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VOZ PASSIVA. 72

17-12-2016 21:18

Viver o caminho: António Telmo e a assunção da História*

Pedro Martins

Entender o modo como António Telmo concebe a redenção implica a consideração prévia da sua noção de pecado original, pelo qual se deu a queda do homem na história. Dado o tempo limitado, postularei uma conclusão: na esteira de Bruno e de Álvaro Ribeiro, Telmo converge com o martinismo, ao qual, aliás, refere a essência da filosofia portuguesa, segundo a sua concepção operativa.

Teremos, assim, a degradação, por condensação, do corpo glorioso do Adão primordial, em consequência de um pecado de magia: uma arrogância demiúrgica, usurpadora da Divindade, mas frustrada no comércio impuro da imaginação com a sensação. Quem assim decaiu, reinava sobre o Universo e todas as suas criaturas no paraíso terrestre a que Pascoal Martins, misteriosa, mas significativamente, chama terra erguida acima de todos os sentidos.

Em entrevista tardia, Telmo afirma que

 

o pecado original é uma ruptura entre o ser e o pensamento, quer dizer, eu não sou aquilo que penso e penso aquilo, penso mas não sou. O que eu chamo Filosofia Operativa é aquela Filosofia em que o pensamento é ao mesmo tempo o ser da pessoa.

 

Para Pascoal Martins, o pensamento adâmico coincidia essencialmente com o pensamento divino, resultando a queda do modo como a vontade livre do primeiro homem, influenciada pelo espírito perverso, se decidiu contra esse pensamento.

Nas Congeminações de um Neopitagórico, de 2006, republica-se a entrevista à revista Encontro, conduzida por Ângelo Monteiro. Nela se afirma que Arte Poética, o livro de estreia de 1963, «vale sobretudo pelo último capítulo que foi escrito para a sua segunda edição» e se esclarece a noção de filosofia operativa, cerne desse mesmo livro: «Por operativo significava eu eficaz, capaz de nos curar da dor e de nos libertar do mal».

Do prisma soteriológico, esta definição é coerente com a já citada, que diz ser operativa «aquela Filosofia em que o pensamento é ao mesmo tempo o ser da pessoa», e isto tão certo com o pecado original ser «uma ruptura entre o ser e o pensamento».

Será digno de nota que a única parte de Arte Poética que Telmo valoriza – a quarta, o diálogo entre X e Y, “Sobre a Poesia”, aditado à reedição de 1993 – ressurja nas Congeminações com ligeiras modificações, porém significativas: os interlocutores chamam-se agora Thomé (o gnóstico) e Nathan (o cabalista) e tratam-se por tu. São as duas metades íntimas de Thomé Nathanael, alter ego de Telmo, dissociadas por um processo de dianoia, mas convergindo pelo diálogo para o que mais importa.

Como o título logo indica, as Congeminações cifram um pensamento maçónico. Daí que a republicação daquele diálogo neste livro seja congruente com uma confissão à Encontro: «O que propus e proponho ainda é uma filosofia que seja essencialmente uma arte poética, criadora de força, de sabedoria e de beleza pela virtude dos conceitos». A alusão à Arte Real, pelo enunciado da tríade iniciática, vincula a Arte Poética à tradição maçónica. A metamorfose onomástica dos interlocutores, revelando a metade cristã e a judaica do ser íntimo do filósofo marrano, confirma-o. A Maçonaria visa conciliar, pela mediação de Schaddaï, o Grande Arquitecto do Universo, os antagónicos atributos divinos – El Elyon e Elohim – que os dois credos, respectivamente, privilegiam nos seus cultos.

O livro de 1963 parte do pensamento de Bergson. «Servi-me dele para dizer a minha Arte Poética», consigna-se na entrevista à Encontro, não sem, porém, se esclarecer: «A minha visão iniciática da Vida e da História não vem de Bergson, mas sim de Álvaro Ribeiro e de Eudoro de Sousa que foram quem me mandou ler o filósofo francês». «O esforço intelectual de Bergson, desenvolvido em alguns livros notáveis» – lê-se na versão original do livro – «teve o valor de pôr a «base» ou a «matéria» da filosofia operativa». Telmo, todavia, adverte: «Ilude-se o leitor que procurar nesses livros uma construção mental explicativa do universo interior ou exterior, mas também ficará decepcionado aquele que neles indagar as operações – princípios e regras – a realizar sobre a “matéria”».

A terceira parte de Arte Poética entremostra o que na primeira ficara aludido: Bergson, sendo, «principalmente, um antropólogo», ignora os pequenos e os grandes mistérios da iniciação, com expressão filosófica na cosmologia e na teologia, respectivamente. Sublinhando que os pequenos mistérios respeitam à restauração do estado primordial do paraíso terrestre, dir-se-á que toda a ideação de Telmo posterior a 1963 se concebe como demanda de formas tradicionais inscritíveis na matéria posta por Bergson, culminando, ao cabo de um processo lógico e ontológico, na eleição operativa da tradição maçónica, pela sua iniciação no Regime Escocês Rectificado, de inspiração martinista.

Se a queda implicou uma condensação, importa lembrar, com André Benzimra, que «o que para Adão, no Éden, era corporal, ou seja, ocupava o lugar da exterioridade, pertence no homem da nossa época à ordem da interioridade e releva de um plano superior». Isto «explica que diversas tradições apresentem a natureza corporal dos primeiros tempos como mais fluida, mais subtil e mais cintilante do que a matéria a que estamos acostumados». Por isso, «do mais alto grau de espiritualidade ao mais baixo grau de corporeidade há um número indefinido de níveis que podem ser vistos como as etapas de uma solidificação progressiva».

A doutrina tradicional dos elementos, «raízes onde se entronca directamente o mundo sensível em toda a sua extensão espácio-temporal e em todas as modalidades que o caracterizam», oferece um quadro simbólico de correspondências com os «diferentes estados da “matéria” correspondentes aos graus da condensação física».

Nas Congeminações, no diálogo Sobre a Poesia, quinta-essência da Arte Poética, Nathan adverte: «O erro é o de julgar que o corpo é um corpo de terra e que não pode ser feito pelos outros elementos.» Apelando às formas tradicionais, a asserção esclarece o que em 1963 sucessivamente se afirmara: «a alma (…) está sempre ligada à matéria por dentro»; «o corpo é uma manifestação da alma»; e «todos os princípios que constituem a alma devem encontrar-se no corpo, segundo os seus modos próprios». Assim, os sistemas determinantes da corporeidade estão referidos a centros que respondem logicamente «a círculos ou esferas cada vez mais profundas da vida».

Tudo estará, pois, segundo a fórmula bergsonina, em «remonter la pente de la nature», em «inverter», pela autognose, «a direcção habitual ou natural do espírito». Como em 1963 se escreveu, «as imagens são portas, no sentido de que, por elas, o espírito penetrou e penetra na matéria e de que, por elas também, pode penetrar na sua própria vida». Pelo aditamento do diálogo “Sobre a Poesia”, esclarece-se que «a mediação entre o mundo sensível e o mundo inteligível, entre o natural e o divino, é que é propriamente a metáfora».

Em “Sobre a metáfora”, de Viagem a Granada, Telmo relata como, tendo contemplado, uma tarde, por instantes, uma árvore num montado alentejano, e fechado depois «os olhos com a intenção de a ver reproduzida interiormente no espelho da memória tal e qual a via exteriormente», pôde ver «reproduzido todo o montado até ao mínimo pormenor, com todos os seus recortes, mas cada sobreiro era uma mobilidade imóvel, uma labareda estática, cheia no entanto de uma vida poderosa». Continuarei a citar:

        

Abri os olhos e de novo me apareceram as árvores na sua realidade verde de sobreiros. Verifiquei que a imagem ígnea interior era exactamente igual, em todos os seus aspectos, à que agora presenciava cá fora. Só eram diferentes pela substância: de madeira ou material na forma exterior, de puríssimo fogo no espelho mágico da alma.

(…)

Mais tarde, rememorando o acontecimento, lembrei-me ao mesmo tempo de uns versos que tinha escrito vinte anos atrás:

 

Todas as árvores são chamas

Porque é fogo a essência da semente

E tudo que na árvore é e sente

Busca o sol e é sol verde nos ramos.

 

Aquilo que mais interessou aqui ao aprendiz de filósofo que eternamente sou foi ver que pela metáfora é possível conhecer, embora em modo reflectido, a relação do mundo sensível com o mundo subtil imaginal. A visão dos sobreiros na sua essência ígnea veio confirmar esta possibilidade.

 

A remissão operada pela imagem ígnea da metáfora situa-nos no plano dos pequenos mistérios. No estado primordial, inerente ao grau de realização espiritual que lhes corresponderia, o homem seria um com o mundo de modo tal que todos os corpos seriam tantos quantos os seus órgãos e a alma de cada coisa seria uma parte da sua alma.

Parece ser à luz destes ensinamentos tradicionais que o relato da visão deve ser lido, como entendida deve ser uma passagem de Arte Poética que pressupõe as limitações cosmológicas da filosofia de Bergson:

 

Queremos insinuar que, sem realizar em nós um estado de vivência interna da natureza a partir do qual sentimos a natureza como o «Todo Um», como uma serpente mágica que infinitamente se devora a si mesma, e nesse infinito devorar-se, a si mesma se aumenta infinitamente (esta imagem anima o conceito bergsonino de tempo), não poderemos transitar da filosofia especulativa para a filosofia operativa.   

 

Não será, também, difícil aproximar a fenomenologia daquela visão da que Telmo, laboriosamente, relevou em Camões, segundo a forma tradicional da gnose persa, com o que se não afastou da matéria posta por Bergson. Como escreve em 1963:

 

A indistinção entre o «dentro» e o «fora» pode dar-se na própria percepção. Em La Pensée et le Mouvant, Bergson desenvolve uma teoria da percepção segundo a qual a percepção comum corresponde a um empobrecimento da percepção original. Esta seria animada, vivente, profunda, de tal modo que, sem intervenção do raciocínio ou de qualquer função mental, as coisas seriam percebidas na sua realidade interna, – como movimentos.

 

O cume atinge-se, todavia, em Bergson pela intuição, «conhecimento do espírito todo pelo espírito todo». Sendo «real porque directo, sem imagens interpostas», e «transmutador porque o homem que consegue tornar activa a intuição latente sofre uma dissociação dos elementos psíquicos que altera as condições naturais de manifestação do espírito», ele é «eficaz porque o pensamento, restabelecendo-se numa nova relação, – dinâmica –, com a matéria, tem em si a possibilidade permanente de realizar prodígios».

Aqui retomamos a entrevista à Encontro, onde se explicita que operativo significa eficaz, isto é, capaz de nos curar da dor e de nos libertar do mal, pela possibilidade permanente de realizar prodígios. Mas a redenção, sobre realizar-se na plenitude do composto humano, não é exclusivista. A relação dinâmica com a matéria que a garante, se opera sobre a densidade do próprio corpo, abarca o outro e o mundo.

No escrito de Viagem a Granada em que, combatendo o gnosticismo, perfilha a concepção brunina de que «a matéria não é eterna como Deus», Telmo propugna a Cabala d’A Ideia de Deus. Convergindo com Álvaro Ribeiro para divergir de José Marinho, ali proclama que

 

“o pensamento procede da contemplação”, não para que Sofia, representante da alma humana, se eleve do lodo terrestre, onde se submergiu, mas para organizar esse lodo em sociedade de homens livres. A política é, assim, a primeira das ciências, como para Augusto Comte fora a sociologia.

 

Ainda neste livro, sempre na senda do mestre, afirma:

 

O filósofo aristotélico (…) é o que pratica a contemplação, mas não para se dissolver em qualquer homogeneidade mística, mas para receber do mundo sobrenatural o sopro inspirador das palavras que fazem ver, das palavras criadoras de pensamento. 

 

E, num terceiro texto, considera que «nunca foi tão necessário dizer abertamente e por toda a parte o que julgamos saber no seio dessa “actividade invisível” que é o pensamento».   

 

Cumpre-se, então, a redenção na imanência? Não. Em “Meta-História ou a Terra Prometida”, arrostando a evidência do mal, Telmo afirma que

 

a terra em que vivemos é apenas um laboratório; no athanor da humanidade separa-se o denso do subtil. Esta não é a terra definitiva. Para onde vai a energia que, pela entropia, constantemente se perde? Transforma-se em energia espiritual. Tudo quando de bom e de verdadeiro se pensou e imaginou, se pensa e imagina, é o subtil que se separa do denso e vai formar a Terra Prometida. As formas do nosso verídico imaginar ficarão à espera de que os tempos se cumpram para se incorporarem numa nova humanidade de que não participarão só os vivos de então, mas também todos os mortos do presente e do passado que não podem ter vivido em vão.

 

A entrevista à Encontro confirma esta tendência, pois

 

é no mundo intermediário, intermediário do mundo para Deus e de Deus para o mundo, que tudo se decide. Não é na terra; aqui todos são jogados. A filosofia portuguesa é uma criação da língua, é o que resulta da língua se pensar no espírito dos humanos. As suas teses, sobretudo os seus teoremas actuam no mundo intermediário, são tidas em consideração ali, pois, como ensinou Leibniz, «os anjos também investigam». Porque eu creio (…) que uma Nova Terra nascerá tendo por matriz a matéria do mundo intermediário ou imaginal, «essa matéria de que os sonhos são feitos».

    

Como conciliar estas duas direcções, aparentemente divergentes, da sua arte poética? Será insincera a sua esperança quando mostra ser por Neptuno «que o alto espírito contemplativo de Agostinho da Silva se torna activo pela palavra política, a humilde, audaz e inteligente serva da cidade dos homens para que um dia nela mandem os pobres e os iluminados»?

Para o pensamento maçónico, que é também o seu, não há contradição entre teurgia e política, entendida esta superiormente. Por aquela entende Charles Mopsik «a arte de produzir o divino ou efeitos na esfera do divino, com um fim redentor e não com fins pessoais egoístas». Em Filosofia e Kabbalah, Telmo afirma que o que é comum aos poetas e filósofos da Escola Portuense «é o modo de entender a oração como uma forma poética ou filosófica de acção sobre o mundo espiritual capaz de acelerar o processo colectivo de redenção». Mas essa acção, ainda que, em seu fundo martinista, se repercuta teurgicamente no mundo intermediário, incide também, como se verá, sobre este mundo.

Do conhecimento pela experiência do mistério ao pensamento que lhe dá expressão cumpre-se a arte poética de António Telmo, que, sobre o conto A Dama de Ouros, dirá a Ângelo Monteiro: «Esse conto tem por núcleo irradiante o mistério da imaginação e a experiência pessoal desse mistério. As palavras com que escrevi o conto ensinaram-me a conhecer melhor esse mesmo mistério e o que é dado na sua experiência.» Na verdade,

 

o homem, que tem por espírito a razão poética, precisa da língua para pensar, pensa com palavras, isto é, desenvolve em imagens e conceitos as ideias que o intelecto superior lhe comunica. Se todos os homens pensassem do mesmo modo, isto é, se não houvesse como há formas de pensar heterogéneas em correspondência com diferentes línguas, os anjos não teriam qualquer interesse em ensinar-nos ou em aprender connosco.

 

Assim se demonstra a importância decisiva da descoberta revelada na Gramática Secreta da Língua Portuguesa: a conformidade da estrutura fonética do idioma pátrio com a árvore sefirótica. Na senda de Moshe Idel, o pensamento de Telmo deve ser referido à cabala teosófica-teúrgica de linhagem sefardita. Da teosofia, isto é, do conhecimento das leis e das estruturas do mundo divino depende a eficácia da oração como uma forma poética ou filosófica de acção sobre esse mesmo mundo, isto é, da teurgia.

Mas a razão poética é bifronte.

Na esteira do capítulo “Os ritmos” de Arte Poética, lembra Telmo a Ângelo Monteiro: «O encantamento é o que é próprio da poesia, que para tanto dispõe do ritmo e da imagem. O ritmo embala e adormece a alma. Ai daquele que no ritmo incorpora imagens contrárias aos impulsos do ser que se rendeu ao encanto por aspirar ao Bem e à Verdade.»

Noutra entrevista, conduzida por Vítor Mendanha, afirma:

 

«A razão é o nome do espírito humano», escreveu Álvaro Ribeiro, e, se a intuição é divina, ou semidivina ou angélica, uma vez dada, deve ser integrada na economia espiritual da Terra.

 

Ainda que, de facto, possa não o ser, deve a História ser dignificada por um processo de assunção a que aqui se chamará de primeira instância. Tudo está, pois, em garantir a adunação da política à realização espiritual de cada homem.

Mas o que é a História?

Em Viagem a Granada, Telmo explora o equívoco da palavra, que se apresenta

 

num duplo sentido, um pelo qual é sinónima de conto, como em contar uma história, e outro pelo qual significa a realidade vivida pelo homem na sua existência terrestre, aquilo que é costume designar por mundo dos factos, considerados em sucessão. Pelo primeiro sentido, a palavra é relativa à poesia e à imaginação, pelo segundo à vida que temos por real no tempo e no espaço físicos.     

 

Considerando a hierarquia aristotélica que subordina a história à poesia, e que os adultos, perante as crianças, tendem a subverter pela afirmação do facto histórico em detrimento dos contos tradicionais, tidos por fantasiosos, Telmo lembra o aforismo de Goethe: «Os fenómenos são mistérios manifestados», fazendo notar que também «a história de um homem, a de um povo ou a da Humanidade devem ser vistas como a manifestação de profundos mistérios». E prossegue:

 

Tal visão da história somente é possível se soubermos realizar o procedimento mental inverso, o de trazermos ao plano da positividade os contos ou as histórias como o de Aladino e a Lâmpada Maravilhosa, ao plano da positividade vivida, por tal modo que tomemos esses relatos absolutamente a sério, naquela atitude de alma que assumiremos certamente se pensarmos que o seu autor anónimo pode muito bem ter sido Deus. Então, nem a poesia será mais verdadeira do que a história nem a história mais verdadeira do que a poesia.

    

A vida vivida segundo a razão poética, aqui pressuposta; e a História assim dignificada pelas vidas que a entretecem – eis a assunção da História que, numa primeira instância, nos propõe. No início das Congeminações, Agostinho da Silva esclarece-lhe o desígnio:

 

Foram Portugal e Espanha – sobretudo Portugal – a darem ao Mundo o conhecimento de si mesmo. Agora lhes conviria e lhes caberia o papel de dar o conhecimento daquilo que é fundamental nesse Mundo: Toda a gente poder ter aquilo a que chamo de Vida Poética, no sentido de criadora, em qualquer dos domínios: artes, ciências, filosofia, mística. Isso é possível e deveria fazer-se.

 

Que o maçonismo é compatível com o agostinianismo comprova-se pelo final do mesmo livro. Como Agostinho gostaria, ali se conciliam Platão e Aristóteles, pela resposta à pergunta do 5.º grau do ritual do Rito Escocês Antigo e Aceite: «Conheço os ideais celestes e esforço-me por os encarnar sobre a terra». É isso que, segundo Telmo, estará significado n’A Escola de Atenas, ao afirmar ser o fresco de Rafael «o símbolo do perfeito entendimento entre os dois filósofos». Na verdade,

 

eles conduziam e projectavam na nossa direcção a mesma energia urânica, um recebendo-a pelos dedos em ponta na mão fechada e passando-a para o outro que a dirige para nós pelos dedos separados da mão de palma voltada para a terra. Os olhos nos olhos concentram num único ponto o foco interior dessa energia.   

 

Nada disto colide com o que, evocando António Quadros, dissera: «A revelação do oculto não pode ser histórica. O oculto só se revela à alma.» Nessa evocação se sublinha não poder o compromisso do mito com a História ser tal que seja já esta a decidir, «através da política», do sentido daquele. Neste ponto, somos remetidos para uma outra acepção, de segunda instância, que a assunção da História comporta no pensamento de António Telmo. O tempo não permite agora a sua abordagem, pelo que ficará para a versão desenvolvida deste estudo.

 

Lisboa, 14 de Dezembro de 2016.

____________

* Comunicação apresentada ao 8.º Seminário do Projecto Redenção e Escatologia no Pensamento Português, da Universidade Católica Portuguesa.

UNIVERSO TÉLMICO. 47

01-12-2016 22:28

Publicamos hoje a comunicação que Miguel Real apresentou ao COLÓQUIO A LITERATURA DE AGOSTINHO DA SILVA, que o Gabinete de Estudos Agostinho da Silva organizou e concretizou no passado dia 15 de Outubro, no Auditório do Centro de Estudos Culturais e de Acção Social Raio de Luz. Este texto acaba também de sair a lume no número 9 da GEORGE, página mensal do GEAS no jornal Raio de Luz. Todas as comunicações serão reunidos no livro em que virão a lume, no decurso de 2017, as Actas do Colóquio.

As novelas sul-americanas de Agostinho da Silva

Miguel Real

 

1. – Agostinho da Silva escritor?

Numa primeira leitura, as novelas de Agostinho da Silva constituem-se como reflexão existencial pela qual o autor, através da alteridade de uma instância narrativa designada por “Mateus-Maria Guadalupe”, vai plasmando memórias, impressões de viagens, tipos sociais e meditações filosóficas e estéticas, numa peregrinação sem fim nem objectivo entre a Europa, a África e a América do Sul.

Escrita ao longo da década de 50, a novelística de Agostinho da Silva divide-se em três blocos narrativos, datados de 1953 – Herta, Teresinha, Joan -, 1955 – “Macaco-Prego” -, e 1957 – Dona Rolinha, Ada Carlos, Tumulto Seis e Clara Sombra a das Faias -, ainda que estes dois últimos, publicados em 1989, na editora Cotovia, de Lisboa, não possuam data especificada de escrita.

Com excepção das duas últimas novelas, Agostinho da Silva designa o conjunto dos restantes textos literários por “memórias” e por “lembranças”, inscrevendo-os deste modo na literatura memorialista de viagem. Porém, pelo seu conteúdo diegético, Tumulto Seis e Clara Sombra a das Faias podem igualmente inscrever-se neste género literário.

Fundindo escrita e vida, o cunho memorialista que Agostinho da Silva imprime aos seus textos literários denota mais uma preocupação de auto-reflexão do autor sobre a vida própria – uma espécie de escritor-testemunho - e menos uma pretensão de fazer literatura. Ele próprio o confessa, declarando, na apresentação dos primeiros três textos, de 1953, não atribuir importância a questões de estilo[1], isto é, justamente ao elemento categorial que define a singularidade de um escritor, integrando-o no panorama geral da literatura de uma época. Dois anos depois, na apresentação da novela “Macaco-Prego”, Agostinho da Silva enfatiza de novo o pouco valor que atribui ao trabalho estético-literário sobre a linguagem, escrevendo: “[as] minhas memórias, que eu vou escrevendo tão preguiçosamente e tão desordenadamente, (...) [escritas no] bom remanso e bom repouso para uma existência que, sem acidentes, apesar disso, ou talvez por isso, tanta vez se cansa de si própria. Revejo-o [ao texto da novela], mas não o corrijo. Porque muito me agrada restituir à vida, sem esforço, o que a vida, a mim, sem esforço me trouxe”[2].

Assim, numa primeira leitura, a posição de Agostinho da Silva face à literatura aparenta não ser a de um escritor. Em 1957, na apresentação de Lembranças Sul-Americanas de Mateus-Maria Guadalupe, Agostinho da Silva insiste nesta sua posição exterior à Literatura enquanto arte: “De modo que, se a crítica me permite, eu continuarei supondo-me do lado de fora da literatura, que é assunto sério e difícil de mais para mim; sentir-me-ei assim muito mais à vontade”[3].

Agostinho da Silva parece ostentar a sensibilidade estética prenunciada de quem, em horas de “repouso”, nas férias, decide passar para o papel as suas impressões de viagem, tomando como um dos temas centrais a sua relação com diversas mulheres. Com efeito, o autor parece nunca ter levado a literatura a sério, não ter querido ser escritor ou fazer da literatura o elemento sagrado da sua existência. Por isso, no seu primeiro núcleo de novelas, explora o tema da relação de impossibilidade do amor entre homem-mulher, enquadrando-o em contínuas viagens, estabelecendo-lhe uma forma literária (o memorialismo), mas, como confessa, não intenta desenvolver um estilo singular, escrevendo apenas de um modo gramaticalmente correcto.

Assim, se nas primeiras novelas – 1953 - a exploração de um tema e o enquadramento literário já existem, como prenúncio de um possível escritor, falta ainda, porém, o elemento estético vital que diferenciaria Agostinho da Silva dos restantes escritores – o estilo. Evidencia-se assim, em 1953, que se repetirá em 1955, a existência de um quadro contraditório em Agostinho da Silva principiante de escritor: 1.– possui um tema, que explora abundantemente (a impossibilidade da realização de um amor absoluto entre homem e mulher); 2. – possui uma forma literária enquadradora da exploração do tema: o memorialismo; 3. – falta, porém, o selo sagrado da individualidade estética de um escritor – o estilo próprio pelo qual uma história nunca fora contada dessa excepcional maneira.

Pelas citações que referenciámos, constatamos que Agostinho da Silva tem consciência de que não é verdadeiramente um escritor e de que se encontra do “lado de fora da literatura”. Na mesma apresentação de 1955, recolhendo informações de críticos literários portugueses, que não nomeia, indica três factores por que os seus textos não seriam propriamente literários: - a coloquialidade brasileira; a ausência de carácter das personagens e a ausência de trama narrativa[4]. Torna-se hoje evidente que nenhum destes factores, prendendo-se exclusivamente com análises parcelares e modísticas da parte dos críticos, então, meados da década de 50, profundamente divididos em correntes literárias, projecta Agostinho da Silva para “fora da literatura”. A verdadeira razão – parece-nos -, encontramo-la num desabafo do autor quando confessa “não ser muito versado no estudo dos clássicos, muito dos quais, para falar verdade, não tornei a ver desde os meus tempos de liceu”[5]. Ou seja, para Agostinho da Silva da década de 50, a literatura evidencia-se como uma actividade de tempos de vilegiatura, um fazer as contas ficcionais dos passos dados na vida, com evidente prazer estético, claro, mas não prazer sagrado. Numa palavra, sem estudo e sem prática estética, a literatura parece ser encarada por Agostinho da Silva de um modo diletante, literatamente, isto é, sem nunca encará-la como um absoluto em que se joga a vida. O literato é o escritor que escreve bem, maneja habilidosamente a gramática, limitando-se a uma descrição das impressões filosóficas e ideológicas da vida. Assim, o literato não escreve literatura, mas impressões de vida, espécie de testemunho escrito da sua existência, ficcionando esta segundo preocupações específicas, que habitualmente constituem o tema e o enquadramento dos seus textos.

Em conclusão, os textos literários escritos entre 1953 e 1955, indicam-nos que Agostinho da Silva não é um escritor, mas - porque já possui um tema próprio e uma forma estética privilegiada - um principiante ou candidato a escritor, ostentando, nas introduções às suas novelas, uma posição diletante ou literata da literatura.

Permitam-nos, porém, tentar esclarecer a afirmação de Agostinho da Silva segundo a qual ele e os seus textos se encontrariam “fora da literatura”. Será argumentativamente suficiente esta declaração pessoal? Não pertencerá a uma estratégia retórica do autor de modo a acentuar a radical novidade dos seus textos? Recordemos que, vinte anos antes, tanto Jorge Amado, no Brasil, na epígrafe a Cacau, como Alves Redol, em Portugal, na epígrafe a Gaibéus, tinham ostentado idêntico desprezo pela literatura como arte com o evidente intuito, porém, de criticarem as antigas criações romanescas e de lançarem uma nova corrente estética; menos de dez anos antes, os jovens surrealistas portugueses, como José-Augusto França, Mário Cesariny, António Maria Lisboa, manifestavam nos cafés de Lisboa um profundo desprezo pelo modo harmonioso de compor versos ou textos narrativos; que, sete anos depois, em 1962, o juvenilíssimo Almeida Faria, em Rumor Branco, manifestará idêntico desprezo, dispensando-se do uso da sinalética fonética no seu romance. Poderemos inserir Agostinho da Silva nestas correntes e gestos literários de profundo simbolismo contestatário? Cremos que não, só se critica o que se conhece e, em termos literários, é o desconhecimento, o não convívio com a recente literatura portuguesa e brasileira, que leva Agostinho da Silva a confessar com sinceridade estar “fora da literatura”. Se o autor se confessa “fora da literatura” é porque tem consciência que não está “dentro” dela, ou seja, que é alheio a tudo o que é vital a um tempo literário, definindo-o. E Agostinho da Silva prova, pelos seus próprios textos, que se encontra alheio ao então sangue quente da literatura brasileira e portuguesa. Mateus-Maria Guadalupe convive com uma inúmera diversidade étnica de povos do interior do Brasil e não faz nenhuma referência ao modernismo brasileiro e a Macanuíma, de Mário de Andrade; Mateus-Maria Guadalupe atravessa o Recife, descreve a personagem Ada Carlo a ser presa na delegacia da polícia de um bairro que, pela descrição do mercado e dos joalheiros, não pode ser outro senão o Bairro de S. José, e nem uma referência a um espírito errante tão semelhante ao seu como o de Manuel Bandeira. Mateus-Maria trabalha em Minas Gerais mas parece desconhecer totalmente a existência de Carlos Drummond de Andrade ou de Guimarães Rosa. Mateus-Maria Guadalupe viaja pelo Sul, Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Santa Catarina, mas nenhuma referência, por mínima que seja, que nos faça lembrar o lirismo de Erico Veríssimo. Mateus-Maria privilegia a Bahia e o Recôncavo, mas parece desconhecer totalmente a épica mulata e operária que Jorge Amado acabara de escrever; descreve o sertão, partes da Bahia, da Paraíba, do Pernambuco, do Ceará, mas nenhuma menção a Graciliano Ramos e muito menos ao clássico José de Alencar. Mais: Mateus-Maria explora o rio Madeira, quem sabe se não terá descansado nas ruínas do “seringal Paraíso”, cruza o Amazonas e desembarca em Belém do Pará e nem um mínimo de referência à personagem Alberto de A Selva, de Ferreira de Castro. É como se Mateus-Maria Guadalupe fosse uma mónada literária, reflectisse todo o mundo segundo o seu lugar no universo e a ordem do universo de Mateus-Maria a tudo respeitasse menos o da literatura brasileira.

Assim, tanto por razões intrínsecas (as palavras confessionais do autor) quanto por razões extrínsecas (a historiografia das literaturas portuguesa e brasileira), parece-nos ser verdadeira, e não uma mera estratégia retórica, a declaração de Agostinho da Silva de que a sua actividade literária se encontra “fora da literatura”. Neste aspecto, e por todas estas razões, em termos de crítica e de historiografia literárias não se pode deixar de confessar ser a obra ficcional de Agostinho da Silva mais de um literato do que de um verdadeiro escritor, de um pensador do que de um escritor.

 


[1] Cf. Agostinho da Silva, “Nota Prévia” a Herta. Teresinha. Joan. Três Novelas ou Memórias de Mateus-Maria Guadalupe, [1953], in “Obras de Agostinho da Silva”, Estudos e Obras Literárias, Lisboa, Âncora Editora, 2002, p. 73.

[2] Cf. Agostinho da Silva, “Macaco-Prego”. Lembrança Sul-Americana de Mateus-Maria Guadalupe, ed. cit., p. 155.

[3] Cf. Agostinho da Silva, Lembranças Sul-Americanas de Mateus-Maria Guadalupe Seguidas de Tumulto Seis e Clara Sombra a das Faias, ed. cit., p. 183.

[4] Idem, ibidem, pp. 183 – 184.

[5] Idem, ibidem, p. 183. 

 

EDITORIAL. 09

20-11-2016 00:31

Continuar

 

O Projecto António Telmo. Vida e Obra completa hoje três anos de existência. Por vezes difícil, a nossa caminhada tem sido aliciante e fértil. Não falamos somente da realização de muitas dezenas de colóquios e conferências de Norte a Sul do país. Falamos também de doze livros editados com a nossa marca, com destaque para as Obras Completas de António Telmo, cujo Volume VI, Viagem a Granada seguida de Poesia, hoje mesmo, dará entrada na editora Zéfiro. Os livros do nosso patrono encontram-se finalmente disponíveis nas principais redes livreiras de Portugal, assim se tornando disponíveis os títulos canónicos da sua bibliografia a par de centenas de páginas inéditas que vêem a luz do dia e continuamente revelam uma obra fecunda e futurante.

A par da perpetuação do legado do nosso patrono, outros nomes ligados ao pensamento português têm recebido a nossa dedicação. É o caso de Agostinho da Silva, um dos mestres de Telmo, que nos motivou a criação do GEAS – Gabinete de Estudos Agostinho da Silva em parceria com o Centro de Estudos Culturais e de Acção Social Raio de Luz, estrutura que tem vindo a promover, com assinalável sucesso, a renovação dos estudos agostinianos, através da edição de obras, da publicação mensal da página GEORGE no jornal Raio de Luz e da realização de colóquios e conferências que congregam amigos e estudiosos do Estranhíssimo Colosso.

Três anos passados desde o primeiro passo, cabe-nos agradecer a quantos – e têm sido muitos – nos apoiaram, das mais diversas formas, nesta caminhada. A todos eles, fica ainda a nossa promessa de continuar. De continuar a crescer. E a surpreender.  

Uma palavra final, de profundo reconhecimento e gratidão, para a família de António Telmo, na pessoa de Maria Antónia Vitorino, sem a qual, provavelmente, este texto não poderia ter sido escrito. Bem-haja! 

INÉDITOS. 68

19-11-2016 22:46

[Que se passou na infância que não lembro]

 

Que se passou na infância que não lembro

Mas sinto como sombra em mim erguida

E me deu cabo da alma nesta vida

E me marcou o corpo membro a membro?

 

Se não me lembro como existe em mim?

Memória da alma que não chega à mente

Memória deste corpo que a alma sente

 

António Telmo

UNIVERSO TÉLMICO. 46

19-11-2016 22:19

Agostinho da Silva: a década perdida

Pedro Martins


António Telmo ofereceu-me este manuscrito (ou dactiloscrito, se preferirem) de Agostinho da Silva no início de 2004. "Projecto", destinado à nunca concretizada Revista Municipal que a Câmara de Sesimbra deliberara criar em Dezembro de 1969, quando Telmo era já o Director da Biblioteca Municipal, estava ainda inédito ao vir para a minha mão. Tive o privilégio de o publicar, juntamente com a, também inédita, "Apresentação", por Telmo, da revista, no número 30 da agenda cultural Sesimbra Eventos (1999-2005), na verdade uma pequena revista cultural bimestral de que se publicaram 40 números, e que jornalistas autorizados como o saudoso Helder Pinho, de A Capital, e Pedro Rolo Duarte, do Diário de Notícias, consideraram uma das melhores do país.
Dois anos e meio depois, «Projecto» saiu pela primeira vez a lume em livro, nas Actas do Congresso «Agostinho da Silva e o Espírito Universal», realizado na Biblioteca Municipal de Sesimbra, sob a égide de António Telmo, por ocasião do centenário agostiniano. Recentemente, em 2015, foi republicado na marginália do Volume III das Obras Completas deste filósofo, chegando, assim, à disposição do grande público. Acompanha-o um outro escrito de Agostinho, sobre um livro perdido de Telmo, proveniente do espólio deste, mantido inédito até ao final de 2014, quando a generosidade de António Cândido Franco me permitiu publicá-lo na revista A IDEIA. Creio não errar por muito se afirmar que, desde 2007 e até hoje, foram estes, a par das Cartas de Agostinho da Silva para António Telmo, de Agostinho da Silva - A Última Entrevista de Imprensa (no âmbito do GEAS - Gabinete de Estudos Agostinho da Silva), e da segunda parte de Vida Conversável, em curso de publicação na revista NOVA ÁGUIA, os únicos inéditos do filósofo que vieram a lume. Depois da de Fitzgerald, também Agostinho parece ter tido a sua década perdida. Ficaremos por aqui? 
Quando será possível vir a encontrar os dois escritos do espólio télmico que acima mencionei num livro de dispersos do próprio Agostinho da Silva? 
Quantos inéditos da autoria deste aguardam por um prelo? Por que motivo, de 2006 em diante, praticamente parou a edição de novas obras de Agostinho da Silva? Por que estão hoje ausentes das nossas livrarias os títulos clássicos da sua bibliografia? Agostinho não vende? Deixou de ter leitores? Perdeu o interesse? Não interessa dar a conhecê-lo às novas gerações? Ou será apenas desejável confiná-lo à memória circense das Conversas Vadias? Ou ao debitar a esmo de citações avulsas, dirigidas e descontextualizadas no facebook, para fomento do devocionismo, a par do famélico recurso a uma ou outra selecta? De repente, um assombroso paradoxo se abateu sobre o Colosso, ao ver-se agora servido como célere comida de plástico num qualquer McDonalds, mas jungido à frugalidade herbívora das tebaidas. 
Por que se organizou um grande Colóquio Internacional sobre o filósofo em Fevereiro deste ano sem o mínimo vislumbre de actas, ou sequer da disponibilização electrónica dos respectivos registos em video, sabendo-se que o colóquio foi difundido pela Internet em live streaming?
Talvez, como há não muito Renato Epifânio alvitrou no texto que assina em Agostinho da Silva - A Última Entrevista de Imprensa, seja este caso uma «espécie de maldição». Se assim for, só nos resta esperar que o feitiço se vire contra o feiticeiro.

INÉDITOS. 67

12-11-2016 23:12

[Uma vez conheci pelo Espírito Santo,]

 

Uma vez conheci pelo Espírito Santo,

Mas esqueci o modo como o fiz.

Ficou só uma sensação de espanto

E de que fui feliz.

 

Por isso busco reaver o modo

P’lo qual veja de novo o que então vi.

Entretanto, afundo-me no lodo

Do olvido em que me perdi.

 

Este destino é comum a toda a gente

Dos que se movem pelo que souberam

O que há de mim pr’a eles de diferente

É que eles esqueceram que esqueceram.

 

António Telmo

DOS LIVROS. 53

05-11-2016 16:47

Saído a lume, pela primeira vez, no número 30 (de Abril/Maio de 2004) de Sesimbra Eventos, agenda cultural do Município de Sesimbra, e posteriormente incluído em Sesimbra, o lugar onde se não morre (livro a que, de resto, acaba por dar o título) e no Volume III das Obras Completas de António Telmo, Luís de Camões e o Segredo d’Os Lusíadas seguido de Páginas Autobiográficas, o texto que hoje publicamos destinava-se a apresentar a Revista Municipal de Sesimbra, publicação nunca concretizada, mas para a qual Telmo, que seria o seu Director, chegou a solicitar colaboração a Agostinho da Silva, então já por Sesimbra, e que para ela compôs o sublime “Projecto”, já aqui disponível, e agregada à marginália daquele volume.

Da embrionária Revista Municipal dará notícia O Sesimbrense, na sua edição de 17 de Janeiro de 1971: «Espera-se a publicação, já estudada, de uma «Revista Municipal», que também será dirigida por António Telmo, e onde se arquivem trabalhos – de sesimbrenses e de outros – de interesse regional e nacional.»

Graças a recente investigação levada a cabo por João Augusto Aldeia, membro do Projecto António Telmo. Vida e Obra, sabemos hoje mais sobre a projectada publicação. Com efeito, num livro de actas da Câmara Municipal de Sesimbra, com respeito à reunião de 29 de Dezembro de 1969, consta a lacónica deliberação: «Biblioteca Municipal: Revista Cultural - foi deliberado criar uma revista de divulgação cultural da biblioteca municipal.»

O projecto gorou-se, o que possivelmente se ficou a dever à partida de Telmo para o Redondo, na segunda metade de 1971. Mas os novos dados, agora coligidos, são por modo a fazer-nos supor que ele constituía uma prioridade para Telmo, e que quer o seu texto, quer o de Agostinho, tenham sido escritos pouco tempo decorrido sobre aquela deliberação.

 

Apresentação

 

Aconteceu em Lisboa, no Grémio Literário, na alta-roda dos intelectuais; falava-se da Califórnia e dos portugueses que aí vivem, da América do Sul e do povo brasileiro. De repente alguém, que não é de Sesimbra, atirou esta frase que deixou estarrecidos nos seus lugares os quatro sesimbrenses que assistiam ao colóquio: Não é na Califórnia nem no Brasil que devemos situar o Centro do Mundo; é em Sesimbra! Se a frase tivesse saído da boca dum sesimbrense, vamos lá!, não seria muito bonito num ambiente daqueles, com todas aquelas cabeças pejadas de grandes temas e de grandes espaços intelectuais, que tudo vêem, entendem, e fazem entender os outros pela dimensão da Europa e do Mundo. Mas o que surpreende e nos deixa perplexos é ter ela sido proferida por alguém que apenas conhece Sesimbra como turista, de ter passado aqui e ter visto este mar, este castelo, estas casas, esta gente, esta vila, numa tarde de sol inexpressiva como todas as tardes de sol em que todas as pessoas fazem o mesmo por não serem capazes de fazer coisas diferentes.

Sesimbra, o Centro do Mundo! E porquê? E como? Interrompeu o Agostinho da Silva, uma espécie de flagelo de Deus pela ideia como Atila o foi pelas patas do cavalo, para dizer que o facto de uns porem o Paraíso, o tal Centro do Mundo, em Brasília, outros na Califórnia, outros em Sesimbra, somente significa que o lugar onde se não morre está por toda a parte, por toda a parte onde haja homens que, pensando e imaginando, desceram tão profundamente dentro de si próprios que tocaram aquele ponto do espírito para o qual convergem por infinitos raios as várias esferas que definem a actividade dos outros homens. Eis o paradoxo da cultura: e é que tal homem ou tais homens é mais fácil e certo encontrá-lo ou encontrá-los no pescador que nunca ouviu falar de Einstein ou de Sartre ou de Russel, mas que tem dentro de si as grutas do ser ainda inexploradas pelos outros homens, mas onde ressoa, num ritmo ancestral e idêntico, a grande voz do mar. Por isso, todas as publicações culturais, como esta que agora nasce, deveriam nascer para dizer mal da cultura, de que já se ria Sócrates, o homem mais culto da Grécia, para quem, toda a gente sabe, o princípio da ciência residia na terra virgem das almas sem ciência nenhuma. Em Portugal, cada um de nós é um Mestre e o crer-se Mestre, no ofício, na profissão, no negócio e em tudo o mais, cresce sempre na razão inversa da sua autêntica sabedoria. Daqui o culto que prestamos aos catedráticos, aos que exibem livros como outros exibem automóveis, aos que disfarçam num pomposo título universitário ou num mais modesto diploma de formatura a sua incapacidade de ver, de investigar e, portanto, de perguntar constantemente. É uma banalidade que sempre se esquece: a de que a inteligência se mede muito mais pelas perguntas que se fazem do que pelas respostas que se dão.

Mas se na auto-suficiência de quem funciona como mestre não há nem pode haver a fecunda expectativa da pergunta, o entusiasmo da hipótese, a certeira aventura da investigação, existe sim a terrível, fria, atenção aos defeitos dos outros, aos erros (de errar, vagabundear, procurar) que todos necessariamente vamos tendo numa vida que queiramos ou não é sempre viagem, embora quase sempre de rotina depois de se ter ido à Índia, e assim em cada mestre há um crítico, o que corresponde zoologicamente à girafa, com um pescoço muito comprido a separar a cabeça do corpo e dos seus instintos, emoções, sentimentos, e uma boca de roedor que vai mastigando todas as plantas que vivem no alto, ali onde só deviam chegar pássaros e abelhas.

Triste é ter que dizê-lo: em cada português vivem de mãos dadas um mestre e um crítico. Daqui a dificuldade de um suplemento de cultura como este. Ele só serviria para os que infelizmente não sabem ler. Mas resta a esperança de que nos que sabem ler, esteja aquele que sabe e não sabe ao mesmo tempo, isto é aquele que em cada novo conhecimento adquirido sinta não uma cadeira ou cátedra em que se possa sentar definitivamente, mas uma nova forma de interrogação, o que esperamos se encontre numa terra em que o constante vai-vem do mar corrói todas as arestas definidas e destrói todos os frágeis portos dos homens.

 

António Telmo

 

(Publicado em Luís de Camões e o Segredo d’Os Lusíadas seguido de Páginas Autobiográficas, 2015)

UNIVERSO TÉLMICO. 45

01-11-2016 16:13

A pobreza dos sem tempo (1)

Risoleta C. Pinto Pedro

 

Há que saber distinguir os vários tipos de sentimento de carência em relação ao tempo:

. O tempo dos modernos escravos, cujo dia é totalmente preenchido pelo trabalho, deslocações para e do trabalho e o indispensável e insuficiente repouso para no dia seguinte continuarem a trabalhar e por conseguinte nem lhes sobra tempo para pensar ou sentir o que quereriam para lá do trabalho.

. O daqueles que, embora sabendo-o e pensando-o, não dispõem de tempo para o fazer.

. O dos que, conseguindo furar o sistema e tendo muitos pontos de interesse, não conseguem ter tempo para todos…

Tenho a sorte ou o privilégio (não digo merecimento, porque esse todos têm) de me situar no último grupo e de não depender do que crio para viver. Contudo, é disso que vivo. Não sendo isso que me paga as contas.

Assim, a criação é o meu espaço e o meu tempo de inteira liberdade. Se me apetecer ficar dez horas a escrever em non-stop, posso fazê-lo. Já aconteceu. E não as sinto. Isto é, não as sinto como peso, mas como leveza. É o tempo do relógio que, paradoxalmente, vem em minha ajuda a retirar-me da eternidade onde não sinto o passar das horas e o meu corpo fica repousado (a prova dos nove de que a mente está bem) como se voltasse à infância. Por outro lado, se quisesse passar uns dias sem escrever, desejo que nunca tive, poderia fazê-lo. E não acontecendo, nem desejando que aconteça, gosto de saber que poderia dar-me ao luxo de deixar acontecer.

O preço, que é ao mesmo tempo um prémio, é não me sentir obrigada a ir a nenhum lugar excepto aqueles aonde me leva o coração, ou a ter de falar com quem não me apetece, sobre o que não me apetece. Não vivo o tempo da tribo, vivo o meu tempo. E, não sendo escultora, moldo-o como gosto.

Como Agostinho da Silva, quando nos propõe o regresso a uma «vida conversável» ou à vagabundagem, no seu sentido mais solar.

Há uns bons anos, a minha filha, ainda muito pequenina, que andava na natação, no tai-chi, na dança e no piano e tudo lhe era fácil e natural, pelo que, julgava eu, nada lhe seria pesado, um dia virou-se para mim e disse-me que não queria voltar a nenhuma aula daquelasPorquê? Socorro-me do discurso indirecto livre para vos transmitir a sua resposta: precisava de mais tempo para brincar. Assim passou a acontecer. Brincou, brincou e brincou até que se fartou e começou...  a namorar. O sinal que a denunciou foi quando escondeu os ursos de peluche no armário, avessos à dignidade do novo estatuto.

Eu ainda ando a aprender a brincar com o tempo, a não o sofrer nem a empurrá-lo para a frente. A senti-lo, cheirá-lo, acariciá-lo, saboreá-lo, observá-lo. O que me vale é que as minhas actividades principais, nomeadamente a de escritora, são uma espécie de meditação, de que saio renascida como de um spa. A arte, que me salvou uma vez da eternidade, continua a salvar-me do tempo. Mas se não fosse isso, teria sérias dificuldades. Porque tenho um problema. É que gosto de muitas coisas e não tenho tempo para todas. No momento de vida em que estou, já não sou o tipo de pessoa que não tem tempo para o prazer por ter de ganhar a vida. Mas na verdade, quando tinha de ganhar a vida, nunca me alienei do prazer, trazendo-o para dentro do trabalho. O meu problema é que gosto de tanta coisa, que não tenho tempo para tudo. É como se vivesse numa casa cheia de guloseimas e não pudesse comê-las todas. Por falta de estômago ou de… tempo. Nesta situação, é preciso fazer escolhas. Escolher umas coisas e deixar, abandonar, largar outras. Não se pode avançar com carga excessiva às costas, ainda que sejam chocolates ou caramelos. É preciso escolher, e isso implica perder ou deixar para trás algumas coisas. Talvez o nosso problema com o tempo seja sobretudo um problema de escolha. Há uma canção cuja autoria não consigo assegurar, mas penso ser interpretada por Sara Tavares, cujo texto diz: «Sei que posso querer tudo, mas nem tudo me convém…».

De modo que convidarem-me a falar sobre o tempo é como convidar um criminoso a falar sobre a criminalidade. Não sou a pessoa mais indicada, mas talvez as pessoas menos indicadas sejam as mais indicadas. Se até aqui os legisladores, os políticos, os psiquiatras, os psicólogos, os polícias não conseguiram erradicar a criminalidade, talvez tenha chegado o momento de chamar os criminosos. Assim se passa com o tempo. Se quem mais o sofre é quem melhor o conhece, talvez tenha, por isso, uma palavra a dizer, sendo que desconfio que qualquer ser humano, e não apenas eu, é um especialista do tempo, essa arte de suportar o peso do que não existe.

O tempo está relacionado com a questão da falta, do excesso, da inutilidade e do valor.

Há quem fale do desperdício de tempo. É um tema muito controverso e depende do que significar desperdício para cada um. Desperdiço tempo quando estou a trabalhar? Quando não estou a trabalhar? Quando vou à esplanada a conversar com um amigo? Quando estou na fila da ponte ou de uma qualquer cintura interna, externa ou marginal? Quando estou a dormir? Quando não estou a dormir? Quando ando a vaguear? Quando vou ver um filme estúpido? Quando fico um dia a jogar? Quando passo um dia a ler? Quando luto contra o sono? Quando passo um dia a dormir? Por aqui não nos entenderemos. Mas sei uma coisa, e não tenho sobre ela a menor dúvida: os minutos, horas, dias mais bem gastos de que me recordo, foram passados a conversar com o meu pai quando ele já estava numa cadeira de rodas devido ao Parkinson e o sentido do que dizia já não batia muito certo com a lógica, mas o que nos ríamos ambos com o nonsense das suas desconversas... Nesta fase, o meu pai já não podia dar-me nada, nem ensinar-me nada, ou ajudar-me em nada, nem sequer conseguia ter uma conversa com pés e cabeça. E no entanto, como me era precioso e preciso esse tempo que não servia para nada! Porque ele estava aqui. Era totalmente inútil e tinha todo o valor.

Estar, brincar, conversar com uma criança também é uma coisa que não serve para nada e é a coisa mais valiosa que se pode fazer no mundo.  Ou escrever um poema, esse ser inerte e inútil que nos salva. Ou escrever uma história cheia de pessoas que não existem e de factos que nunca aconteceram. Ou apoiar um animal em fim de vida, já incontinente e de olhar doce. Ficar ali a olhar para ele, a reconhecer o seu ser, a acariciá-lo, a apoiá-lo, a limpá-lo, a alimentá-lo, ou nada disso, apenas a dizer-lhe, com os olhos, que fique enquanto quiser, ter-nos-á ao seu lado e que pode partir quando já aqui não quiser estar, que permanecerá para sempre no nosso coração. São momentos em que libertamos o tempo e a nós mesmos, e conhecemos o verdadeiro valor. Que só está presente no inútil, no fraco, no pequeno e dentro de cada um de nós. Independentemente do que temos ou fazemos.

O contrário é sofrermos o tempo, ou por o sentirmos demais ou, mais frequentemente, por o sentirmos como escasso. No primeiro caso, estamos perante o tédio, como se o tempo fosse excessivo «para a nossa camioneta». No segundo, sentimos a angústia dos ponteiros a correr. Como se o tempo não chegasse.

Quando nascemos, a primeira respiração é, a maior parte das vezes, escassa ou aflitiva. A experiência fica na memória celular, como: Não há ar suficiente no Universo. Essa memória de escassez transmite-se ao dinheiro, ao amor, ao… tempo. E a vida, que está a nascer, mas já ameaçada pelo medo da morte, é desvalorizada. Começamos desde ali, inconscientemente, numa corrida urgente para o final cuja data antecipamos… uma corrida contra o tempo. E nada disto tem de ser assim. Começa a ser diferente, através da consciência que os pais, os educadores, os profissionais de saúde e cada um vai adquirindo sobre este absurdo assunto.

Mas nem sempre a humanidade viveu escravizada ao tempo. Nós, portugueses, que já soubemos vivê-lo poeticamente, podemos redescobri-lo. Quando sucessivos soberanos ao longo de gerações enviaram delegações por terra e mar à Etiópia em busca de Preste João e de seu maravilhoso reino, que significa isto? Que eram ingénuos? Que queriam gastar dinheiro e vidas inutilmente? Ou que estavam, muito mais do que nós, libertos do tempo, de algum modo situados num tempo poético ou eterno, esse que havia de chegar do futuro e salvar do excesso de pragmatismo a humanidade a partir da pretérita e eterna arte de navegar no tempo?

Somos o povo melhor preparado para ensaiar e ensinar ao mundo esta nova maneira de nos relacionarmos com o tempo, mas temos de reaprender o que já soubemos muito bem fazer.

Esses nossos antigos eus faziam o tempo e imortalizaram um imperador conservando-o no seu reino por sucessivos séculos à espera dos Portugueses que tanto o amavam sem o conhecerem. Era comércio, mas também era fé. E era amor. Havia inocência neste amplo gesto libertador do tempo. Ou escultor do espaço, pelo sagrado da viagem. Nós éramos o Preste João e estávamos à espera de nós mesmos.

E quem o fez foram os melhores de entre os melhores. Outro visionário, o Padre António Vieira, escreveu algo que no tempo em que ocorreu devia ser um título inimaginável. Ainda hoje, a História do Futuro o é, para o senso comum.

Nesta linha, diz Agostinho da Silva numa carta a António Telmo, referindo Os Lusíadas, que

«tudo se passa ao mesmo tempo no eterno dos deuses e até num eterno que sobrepassa o eterno dos deuses e no tempo dos homens, sendo que provavelmente o tempo dos homens não é mais que o sinal ou símbolo do eterno dos deuses.» (2)

Isto é, o tempo dos homens é que não é real, é apenas um deíctico, aponta para outro tempo. Não afirmo isto querendo diabolizar o tempo cronológico, mas alertando para a necessidade de acabar com o seu despotismo.

E acrescentaria que talvez o tempo da criação seja o que mais se aproxima disto, sendo que, como muito bem explicou António Telmo, também essa viagem dos portugueses se fez fora do tempo, porque é de um tempo iniciático que se trata:

«A hipótese que ponho é que Os Lusíadas são a narrativa poética de uma viagem de conhecimento, ou, se preferirdes, de uma ‘viagem iniciática’». (2)

Elenca seguidamente dez características da obra que fazem dela a tal viagem de conhecimento, sendo uma delas constituir:

        «uma infracção do que é lícito, uma violação do que é proibido ou vedado». (2)

Ora, nos tempos nossos, se quisermos ser integralmente livres, estamos sempre a violar o que é proibido ou vedado. Até o ar puro já é vedado, porque a possibilidade de conspurcá-lo pertence aos poderosos. Assim, é o tempo o único do qual podemos dispor sem interferências, seja na arte, seja na vagabundagem, como a experimentaram os portugueses ao longo de séculos, e que os nossos filósofos designaram como uma síntese divina do movimento e da quietude.

 Se o tempo está directamente ligado ao espaço, o não tempo reside no centro, esse refúgio, diria um budista, ou umbigo de Deus, digo eu, essa síntese de tudo, onde tudo é possível, e os poderosos do mundo deixam de ter poder.

É depois de terem vivido a experiência da Ilha do Amor, esse espaço outro ou não espaço, mas não menos real, essa ilha de que cada um é habitado, que os portugueses podem conhecer a eternidade com que o tempo se domina:

«Levam refresco e nobre mantimento;

Levam a companhia desejada

Das Ninfas, que hão-de ter eternamente,

Por mais tempo que o Sol o Mundo aquente.» (3)

 

Por isso, volto a citar António Telmo em O Segredo dos Lusíadas:

«É deste ponto de vista que sugerimos ao leitor a aproximação d’Os Lusíadas. Aquilo que neles é dado como histórico, como discurso no tempo histórico e expansão no espaço geográfico, se for reflectido à luz do Arquétipo da Ilha, tornar-se-á transparente pela instauração interior e exterior do espaço e do tempo da alma. Deixarão Os Lusíadas de ser uma epopeia do passado, ensináveis nas escolas que do passado se ocupam. E aquilo que um dia escrevemos e dissemos – que Os Lusíadas são o Livro Sagrado de Portugal –, não terá sido uma palavra vã.» (4)

 

Porém, nesta dimensão do denso onde estamos a comunicar, tempo e espaço são dificilmente separáveis. Talvez por isso, alguns sem tecto, não todos, mas em todo o caso alguns, que não vivem a sua condição como fatalidade, mas como escolha, ou pelo menos como semi-escolha, ou escolha inconsciente para se sentirem senhores do tempo, sentem necessidade de abdicar da senhoria do espaço. Como se não fosse possível acumular duas mordomias, espaço e tempo. Como se a hipoteca da alma, que é o preço de um espaço, ou pelo menos assim a sentem, fosse impeditiva do domínio do tempo. Ou da condição que a ele conduz, que é o desinteresse. Os senhores do tempo não pensam no tempo, sentem o corpo na sua relação com os ciclos. Levantar, comer, vagabundear, dormir... entre a estrela da manhã e a da tarde se pontua a liberdade dos sem tecto. Modernos místicos, os que vivem no asfalto. Talvez por essa razão seja frequente ver pessoas sem abrigo acompanhadas por animais, esses outros seres que vivem acima do tempo.

Recordemos, porque não é demais, a crença de escassez da humanidade, já atrás referida, que radica na primeira respiração do mundo. Quando a passagem da película de protecção e abundância sem esforço que é a placenta se faz para a aflição do primeiro ar sofrido a choro, do primeiro medo de que não baste, de que o ar rareie, não seja suficiente para viver. Do extremo conforto à aflição da rarefacção do ar, dor na divina ventoinha interna. Esse sentimento de escassez vai contagiar toda a nossa relação com o mundo. Se nos falta o ar ao entrar na vida, ficamos plasmados nessa crença: se não há ar que sustente o meu viver, como é que há vida? Neste medo começa tudo: os que amealham, acumulam e roubam, e os que se deixam roubar. Mas a experiência foi semelhante e a crença é a mesma. A de que não existe ar suficiente no Universo. À crença da insuficiência do ar acrescentam-se as outras: amor, dinheiro, tempo... Uns pagam pelo ar, pela telha, pela água e pelo sol, outros recebem e amealham. Outros desistem. Mas todos têm medo. Todos são mendigos. Mendigos roubam mendigos. A única salvação dos que se sentem despojados do pouco que acreditam existir é o tempo. Esse luxo dos que não têm nada, inacessível aos que, violando, acreditam ter tudo. Não tem fonte de alimentação, não faz parte de uma experiência táctil, não se come, não se bebe, não se vê. É como se não existisse, como o ar. Subtil sistema de escravização dos dominadores. Existe uma conspiração dos silenciosos, por isso não posso dizer isto muito alto, que é permitir que os que se mostram como dominadores se vão deixando abater por esse silencioso cavalo de Tróia que é o tempo: invisível, subtil, insinuante, poderoso.

Assim tem sido. Mas não tem de ser assim. A arte pode ser uma escola de libertação desta infernal cadeia onde todos sofrem.

Quando o criador tem em mãos a sua obra, não há tempo. Apenas o escurecer ou o clarear do dia testemunha a passagem das horas. Artistas e mendigos são cúmplices desta revolução silenciosa com o tempo que está para lá de todos os tiques e ataques, de todos os tiquetaques.

Sobre o antiquíssimo drama da pobreza no mundose falarmos com adultos (e tenho levantado este assunto, para testar), sobre esta ideia da erradicação da pobreza passando pela ilegalização, olham-nos esbugalhadamente como se estivéssemos loucos. Mas as crianças, essas, acham normal. Porque é. E porque ainda não enlouqueceram. Mas é preciso mostrar-lhes que não estão sós e que há ainda uns adultos que as compreendem. Não é que elas precisem de aprender o que já (ainda) sabem. Nós é que precisamos delas, para que não esqueçam ou não desistam. São a nossa segurança e a nossa memória. Por isso é importante recordar a festa judaica de Chavuoth, evocada por António Carlos Carvalho, no Congresso Internacional sobre o Espírito Santo, que se realizou no passado Setembro em Alenquer:

«[…] Mas havia pelo menos uma festa que podiam celebrar às claras, mesmo nesse regime opressivo e de quotidano vigiado: a festa de Chavuoth. Falamos do Pentecostes, da festa do Espírito Santo, ou do Divino, um culto essencialmente popular, celebrado em quase todo o País desde tempos muito antigos, embora depois tivesse sido oficializado por D. Dinis e pela rainha Santa Isabel.

[…]Chavuoth é também a festa da realeza, a de Deus, Rei dos Reis – daí a coroa e a coroação do Imperador, que era sempre um homem pobre e humilde (antes de passar a ser um menino), como David e uma figura do Rei-Messias. E essa é uma outra faceta de que esta festa se reveste: o seu carácter messiânico – o anúncio de um tempo em que não haverá fome nem sede (por isso o bodo da festa inclui pão, carne e vinho para todos), em que não haverá mais injustiças (daí a libertação dos presos das cadeias, como ainda se pode ver nas Festas do Divino em Paraty, Brasil) e em que reinará a paz no mundo e o reconhecimento universal  do Deus Uno, tal como foi anunciado pelos profetas inspirados pelo Espírito de Santidade – como Obadias, cuja profecia inclui uma referência a Sefarad, o nome bíblico da Península Ibérica. […]» (5)

«Não haverá fome nem sede», nem falta de tempo. Porque toda a carência é a mesma carência e a fome é de pão, de tempo e de amor.

Nós temos uma antiquíssima vocação e experiência e fé em e de como fazê-lo. Precisamos apenas de nos lembrarmos de lembrar.

 

Lisboa, 17 de Outubro de 2016

(1)Texto construído a partir de uma reflexão que serviu como base à minha participação no evento "Socorro! Estou sem tempo" Seminário que decorreu no Museu do Dinheiro no dia 17 de Outubro, dia Internacional para a erradicação da pobreza.. "Pelo humano como obra de Arte" (A pobreza dos sem tempo). Projecto Impossible - Passionate Happenings criado por Henrique Pinto.

(2)  TELMO, António. Luís de Camões e o Segredo d’ Os Lusíadas. III volume das Obras Completas. Ed. Zéfiro. Junho de 2015

(3)  Idem, ibidem

(4)    CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Canto X, 143

(5)     TELMO, António. Luís de Camões e o Segredo d’ Os Lusíadas. III volume das Obras Completas. Ed. Zéfiro. Junho de 2015

(6)    CARVALHO, António Carlos. “O Marranismo e o Culto do Espírito Santo em Portugal”, in: https://www.antonio-telmo-vida-e-obra.pt/news/universo-telmico-40/

DOS LIVROS. 52

01-11-2016 14:07

Do ensino da História de Portugal pela Mensagem de Fernando Pessoa

 

Tive a ideia de imaginar o que seria o ensino da História de Portugal se tivesse como compêndio básico desde os sete anos a Mensagem de Fernando Pessoa, progredindo, ao longo dos anos escolares até ao ensino superior, do exoterismo para o esoterismo, culminando na plena compreensão do nosso destino histórico pelo mito do Encoberto.

A interpretação da história de Portugal pelo mito do Encoberto é a interpretação da história de Portugal pela filosofia portuguesa. Retomando direcções que já se encontram n’Os Lusíadas pela ideia da Ilha a mover as gestas dos heróis e pela evidência que neles tem a figura do Rei que nela habitará, direcções que se encontram também em António Vieira com a História do Futuro, essa interpretação culminou, no século XX, nos livros de Sampaio Bruno, Agostinho da Silva e António Quadros, mas está mais ou menos evidente em todos os pensadores de filosofia portuguesa. A poesia que, quando é superior, é a companheira da filosofia renovou nas formas que lhe são próprias a mesma ideia, desde a Pátria de Guerra Junqueiro, pelo Marânus de Teixeira de Pascoaes, até à Mensagem de Pessoa.

Pois é, a Mensagem de Pessoa! Logo surge a objecção de que é um conjunto de textos muito difíceis, inacessíveis à inteligência das crianças e até dos professores. Vejamos se isto é verdade, se não é possível dar todo o ensino da história de Portugal desde o primeiro até ao último ano pelo fio com que se tece a Mensagem.

Nos primeiros anos, funcionaria predominantemente como um roteiro, definindo-se pelos seus momentos os momentos predominantes do programa. O professor não precisaria de ter qualquer conhecimento de natureza esotérica, embora fosse preferível que o tivesse para o envolver na sua apresentação exotérica do texto. Roteiro embora, certos poemas poderiam ser lidos e compreendidos no seu sentido literal por uma criança de sete ou oito anos. O primeiro, sobre a Europa, (“A Europa jaz, posta sobre os cotovelos”) com a ajuda dum mapa tornar-se-ia claríssimo verso a verso. Agora que está consumada a integração de Portugal na Europa, seria bom que as crianças tomassem consciência, nos termos adequados à idade, de que, perante um mapa, se pode dizer com Luís de Camões:

 

Eis aqui quase cume da cabeça

De Europa, toda o reino lusitano

Onde a terra se acaba e o mar começa

 

Ser-lhe-ia depois mostrado de maneira mais simples todo o sentido do nosso olhar atlântico.

A Mensagem é constituída por três partes: Brasão, Mar Português e O Encoberto, que correspondem historicamente à formação de Portugal, à sua expansão pelos descobrimentos marítimos, e, com demora no sebastianismo, ao seu ideal. O Brasão é um símbolo imenso na sua profundidade, mas de início seria utilizado como uma mnemónica. Qualquer criança suficientemente normal está apta para guardar na memória os sete castelos, as cinco quinas e a coroa com o Grifo, porque nessa idade ainda não houve tempo par lhe destruirmos a imaginação. Tendo como suporte no seu espírito essas imagens, seguiria com encanto o ensino do professor que lhe falasse de Ulisses e da Odisseia, da sua fundação de Lisboa, de Viriato e da guerrilha contra os Romanos, do Conde D. Henrique e dos Cruzados, do fundador da Pátria e da briga de D. Tareja com o filho, de D. Dinis, poeta, sábio e lavrador e, por fim, do glorioso matrimónio de D. João o Primeiro com D. Filipa de Lencastre.

A glória deste casamento manifestar-se-á pelas Quinas, cujo estudo se seguiria ao dos Castelos, dando-se assim ocasião a que o professor preparasse a Segunda fase, a dos Descobrimentos.

Julgo serem suficientes estas indicações para ver como seria fácil ensinar a uma criança pela Mensagem, ainda antes da puberdade, o que na história de Portugal é essencial por ser simbólico e, ao mesmo tempo, factual, isto é, real. Aliás, não seria simbólico se não fosse real, nem real se não fosse simbólico.

Quando, no Ensino Superior, isto é, na Universidade, se fizesse convergir para o uno a múltipla variedade dos acontecimentos históricos, o mito do Encoberto teria de ser pensado pela filosofia do Encoberto para que o mais fundo sentido da história de Portugal fosse apreendido pelos que soubessem interrogar.

Um ensino da história de Portugal que, de ciclo em ciclo de estudo, fosse aprofundando a compreensão da Mensagem, assumiria a forma de uma filosofia do Oculto. Os estudantes estariam, nesse estádio, aptos para a reflexão das várias expressões portuguesas dessa filosofia, desde A Ideia de Deus de Sampaio Bruno, pela Razão Experimental de Leonardo Coimbra e a Razão Animada de Álvaro Ribeiro, até à Teoria do Ser e da Verdade de José Marinho. Como a finalidade de tal ensino da história não é cultural, bastava a companhia reflexiva de um só destes filósofos, escolhido de acordo com as tendências especulativas de quem o escolhesse, depois de uma breve passagem pelos restantes. Por exemplo: aquele que se decidisse por José Marinho para intermediário do seu mestre interior na noção de Insubstancial Substante e na relação dela com a ideia de que o Aparente é o absolutamente Encoberto e de que o Encoberto é o absolutamente Aparente, teria um caminho deslumbrante de acesso a uma das mais altas e profundas significações do mito.

Na fase de iniciação à filosofia do Encoberto, o primeiro poema estudado dos quarenta e quatro de que se compõe a Mensagem deveria ser o último. O símbolo do nevoeiro é para Fernando Pessoa como, antes dele, para Sampaio Bruno, a expressão do mundo actual moldado pela ditadura da mediocridade. Esta fase está, como se sabe, claramente indicada no mito. O Rei só regressará quando, no termo do ciclo, as forças inferiores e subterrâneas, significadas pelo ferro e pelo petróleo que se extraem dos antros da terra tiverem vindo à superfície, anulando aqui toda a luz do espírito e toda a inteligência e todo o verídico sentimento. Por outro lado, o Encoberto é encoberto porque, os homens não são capazes de o ver no Aparente, no seu aparecer. Esta significação do mito que faz depender o regresso do Rei simultaneamente de se atingir o mais alto grau de estupidez e de haver a inteligência capaz de o reconhecer é uma contradição em que se envolvem direcções insuspeitas de procura. O nevoeiro não tem só o sentido que lhe atribui Fernando Pessoa. Ele encobre no seu seio a luz da madrugada nascente, é como que um «caos cintilante», para falar como Jacob Boehme, donde irromperá o Sol, «corpo de Deus vivo e desnudo».

Creio que bastam estas sugestões para o leitor inteligente. No início escola cultural, no meio escola exotérica, no termo escola acroamática. Três fases para o mesmo ensino da história de Portugal. E essas sugestões bastam pois nunca como hoje foi tão necessária a disciplina do arcano, mas também nunca foi tão necessário dizer abertamente e por toda a parte o que julgamos saber no seio dessa “actividade invisível” que é o pensamento.  

 

António Telmo

 

 

(Publicado em Viagem a Granada, 2005)

 

UNIVERSO TÉLMICO. 44

23-10-2016 14:45

As últimas cartas de Agostinho

Luís Carlos dos Santos

Agradecer, antes de mais, o convite que me feito pelo amigo Pedro Martins, e também a organização do Congresso ao:

Gabinete de Estudos Agostinho da Silva

Projeto António Telmo. Vida e Obra.

Centro de Estudos Culturais e de Acção Social Raio de Luz

 

“As Últimas Cartas do Agostinho…”

 

O título desta comunicação “As Últimas Cartas do Agostinho…” refere-se a um livrinho por mim organizado e editado no Círculo de Animação Cultural de Alhos Vedros, em outubro de 1995, do qual foram feitos 50 exemplares, e que se constitui por um conjunto de 12 cartas enviadas por mão de Agostinho da Silva a um grupo de amigos com quem estava em contacto mais próximo, ou que se candidataram a destinatários de tão digníssima epístola.

O repto é endereçado pelo Professor em Carta subscrita na Lua Cheia de janeiro, 8/1/1993, onde diz: “Queridos Amigos, O imaginário Convento Sonho duns Irmãos Servidores me encarrega de vos comunicar que acaba de tomar posse de tudo quanto há  e me designa como seu agente junto de vós para tudo que se refira a estas folhinhas dactilografadas, que serão sempre mensagem do Convento, assinadas ou não (…) São enviadas a tôdas as pessoas que já declararam por palavras ou feitos que desejam recebê-las ou o declarem daqui por diante.”

A primeira carta do conjunto que constitui a brochura, foi enviada no mês de dezembro de 1992 e a última em Setembro de 1993, o que significa dizer que este conjunto de cartas foi expedido, praticamente, ao logo do último ano de vida do Professor, pois que em meados de outubro, mês seguinte ao da última destas cartas, a súbita degradação física que o acometeu haveria de o guindar ao seu falecimento que, como sabemos, ocorreu no dia 3 de Abril de 1994, um triste mas revelador Domingo de Páscoa, dia de ressurreição.  

Fulcral é a primeira destas 12 cartas e, logo aí, se diz claramente ao que se vem. Fixemo-nos nas palavras de Agostinho:

“Resumo da ideologia do Povo Português nos séculos XIII e XIV, transmitida ao Brasil por seus adeptos que ali se foram acolher, passada ao futuro e, por ele, à criativa Eternidade para os que emigrem para o mais íntimo de si próprios e aí se firmem para sempre.

Missão de Portugal: Sacralizar o Universo, tornando Divina a Vida e Deus real.

Meios: Desenvolvimento dos Povos pela inteira aplicação da Ciência e da Técnica, inclusive nos sectores da Economia, da Política, da Administração Pública e da Filosofia. Conversão da pessoa à adoração da Vida.

Características do que houver no Sagrado: Criança como a melhor manifestação da poesia pura e como inspiradora e suporte, e incitadora a ser criança de todos os que existam. O gratuito da vida. A plena liberdade de todo o ser.”

Eis uma síntese perfeita do período da história portuguesa que Agostinha da Silva mais admira, e a que no dizer das suas ideias sempre regressa, resumo da ideologia que, então, orientava o país, com epicentro no reinado de D. Dinis (“o plantador das naus a haver”, no dizer de Fernando Pessoa). Agostinho complementaria assim: “Acho a época de D. Dinis perfeita (…) A Rainha Santa e o rei-poeta. Calcule, o casamento de um poeta e de uma santa, que coisa extraordinária! D. Dinis com os Estudos Gerais. Depois é que transformaram aquilo em universidade, que veio a dar no que deu. Estudos Gerais, estudo geral para toda a gente e geral para todos os estudos, que outra coisa quereríamos para Portugal senão isso? Toda a educação portuguesa devia ser essa. Voltar aos Estudos Gerais e ao D. Dinis.” 

Então, seguindo o nosso autor, haverá que disciplinar o processo de produção e de distribuição dos bens, de forma a chegar-se a uma economia comunitária que se inspire naquela que existiu, para construir uma economia mais humana, pois é esse o exemplo que nos dá a organização económica medieval em Portugal. O que a Europa trouxe para Portugal foi uma economia capitalista, uma economia de luta. Ora, muito melhor é uma economia de convivência e de cooperação comunitária, de autonomia municipalista, com uma distribuição mais equilibrada das riquezas, como era a que caracterizava a economia portuguesa da Idade Média, antes desta importação europeia. Tipo de economia que foi liquidada por essa outra importada.

Discorrendo sobre a organização política que se deveria seguir, em carta de Lua Nova de 22 de Janeiro, 1993, sustenta-se que deve esse tal “imaginário Convento Sonho duns Irmãos Servidores”, deveria assumir dois compromissos: primeiro, o de que Portugal, inspirando-se nesses princípios da ideologia medieval portuguesa, se deveria comprometer na educação da Europa Transpirenaica; segundo, de que viesse  a constituir-se uma Confederação, ou coisa parecida, de todas as Nações de Língua Portuguesa, sendo um dia Portugal seu representante na Europa Comunitária e, citando,  “…que fique nítido que o ideal de futuro é o da cultura do Povo Português nos séculos XIII e XIV.”

Neste sentido, relembre-se, a importância que tem, para si, o culto popular do Espírito Santo que ganha uma dimensão fundamental em Portugal neste período, com o ativismo espiritual da Rainha Isabel de Aragão. Culto Popular do Espírito Santo, ou Culto do Divino, que chega a Agostinho da Silva pela influência direta de Jaime Cortesão, e também de António Quadros, embora na forma de um reencontro, pois que, como nos diz, não exclui a hipótese de que ele próprio tenha “andado no tal século XIII envolto com os outros na Festa do dia de Pentecostes em que sonhava o povo português sentir-se já num Paraíso a vir…”.

Eis os três pontos essenciais da festa do Espírito Santo:

1. A coroação de um menino como imperador do mundo. A representação na Terra do Espírito Santo é a imaginação da criança. Ou, como diz Agostinho, também pode ser, inspirando-nos no presépio de Francisco de Assis, o menino representando o renascimento de Cristo: “é como se fosse Cristo renascendo.”

2. Através da imaginação da criança se chegará à libertação dos presos e ao fim de todas as prisões, internas e externas. Ou seja, à consagração do grande ideal de liberdade e de libertação espiritual que Agostinho sempre releva.

3. O banquete gratuito, como representação simbólica de uma livre repartição de recursos alimentares entre todos, de modo a que ninguém falte que comer.

No dizer do Professor, “É como se os portugueses tivessem dentro deles sem se expressar, inconscientemente, já essa ideia fundamental de ter que se caminhar para o futuro, mas para um futuro que era ao mesmo tempo do passado, porque, se o espírito santo que viria a reinar numa terceira Idade era coetânea do Pai e do Filho, logo pertencia a um passado de toda a Eternidade. (…) ou seja, uma festa em que os portugueses declaram como vai ser o tal mundo do Espírito Santo.”

E seguindo a carta de Lua Cheia de 8 de Março de 1993, “Pôsto isto assim, e acreditando num universo sacralizável ou de que se descobriria o Sagrado, na possibilidade de uma vida gratuita, numa defesa e desenvolvimento contínuos do Poeta que nasce em cada Criança e numa desejável inteira liberdade de cada ser, o melhor é não o andarmos pregando, mas o pormos em prática.”

Continuando em carta no Crescente de Abril “como os da Festa foram todos expulsos, para a Guiné ou para o Brasil, aí pelos séculos XV e XVI, pensámos que já era tempo de regresso (…) Nada será de uma dia para o outro, mas iremos à nossa tarefa com toda a calma, experimentando, poucos como somos, tornarmo-nos um tanto contagiosos e reaver o tesouro que se perdeu, mas de que ainda há lembrança nos Açores e muita prática no Brasil (…) Porque afinal tudo isto é só uma tentativa de alicerce de império: Império de Servir.”

E por se falar em “Império de Servir”, sobre as ideias quinto-imperiais, relembremos que Agostinho da Silva vê uma perfeita linha de continuidade entre a cultura medieval portuguesa, Camões, Vieira e Pessoa, seja no “culto do espírito santo”, na “ilha dos amores” ou “5º império”, embora pesem os diferentes tempos em que existiram e a inevitabilidade de se relacionarem com as ideias de seu respetivo tempo. Afinal, em suma, dizer que Camões, Vieira e Pessoa são heterónimos do desejo de que haja no Mundo alguma coisa que seja a realização plena do homem.

Assim, o Império enaltecido na “Ilha dos Amores” dos Lusíadas, preconizado por Vieira e por Pessoa, será um império verdadeiramente “católico”, quer dizer, de acordo com a etimologia da palavra, universal, e caracteriza-se pelo advento da Idade do Espírito Santo, o consolador da esperança humana, tal como profetizara o evangelista S. João e idealizou o abade italiano Joaquim di Fiore.

Este Deus consolador que se refere é aquele que Cristo revela, a quem Agostinho reza na igreja, mas que não é o Deus das igrejas, antes o Deus que as une a todas e paira acima de todas. É um Deus que podemos chegar se atingida a verdade. Um Deus íntegro, total, paradoxal, tudo e nada, imanência e transcendência, que junta tempo e eternidade, sem separação de bem e de mal, de homens e animais, de tudo o que existe. Um Deus que é, antes de mais, inefável, e é silêncio, onde ciência e filosofia, “saudades disfarçadas em raciocínio”, devem ajudar a atingir, mas não podem definir.

Às influências de Jaime Cortesão e de António Quadros, sobretudo do primeiro, seu sogro, com quem conviveu e trabalhou no Brasil, deve juntar-se a ideia de “luso-tropicalismo” do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre que nesse país fez escola, base da ideia que expressa na carta de Lua Nova (face virada ao sol), Abril de 93, sobre “o empreendimento em que pensa o Brasil duma Comunidade de Povos de Língua Portuguesa, e seus crioulos, filhos, por seu turno, do crioulo que o Português foi do latim, tudo afinal neto do mais vasto Indo-Europeu.” O Brasil torna-se em Agostinho, o contemporâneo parceiro ecuménico por excelência daquele Portugal medieval que proclamava o reino do Paráclito, pois que à comunidade luso-brasileira deverá caber a missão de condução desse projeto ecuménico ao mundo. Como sabemos, Agostinho da Silva é um dos percursores da conceção de um Projeto Lusófono que junte países e comunidades, ideia que acabou por se materializar em 1996, com a criação da “CPLP” (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa).

E continuando ainda com o que nesta carta se diz: “O que vai haver, sem velas, excepto as desportivas, mas por aeroportos e por Faxes, é a integração dum pensamento como o de Lao-tsu, se dele é, (…) que os há em todas as religiões e filosofias (…) reinado da criança e sacralização dos animais e de tudo o resto. O que temos de ter connosco é um sentido de ordem não opressiva que impeça o caos e ondas de imaginação a saudar o que ainda não veio, com uma China cada vez mais para o concreto, um Brasil todo virado ao sonho, e, no meio, uma África que nos ensine a todos, já que índio enfraqueceu por tanto século de luta.” E aqui, como se refere Lao-tsu também se poderia referir as ideias de Buda, particularmente, do budismo zen, espiritualidade que Agostinho também enalteceu. Como sabemos o próprio Agostinho visitou o Japão em 1963 e aí conviveu entre faculdades, templos e monges budistas, e disso nos deixou testemunho.

E para terminar, na última carta “de Setembro de Lua Cheia e de 93”, e sendo que o forte “avc” de 17 de Outubro já se avizinhava, Agostinho deixa-nos três princípios pessoais orientadores de vida: “o de se ver livre do supérfluo, o de não confundir o verbo amar com o verbo ter, o de prestar voto de obediência ao que for servir, não mandar (…) Para tudo o que fordes e fizeres rogarei perfeito empenho e boa sorte, bom vento de navegar.”

 

Obrigado.

 

Luís Santos

12 de Outubro/2016

Referências Bibliográficas:

 

SANTOS, Luís Carlos dos (org.) (1995) As Últimas Cartas do Agostinho… Edição do Círculo de Animação Cultural de Alhos Vedros.

 

Idem (2016) Agostinho da Silva: Filosofia e Espiritualidade, Educação e Pedagogia (td). Vila Nova de Gaia: Euedito.

 

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