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VERDES ANOS. 17

29-10-2015 11:10

Durante o seu período formativo, que culminou com a edição de Arte Poética, António Telmo dedicou cinco escritos de imprensa a Sampaio Bruno, quatro dos quais foram já publicados nesta página. São eles "Problemas do estilo em Sampaio Bruno", "No centenário do nascimento de Sampaio Bruno", "Sampaio Bruno, crítico literário" e "Sampaio Bruno", este último comentado por Paulo Samuel, que será um dos oradores do Congresso A Obra e o Pensamento de Sampaio Bruno, a realizar-se, em Lisboa e no Porto, já na próxima semana, entre 4 e 6 de Novembro. Entre os participantes contam-se ainda outros membros do Projecto António Telmo. Vida e Obra: Manuel Ferreira Patrício, Rui Lopo, Samuel Dimas e Pedro Martins, que falará sobre "Sampaio Bruno e António Telmo". 

Completando hoje a publicação dos escritos télmicos da juventude sobre Sampaio Bruno, aqui deixamos o escrito de António Telmo no primeiro número do 57 sobre "O Centenário de Sampaio Bruno". 

    

 

O Centenário de Sampaio Bruno[1]

 

Através de excertos de livros, ensaios e artigos publicados recentemente em Portugal e no estrangeiro, «57» oferece aos seus leitores um panorama da actualidade cultural, chamando a atenção para obras que merecem ser lidas e meditadas, para problemas que se inserem entre as maiores preocupações da espiritualidade moderna, enfim, para aspectos valorativos da cultura portuguesa segundo o critério da sua originalidade, da sua afirmação e do seu progresso. Saibamos ler as obras estrangeiras, não como figuras dogmáticas a seguir obedientemente, mas como contributos para a afirmação do nosso próprio carácter. Saibamos distinguir, na produção cultural portuguesa, o que é meramente importado do que constitui afirmação pessoal e nacional.    

 

O centenário do nascimento de Sampaio Bruno para o qual chamou pela primeira vez a atenção a Gazeta Literária do Porto, foi até agora comemorado por alguns diários citadinos, e algumas revistas, como o Diário Popular, o Diário de Notícias e a Brotéria, sendo, porém, justo destacar o Comércio do Porto, por ter dedicado ao fundador da filosofia portuguesa uma página inteira. Infelizmente, porém, a generalidade dos escritores que subscreveram os vários artigos desse número, por motivos óbvios a qualquer inteligência medianamente informada sobre a nossa vida cultural na sua relação com os sentimentos negativos, preferiu encarar Sampaio Bruno apenas como o primeiro doutrinador da República Portuguesa a meditar a sua obra e a sua filosofia. É certo que o autor da Ideia de Deus é um pensador que se torna difícil para os espíritos formados, directa ou indirectamente, em escolas de filosofia estrangeira. O racionalismo escolástico dum Agostinho Veloso ou o universitarismo anedótico dum Vieira de Almeida ou o enciclopedismo francês de um Joel Serrão ou o filosofismo pseudo-moderno dum Eduardo Lourenço ou o intelectualismo universitário dum Delfim Santos constituem fortíssimo obstáculo à apreensão dum pensamento radicado em categorias nacionais. Em plena decadência do positivismo tal incompreensão só pode ter duas significações: ou é má vontade ou gosto de persistir em formas inactuais.

Perante este quadro, os admiradores do filósofo foram suficientemente compensados pelo artigo de José Marinho, também incluído no Comércio do Porto, artigo que é o produto duma meditação séria, digna e incomparável, apenas atenta ao germinar fundo do pensamento e dessa atenção sabendo extrair uma exegese que, por vezes, penetra no domínio da hermenêutica. «57» transcreve, por isso, um excerto dessa admirável página de filosofia portuguesa. – A. T.

 

António Telmo    


[1] 57, ano I, n.º 1, Lisboa, Maio de 1957, p. 12.

 

UNIVERSO TÉLMICO. 29

27-10-2015 11:11

De Rui Arimateia, membro do Projecto António Telmo. Vida e Obra, publicamos hoje o ensaio que serviu de base à sua comunicação sobre "Fernando Pessoa e a Maçonaria" na Tarde Télmica do passado sábado, dia 24, na Biblioteca Municipal de Sesimbra, no âmbito do Colóquio "No Centenário do Orpheu", que contou ainda com a participação de Miguel Real, Elísio Gala e António Carlos Carvalho. 

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Fernando Pessoa e a Maçonaria

Rui Arimateia

 

Sê plural como o Universo! – Fernando Pessoa

 

Atrevendo-me a abordar a complexa temática sobre este grande Senhor da Língua e da Cultura Portuguesas, constato que algumas questões ainda se encontram teimosamente por clarificar nos nossos espíritos indagadores:

Foi Fernando Pessoa iniciado maçon? Se sim onde recebeu a iniciação? Quem, ou que Ordem Maçónica e Iniciática lhe conferiu a iniciação? Terá recebido a iniciação por comunicação directa? Foi iniciado em Portugal? Qual a ideia de Maçonaria que transparece na obra do Poeta?

Só o Poeta poderia cabalmente responder. Não o fez claramente em vida. Deixou adivinhar algumas afinidades publicamente e deixou um imenso espólio com fragmentos de documentos muito importantes mas que, embora clarificadores pelos conteúdos, muitos deles não se encontravam datados nem contextualizados. As leituras que se fizerem dos mesmos serão sempre hipotéticas. Contudo na base de toda a Ciência encontram-se um ou vários sistemas de hipóteses que vão ao longo do tempo e do caminho, construindo, transformando e clarificando a Obra.

São dezenas e dezenas os fragmentos documentais sobre Maçonaria, Iniciação e Ocultismo existentes no espólio de Fernando Pessoa e que têm sido trabalhados por inúmeros ilustres investigadores portugueses e estrangeiros. É uma imensa manta de retalhos onde os simbolismos se entrecruzam e se “contaminam” uns aos outros, enriquecendo e complexificando a obra pessoana.

Os excertos e os fragmentos pessoanos agora por mim trabalhados e apresentados foram tão só alguns daqueles que me tocaram mais profundamente sobre as matérias em questão – maçonaria e iniciação. É esta uma das muitas abordagens possíveis à problemática e as linguagens que privilegiei são mais poéticas e ritualísticas do que descritivas e explicativas. Desculpem-me o atrevimento!

Cristianismo, Judaísmo, Kabbalah, Maçonaria, Ocultismo, Paganismo, Astrologia, Rosa-Crucismo, Templarismo, Teosofia... Todos estes sistemas de Conhecimento-Sabedoria enformaram a(s) personalidade(s) e a descomunal obra literária, filosófica e poética, de Fernando Pessoa.

Assim, segundo se depreende dos seus escritos, Fernando Pessoa foi Maçon, foi Rosa Cruz, foi Templário, foi Teósofo, foi Ocultista, foi Astrólogo… – uma vez que todos estes sistemas de sabedoria o tocaram profundamente e “formataram” o seu pensamento, a sua sensibilidade e a sua personalidade.

Independentemente de qualquer sistema filosófico, sem dúvida que Fernando Pessoa terá sido um Iniciado nos Mistérios da Vida e da Morte, no grande sentido destas palavras... os seus escritos, a sua obra, a sua Poesia principalmente, assim nos levam a concluir.

Intuímos igualmente que Fernando Pessoa terá sido um ser extremamente introvertido, ensimesmado, um “novelo enrolado para dentro”, tal como o via Álvaro de Campos. Mas, simultaneamente, Pessoa era um ser pleno de autenticidade e de coragem. Lembremo-nos de todo o problemático processo inicial da revista Orpheu em 1915 e das posturas frontais e decisivas assumidas pelo Poeta e pelo seu heterónimo Álvaro de Campos. Fernando Pessoa foi, de facto, um assumido livre-pensador durante toda a sua relativamente curta vida.

Pelos inúmeros fragmentos sobre Maçonaria que se encontram no espólio pessoano, poderemos aferir que: a obediência ritualística acontecia no seu íntimo, o ritual vivia-o em si próprio, a Iniciação aconteceu em si, pois como ele próprio referiu, “quando o discípulo está pronto o mestre está pronto também”

[Subsolo– Fragmentos alinhavados por Fernando Pessoa, in Centeno – FERNANDO PESSOA E A FILOSOFIA HERMÉTICA, 1985, p.40].

 

Era fundamental para Fernando Pessoa a constatação de que:

– Tudo está ligado a tudo... ou, tal como é expresso nas palavras inspiradas de Hermes Trismegistos: “O que está embaixo é como o que está em cima, e o que está em cima é igual ao que está embaixo, para realizar os milagres de uma única coisa…”

 

– A Unidade da Vida é uma realidade sempre presente para a evolução natural e harmoniosa de todos os Seres Vivos e do próprio Planeta;

 

Não há Religião superior à Verdade, encarando todas as manifestações do génio humano – religiosas, sociológicas, antropológicas, filosóficas e científicas…– numa perspectiva Teosófica; como ele o afirmou através da sua poesia – “Tudo é verdade e caminho”!

 

A morte é a curva da estrada,

Morrer é só não ser visto.

Se escuto, eu te oiço a passada

Existir como eu existo.

 

A terra é feita de céu.

A mentira não tem ninho.

Nunca ninguém se perdeu.

Tudo é verdade e caminho.

 

[Fernando Pessoa - 23. 5.1932]

 

Por outro lado, considero essenciais – para mim são-no – as utilizações de três ferramentas metodológicas para a desocultação dos significados mais profundos do Espírito Religioso do Poeta e que ele próprio utilizou com mestria:

 

1.      A Poesia – pois esta permite falar a língua dos Deuses;

2.      A Imaginação Criadora – permite ouvir e entender a voz dos Deuses;

3.      A Analogia – permite compreender a intenção mais profunda nas diversas manifestações dos Deuses.

 

A Palavra, para Fernando Pessoa, é uma criação superiormente inspirada – do Espírito, do Logos, de Deus, da Natureza, da Vida Una… – que anima interiormente o homem e a mulher e se manifesta para a realização e compreensão de autênticas maravilhas.

 

Resumindo, e utilizando as próprias palavras de Fernando Pessoa (Subsolo):

 

“(…).

Todos os symbolos e ritos dirigem-se, não á intelligencia discursiva e racional, mas á intelligenciaanalogica. Por isso não ha absurdo em se dizer que, ainda que se quisesse revelar claramente o oculto, se não poderia revelar, por não haver para elle palavras com que se diga. O symbolo é naturalmente a linguagem das verdades superiores à nossa intelligencia, sendo a palavra naturalmente a linguagem d’aquellas que a nossa intelligencia abrange, pois existe para as abranger.

(...).

O primeiro capitulo trata das iniciações e expõe as trez leis da «vida oculta» - (1) o que está em baixo é como o que está em cima, (2) quando o discípulo está prompto, o mestre estáprompto também, (3) cada coisa tem cinco sentidos.

(…).”

[in Centeno, FERNANDO PESSOA E A FILOSOFIA HERMÉTICA, 1985, pp. 37-38 e 40]

 

 

Fernando Pessoa comunicava numa linguagem superiormente inspiradora quando nos legou o poema que de seguida se transcreve e que nos permite a compreensão de uma Religião-Sabedoria Universal totalmente integrada na Natureza e nos apresenta a descrição de um Templo oriundo das mais remotas profundezas e origens do homem religioso:

 

Oscila o incensório antigo

Em fendas e ouro ornamental.

Sem atenção, absorto sigo

Os passos lentos do ritual.

 

Mas são os braços invisíveis

E são os cantos que não são

E os incensórios de outros níveis

Que vê e ouve o coração.

 

Ah, sempre que o ritual acerta

Seus passos e seus ritmos bem,

O ritual que não há desperta

E a alma é o que é, não o que tem.

 

Oscila o incensório visto,

Ouvidos cantos estão no ar,

Mas o ritual a que eu assisto

É um ritual de relembrar.

 

No grande Templo antenatal,

Antes de vida e alma e Deus...

E o xadrez do chão ritual

É o que é hoje a terra e os céus...

 

[Fernando Pessoa - 22. 9.1932]

 

*

*    *

 

Em relação à questão sobre Fernando Pessoa e a Maçonaria Portuguesa do seu tempo, recorremos ao auxílio de António Arnaut, que assumiu as funções de Grão-Mestre do Grande Oriente Lusitano entre 2002 e 2005.

É certo que não existe rasto algum da sua passagem pelo Grande Oriente Lusitano, a única Obediência maçónica portuguesa (publicamente conhecida) existente durante a vida de Pessoa.

Diz-nos António Arnaut que:

“(...).

A verdade, porém, é que se Fernando Pessoa se tivesse filiado no GOL haveria, seguramente, memória histórica desse facto. Acresce que há dois obreiros da Obediência que dobraram há muito os 100 anos, (...), que não têm conhecimento dessa filiação. Refiro-me aos meus Irmãos Fernando Vale e Emídio Guerreiro, iniciados, respectivamente, em 1923 e 1924. Ambos poderiam, pois, ter convivido com o Poeta, entre Colunas, se ele tivesse conhecido a flor da acácia.”

(...).”

[Nota: Fernando Vale e Emídio Guerreiro, faleceram após este depoimento ter sido escrito, o primeiro a 26 de Novembro de 2004 e o segundo a 29 de Junho de 2005]. [Arnaut, 2005, p.6].

 

Por outro lado, Fernando Pessoa, no seu artigo em defesa da maçonaria e publicado no “Diário de Notícias” no dia 4 de Fevereiro de 1935, criticando o projecto-lei que visava ilegalizar as assim denominadas “associações secretas”, no caso concreto, o Grande Oriente Lusitano, escreveu:

“(...).

Começo por uma referência pessoal, que cuido, por necessária, não dever evitar. Não sou maçon, nem pertenço a qualquer outra Ordem semelhante ou diferente. Não sou, porém, anti-maçon, pois o que sei do assunto me leva a ter uma ideia absolutamente favorável da Ordem Maçónica. A estas duas circunstâncias, que em certo modo me habilitam, a poder ser imparcial na matéria, acresce a de que, por virtude de certos estudos meus, cuja natureza confina com a parte oculta da Maçonaria – parte que nada tem de político ou social –, fui necessariamente levado a estudar também esse assunto – assunto muito belo, mas muito difícil, sobretudo para quem o estuda de fora. Tendo eu, porém, certa preparação, cuja natureza me não proponho indicar, pude ir, embora lentamente, compreendendo o que lia e sabendo meditar o que compreendia. Posso hoje dizer, sem que use de excesso de vaidade, que pouca gente haverá fora da Maçonaria, aqui ou em qualquer outra parte, que tanto tenha conseguido entranhar-se na alma daquela vida, e portanto, e derivadamente, nos seus aspectos por assim dizer externos.

(...).”

[Quadros, Textos de Intervenção..., 1986, p.148].

 

Na Nota Biográfica, escrita pelo próprio Fernando Pessoa também de 1935, podemos ler:

“(...).   

Posição religiosa: Cristão Gnóstico, e portanto inteiramente oposto a todas as Igrejas organizadas, e sobretudo à Igreja de Roma. Fiel, por motivos que mais adiante estão implícitos, à Tradição Secreta do Cristianismo, que tem íntimas relações com a Tradição Secreta em Israel (a Santa Kabbalah) e com a essência oculta da Maçonaria.

Posição iniciática: Iniciado, por comunicação directa de Mestre a Discípulo, nos três graus menores da (aparentemente extinta) Ordem Templária de Portugal.

(...).”

[Quadros, Escritos Íntimos..., 1986, p.253].

 

Num outro importante e explícito fragmento deixado por Pessoa, lemos:

 

“(1) Uma Ordem iniciática é verdadeiramente uma Ordem só quando está em actividade — isto é, quando tem abertos os seus templos, ou o seu templo único, e realiza sessões e iniciações em ritual vivido [?]. Quando em dormência, ou vida latente e simplesmente transmissa, não é propriamente uma Ordem, mas tão-somente um sistema de iniciação, avanço e completamento. São os três termos que competem à conferição, por exemplo, dos três Graus Menores da Ordem Templária de Portugal.

(2) Por isso eu disse, legitimamente, que não pertencia a Ordem nenhuma. Não podia legitimamente dizer que não tinha nenhuma iniciação. Antes, para quem pudesse entender, insinuei que a tinha, quando falei de «uma preparação especial, cuja natureza me não proponho indicar.» Essa frase escapou, e ainda mais o seu sentido possível, aos iledores anti-maçónicos. Só posso pois dizer que pertenço à Ordem Templária de Portugal. Posso dizer, e digo, que sou templário português. Digo-o devidamente autorizado. E, dito, fica dito.

Ora é à luz dos conhecimentos que recebi pelos três Graus Menores da Ordem Templária que pude ler com entendimento livros e rituais maçónicos. Ausentes esses conhecimentos, estaria lendo às escuras.

A iniciação maçónica — que é uma iniciação do primeiro nível — é dada através dos rituais e dos símbolos; os discursos que acompanham o ritual nada conferem. Uns são propositadamente simples e triviais, para que o candidato, se é apto e digno, se vire d’eles para a parte vital do grau; outros são propositadamente confusos e contraditórios, para que obriguem o candidato, se nele há alma iniciática, a meditar, escolher, e, por fim, achar; (...).

 Segue de aqui que a leitura, por profanos, de rituais maçónicos, impressos ou manuscritos, os deixa no fim da leitura no mesmo estado de trevas em que estavam no princípio. Falta-lhes a luz com que dissipem essas sombras propositadas; o fio com que, espalhado no solo quando entram no labirinto, de novo os reconduza à entrada.

 O entendimento dos símbolos e dos rituais maçónicos não pode ser obtido senão por iniciação directa, ou, excepcionalmente, por qualquer preparação espiritualmente equivalente que permita ao simples leitor de rituais visionar emotivamente as cerimónias, sentir no coração aquela vida própria com que os símbolos são almas. Fora d’isso há só uma noite sem madrugada.

s. d.

[in Teresa Rita Lopes, Pessoa Inédito, 1993, p.196].

 

Ainda no artigo no «Diário de Notícias», afirma o Poeta:

“(...). Deixe o Sr. José Cabral a Maçonaria aos mações e aos que, embora o não sejam, viram, ainda que noutro Templo, a mesma Luz. (...).”

 

[in Quadros, Textos de Intervenção..., 1986, p.155].

 

Constatamos ainda que a epígrafe do poema «Eros e Psique», datado de 1934, foi retirada do “Ritual do Grau de Mestre do Átrio na Ordem Templária de Portugal”:

«... E assim vedes meu Irmão, que as verdades que vos foram dadas no Grau de Neófito, e aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto Menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade.».

            Finalmente, auxilio-me do trabalho de George Rudolf Lind, que no seu livro Estudos sobre Fernando Pessoa [1981, p. 285], cita um extraordinário e pouco conhecido trecho do ritual de um dos primeiros graus da Ordem Templária, e que se encontra no espólio pessoano da Biblioteca Nacional de Lisboa:

 

“Recebestes a luz da Ordem em que éreis cego. Ides receber agora a sua Veste de que éreis nu. Agora que recebestes a Luz e a Veste da Ordem, estareis lembrado de que vos falta a Guarida da Ordem. A luz não vos deu mais que luz; mas a luz passa e vem a noite e vós não a tendes. A Veste não vos deu mais que a Veste; por baixo dela sois nu como éreis. A Guarida porém vos dará o onde tenhais luz ainda que falte luz de fora, o onde tenhais veste, pois tendes abrigo, ainda que na guarida estejais nu... Cego, nu e pobre entrastes na vida. Cego, nu e pobre entrareis na morte. Não há, porém, vida nem morte: Não há, Neófito, senão vida. O que vos sucedeu ao nascer, vos sucederá ao morrer: entrareis na vida. Isto é a verdade: o entendimento é convosco, assim como o regrar-vos por ela como deveis.”

 

*

*   *

 

 

E é o próprio Fernando Pessoa, o Poeta, que nos traduz o anterior texto ritualístico através da sua extraordinária linguagem poética:

 

Iniciação

 

Não dormes sob os ciprestes,

Pois não há sono no mundo,

....................................................

O corpo é a sombra das vestes

Que encobrem teu ser profundo.

Vem a noite, que é a morte,

E a sombra acabou sem ser.

Vais na noite só recorte,

Igual a ti sem querer.

Mas na Estalagem do Assombro

Tiram-te os anjos a capa.

Segues sem capa no ombro,

Com o pouco que te tapa.

Então Arcanjos da Estrada

Despem-te e deixam-te nu.

Não tens vestes, não tens nada:

Tens só teu corpo, que és tu.

Por fim, na funda caverna,

Os Deuses despem-te mais.

Teu corpo cessa, alma externa,

Mas vês que são teus iguais.

....................................................

A sombra das tuas vestes

Ficou entre nós na Sorte.

Não ‘stás morto, entre ciprestes.

.....................................................

Neófito, não há morte.

 

*

*   *

 

ANTÓNIO TELMO, FERNANDO PESSOA E A MAÇONARIA

 

Sobre Fernando Pessoa e a Maçonaria, deixou-nos António Telmo um importante depoimento na sua História Secreta de Portugal:

“(…).

Fernando Pessoa foi o nosso primeiro poeta maçónico e toda a sua obra poética pode e deve ser interpretada como a expressão da viagem iniciática da alma num adepto que não se limita a cumprir os ritos e a estudar o dogma, mas desse cumprimento e desse estudo tira todas as consequências nos vários planos de vivência do ser. Assim, os heterónimos podem ser vistos como uma aplicação do «dom das línguas» ou um exercício destinado a produzir esse dom; a maioria dos poemas constituem o desenvolvimento de ensinamentos maçónicos e, por vezes, o próprio Fernando Pessoa não deixa de o assinalar por meio de epígrafes (caso do Eros e Psichee de No Túmulo de Christian Rosencreutz); outros ainda, como por exemplo A Múmia, são a transposição poética da experiência de determinado ritual.

(…).

A obra de Fernando Pessoa vale não só por si, mas também por marcar um comportamento maçónico excepcional no seu tempo. Através dele, a Maçonaria regressa à sua origem ou, pelo menos, aparece como a legítima continuadora da Ordem do templo. (…).

Pela Mensagem, Fernando Pessoa rectifica, à luz de princípios maçónicos recuperados, a história de Portugal. (…).”

[in Telmo, 1977, pp.116-118].

 

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*   *

 

A importância da iniciação, do mistério, do segredo e do silêncio em Maçonaria, segundo António Telmo

 

Refere-nos ainda António Telmo, na mesma obra, que estamos “num mundo onde a presença do mistério impõe que nada se possa realmente saber fora dos termos desse mistério. Assim, os mais lúcidos e imprudentes não desistiam de procurar a palavra perdida da Sabedoria.”

Que, acrescento, será coincidente com a palavra perdida dos maçons, cujo objectivo último de cada um será o seu reencontro com essa Palavra Perdida....a Palavra Divina, segundo Fernando Pessoa. Atentemos à profunda máxima Socrática: “Homem, conhece-te a ti próprio! E, conhecendo-te, conhecerás o Universo e os próprios Deuses!”.

Num outro texto de António Telmo, poderemos ler:

 

“(...) É espantoso como foi possível conservar, ao longo dos séculos, inalteráveis, no que lhes é essencial, ritos e símbolos maçónicos, quando enormes forças, cá dentro como lá fora, tudo têm feito para os adulterar e corromper! (...).”

[in Telmo, A Terra Prometida, 2014, pág.108]

 

(…). Ensinou Aristóteles, na sua Arte Poética, que, nos mistérios de Elêusis, o neófito nada aprendia, mas recebia uma impressão. O ritmo interior que comanda o rito (não me refiro ao cerimonial, que pode ou não acompanhá-lo) envolve o neófito, durante a iniciação, no profundo e inefável mistério que por ele se exprime, envolve-o como uma onda, donde sai atordoado, mas limpo, prende-o numa [a Egrégora] cadeia magnética de que não se libertará jamais, a não ser por cima, se assim o quiser o Grande Arquitecto do Universo. É por isso que se diz que um Mação nunca deixará de o ser, mesmo que abandone a Ordem. (…).”

[in Telmo, 2014, A Terra Prometida, p.110]

 

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António Telmo, como era seu costume com todas as filosofias que abordava, enquanto Maçon foi autocrítico em relação à práxis maçónica. Interessante este Diálogo entre Frei Anselmo e Noviço, que ele nos deixou e que foi recentemente publicado na “Aventura Maçónica”:

 

“(...).

Lês, escreves e isso está bem. No resto do tempo que te fica, procedes como toda a gente, como um autómato. Deixas-te emporcalhar pelos jornais e pela televisão. É um “deixa andar” continuado. De nada serviu termos-te conduzido para uma agremiação de neopitagóricos, onde simbolicamente desceste ao reino das trevas e daí te ergueste para a luz.

Falas com as pessoas como se elas não tivessem rosto; se atentasses, como é devido, na forma do rosto daquele ou daquela com quem conversas, se chegasses a ver nele a expressão de um mistério e de uma luz que, por dentro, ilumina esse mistério, não darias tanta importância ao que não és, àquilo em que és igual a todos os outros.

(...).”

[in Telmo, 2011, A Aventura Maçónica, p. 27]

 

 

Tanto António Telmo como Fernando Pessoa tinham semelhante opinião acerca da Iniciação: uma vez maçon, sempre maçon; uma vez Iniciado, para sempre Iniciado.

Tal como nos referia António Telmo:

“(...).

(...) Cada Maçon é um Templo, por isso, onde quer que esteja, está o Templo. Não devemos, portanto, reduzir ao trabalho de Loja a nossa actividade, dividindo-nos em dois comportamentos, um exterior e outro interior, como se, uma vez lá fora, já não existisse “o que mais importa”. Tal atitude, comum a muitos Maçons pouco esclarecidos, leva a acentuar a dualidade que julgávamos ter sido resolvida pela Iniciação. Eis porque me parece oportuno o seguinte conselho: na Loja, devemos subordinar o nosso interior ao que se passa exteriormente; fora da Loja, pelo contrário, subordinar o que se passa exteriormente ao nosso interior. Há um ensinamento oriental que diz o seguinte:

As aves, mesmo quando andam longe dos ovos, continuam a chocá-los.

(…).” 

[in Telmo, 2011, A Aventura Maçónica, p.83]

 

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A VIDA OCULTA NA MAÇONARIA

 

 “Não procures nem creias: tudo é oculto.” – Fernando Pessoa

 

 

Também dentro da Maçonaria o oculto impera. Por razões óbvias no que diz respeito à protecção de bens e pessoas devido a regimes totalitários. Por razões ritualísticas tendo em conta a característica iniciática da Ordem.

O Segredo Maçónico está oculto. Cabe a cada um dos Irmãos ou Irmãs desocultá-lo e transmiti-lo quando o momento chegar, compreendê-lo e manifestá-lo através da sua própria linguagem individual e da sua vivência na Loja e no Mundo.

Através dos séculos os Mestres Maçons de outrora conseguiram fazer transmitir aos Mestres Maçons de hoje os Sentidos inefáveis da Arte da Construção, imbuída de segredo maçónico! Este não foi violado, pois continua a fazer sentido através das Iniciações actuais, através de todo um trabalho ritualístico individual e colectivo. Segredo esse que consegue ser um cimento aglutinador de muitos e muitos maçons, unidos entre si e auxiliando na construção de um mundo melhor. Contudo é um segredo simples aquele que é recordado pelo Venerável Mestre em todas as sessões regulares de Loja, quando, reunida a assembleia de maçons na Cadeia de União ritual, transmite:

 

“Que o amor fraterno una todos os elos desta cadeia simbólica e seja o vínculo imperecível de todos os F\M\ no espaço e no tempo, ligando-nos indissoluvelmente pela tradição iniciática às gerações de irmãos e irmãs que nos precederam e que se prolongarão no futuro.

Estas mãos unidas simbolizam a aliança indestrutível de todos os F\M\ da Terra. (...).”

 

O assim denominado Segredo Maçónico encontra-se revelado: a recepção e a partilha do Amor Fraterno… resta aos Maçons vivê-lo e transmiti-lo!

Não posso deixar de referir a extraordinária mensagem de São João Evangelista, essência última da mensagem mais profunda da Religião Cristã: «Este é o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros, como eu vos amei. Ninguém tem maior amor do que o daquele que dá a vida pelos amigos.”

[in “Evangelho Segundo São João”, XV-12]

 

Igualmente digno de interesse o trecho que podemos ler num Ritual de Iniciação maçónico: “Não se é iniciado pelos outros; iniciamo-nos nós mesmos”.

Diga-se de passagem que, em todos os graus maçónicos é sobretudo o conhecimento de Si-Mesmo que é ensinado ao maçon em demanda. E, no mesmo Ritual, mais à frente, vamos encontrar um outro trecho que diz: “O iniciado está só ou, mais exactamente, é único, pois nenhum homem evolui em lugar de outro.”

Para procurarmos e eventualmente encontrarmos o Caminho da Verdadeira Luz, que está oculta, será necessário sabermos o que procurar – procurar “o que importa” – e sabermos o que procurar irá inevitavelmente levar-nos a uma abordagem do real na zona do Auto-Conhecimento, onde a compreensão dos problemas da vida e da morte é indispensável para que alguém se possa situar plenamente, e de facto, na Senda de uma autêntica Busca Espiritual e Maçónica.

Vida e Morte… conceitos que desde a sua Iniciação no Grau de Aprendiz não são estranhos aos Maçons... mas que se vão complexificando durante a peregrinação no Caminho maçónico.

No entanto, há que sublinhar devidamente, este Conhecimento, portador da Verdade e que confere a Libertação e a Paz ao ser humano, “comprometido” com a Sageza das Idades, é incomensurável, omni-abarcante, não limitado, mas só poderá ser percebido pelos que o querem e ousam perceber.

A Demanda começa em cada um de nós. Deus, Aquilo-que-se-quiser-chamar, o fim último da Iniciação, a Luz, o Grande Arquitecto Do Universo, tão procurado, tão aspirado, reside, de facto, em nós próprios. Como é afirmado no Chandogya Upanishad (III-14): “Este Atman que reside no coração, é menor que um grão de arroz, menor que um grão de cevada, menor que um grão de alpista; este Atman, que reside no coração, é ao mesmo tempo, maior que a Terra, maior que a atmosfera, maior que o céu, maior que todos os mundos reunidos.”

Também Paracelso o afirmou. “Trazemos em nós o centro da natureza.”

 

Assim, cada um de nós é realmente um centro que efectua a ligação do Céu à Terra através da sua própria escada mística, mais ou menos conscientemente, com mais ou menos intensidade, mas em permanente busca e em contínua evolução.

Neste centro interior e íntimo, poderá, apesar de tudo dominar a cerceadora dualidade da condição humana manifestando-se pelo sofrimento ou pela felicidade, pela paz ou pela guerra, pelo amor ou pelo ódio!... Mas também nesse centro poderemos encontrar e vivenciar a Unidade da Vida e então achamo-nos subitamente num estado onde não é possível encontrar quaisquer referências para se compararem os complementares, para se olharem as contradições, para se apontarem os conceitos antagónicos. Será, no fundo, através deste estado, que acontece uma real percepção da Totalidade, uma autêntica consciencialização da Unidade, da Vida e da Morte, verdadeiros leit-motiv de todo o labor e busca maçónicos. Lembremo-nos do poema de Fernando Pessoa “Oscila o incensório antigo…”, que nos aponta o caminho a seguir…

 A dramatização ritualística na Maçonaria é constituída por pensamento e sonho, no sentido de construção de um Arquétipo Sagrado, de uma Egrégora. No fundo trata-se de construir em nós mesmos um templo e um tempo originais, no sentido mítico e espiritual. Através do jogo da dramatização, connosco próprios e com o outro, abrimos canais psicológicos que permitirão o fluir de energias vivificadoras e transformadoras cujo resultado será a assunção do homem novo, neste caso do maçon, do construtor, do seguidor do Mestre Hiram, o vencedor da morte!

A palavra ritual, no fundo não tem forma cristalizada, antes remete para uma linguagem única e universal que cada maçon, no acto de escutar, no acto autêntico e criador da atenção ritualística, transforma em vivência e em Amor.

 

rui.arimateia@gmail.com

Sesimbra, 24 de Outubro de 2015

 

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DA SABEDORIA UNIVERSAL OU DO ENSINAR E DO APRENDER:

 

 

As Palavras Muito Antigas

 

 

As palavras muito antigas

São como as sementes

Tu as semeias antes das chuvas

A terra é ressequida pelo sol

A chuva vem molhá-la

A água da terra penetra nas sementes

As sementes transformam-se em plantas

Então, desenvolvem as espigas de milho

Assim tu, a quem acabo de dizer as Palavras Muito Antigas,

Tu és a terra

Eu planto em ti a semente da palavra,

Mas é preciso que a água da tua vida penetre na semente

Para que a germinação da palavra tenha lugar.

 

 

Ensinamento de um griot Mandinka

 

 

 

 

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BIBLIOGRAFIA SUMÁRIA SOBRE FERNANDO PESSOA E A MAÇONARIA

 

1.       ARNAUT, António – FERNANDO PESSOA E A MAÇONARIA, Ed. do Grémio Lusitano, Lisboa, 2005.

 

2.       CENTENO, Yvette – FERNANDO PESSOA E A FILOSOFIA HERMÉTICA, Col. ‘Temas e Documentos’, n.º 7, Editorial Presença, Lisboa, 1985.

 

3.       CENTENO, Yvette – FERNANDO PESSOA: O AMOR, A MORTE, A INICIAÇÃO, Col. ‘Ensaios’, n.º 10, A Regra do Jogo edições, Lisboa, 1985.

 

4.       CENTENO, Yvette – FERNANDO PESSOA:OS TREZENTOS E OUTROS ENSAIOS, Col. ‘Temas e Documentos’, n.º 10, Editorial Presença, Lisboa, 1988.

 

5.       GANDRA, Manuel J. – FERNANDO PESSOA – HERMETISMO E INICIAÇÃO, Col. ‘Ventos da Tradição’, Zéfiro-Edições e Actividades Culturais, L.da, Sintra, 2015.

 

6.       GEBRA, Fernando de Moraes – O RITUAL ESOTÉRICO NO POEMA “INICIAÇÃO”, DE FERNANDO PESSOA, in “Ipotesi”, Juiz de Fora, Vol. XVI, n.º2, Jul./Dez. 2012. [OBS.: págs. 47-61].

 

7.       LIND, Georg Rudolf – ELEMENTOS OCULTISTAS NA POESIA DE FERNANDO PESSOA, in “Colóquio” – Revista de Artes e Letras, n.º 37, Lisboa, Fevereiro, 1966. [OBS.: págs. 60-63].

 

8.       LIND, Georg Rudolf – ESTUDOS SOBRE FERNANDO PESSOA, Col. ‘Estudos Portugueses’, Ed. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1981.

 

9.       LOPES, Teresa Rita (Orientação, Coordenação e Prefácio) – PESSOA INÉDITO – FERNANDO PESSOA, Ed. Livros Horizonte, Extra colecção, Lisboa, 1993. [OBS.: 2.ª Edição de 2007].

 

10.   MATOS, Jorge de – O PENSAMENTO MAÇÓNICO DE FERNANDO PESSOA, Col. ‘Biblioteca Maçónica’, n.º1, Hugin Editores, L.da, Lisboa, 1997.

 

11.   PESSOA, Fernando – A GRANDE ALMA PORTUGUESA, Col. ‘Pessoana’, Vol. II, Edições Manuel Lencastre, Lisboa, 1988. [OBS.: A carta ao Conde de keyserling e outros dois textos comentados por Pedro Teixeira da Mota].

 

12.   PESSOA, Fernando – POEMAS ESOTÉRICOS, Col. ‘Pessoa Breve’, Assírio & Alvim/Porto Editora, Porto, 2014.

 

13.   PETRUSFERNANDO PESSOA – HYRAM (Filosofia Religiosa e Ciências Ocultas), Col. ‘Tendências’, Ed. “CEP”, s/l, s/d. [OBS.: Notas e Postfácio por Petrus].

 

14.   QUADROS, António – A PROCURA DA VERDADE OCULTA – TEXTOS FILOSÓFICOS E ESOTÉRICOS, ‘Obra em Prosa de Fernando Pessoa’, Vol. VI, Col. ‘Livros de Bolso Europa América’, n.º 471, Mem Martins, 1986 [OBS.: Prefácio, organização e notas de António Quadros; ver a III Parte-‘O Estádio Gnóstico’, pp.139-232].

 

15.   QUADROS, António – ESCRITOS ÍNTIMOS, CARTAS E PÁGINAS AUTOBIOGRÁFICAS, ‘Obra em Prosa de Fernando Pessoa’, Vol. I, Col. ‘Livros de Bolso Europa América’, n.º 466, Mem Martins, 1986 [OBS.: Prefácio, organização e notas de António Quadros].

 

16.   QUADROS, António – TEXTOS DE INTERVENÇÃO SOCIAL E CULTURAL – A FICÇÃO DOS HETERÓNIMOS, ‘Obra em Prosa de Fernando Pessoa’, Vol. II, Col. ‘Livros de Bolso Europa América’, n.º 467, Mem Martins, 1986 [OBS.: Prefácio, organização e notas de António Quadros].

 

17.   SIMÕES, João Gaspar – VIDA E OBRA DE FERNANDO PESSOA (História de uma Geração), Col. ‘Figuras de Todos os Tempos’, Ed. Livraria Bertrand, 4.ª Edição, Lisboa, 1980.

 

18.   TELMO, António – A AVENTURA MAÇÓNICA – VIAGENS À VOLTA DE UM TAPETE, ‘Hyram Colecção Maçónica’, Zéfiro-Edições e Actividades Culturais, L.da, Sintra, 2011.

 

19.   TELMO, António – A TERRA PROMETIDA – MAÇONARIA, KABBALAH, MARTINISMO & QUINTO IMPÉRIO, ‘Obras Completas de António Telmo’, Volume I, Zéfiro-Edições e Actividades Culturais, L.da, Sintra, 2014.

 

20.   TELMO, António – CONGEMINAÇÕES DE UM NEOPITAGÓRICO, Ed. Al-Barzakh, Vale de Lázaro, 2006.

 

21.   TELMO, António – HISTÓRIA SECRETA DE PORTUGAL, Col. ‘Janus’ n.º 6, Editorial Vega, Lisboa, 1977.

 

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Tardes Télmicas no Centenário de Orfeu

24 de Outubro 2015 | 15:00 | Biblioteca Municipal de Sesimbra

Comemorando o centenário da revista modernista «Orpheu», as Tardes Télmicas evocam Fernando Pessoa e Almada Negreiros entre Tradição e Vanguarda, num diálogo que não poderia deixar de envolver António Telmo e o seu «O Bateleur», e o pensamento maçónico do poeta de «Mensagem». Com MIGUEL REAL, ELÍSIO GALA, ANTÓNIO CARLOS CARVALHO e RUI ARIMATEIA, numa parceria do Projecto António Telmo. Vida e Obra e da Câmara Municipal de Sesimbra.

VERDES ANOS. 16

26-10-2015 08:43

No centenário do nascimento de Sampaio Bruno[1]

 

Comemora-se este ano o centenário do nascimento dum filósofo português. Tal acontecimento reveste-se de extraordinária significação, pois trata-se de Sampaio Bruno, talvez o nosso pensador mais amplo e profundo. Já alguns jornais contribuíram com artigos, sendo justo destacar os de José Marinho, Santana Dionísio, Luís Zuzarte e Álvaro Ribeiro, no sentido de que só estes escritores consideram Sampaio Bruno no cerne ou em relação ao cerne da sua actividade mental – a filosofia. A Álvaro Ribeiro se deve o acto de recordação que lhe prestamos. Sem os seus estudos de hermenêutica, este ano não seria assinalado pela discussão do pensador.

Esta discussão deriva duma dupla dificuldade acusada nos livros de Sampaio Bruno: dificuldade de estilo e dificuldade de pensamento. Esse estilo e esse pensamento são, porém, difíceis? É ao que vamos tentar responder.

O estilo de Sampaio Bruno é fácil, na medida em que se oferece numa linguagem comum, embora clássica: por vezes tão lhana e simples, que parece que o filósofo conversa connosco à mesa do café. Não se complica nunca da terminologia cientificista, com que é hábito espantar os ignorantes. É o estilo dialogado, intimista, erradio e errante de quem encara os problemas filosóficos sem intermediação culturalista, o que não quer dizer que, em busca de soluções, não interrogue as várias respostas que a cultura foi fixando ao longo do tempo. Conta-nos anedotas; narra, com minúcia, episódios autobiográficos; intercala, na discussão dos temas mais difíceis, expressões vulgares. No entanto, muitos consideram Sampaio Bruno quase ilegível.

É, na verdade, uma forma de escrever invulgar e singular; trabalhada sobre os nossos clássicos e sobre a língua do nosso povo. Como, entre nós, se escrevem línguas estrangeiras com aquele mínimo necessário de fonemas portugueses, o que é legitimamente português resulta difícil ou, então, exótico. Sampaio Bruno não tem o talento de Camilo, Fialho ou Aquilino, mas também a prosa deste último nos aborrece se inconscientemente o ritmamos por um esquema mental adquirido na leitura de escritores estrangeiros.

Quanto ao pensamento de Sampaio Bruno, a todos é acessível. Julgamos ser lícito utilizar análoga argumentação à de que nos servimos para com o estilo. Emerge esse pensamento das profundidades da sabedoria popular, mas o filósofo vê-se obrigado a fazê-lo defrontar as filosofias estrangeiras que, no seu tempo, se tornaram seguidas entre nós. Se a nossa educação filosófica partisse dum fundamento popular e nacional, com vinte e oito anos qualquer de nós se encontraria apto a compreender o pensamento de Sampaio Bruno em toda a sua profundidade, pois aparecer-nos-ia como um prolongamento natural da nossa mais funda sabedoria. Infelizmente somos educados para reflectir as filosofias estrangeiras e, esquecidos de que a estas é aplicável análoga relação para com as origens, vemo-nos limitados a conhecer apenas o que nelas é susceptível de versão internacionalista. Na verdade, como se torna fácil o aristotelismo, o hegelismo, o bergsonismo, uma vez desligados da essencial relação com as origens, e como é difícil Sampaio Bruno, se o queremos moldar a uma visão internacionalista!       

É de admitir, pois, que todo o problema de aceitação e reconhecimento compreensão e aprofundamento dos nossos filósofos é um problema de educação. Na Ideia de Deus estuda Sampaio Bruno o significado do erro e, com não admite fim para a aventura espiritual, isto é, como concebe Deus como infinito, é conduzido a combater o espiritualismo, que reduz toda a filosofia ao método, «com ponto de chegada já conhecido no ponto de partida». O mestre não aprende também; sabe já tudo o que o aluno irá saber. Este não pode seguir por outros caminhos; não pode aventurar-se errando; é obrigado a repetir a ciência feita do mestre; a submeter-se sucessivamente a provas numa infindável humilhação da consciência. Traz para a vida pública o medo obsessivo de errar e, se escolhe a literatura, será um inimigo da filosofia, isto é, da liberdade de pensar.

No centenário do nascimento de Sampaio Bruno, «um alento de esperança nos inunde». Ele é um filósofo vivo, mais do futuro que do presente e mais do presente que do passado. Seja esse o sentido do acto de recordação que hoje prestamos ao autor do Encoberto!  

 

António Telmo



[1] Diário de Notícias, ano 93, n.º 32678, Lisboa, 14 de Maio de 1957, pp. 7 e 8.

 

INÉDITOS. 58

09-10-2015 09:24

ÁLVARO RIBEIRO, SEMPRE!

Evocamos Álvaro Ribeiro no dia em que se completam 34 anos sobre a sua partida deste mundo com o escrito que o seu discípulo António Telmo, no dizer do próprio mestre "o seu melhor amigo", destinou ao fecho do livro Álvaro Ribeiro e a Gnose Judaica, parte integrante do IV Volume das Obras Completas de António Telmo, que além do prefácio de Ruy Ventura, centrado em Filosofia e Kabbalah, terá ainda um posfácio, assinado por António Carlos Carvalho, que nele se ocupa dos valiosos inéditos télmicos sobre o pensamento cripto-judaico de Álvaro Ribeiro. 

Fecho

 

Alguns dias após termos acompanhado os restos mortais de Álvaro Ribeiro não, como se diz, “à última morada”, sonhei um sonho que, se tivermos em conta a classificação antiga foi realmente um sonho divino.

Distinguem os antigos filósofos entre aqueles sonhos que recordamos, após o despertar, por sucessivas evocações, quase sempre algum tempo passado sobre o despertar, movida a memória por um estímulo que se associa com uma das imagens esquecidas e a acorda, seguindo-se depois as restantes em cadeia intermitente; e aqueles sonhos que, ao acordarmos, são como uma fotografia e como tal perduram nitidamente presentes, tão presentes que parece impróprio falar aqui de lembrança.

Nessa manhã, o sonho perdurou assim nítido durante vários minutos, até que um movimento da alma me trouxe de súbito a consciência de que estava perante um sonho.

Vi Álvaro Ribeiro sentado ao canto de uma esplanada cheia de arcadas. Aproximei-me dele, contentíssimo de o encontrar. Olhou para mim. A sua imagem era exactamente a que conheci em sua vida, mas mais nítida. Pus-me a falar das minhas cogitações íntimas, não me lembro de quais, mas sei que era qualquer coisa de metafísico, que eu reputava filosoficamente muito importante. O seu silêncio, o modo de olhar, não sei quê de bem familiar, criaram entre mim e ele uma distância, uma espécie de obstáculo invisível, como se houvesse na minha alma uma culpa que me penetrava de mal-estar.

Desviou o olhar para o quadrado da mesa, tirou do bolso a sua caneta de tinta permanente e pôs-se a traçar os movimentos de quem escreve. Sorria com bondade e alguma ironia.

Afastei-me sem me despedir, saindo para o lado de trás da esplanada onde havia uma espécie de corredor claustral. Estava ali o F. S.[1]

– O Álvaro Ribeiro enganou-nos a todos. Não era ele que ia no caixão que acompanhámos à cova. Ele não morreu. Continua entre nós bem vivo.

O meu amigo manifestando espanto e incredulidade atraí-o para um ponto de onde pudéssemos avistar o canto da esplanada. Lá estava, na mesma posição. Em frente dele, de pé, no lugar precisamente onde eu lhe falara, havia um homem de trinta e tal anos, decente num fato completo algo envelhecido. Tinha o cabelo liso penteado para trás e um rosto muito sério e atento. Era um homem simples, dir-se-ia mesmo um homem do povo, um humilde. Álvaro Ribeiro conversava com ele cheio de amizade e simpatia, mas de repente, porque sabia que o estávamos espiando, olhou para o nosso lado. Fugimos como duas crianças que temem o castigo.

Momentos depois, encontrei o E. S.[2] a quem revelei, ainda em sobressalto, que Álvaro Ribeiro não ia no seu funeral e que estava ali numa esplanada. Encolheu os ombros:   

– Só agora você sabe isso? Está todos os dias no Café Colonial.

Acaba aqui o sonho, que tratei de contar ao F. S. logo que pude encontrá-lo.

– É extraordinário! Comentou ele. O G.[3] também sonhou que Álvaro Ribeiro continua vivo e não ia no seu funeral.

 
António Telmo


[1] N. do O. – António Telmo refere-se ao seu amigo e condiscípulo Francisco Sottomayor.

[2] N. do O. – António Telmo refere-se ao seu condiscípulo Luís do Espírito Santo.

[3] N. do O. – António Telmo refere-se a Germano Teixeira, marido da afilhada de Álvaro Ribeiro, Conchita.

 

VOZ PASSIVA. 65

09-10-2015 09:10

ÁLVARO RIBEIRO, SEMPRE!

No dia em que se completam 34 anos sobre a exaltação de Álvaro Ribeiro, oferecemos aos nossos leitores, em pré-publicação, o primeiro capítulo de O Teorema de António Telmo, ensaio prefacial que Ruy Ventura escreveu para Filosofia e Kabbalah seguido de Álvaro Ribeiro e a Gnose Judaica e outros estudos, IV Volume das Obras Completas de António Telmo, a ser lançado, ainda este ano, com a chancela da Zéfiro e o apoio institucioonal e científico do nosso Projecto. É, estaremos em crer, um excerto elucidativo da profunda cumplicidade que unia o discípulo ao seu mestre.   

O teorema de António Telmo (excerto)

Ruy Ventura 

 

 

Os sábios são aquelas divinas inspirações que põem ordem nos pensamentos, ponderam as palavras, abrilhantam as obras, compõem a vida e tudo dispõem rectamente. Quem caminha juntamente com estes sábios torna-se sábio. […].”

 

Santo António de Lisboa

Sermão da festa do protomártir S. Estêvão

 

1.

 

Conta António Telmo em Filosofia e Kabbalah que Álvaro Ribeiro ensinava os seus discípulos “a converter os poemas e os filosofemas, sempre que possível, em teoremas”, explicando-lhes que tal deveria traduzir-se “numa figura geométrica visível, porque o desenho, se viesse a ser traçado segundo as regras da arquitectura, nos revelaria o desígnio do poeta ou do filósofo” [FK[1], 174].

Isto dizendo, indicava o filósofo d’ A Razão Animada pelo menos duas tríades: a primeira estabelecendo uma hierarquia de géneros (poema, filosofema e teorema) e a segunda aclarando a gradação do percurso hermenêutico (desenho, desígnio e arquitectura). Se estivermos atentos, repararemos que a segunda é o desenvolvimento do vértice superior da primeira, ou seja, do teorema – “figura geométrica visível” –, desenho instrumental que leva à revelação do “desígnio” do autor do texto poético ou filosófico, por obediência às “regras da arquitectura”. Tratar-se-á não só do projecto, propósito ou intenção do ser escrevente, mas também da vontade de um autor superno, legislador dessas “regras”, ou pelo menos do seu nome ou designação. A “figura geométrica visível” deve assim ser entendida assim pela expressão inversa, sem a qual esta não existiria, pelo seu reverso, oculto, incluso ou latente no texto analisado. Se há manifestação de uma figura, do aspecto exterior de um corpo ou de uma sua representação, é porque além do representante está o representado. Se é necessária a geometria, terrestre, é porque esconde a medida do empíreo ou do mundo inferior. Se algo se torna, assim, visível, é porque estava invisível. O verbo que a tudo preside é revelar, vocábulo dúplice que mostra e esconde no seu prefixo. E as “regras da arquitectura” assim se evidenciam porque obedecem ao arkhé, ao princípio, ao segredo e à potência, emanados daquele a que a tradição maçónica – de que Telmo e Ribeiro se reivindicavam – chama Supremo Arquitecto do Universo, ou seja, Deus, o Théos incluso no teorema e também na theoria de que aquele é expressão.

A acção hermenêutica sobre um texto poético ou filosófico deve assim visar a sua revelação, sendo ele a expressão de algo de divino, de que o filósofo ou o poeta é agente, inspirado por intermédio da imaginação. Em rigor, o que Álvaro Ribeiro propunha e António Telmo propaga era algo de muito sério e perturbante, nomeadamente para aqueles que se habituaram a surfar nas águas do relativismo estético e ético: a poesia e a filosofia só detêm veracidade se permitirem a theoria, que é muito mais do que uma teologia.

Se, para Platão, a theoria era a visão da essência, o platonismo tardio entendeu-a como ascensão da alma que deseja tornar-se semelhante a Deus (homoiosis), requerendo, na opinião de Boécio, a sua participação no Espírito Divino mediante um pensamento puro (participatio) e tendo como consequência, segundo Cassiano, uma luta intelectual em recolhimento, em quietude e contemplação (contemplatio). Trata-se de um caminho de esforço mental e de purificação da parte animada do ser, que se encontra presa no corpo (cf. Lüdemann in DM, 829). Tal actividade – dirigida ao nous – consiste numa perpétua descoberta, conduzindo da potência ao acto, segundo Aristóteles (cf. Santiago, 2013: 152).

António Telmo, ao longo de 58 anos de produção escrita (1952 – 2010), pôs em letra de forma as três modalidades (poema, filosofema e teorema), sendo sobretudo assinalável a sua actividade hermenêutica, praticando sempre aos ensinamentos daquele a quem devia “ter podido escrever quanto escrev[eu]” [FK, 7], mesmo quando tal não é manifesto. Tinha consciência de que “a filosofia é uma arte, a Arte de Bem Cavalgar Toda a Sela” [FK, 8] e por isso se expressou nos mais diversos géneros literários. No teorema procurou a theoria, submetendo-se sempre às “regras da arquitectura”. Não sendo “paleógrafo” nem “biógrafo”, podemos incluir assim o autor de Congeminações de um Neopitagórico na conta dos “arqueólogos”, definidos assim pelo seu mestre:

[…] o arqueólogo pretende comparar a cultura do seu tempo, não com a cultura do passado, mas com os princípios que a transcendem, porque esse é o seu processo de realizar obra de filosofia. Na meditação dos princípios aristotélicos o arqueólogo arquitecta, isto é, desenha de dentro para fora, o movimento gerador da alta cultura. […]” (Ribeiro, 1953: 44)

Se António Telmo aplicou às obras que analisou os princípios metodológicos expressos por Álvaro Ribeiro, creio que construiu a sua com as mesmas regras de ocultação ou velatura, embora procedendo inversamente. Escrevendo ensaios, crónicas, diálogos, peças de teatro, contos, poemas ou aforismos, submeteu-os na maior parte, se não na totalidade, a uma disciplina arcana, jogando com o leitor e exigindo-lhe um esforço adicional que o incita a passar do nível literal de entendimento aos restantes definidos por Dante, no seguimento da antiga tradição judaico-cristã. Cabalista como era, sabia que a kabbalah medieval considerava que o Éden era, por excelência, o “lugar da leitura”, ao qual se chega subindo quatro degraus. Já Orígenes e São Jerónimo, alguns séculos antes, haviam proposto três degraus que levariam a um correcto entendimento das Escrituras: um primeiro, histórico ou literal; um segundo, tropológico ou moral; e um terceiro, místico ou alegórico. A boa tradição da kabbalah foi radicar-se, contudo, em dois outros autores cristãos, Cassiano e Santo Agostinho, que vislumbraram a perfeição hermenêutica em quatro etapas: na primeira domina a letra, oferecendo um sentido histórico, ao ensinar os acontecimentos do passado (littera gesta docet); na segunda, salienta-se a alegoria, ao desvelar o conteúdo da crença (quid credas allegoria); na terceira, exibe-se o conteúdo tropológico, que apresenta o sentido moral dos textos, iluminando o modo como convém agir (moralis quid agas); no cume da escada, temos o sentido anagógico ou escatológico, que esclarece o objecto da nossa esperança (quod tendas anagogia) (cf. Mendonça, 2013: 255 – 257). Nos alvores do Renascimento, Dante Alighieri tomou como sua toda esta tradição, definindo:

[…] as escrituras [podem-se] compreender e devem explicar[-se] mormente por quatro sentidos. Um se diz literal, e é aquele que não vai além da letra das palavras fictícias, tal como são as fábulas dos poetas. Outro, alegórico, e é aquele que se esconde sob o manto destas fábulas, constituindo uma verdade oculta sob uma bela mentira […]. § O terceiro sentido chama-se moral, e é aquele que os leitores devem atentamente andar buscando nas escrituras, para sua utilidade e dos seus discentes […]. § O quarto sentido chama-se anagógico, isto é, super sentido; ocorre quando espiritualmente se expõe uma escritura, a qual, ainda que seja verdadeira também no sentido literal, pelas coisas significadas diz das coisas supernas da glória eterna […]” (Alighieri, 1992: 61 e 62).

Telmo praticou este método como legente-hermeneuta. Escreveu desafiando os seus leitores para o exercício dos mesmos procedimentos, como se desejasse a todos a chegada ao Paraíso (pardèsh). Como teorizador, conheceu e expressou sempre o valor da humildade, quantas vezes através da auto-ironia, nos diálogos em que se foi vendo ao espelho. Num deles, uma das figuras chega a afirmar que “os seus livros são a expressão de um profano que se pôs a falar do que só por ouvir dizer conhecia” [CNP, 76]. Afinal, abordamos alguém que se definiu como “um pensador errante, sem casa própria”, reivindicando o direito a errar, defendido por Fernando Pessoa e por São Karol Wojtila (que ele cita) [FK, 10], ou seja, ao engano e à errância, ou não se apresentasse ele como um peregrinus [cf. DLP, 484] e também, deduzo, como um filósofo viajante ou um cabalista nómada.

Percebendo quanto há de indeterminação na interpretação de qualquer texto que se preste a uma tradução teorética, António Telmo surge a defender um método associativo, que não entra em colisão com os quatro sentidos de um texto da antiga tradição judaico-cristã. Se a sua meta é, como se viu, a revelação da vontade superna num teorema, tem consciência da incerteza que domina as relações com o sagrado e com o divino. Constata assim ser esse o melhor meio hermenêutico, quando se confronta, por exemplo, com uma obra de arte com a altitude da Mater Omnia, de Gregório Lopes, pertencente à Santa Casa da Misericórdia de Sesimbra:

Há um processo de interpretação por associações significativas de imagens e ideias, falsamente tomado por ‘simbólico’, que podemos aplicar ao estudo do painel […]. Não se trata de pensamento simbólico porque as conclusões a que se chega não contêm um carácter de evidência ou de certeza. […] Não há certeza na interpretação mas apenas uma conjectura.” [S, 41]

Esta via reveste-se de grande contemporaneidade. Se, por um lado, aplicada aos escritos de Telmo, reduz à sua verdadeira dimensão todas as leituras que se têm apresentado como verdades ou certezas, não escondendo alguma jactância (ao recusarem o artigo indefinido que Pedro Martins apôs humildemente no título de um livro seu (cf. Martins, 2015)), por outro vem recordar-nos o que há de melhor na Filosofia Portuguesa, que, sem complexos de inferioridade ou nacionalismos serôdios, pode ombrear com as melhores conclusões de outras linhas da nossa cultura e da cultura extralusitana.

António Telmo aplicou aos seus objectos de análise o método defendido, em ensino acroamático, por Álvaro Ribeiro. Claro está que não foi, como o correspondente de José Régio, um filósofo hierático. Sem deixar de ser sagrada, a sua via foi contudo outra, talvez mais lúdica, na medida em que entendia o jogo como algo de muito sério (como se pode ler em textos como “O Best” ou “A Dama de Oiros” [FK, 28 – 35]), envolvendo um risco e um perigo que vale a pena enfrentar com coragem: “[…] bem pesados os prós e os contras, se todos estamos no grande jogo e todos vivemos alucinados pela prestigiosa irrealidade do mundo sensível, não há nada como arriscar, antes que a rotina nos torne definitivamente brutos” [FK, 31].

Parece-me assim ser a hora de submetermos os seus textos ao mesmo processo, simultaneamente associativo e arqueológico. Para descobrir o desígnio de António Telmo é, pelos vistos, importante desenhar uma figura geométrica visível onde ele se manifeste.

Um bom ponto de partida será sempre Filosofia e Kabbalah. Quem leia este livro pelo menos três vezes, como aconselhava e fazia o filósofo de Uma Coisa que Pensa, conhecendo já algo da obra restante do escrito de Almeida e Estremoz, perceberá que esse volume, editado pela primeira vez em 1989, aos 62 anos de idade, é não só o eixo de toda a sua filosofia, como também o seu cume e a sua súmula retrospectiva e prospectiva. Se alguém ler outros títulos de Telmo sem conhecer este que menciono, ficará com uma visão fragmentária e desfocada de quanto pensava. Pelo contrário, se o ler, sem se aproximar de outros, beneficiará da recepção da essência ramificada do seu pensamento, no núcleo, nos temas e, até, nos géneros pelos quais se espraiou a sua escritura.

Essa ideia de totalidade parece ter presidido, aliás, à elaboração do livro. Se tivermos em conta que o “Prolóquio” é continuado em “Caçando com cão”, teremos um volume constituído por vinte e dois textos que abarcam todos os temas fundamentais da filosofia de Telmo. Não por acaso, o vinte e dois simboliza a manifestação do ser na diversidade, um ciclo completo e a conclusão da obra do Criador, sendo o número do Universo; por isso mesmo, são vinte e duas as letras do alfabeto hebraico, vinte e dois os capítulos do Apocalipse e, até, vinte e dois os arcanos maiores do Tarot [cf. DS, 1019]. Se juntarmos porém os dois textos supracitados, dando-lhes um carácter prefacial, ficaremos apenas com vinte e um capítulos; assim se verá sublinhada a perfeição de Filosofia e Kabbalah, centrada num objecto transcendente (Théos ou nous), sendo vinte e um os atributos da Sabedoria divina (Sb 7, 21) [cf. DS, 1018 – 1019]. Este raciocínio é confirmado pelo tempo que medeia entre as únicas duas datas inscritas no livro (20/6/1972 e 20/6/1980), precisamente oito anos. À perfeição e à totalidade se vê assim associado o algarismo do equilíbrio cósmico, da mediação entre o Céu e a Terra (entre o círculo e o quadrado), da justa completude e, ainda, da transfiguração, da eternidade e da beatitude [cf. DS, 511 – 512].

 

(...)



[1] Os livros de António Telmo, bem como os dicionários, são citados através de uma sigla, seguida do número da página. Essas siglas estão indicadas na bibliografia. Na citação dos textos restantes, segue-se o uso habitual.

 

DISPERSOS. 14

04-10-2015 16:44

Filosofia e Cabala no pensamento de Álvaro Ribeiro[1]

 

«O mal é só o que os homens fazem aos outros por pensamentos, palavras e actos».

É só. Logo, para Álvaro Ribeiro, na natureza, criação divina, não há mal. É, no entanto, difícil, ou pelo menos apressado, concluir que o mal, na concepção de Álvaro, não tem origem, como ensina a Cabala, no mistério insondável de Deus. «O diabo, escreveu ele também, não é o inimigo de Deus, mas sim da natureza». E duas vezes alude a um misterioso agente intermediário que tem por fim monstruoso separar o homem da mulher.

Como quer que seja, a inveja dos homens que fazem mal por pensamentos, palavras e actos nasce do sofrimento que neles causa a felicidade dos outros no amor ou na filosofia. As melhores amizades têm sido envenenadas pelo intermediário que instiga a inveja.

Na natureza não há mal. As naturezas adoecem por acção do homem. No mundo criado a imaginação divina move o amor. A imaginação do homem pode, em certas condições, contrariar a imaginação divina pela magia que, neste caso, é propriamente aquela que se designa por negra. A medicina integral, isto é a filosofia, conforme se diz num admirável escrito de João Rêgo[2], é a que imita a imaginação divina lutando contra a doença. Enquanto integral actua contra a magia negra ali onde, como no ensino e na política, ela procede contra o amor e contra a filosofia.

Álvaro Ribeiro parece ter-se recusado a escrever sobre o problema do mal nas suas relações com o mistério insondável. Como se viu, não deixou de explicá-lo pelo seu segredo, que é a magia negra.

Tendo sido, como foi em vida, um filósofo que pôs no centro do seu pensamento a exaltação do amor entre o homem e a mulher, concitou a hostilidade dos sinistros instrumentos do mal que o agrediram com pensamentos, palavras e actos. Usou, por isso, de prudência no dizer. A palavra Cabala só quatro vezes aparece nas quatro mil páginas que escreveu para o público. Vestiu por vezes a pele do lobo para não ser devorado pelos lobos, mas a fidelidade constante à excelsa e bondosa doutrina é visível em cada proposição que pensou e escreveu.

Pinharanda Gomes classifica-o entre os «gnósticos» no seu Diccionário de Filosofia Portuguesa. Há, com efeito, em Álvaro Ribeiro o desgosto do mundo humano e a ideia de que a salvação vem pelo conhecimento. Como, porém, o conhecimento é interpretado em analogia com «O Homem conheceu a Mulher» do Génesis, o seu pensamento opõe-se a todas as correntes gnósticas que põem como condição do aperfeiçoamento humano a abstenção de relações sexuais ou a tolerância delas como um mal necessário, segundo o ensino de São Paulo. Deste ponto de vista, Álvaro Ribeiro não é um «gnóstico», é um adversário da Gnose.

Aquilo a que podemos chamar a baixa gnose e que perpetua degeneradamente o ensino de São Paulo, na impossibilidade do puro, natural, santo impulso do amor entre o homeme a mulher, procedeu à sua conspurcação pelo cinema, pela imprensa, pela televisão, pela pornografia, fingindo defendê-lo ao tornar patente e público o que só é verdadeiramente pelo segredo e e pela relação individual. A colectivização do acto sexual constitui a última e aparentemente decisiva, julgam eles, consagração da magia negra pelo socialismo. Compreende-se assim que o nome de Álvaro Ribeiro seja silenciado e odiado à esquerda e à direita.

O amor entre o homem e a mulher é, em primeiro plano, uma relação sem mácula de duas naturezas. Pela palavra, a relação natural torna-se transparente do sobrenatural. A sua socialização movimenta as palavras e as imagens obscenas que atraem o que no sobrenatural constitui o mais baixo e reles demonismo. A palavra é pelo pensamento como o acto é pela palavra. Só o pensamento, criando as palavras da imaginação amorosa faz nascer o acto que eleva e redime. O pensamento é, porém, como o filósofo diz, uma actividade invisível do espírito cujo meio próprio é o segredo e o mistério.

Assim se evidencia a íntima ligação da filosofia com o amor. Pelo pensamento poderemos viver o mistério que é o universo, o imenso universo de que o amor entre o homem e a mulher assistido por Deus é a renovação miniatural, mas infinita. O perfeito amor é o que corresponde a uma perfeita filosofia e essa é a de Deus que devemos procurar imitar.

O pensamento de Álvaro Ribeiro evolui pelo sistema das categorias fixadas por Aristóteles. Quando eu era moço, o filósofo entusiasmou-me a procurar a correspondência entre as categorias aristotélicas e o sistema hebraico das dez sefiras. Infelizmente, só alguns anos depois de nos ter deixado, encontrei a demonstração publicada em Filosofia e Kabbalah de que os dois sistemas se reflectem um no outro. Essa demonstração, que passou despercebida em Portugal, movimentou certos meios iniciáticos franceses de vasta influência que nela viram a prova provada de que se deve rever a imagem que da Grécia e da sua filosofia foi formada e propagada pela filosofia alemã. Álvaro Ribeiro conhecia essa correspondência que explica o seu aristotelismo hebraico.

Cabe, então, interpretar pela árvore das categorias aquilo que, no ensino clássico de Aristóteles, se diz ser «a imanência das ideias», em oposição ao platonismo que as teria concebido separadas. O movimento é contrário ao do êxtase.

A contemplação não tem por fim libertar a alma da prisão natural, mas de fazer descer as influências dos mundos superiores aos mundos Inferiores, tornando-as activas pela razão. Tal o sentido da crítica que o filósofo escreveu contra o misticismo e o cepticismo da Teoria do Ser e da Verdade do seu companheiro de viagem José Marinho.

Nos termos da Cabala, a contemplação tem por fim chamar Tiphereth, orando, a Malcuth, através de lesod. O processo é descrito no livro de A Santidade das Relações entre o Homem e a Mulher de Gikatila para que se cumpra em cada lar o mistério da encarnação de inteligências superiores. Álvaro Ribeiro não pôde ter conhecido este livro, traduzido do hebraico para o francês alguns anos depois da sua morte. É pela activação da inteligência  que a união das sefiras inferiores, no plano fecundante de Yesod, prolonga a união das sefiras superiores. Daqui a suprema «dignidade do cérebro» insistentemente celebrada no segundo volume das Memórias de Um Letrado. Demora-se neste volume o filósofo a estudar as relações de Keter com Binah, cifrando a sua reflexão nos termos pelos quais Henrique Bergson descreve as relações do cérebro, «órgão de escolha e de acção» com a memória infinita.

Há, pois, uma educação sexual, mas não aquela que se propõe banalizar e desdivinizar o amor, «pondo a ferros a imaginação», como dizia José Marinho. Só pelo aprendizato da filosofia portuguesa o rapaz português e a rapariga portuguesa poderão aspirar à perfeição mental, cada um no seu género, criando as condições e as qualidades indispensáveis à celebração do «mistério supremo» (ver São Paulo, Epístola aos Coríntios).

Não é pela exposição e descrição das entranhas carnais, que só podem suscitar repulsa, que se faz educação sexual. É pelo aperfeiçoamento e desenvolvimento da alma masculina e da alma feminina. A alma é que é a amante.

Tal educação faz-se sem que a alma dê por isso. Ela não pode ainda saber que o estudo da gramática, da retórica e da dialéctica, da dança, da matemática, da astronomia têm por fim o matrimónio e a acção do homem e da mulher no plano terrestre de Asiah. Descobri-lo-ão, maravilhados, mais tarde.

É um pouco o que acontece neste escrito em que o leitor pode, talvez, sentir perturbada a corrente da leitura pelos termos hebraicos que designam e significam as sefiras. Sem que a sua alma dê por isso sentir-se-á, porventura, chamada, nem que seja pela presença de uma vaga irritação, a imaginar o que ainda não sabe o que é.

Álvaro Ribeiro escreveu um volumoso livro sobre A Literatura de José Régio. Dizia ele que cada filósofo tem o seu poeta com quem dialoga. José Régio terá sido o poeta do filósofo Alvaro Ribeiro.

A verdade, porém, é que, se quisermos encontrar um poeta cuja teoria do amor seja a que o filósofo pensou e ensinou, teremos de reconhecer que, bem mais exactamente do que José Régio, foi Camões quem versejou a sublime doutrina.

Neste sentido, tem inteira razão Fiama Hasse Pais Brandão, quando defende serem Os Lusíadas a obra de um cabalista.

O leitor evocará logo a Ilha do Amor.

Menos se recordará das estrofes sobre Afonso de Albuquerque. As virtudes que exalta no herói estão, segundo ele, maculadas por um grande crime, o de ter castigado cruelmente um dos nobres que o seguiam por este se ter deixado enlear por uma beleza negra em cujo Paraíso de volúpia se deixou envolver. «O mal é só o que os homens fazem aos outros por pensamentos, palavras e actos.»

 

António Telmo



[1] Nota do editor – Publicado originalmente em Nova Renascença, vol. XIII, n.º 48, Porto, Inverno de 1993, pp. 93-96. Republicado em António Telmo, O Mistério de Portugal na História e n’Os Lusíadas, com o título “A Ilha do Amor no Pensamento de Álvaro Ribeiro”, Lisboa: Ésquilo, 2004, pp. 259-263.

[2] A Medicina em Álvaro Ribeiro, Edições Tomé Natanael.

 

VOZ PASSIVA. 64

17-09-2015 08:26

Um Sorriso para ANTÓNIO TELMO

Manuela Morais

 

"A amizade é uma alma que habita em dois corpos,

um coração que habita em duas almas."

 

Aristóteles

 

"Quando a minha voz se calar com a morte

meu coração continuará te falando."

 

Rabindranath Tagore

 

 

Estamos no amanhecer de uma nova era na história da humanidade, o grande momento da expansão da espiritualidade. Um enorme despertar da humanidade para a força divina, para os Céus.

Encontrava o António Telmo assiduamente, em Vila Viçosa, quando eu corria apressadamente para os correios, ao fim da tarde.

Sorríamos, eu esperava que terminasse de comer a empada de galinha, e falávamos de livros, da Maria Antónia, da Anahí e, claro, do trabalho de meu Marido, o Espiga Pinto. Dizia-lhe, com humor, que o fechava à chave no atelier para trabalhar, como a mulher do Vermeer, o pintor do belíssimo retrato "Rapariga com Brinco de Pérola".

Um dia contei-lhe que não podia entrar no atelier, porque o Espiga estava lá fechado com sete belas raparigas. António Telmo perguntou, com graça, se eu não sentia ciúmes. Claro que não, respondi pausadamente.

Inteligente como era percebeu imediatamente do que se tratava. Então, mais para o fim da conversa,  perguntou quando e onde era a próxima Exposição, pois queria ver as tais raparigas.

Fomos visitá-lo várias vezes a sua casa, em Estremoz. Não medíamos o tempo e era sempre com saudade que o deixávamos.

As nossas conversas, entre mim e o Espiga, não tinham fim.

Saíamos de casa de António Telmo carregados de informação sobre livros importantes, a não perder. Às vezes, no dia seguinte, rumávamos a Badajoz à livraria a procurar essas preciosidades.

António Telmo marcava profundamente quem se cruzasse com ele. A sua calma transmitia uma energia extraordinária. Até a laranjeira próxima da porta de sua casa era muito maior e mais frondosa que as suas vizinhas.

António Telmo sabia escutar atentamente. Os nossos encontros eram um aprendizado contínuo, tinha a capacidade de tornar o complexo muito acessível. Era um Mestre em todas as circunstâncias, mesmo nos silêncios.

Como editora do seu livro "CONTOS SECRETOS", tive, sem dúvida, uma venturosa e iluminada experiência. O Espiga arregaçou as mangas para realizar o excelente trabalho dos desenhos para o seu belíssimo livro e vivemos a suprema harmonia dessa manifestação de força que transcende a compreensão humana.

António Telmo foi um exímio estudioso do significado e simbolismo do número 9 que representa o círculo místico perfeito. Pertenceu à mais antiga associação de homens do mundo. A continuidade não é concebível sem a Tradição e é ela que permite preservar a sua identidade. Era um Ser que habitava um lugar elevado, guiando os nossos passos e elevando os nossos espíritos a vibrações intensas, fazendo a ligação entre o Espírito e os lugares Sagrados. O seu Espírito era radiante e luminoso, caminhando na Ordem dos Grandes Mestres do Esoterismo. Toda a sua atitude era de um autêntico filósofo com lugar destacado na Filosofia Portuguesa, na Filosofia e Tradição, escritor, professor. Um Taurino com vontade firme, constância, persistência e contemplativo.

A sua Obra é notável. Pessoalmente, sinto-me mais próxima de “ História Secreta de Portugal”, “Viagem a Granada”,” Filosofia e Kabbalah” e “Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões”.

António Telmo ingressou no mundo espiritual, o mundo da realidade suprema e comunhão, em perfeita harmonia com o espírito do universo, permeado pelas poderosas vibrações com os princípios divinos da criação, pelas vibrações da luz. É um verdadeiro filho de Deus com um brilho intenso, misterioso e maravilhoso, - está no plano astral. Estamos no alvorecer da civilização espiritual, na era da reconstrução, do dia, da luz resplandecente e divina, da civilização paradisíaca. A luz do sol é a luz verdadeira que brilha no céu, elevando o nosso nível espiritual. A nossa felicidade será indestrutível. Obrigada, António Telmo,  por me ter permitido privar consigo e com a sua Família.

Um beijinho para a Maria Antónia e para a Anahí da

                                                                                                                                            Manuela Morais

INÉDITOS. 57

15-09-2015 08:39

Antecipamos hoje aos leitores o breve capítulo inaugural de Sobre Álvaro Ribeiro (Contra o maniqueísmo), um dos dois livros inéditos que António Telmo dedicou ao pensamento de seu mestre Álvaro Ribeiro e que integram o IV Volume das suas Obras Completas, a sair ainda este ano, com a chancela da Zéfiro e o apoio institucional e científico do nosso Projecto. A transcrição do texto manuscrito é de Ruy Ventura, que prefaciará o novo volume, Filosofia e Kabbalah seguido de Álvaro Ribeiro e a Gnose Judaica e outros estudos.

Abertura

 

O judaísmo que se exprime na filosofia de Álvaro Ribeiro é o judaísmo de um cristão-novo. Cristão-novo é uma palavra composta que sempre se interpreta em sentido histórico, isto é, como a designação de um judeu ou de um islamita convertidos violentamente ao cristianismo. Há, porém, a possibilidade de a interpretar em sentido espiritual: cristão-novo é aquele que traz um novo cristianismo, aquele que está em condições de compreender plenamente a mensagem de Cristo, porque é, como ele, judeu e confrontado com toda a tradição judaica e a religião de seus pais, vindo, não para a renegar, mas para a purificar. Ele distingue-se do cristão velho e do velho judeu, confronta-se com ambos, que são o seu passado, um por herança de tradição trazida no sangue, outro por transmissão cultural e institucional. Quando Álvaro Ribeiro insistia sobre a originalidade e a superioridade da filosofia portuguesa fazia-o com inteira legitimidade porque a interpretava como a expressão da espiritualidade do cristão-novo. É certo que a síntese que o cristão-novo deve realizar defronta um duplo obstáculo, no próprio seio da comunidade nascente: o dos cristãos-novos que se mantêm completamente fiéis ao judaísmo e que não traem e o dos cristãos-novos que se identificam inteiramente com a Igreja dos goim, vendo nela a Igreja judaica, para não falar já no quádruplo obstáculo que resulta de haver duas comunidades originais. Daqui a grandeza dos cristãos-novos como Uriel da Costa, mestre de Espinoza, Sampaio Bruno, Leonardo Coimbra, Álvaro Ribeiro, Pascoaes e Pessoa e a pequenez da multidão de intelectuais divididos na alma e na inteligência, vivendo em drama, como Antero, ou servilmente, como tantos outros. A filosofia portuguesa aparece como a síntese que resolve o drama e liberta para novos caminhos.

A doutrina capaz de conduzir a síntese na inteligência do mundo, do homem e de Deus é a Cabala Hibérica[1] que, no entanto, o cristão-novo que encontrou o sentido do seu destino espiritual deve esconder de cristãos velhos e de judeus velhos e da multidão servil dos cristãos-novos. Ambas as Igrejas a hostilizam, uma porque ela transporta os valores do judaísmo, outra porque ela é a concepção nova de Cristo.

O cristianismo desempenha, frente às duas ordens que se apresentam como representando o divino no humano, o papel do satanismo, aquele elemento individual que revolta em nome verdadeiro da luz e do amor.

Cristo é, na visão do cristão-novo Sampaio Bruno, o supremo cabalista, aquele cujos milagres são argumentos. Esta síntese gloriosa das duas tradições é, pois, o fim da filosofia portuguesa que se realiza por entre múltiplas hostilidades.

Temos, pois, de entender a imitação de Moisés, não como do Moisés legislador e despótico, mas do Moisés da revolta contra os Egípcios que escravizavam e torturavam o povo hebreu, uma espécie de Moisés-Messias, o Moisés próprio da idealidade do cristão-novo (Jesus Cristo), cuja imagem Jesus Cristo purifica e transubstancia.

 

António Telmo



[1] N. do O. – Mantivemos a grafia de intenção etimológica de António Telmo.

 

VOZ PASSIVA. 63

13-09-2015 19:54

Telmo e Temúria

Memórias de um laboratório de “ternúria”

Risoleta C. Pinto Pedro

Desde muito cedo, talvez quando comecei a ler, que inexplicavelmente para mim, e só para mim, porque nunca o confidenciei a ninguém receando que me metessem num manicómio, procedia mentalmente, em actividade incessante e compulsiva, a algo que considerava fúteis jogos de palavras e sons, mas que vim, muito mais tarde a saber, tratar-se de uma séria  actividade que na Tradição ocidental se designa como Guematria, Notaria e Temúria. Precisamente o meu jogo: transposições, observação e deleite com o aspecto dos signos desdobrados em outros, comutações e combinações.

Não fazia ideia que procedia intuitivamente a operações imaginativas muito próximas da numerologia hebraica: inventava um valor numérico para letras e palavras, que depois relacionava em interpretações simétricas. Altas operações mentais de que hoje seria incapaz.

Esta pequena Cabalista procedia também a exercícios de Notaria, estabelecendo divinamente que a cada letra de uma palavra correspondia a abreviatura de outra. Conseguia até, com uma palavra, construir uma frase, numa espécie de exercício anagramático avant la lettre dentro da minha história, e com um notável rigor no mistério. Consoante a inspiração do momento.

Finalmente, a mais alta magia da Temúria, que ao que recordo era a que mais me divertia, procedendo à permuta de letras e sílabas dentro das palavras de modo a criar palavras novas. Muito pouco rigor Cabalístico, pois desconhecia as tabelas, mas um rigor afectivo e emocional que me desviou talvez de outras obsessões através desta, que na altura considerava totalmente gratuita e hoje percebo que me alimentou a criação, a liberdade, a imaginação, o símbolo, a capacidade para estabelecer correspondências, o matrimónio secreto e sagrado entre o número e a letra, e uma familiaridade leve e alegre com o mistério e a magia operativa da língua.

Relaxava-me, divertia-me, curava-me sei lá de que desconhecidas doenças, ainda antes de se manifestarem. Mesmo que assim não fosse, não conseguiria fugir-lhe, mas tornou-me íntima das palavras e números, ficando a conhecê-los por fora e por dentro, pelo menos na minha imaginação.

Que teria acontecido se me tivesse “queixado” a alguém desta secreta vida, para mim, na altura, muito próxima da loucura?

Como ainda não havia tantos psiquiatras como hoje há, talvez com sorte me tivesse saído bem, caso contrário não teria escapado a umas pílulas que me teriam reduzido a actividade mental ao nível da alface, com todo o respeito e afecto que tenho pela dita, mas não me parece que se entretenha, na horta ou nas bancadas do mercado, com exercícios de temúria.

Por essa altura, mesmo muito lendo, não conhecia Platão, era ainda uma infanta, mas se o tivesse feito, ter-me-ia tranquilizado com o Fedro, que cito a partir de “As estranhas etimologias de Platão” in Contos, de António Telmo:

 "O melhor que nos é dado vem-nos por mediação do delírio, que é, sem dúvida, um dom divino. A profetiza de Delfos, as sacerdotisas de Dodona, quando estavam inspiradas pelo deus, deram aos gregos avisos que os encheram de benefícios na vida pública e na vida privada; mas, no seu estado de consciência normal, pouco sabiam ou nada".

"Eis o que vale a pena trazer aqui: os homens que, na antiguidade, estabeleceram os nomes não consideravam o delírio (manía) uma manifestação vergonhosa e um opróbrio. Se assim tivessem pensado, não teriam ligado este nome ao nome da arte por excelência que é a arte de adivinhar o futuro (manikê). Viam no delírio uma bela coisa, dado que provinha de uma dádiva divina...” 

Fui, sem o saber, uma pequena sacerdotisa.

Telmo ainda não tinha chegado às minhas leituras. Publicaria, nesses arredores temporais, a Arte Poética, que eu, por muito precoce que fosse com os livros (e era-o), não saberia ler, e também ele ainda não tinha escrito, por essa altura, os Contos, onde mais tarde eu viria a encontrar-me e a encontrar:

“a Cabala, [...] usa exactamente os mesmos métodos de Platão na explicação dos nomes: a Temúria, a Guematria e a Notaria.”

E mais à frente:

“Olhe, vou-lhe ensinar uma coisa. Você diz que o que ali vemos em actividade é o génio da fantasia. De facto, como o próprio Sócrates o declara, podemos juntar letras, tirar letras, trocar letras. Parece assim muito fácil explicar qualquer nome e dar dele a explicação que quisermos. Experimente fazê-lo com, por exemplo, a palavra céu.

- O que é que devo fazer precisamente?

- O que Sócrates fez com os nomes que explicou: encontrar a palavra ou as palavras que estão escondidas na palavra céu, mas por tal modo que uma nova significação venha iluminar a significação corrente, enchê-la de profundidade.

Pus-me à procura e não encontrei nada.

- Como vê, não é fácil. Não é sequer possível num estado normal de inteligência. Se fossemos capazes de pensar a ideia do céu, eu não digo a ideia de céu, em ligação com a palavra que a designa, logo se apresentariam a exprimir o pensamento a que tivemos acesso as palavras foneticamente concordantes ou convergentes.

É o que Fernando Pessoa fez com a palavra Mensagem. Pensou-a à luz da ideia de levantar do chão o seu povo. Na sua qualidade de bateleur que faz da mentira uma verdade e da verdade uma mentira, sentou-se à mesa operativa de escritor e deixou-se possuir pelo daimon da analogia. Reconduzindo a palavra ao latim, jogou com as suas letras, desencobrindo os seus possíveis sentidos dentro da ideia vivente de Pátria concebida pelo seu espírito. Encontrou assim as seguintes significações: "MENS AGEM", "MENS AGITAT MOLEM", ENS GEMMA", "MENSA GEMMARUM", isto é, "A mente actua, "A mente remove as massas", "O ente pérola", "A mesa das pedras preciosas", aquela mesma mesa que é a mesa do bateleur.”

Sem querer ser ou parecer presunçosa, acredito que fiz parte de uma ordem secreta a que todas as crianças são agregadas na condição de depois tudo esquecerem, havendo no entanto algumas, mais obstinadas, que consegem manter na alma, ou na mente, algumas reminiscências. Essa ordem é responsável por conservar aceso no Universo o “génio da fantasia” escondido na palavra céu, a fim de o aprofundar. Isto não é possível “num estado normal de inteligência”, mas apenas possuído pelo “daimon da analogia” e assim, jogando, desencobrir o que as crianças conseguem.

Alguns adultos podem fazê-lo mantendo-se adultos e recordando a criança. Não é possível o fenómeno acontecer na ausência do adulto, a não ser no estado de criança. A criança que, embora crescendo, não atinge a condição de adulto, perde esta capacidade, perde o adulto e perde a criança. O adulto que perde a criança também não consegue ser adulto. É indispensável que o adulto cresça e a criança permaneça. É desta união inocente e poderosa entre consciência e imaginação, que a memória pode brilhar em focos de luz celestial à “mesa das pedras preciosas” que é a língua, nesta consciência enobrecida.

DOS LIVROS. 44

08-09-2015 09:11

O best

 

Há nas cartas de jogar uma figura, o best, capaz de assumir todos os valores, embora em si não possua valor nenhum. Análogo ao papel do best no jogo de cartas é o do zero matemático nos sistemas numéricos. Se o sistema é binário, o zero vale 1, se o sistema é décimal, o zero vale 9. É uma valência que varia de acordo com a estrutura numérica em que se integra e que permite a circulação infinita das operações.

Best é o melhor, mas este sentido comuta-se com o de beast. Nas cartas de uso português, aparentemente não existe o best. Todavia, em certos jogos, como por exemplo o sete e meio, uma convenção popular atribui ao dois de paus a mesma função. Porquê o dois de paus? Não haverá nesta escolha uma figuração secreta, a de uma besta cornúpeta?

Dada a versatilidade do best, esta sua capacidade de receber o valor que se queira, o jogador a quem ele coube em sorte encontra-se numa situação em princípio favorável, mas a dinâmica dos movimentos — associações e antíteses — que o desenrolar do jogo desencadeia, pode vir a tornar ineficaz a acção do best. Isto não significa que ele não seja por definição e à partida o outorgador do poder.

A sua relação com o dinheiro, sem o qual o jogo das cartas é um passatempo de crianças, está na própria definição de um e de outro. Também o dinheiro, na forma de ficha ou de papel-moeda, do papel-moeda sem valor material em ouro, prata ou cobre, cuja invenção Goethe atribui a Mefistófeles, também o dinheiro é um nada que se transforma em valor, no valor que se quer quando o produto se altera em mercadoria e o comércio se assenhoria do mundo. Marx pretendeu uma humanidade sem best. Como os cátaros na Idade Média, Lutero e Calvino e os demais protestantes, este filho de um rabino tentou forçar o mundo a girar sem o elemento essencial, sem aquele princípio de revolta e de luz, que a filosofia tem designado por princípio de individuação.

É o indivíduo o valor que eu assumo, aquilo que me permite ser singular e jogar-me como um projecto na existência. Mas se o best é o princípio de individuação, é também o ser genérico, o ser que podendo ser tudo é nada, a matéria que assume todas as formas e ela mesma não tem forma nenhuma, pelo que uma humanidade sem best é uma humanidade totalmente identificada com o best. Reduzir o jogo de cartas a uma única carta – o best – é tornar impossível o jogo e com ele o valor.

 

António Telmo   

 

 

(Publicado em Filosofia e Kabbalah, 1989)

 

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