UNIVERSO TÉLMICO. 40

19-09-2016 10:41

O Marranismo e o Culto do Espírito Santo em Portugal

António Carlos Carvalho

Somos sempre mais, e mais antigos, do que imaginamos ou do que julgamos  saber. Nós, portugueses, e este País que é o nosso.

1496-97: com a expulsão e conversão forçada termina em Portugal o que Elias Lipiner chamou, e bem, «o tempo dos Judeus», começando então o tempo dos cristãos-novos, que irá durar até ao governo do Marquês de Pombal, o qual, em 1773, acabou com a distinção entre cristãos «novos» e «velhos».

Claro que os «baptizados em pé» mudaram de nome, adoptaram novas práticas religiosas para os outros verem, mas dentro das suas casas e dos seus corações continuaram a ser quem sempre tinham sido: portugueses e Judeus. E assim nasceu um cripto-Judaísmo, um Judaísmo secreto, um marranismo, algo muito complexo e ainda hoje pouco conhecido que acabou por caracterizar os portugueses judeus. Uma maneira de ser e de estar na vida marcada profundamente pela sua ambiguidade e pela duplicidade: uma vida aparente, pública, e outra secreta; um nome para a rua e outro para se usar dentro de casa; uma religião oficial e outra, a verdadeira, seguida em privado, com as portas e as janelas fechadas. Alguns chamaram a isto hipocrisia, outros viram todo este comportamento como uma série de engenhosas estratégias de sobrevivência – sobretudo a partir do momento em que o chamado «Santo» Ofício da Inquisição se instalou entre nós, na primeira metade do século XVI, e as vidas de todos, públicas e privadas, se tornaram objecto de vigilância cada vez mais apertada. Então tornou-se necessário esconder tudo. (Curiosamente, ainda esta semana foi noticiado que tinha sido encontrada uma Torah com mais de 400 anos na Covilhã, escondida numa casa particular).

Mais do que uma religião, o Judaísmo é um conjunto de tradições ancestrais, com milhares de anos, que dão razão de existência ao que significa ser-se Judeu. Essas tradições, transmitidas de geração em geração, são constituídas por ritos próprios de fundação bíblica, celebrados de acordo com o calendário das sete festas principais: Roch Hachanah, o Novo Ano, Yom Kippur, o Dia do Perdão, as três festas de peregrinação, Pessah, Páscoa, Chavuoth, Pentecostes, e Sucoth, a festa das Cabanas – cinco festas promulgadas por Deus, segundo a Torah – e ainda duas festas instituídas pelos próprios homens, Purim, a festa de Esther, e Hannukah, a festa das Luzes.

Obrigados a viver uma vida dupla, e às vezes tripla, os marranos deitaram mão a tudo o que puderam imaginar para poderem continuar a celebrar essas festas e rituais, que eram a sua herança sagrada e pelos quais se definiam, e que, inclusivamente, lhes lembravam cíclicamente quem eram e quem deviam continuar a ser.

Não é difícil perceber as dificuldades que tinham de enfrentar para que esse calendário sagrado fosse cumprido. O próprio Shabbath tinha de ser celebrado no segredo da casa, com os candelabros ou candeias acesos dentro de armários...

Mas havia pelo menos uma festa que podiam celebrar às claras, mesmo nesse regime opressivo e de quotidano vigiado: a festa de Chavuoth. Falamos do Pentecostes, da festa do Espírito Santo, ou do Divino, um culto essencialmente popular, celebrado em quase todo o País desde tempos muito antigos, embora depois tivesse sido oficializado por D. Dinis e pela rainha Santa Isabel.

Assim, aquilo que para os cristãos-velhos significava essencialmente a descida do Espírito Santo sobre os Apóstolos, para os cristãos-novos era algo substancialmente diferente, com um simbolismo múltiplo tendo raízes na Torah – a festa do dom dessa mesma Torah no Sinai, 50 dias depois de Pessah, a renovação da Aliança no Sinai, a festa das Ceifas, das Colheitas ou das Primícias.

Nessa festa de Chavuoth lê-se o rolo ou livro de Ruth, a mulher justa, humilde e recatada, que escolheu abrigar-se sob as asas da Presença Divina, da Ruah ha-Qodesh, do Espírito de Santidade que inspirou os profetas e que estava presente, pairando acima das águas, logo no início do Génesis. O ambiente desse livro-rolo de Ruth é todo ele o das colheitas, das ceifas. De festa das primícias, bem presente na Festa dos Tabuleiros de Tomar, tabuleiros esses que lembram pela sua forma os rolos da Torah, também encimados por uma coroa imperial – a coroa que simboliza a Vontade divina.

E Ruth é a bisavó do rei David, o rei messiânico, que terá nascido e morrido nesse mesmo dia de Chavuoth.

E as asas sob as quais Ruth escolheu abrigar-se lembram as asas da Pomba, que é também símbolo de Israel. Repare-se que é uma pomba e não um pombo, tal como Ruah, de Ruah ha-Qodesh, é uma palavra feminina.

Chavuoth é também a festa da realeza, a de Deus, Rei dos Reis – daí a coroa e a coroação do Imperador, que era sempre um homem pobre e humilde (antes de passar a ser um menino), como David e uma figura do Rei-Messias. E essa é uma outra faceta de que esta festa se reveste: o seu carácter messiânico – o anúncio de um tempo em que não haverá fome nem sede (por isso o bodo da festa inclui pão, carne e vinho para todos), em que não haverá mais injustiças (daí a libertação dos presos das cadeias, como ainda se pode ver nas Festas do Divino em Paraty, Brasil) e em que reinará a paz no mundo e o reconhecimento universal  do Deus Uno, tal como foi anunciado pelos profetas inspirados pelo Espírito de Santidade – como Obadias, cuja profecia inclui uma referência a Sefarad, o nome bíblico da Península Ibérica.

Os portugueses marranos souberam integrar-se nessas festas populares, tornando-se «foliões do Espirito Santo», membros das irmandades que o celebravam – tal como se tornaram membros de outras irmandades e confrarias, construindo capelas e até mesmo mandando fazer estátuas de santos que para eles tinham outro significado. Onde os cristãos velhos viam este ou aquele santo ou santa, ou até mesmo a Virgem em pose majestática, os marranos viam a rainha Santa Esther, uma espécie de padroeira dos cripto-Judeus, também eles obrigados a esconder a sua verdadeira identidade.

Temos um bom exemplo dessa prática no caso da estátua de Esther «disfarçada» de Nossa Senhora dos Campos no mosteiro de monjas com esse nome, perto de Montemor-o-Velho, no início do século XVII, em que algumas monjas judaizantes estavam igualmente ligadas ao culto de S. Diogo, supostamente S. Diogo de Alcalá, franciscano do século XV, mas na verdade tratava-se de Frei Diogo da Assunção, frade do Mosteiro de Santo António da Castanheira, aqui perto de Alenquer – um judaizante que anunciava a vinda em breve do Messias e que morreu na fogueira da Inquisição em 1603. Esse outro «S. Diogo» foi venerado como mártir por uma confraria em Coimbra, presidida pelo cripto-Judeu António Homem, lente da Universidade, especialista de Direito Canónico, que viria a morrer igualmente na fogueira em 1624. O mesmo Dr. António Homem que muito se bateu pela canonização da Rainha Santa Isabel, em quem ele e os outros membros da confraria viam a representação da Santa Rainha Esther.

 

Em resumo: quem se vê perseguido até à morte por ser diferente, por ter outra religião e outro pensamento no tempo da religião única e do pensamento único, agarra-se ao que pode para sobreviver, ele próprio e as suas tradições religiosas. Foi o que aconteceu em Portugal, durante quase três séculos, no tempo da Inquisição.

Termino lembrando o ensinamento do sábio Hillel, contemporâneo de Jesus, procurando explicar em breves palavras a essência da sua religião: «Não faças aos outros o que não gostavas que te fizessem a ti. Isto é o essencial. O resto é comentário. E agora vai e estuda.»

 

Bibliografia de apoio:

 

«Origens Orientais da Religião Popular Portuguesa», Moisés Espírito Santo», ed. Assírio e Alvim, 1988

«Symboles du Judaïsme», Marc-Alain Ouaknin, ed. Assouline, 1995

«Le Chandelier d’Or», Josy Eisenberg e Adin Steinsaltz, ed. Verdier, 1988

«Confraria de S. Diogo – Judeus Secretos na Coimbra do séc. XVII», João Manuel Andrade, ed. Nova Arrancada, 1999

«A Terra Prometida», António Telmo, ed. Zéfiro, 2014

«Um António Telmo», Pedro Martins, ed. Zéfiro, 2015

«O Encoberto», Sampaio Bruno, ed. Livraria Moreira – Editora, 1904

Idem, «Os Cavaleiros do Amor», ed. Guimarães Editores, 1960

«Histoire des Juifs Portugais», Carsten L. Wilke, ed. Chandeigne, 2007