DOS LIVROS. 52

01-11-2016 14:07

Do ensino da História de Portugal pela Mensagem de Fernando Pessoa

 

Tive a ideia de imaginar o que seria o ensino da História de Portugal se tivesse como compêndio básico desde os sete anos a Mensagem de Fernando Pessoa, progredindo, ao longo dos anos escolares até ao ensino superior, do exoterismo para o esoterismo, culminando na plena compreensão do nosso destino histórico pelo mito do Encoberto.

A interpretação da história de Portugal pelo mito do Encoberto é a interpretação da história de Portugal pela filosofia portuguesa. Retomando direcções que já se encontram n’Os Lusíadas pela ideia da Ilha a mover as gestas dos heróis e pela evidência que neles tem a figura do Rei que nela habitará, direcções que se encontram também em António Vieira com a História do Futuro, essa interpretação culminou, no século XX, nos livros de Sampaio Bruno, Agostinho da Silva e António Quadros, mas está mais ou menos evidente em todos os pensadores de filosofia portuguesa. A poesia que, quando é superior, é a companheira da filosofia renovou nas formas que lhe são próprias a mesma ideia, desde a Pátria de Guerra Junqueiro, pelo Marânus de Teixeira de Pascoaes, até à Mensagem de Pessoa.

Pois é, a Mensagem de Pessoa! Logo surge a objecção de que é um conjunto de textos muito difíceis, inacessíveis à inteligência das crianças e até dos professores. Vejamos se isto é verdade, se não é possível dar todo o ensino da história de Portugal desde o primeiro até ao último ano pelo fio com que se tece a Mensagem.

Nos primeiros anos, funcionaria predominantemente como um roteiro, definindo-se pelos seus momentos os momentos predominantes do programa. O professor não precisaria de ter qualquer conhecimento de natureza esotérica, embora fosse preferível que o tivesse para o envolver na sua apresentação exotérica do texto. Roteiro embora, certos poemas poderiam ser lidos e compreendidos no seu sentido literal por uma criança de sete ou oito anos. O primeiro, sobre a Europa, (“A Europa jaz, posta sobre os cotovelos”) com a ajuda dum mapa tornar-se-ia claríssimo verso a verso. Agora que está consumada a integração de Portugal na Europa, seria bom que as crianças tomassem consciência, nos termos adequados à idade, de que, perante um mapa, se pode dizer com Luís de Camões:

 

Eis aqui quase cume da cabeça

De Europa, toda o reino lusitano

Onde a terra se acaba e o mar começa

 

Ser-lhe-ia depois mostrado de maneira mais simples todo o sentido do nosso olhar atlântico.

A Mensagem é constituída por três partes: Brasão, Mar Português e O Encoberto, que correspondem historicamente à formação de Portugal, à sua expansão pelos descobrimentos marítimos, e, com demora no sebastianismo, ao seu ideal. O Brasão é um símbolo imenso na sua profundidade, mas de início seria utilizado como uma mnemónica. Qualquer criança suficientemente normal está apta para guardar na memória os sete castelos, as cinco quinas e a coroa com o Grifo, porque nessa idade ainda não houve tempo par lhe destruirmos a imaginação. Tendo como suporte no seu espírito essas imagens, seguiria com encanto o ensino do professor que lhe falasse de Ulisses e da Odisseia, da sua fundação de Lisboa, de Viriato e da guerrilha contra os Romanos, do Conde D. Henrique e dos Cruzados, do fundador da Pátria e da briga de D. Tareja com o filho, de D. Dinis, poeta, sábio e lavrador e, por fim, do glorioso matrimónio de D. João o Primeiro com D. Filipa de Lencastre.

A glória deste casamento manifestar-se-á pelas Quinas, cujo estudo se seguiria ao dos Castelos, dando-se assim ocasião a que o professor preparasse a Segunda fase, a dos Descobrimentos.

Julgo serem suficientes estas indicações para ver como seria fácil ensinar a uma criança pela Mensagem, ainda antes da puberdade, o que na história de Portugal é essencial por ser simbólico e, ao mesmo tempo, factual, isto é, real. Aliás, não seria simbólico se não fosse real, nem real se não fosse simbólico.

Quando, no Ensino Superior, isto é, na Universidade, se fizesse convergir para o uno a múltipla variedade dos acontecimentos históricos, o mito do Encoberto teria de ser pensado pela filosofia do Encoberto para que o mais fundo sentido da história de Portugal fosse apreendido pelos que soubessem interrogar.

Um ensino da história de Portugal que, de ciclo em ciclo de estudo, fosse aprofundando a compreensão da Mensagem, assumiria a forma de uma filosofia do Oculto. Os estudantes estariam, nesse estádio, aptos para a reflexão das várias expressões portuguesas dessa filosofia, desde A Ideia de Deus de Sampaio Bruno, pela Razão Experimental de Leonardo Coimbra e a Razão Animada de Álvaro Ribeiro, até à Teoria do Ser e da Verdade de José Marinho. Como a finalidade de tal ensino da história não é cultural, bastava a companhia reflexiva de um só destes filósofos, escolhido de acordo com as tendências especulativas de quem o escolhesse, depois de uma breve passagem pelos restantes. Por exemplo: aquele que se decidisse por José Marinho para intermediário do seu mestre interior na noção de Insubstancial Substante e na relação dela com a ideia de que o Aparente é o absolutamente Encoberto e de que o Encoberto é o absolutamente Aparente, teria um caminho deslumbrante de acesso a uma das mais altas e profundas significações do mito.

Na fase de iniciação à filosofia do Encoberto, o primeiro poema estudado dos quarenta e quatro de que se compõe a Mensagem deveria ser o último. O símbolo do nevoeiro é para Fernando Pessoa como, antes dele, para Sampaio Bruno, a expressão do mundo actual moldado pela ditadura da mediocridade. Esta fase está, como se sabe, claramente indicada no mito. O Rei só regressará quando, no termo do ciclo, as forças inferiores e subterrâneas, significadas pelo ferro e pelo petróleo que se extraem dos antros da terra tiverem vindo à superfície, anulando aqui toda a luz do espírito e toda a inteligência e todo o verídico sentimento. Por outro lado, o Encoberto é encoberto porque, os homens não são capazes de o ver no Aparente, no seu aparecer. Esta significação do mito que faz depender o regresso do Rei simultaneamente de se atingir o mais alto grau de estupidez e de haver a inteligência capaz de o reconhecer é uma contradição em que se envolvem direcções insuspeitas de procura. O nevoeiro não tem só o sentido que lhe atribui Fernando Pessoa. Ele encobre no seu seio a luz da madrugada nascente, é como que um «caos cintilante», para falar como Jacob Boehme, donde irromperá o Sol, «corpo de Deus vivo e desnudo».

Creio que bastam estas sugestões para o leitor inteligente. No início escola cultural, no meio escola exotérica, no termo escola acroamática. Três fases para o mesmo ensino da história de Portugal. E essas sugestões bastam pois nunca como hoje foi tão necessária a disciplina do arcano, mas também nunca foi tão necessário dizer abertamente e por toda a parte o que julgamos saber no seio dessa “actividade invisível” que é o pensamento.  

 

António Telmo

 

 

(Publicado em Viagem a Granada, 2005)