podemos verificar no próprio curso das nossas vidas, se nesse «todos» o desejo do melhor tiver algum lugar.
Aqui, n’Os Lusíadas, esse momento da reacção das forças do mal teve como nome «Mombaça».
Baco, sabendo que viriam dois exploradores informar-se das terras e de qual a qualidade das suas gentes, mascarou-se de sacerdote católico e celebrou missa para assim agradar aos dois exploradores.
Significativo é, porém, o facto de, nessa missa, se ter fingido o culto ao Espírito Santo, donde devemos depreender que o poeta considerava tal culto aquele que exactamente identificaria a religião dos portugueses.
Os dois navegadores, vendo isto, de joelhos na terra, puseram «os sentidos naquele Deus que o Mundo governava».
Este é o verdadeiro Deus, o Espírito Santo e, por este modo, o falso Deus adorava o verdadeiro:
Ali tinha em retrato afigurada
Do alto e Santo Espírito a pintura,
A cândida Pombinha debuxada
Sobre a única Fénix, Virgem pura;
A companhia santa está pintada
Dos Doze, tão torvados na figura
Como os que, só das línguas que caíram
De fogo, várias línguas referiram.
Aqui os dous companheiros conduzidos
Onde com este engano Baco estava,
Põem em terra os giolhos, e os sentidos
Naquele Deus que o mundo governava.
(…)
(Canto II, 11-12)
Como se pode ver, aquele Deus que o mundo governava, é o Espírito Santo. Mas não é o que mais nos importa aqui para entendimento de toda a articulação interior do grande poema épico. O que devemos ver na estrofe é que para Baco, o inimigo, o melhor meio de enganar os portugueses é pô-los a assistir à missa que era a sua verdadeira missa. Em vez do Crucificado, está o alto e santo Espírito, está a pomba pairando sobre a única Fénix, estão os doze, figurados no momento em que, meio atónitos, vêem cair as línguas de fogo e se vêem de súbito com o dom das línguas, isto é, não só de as falarem, como de saberem encontrar a verdade em todas as Tradições.
António Telmo
(Publicado em Luís de Camões, 2010)