DOS LIVROS. 53
Saído a lume, pela primeira vez, no número 30 (de Abril/Maio de 2004) de Sesimbra Eventos, agenda cultural do Município de Sesimbra, e posteriormente incluído em Sesimbra, o lugar onde se não morre (livro a que, de resto, acaba por dar o título) e no Volume III das Obras Completas de António Telmo, Luís de Camões e o Segredo d’Os Lusíadas seguido de Páginas Autobiográficas, o texto que hoje publicamos destinava-se a apresentar a Revista Municipal de Sesimbra, publicação nunca concretizada, mas para a qual Telmo, que seria o seu Director, chegou a solicitar colaboração a Agostinho da Silva, então já por Sesimbra, e que para ela compôs o sublime “Projecto”, já aqui disponível, e agregada à marginália daquele volume.
Da embrionária Revista Municipal dará notícia O Sesimbrense, na sua edição de 17 de Janeiro de 1971: «Espera-se a publicação, já estudada, de uma «Revista Municipal», que também será dirigida por António Telmo, e onde se arquivem trabalhos – de sesimbrenses e de outros – de interesse regional e nacional.»
Graças a recente investigação levada a cabo por João Augusto Aldeia, membro do Projecto António Telmo. Vida e Obra, sabemos hoje mais sobre a projectada publicação. Com efeito, num livro de actas da Câmara Municipal de Sesimbra, com respeito à reunião de 29 de Dezembro de 1969, consta a lacónica deliberação: «Biblioteca Municipal: Revista Cultural - foi deliberado criar uma revista de divulgação cultural da biblioteca municipal.»
O projecto gorou-se, o que possivelmente se ficou a dever à partida de Telmo para o Redondo, na segunda metade de 1971. Mas os novos dados, agora coligidos, são por modo a fazer-nos supor que ele constituía uma prioridade para Telmo, e que quer o seu texto, quer o de Agostinho, tenham sido escritos pouco tempo decorrido sobre aquela deliberação.
Apresentação
Aconteceu em Lisboa, no Grémio Literário, na alta-roda dos intelectuais; falava-se da Califórnia e dos portugueses que aí vivem, da América do Sul e do povo brasileiro. De repente alguém, que não é de Sesimbra, atirou esta frase que deixou estarrecidos nos seus lugares os quatro sesimbrenses que assistiam ao colóquio: Não é na Califórnia nem no Brasil que devemos situar o Centro do Mundo; é em Sesimbra! Se a frase tivesse saído da boca dum sesimbrense, vamos lá!, não seria muito bonito num ambiente daqueles, com todas aquelas cabeças pejadas de grandes temas e de grandes espaços intelectuais, que tudo vêem, entendem, e fazem entender os outros pela dimensão da Europa e do Mundo. Mas o que surpreende e nos deixa perplexos é ter ela sido proferida por alguém que apenas conhece Sesimbra como turista, de ter passado aqui e ter visto este mar, este castelo, estas casas, esta gente, esta vila, numa tarde de sol inexpressiva como todas as tardes de sol em que todas as pessoas fazem o mesmo por não serem capazes de fazer coisas diferentes.
Sesimbra, o Centro do Mundo! E porquê? E como? Interrompeu o Agostinho da Silva, uma espécie de flagelo de Deus pela ideia como Atila o foi pelas patas do cavalo, para dizer que o facto de uns porem o Paraíso, o tal Centro do Mundo, em Brasília, outros na Califórnia, outros em Sesimbra, somente significa que o lugar onde se não morre está por toda a parte, por toda a parte onde haja homens que, pensando e imaginando, desceram tão profundamente dentro de si próprios que tocaram aquele ponto do espírito para o qual convergem por infinitos raios as várias esferas que definem a actividade dos outros homens. Eis o paradoxo da cultura: e é que tal homem ou tais homens é mais fácil e certo encontrá-lo ou encontrá-los no pescador que nunca ouviu falar de Einstein ou de Sartre ou de Russel, mas que tem dentro de si as grutas do ser ainda inexploradas pelos outros homens, mas onde ressoa, num ritmo ancestral e idêntico, a grande voz do mar. Por isso, todas as publicações culturais, como esta que agora nasce, deveriam nascer para dizer mal da cultura, de que já se ria Sócrates, o homem mais culto da Grécia, para quem, toda a gente sabe, o princípio da ciência residia na terra virgem das almas sem ciência nenhuma. Em Portugal, cada um de nós é um Mestre e o crer-se Mestre, no ofício, na profissão, no negócio e em tudo o mais, cresce sempre na razão inversa da sua autêntica sabedoria. Daqui o culto que prestamos aos catedráticos, aos que exibem livros como outros exibem automóveis, aos que disfarçam num pomposo título universitário ou num mais modesto diploma de formatura a sua incapacidade de ver, de investigar e, portanto, de perguntar constantemente. É uma banalidade que sempre se esquece: a de que a inteligência se mede muito mais pelas perguntas que se fazem do que pelas respostas que se dão.
Mas se na auto-suficiência de quem funciona como mestre não há nem pode haver a fecunda expectativa da pergunta, o entusiasmo da hipótese, a certeira aventura da investigação, existe sim a terrível, fria, atenção aos defeitos dos outros, aos erros (de errar, vagabundear, procurar) que todos necessariamente vamos tendo numa vida que queiramos ou não é sempre viagem, embora quase sempre de rotina depois de se ter ido à Índia, e assim em cada mestre há um crítico, o que corresponde zoologicamente à girafa, com um pescoço muito comprido a separar a cabeça do corpo e dos seus instintos, emoções, sentimentos, e uma boca de roedor que vai mastigando todas as plantas que vivem no alto, ali onde só deviam chegar pássaros e abelhas.
Triste é ter que dizê-lo: em cada português vivem de mãos dadas um mestre e um crítico. Daqui a dificuldade de um suplemento de cultura como este. Ele só serviria para os que infelizmente não sabem ler. Mas resta a esperança de que nos que sabem ler, esteja aquele que sabe e não sabe ao mesmo tempo, isto é aquele que em cada novo conhecimento adquirido sinta não uma cadeira ou cátedra em que se possa sentar definitivamente, mas uma nova forma de interrogação, o que esperamos se encontre numa terra em que o constante vai-vem do mar corrói todas as arestas definidas e destrói todos os frágeis portos dos homens.
António Telmo
(Publicado em Luís de Camões e o Segredo d’Os Lusíadas seguido de Páginas Autobiográficas, 2015)