UNIVERSO TÉLMICO. 25
Onde a terra se acaba. 04[1]
Agostinho da Silva
Novamente se incomodaram muito os amigos por não ter aparecido assinatura no último artigo que me publicou este nosso jornal; acho, porém, que talvez estejam errados e que o acontecimento nos dá ocasião a que outra vez reflictamos sobre o assunto.
A primeira nota que há a pôr é que, apesar de já ter defendido, neste mesmo lugar, que seria muito bom entrarmos todos no anonimato, apenas declarando o nome quando nos fossem exigidas responsabilidades por tal ou tal opinião expressa, lá fui assinando minha prosa, não sei se por hábito adquirido, se por supor que no jornal assim o prefeririam, se, como me inclino a crer, porque, apesar da teoria, fazem costumes, solicitações e agrados que, muitas vezes, vezes demasiadas, nos demos mais à teoria do que à prática e, no fim de contas, não pelas qualidades, mas pelos defeitos, sejamos levados a ter sempre gosto por encontrarmos em letra redonda nosso pequeno nome.
Hábito antigo o de todos nós, algum tempo perdido, readquirido depois. Sabe-se dos homens da Antiguidade, e fora algumas dúvidas dos historiados, quem esculpiu tal estátua, modelou tal cerâmica, compôs tal tragédia ou simplesmente inventou em praça pública uma anedota célebre. Com a revolução cristã, correspondeu a um conceito novo da comunidade de irmãos reverentes, obedientes e de mente voltada para seu pai celeste, a forma cooperativa de propriedade, a educação mútua, o templo em que pintores, escultores ou arquitectos trabalhavam com tal anonimato que só às vezes pelo recibo de pagamento ou por um documento de contacto é possível, discriminando os artistas, atribuir autores às obras.
Parece, no entanto, que não estavam os tempos maduros para o cristianismo, que muitas conversões eram de interesse e não da mudança de espírito posta por Cristo como acto fundamental e que até entre pessoal da Igreja havia pagãos e se tendia de mais a ver Roma não como o altar de Deus, mas como o trono de César. Com o Renascimento, que foi muito mais de latinos que de gregos, triunfou o direito cesarista, julgou-se o homem centro do mundo, constituiu-se a ciência como independente da moral, celebrou-se o triunfo da propriedade privada e libertou-se o juro, instituiu-se a escola como formadora das classes possidentes e dirigentes e, acompanhando o movimento, passaram os autores a assinar ciosamente as suas obras, que, além de tudo, se usaram já não como elementos de educação e como sinais de devoção mas como penhores de uma valia e como adornos de um poder.
Não assinar é, portanto, em última análise repudiar tudo isso e considerar que o que vale é a obra comum, sem o insignificante pormenor das nossas glórias vulgares e apenas com atenção ao avanço geral da Humanidade se formos bastante felizes para nele colaborar, e com humildade perante o Espírito que a todos nos pode iluminar e que a nenhum de nós pertence. Tão convicto estou disto que espero um dia poder mostrá-lo na prática, agradecendo aos jornais em que colabore que me não ponham o nome em artigo nenhum.
Tudo estaria, por conseguinte, em termos excelentes se eu não tivesse de facto assinado o artigo; como, porém, o assinei, e nisso esteve o erro, pode cair sobre alguém a suspeita, e há gente sempre disposta a levantar hipóteses destas de que propositadamente me tenham cortado o nome, o que representaria na verdade um notável exemplo de falta de carácter e de honestidade ou que tenha havido, no trabalho, um descuido imperdoável, uma desatenção absurda, aliás desmentida pela excelente apresentação gráfica de nosso jornal. Fica então assente que nunca mais assinarei coisa alguma que aqui se publicar; pôr o nome ou não pôr o nome ficará inteiramente ao critério da direcção; a mim me basta que as ideias expostas possam ser úteis a alguém, por acordo ou desacordo: ambos óptimos, se conscientes, críticos e em plena lealdade de quem o pense, lealdade consigo e lealdade com os outros.