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INÉDITOS. 48

17-03-2015 23:05

Palavras que fazem ver[1]

 

Imagine-se um cego de nascença que, por milagre ou cirurgia, isto é, por imposição das mãos, fica a conhecer de repente pelos olhos a maravilha visível do nosso mundo, de nós conhecida pelos olhos desde que a inteligência pousou na sensação da criança. O cego dará melhor do que nós a outros cegos que não beneficiaram do milagre a ideia do que é o novo mundo, pois sabe por experiência as suas dificuldades. Um cego não pode conduzir outros cegos, mas quem vê, se não foi antes cego, conduzi-los-á pelos seus próprios caminhos e não pelos caminhos próprios dos cegos. Aquele que para ver beneficiou do milagre sabe que só os próprios caminhos dos outros cegos podem conduzir ao milagre. Assim, a ressurreição ilumina porque é ressurreição da morte.

É compreensível que os cegos esperem um dia poder vir a ver. Mas não poderão, pensando, ter acesso a um mundo superior ao visível? Pensando o que ouvem e o que não ouvem: o som, a palavra e o silêncio. O erro deles, julgo eu, é o de, pensando, tentarem adivinhar pelos sons o que se passa lá fora. Se ouvissem olhando para dentro do que ouvem o que é que se lhes depararia? O Inferno, sem dúvida. A ressurreição não se dá três dias depois de estadia no Inferno?

Em tudo isto nos confundimos e perdemos como num labirinto. Por isso prefiro pensar que a redenção não é individual, mas consistirá na universal comunicação dos espíritos entre si, comunicação que se inaugura pela relação conseguida do homem com a mulher jogando simultaneamente com a dos iniciados entre si no ágape. O horror é que nestas duas espécies de relação é onde a solidão nos convoca para o apelo interior que protesta perante a estupidez dos outros. Se bem observarmos, porém, vemos que toda a deficiência é de palavras, está na palavra actual. Pelo sémen um corpo fecunda outro corpo. O prazer divino da alma é o das palavras que fazem ver.


António Telmo



[1] Título da responsabilidade do editor.

 

DOCUMENTA. 04

16-03-2015 17:29

Depois de ter sido alistado em 22 de Setembro de 1947 como «recrutado», de ter sido incorporado em 8 de Agosto de 1951, e feita a recruta em Mafra, na Escola Prática de Infantaria, em Maio de 1952 António Telmo está a cumprir o serviço militar em Évora, no Regimento de Infantaria 16. Não por acaso terá sido escolhido para proferir um discurso aos novos soldados, em data assinalada. O jornal local A Defesa publica o escrito da alocução do «Sr. Aspirante Vitorino», fazendo-o preceder da seguinte notícia:

 

«Os oficiais e soldados do Quartel de Infantaria 16 comemoraram, no domingo, o 143.º aniversário do combate de Grijó contra os franceses, em que os portugueses se cobriram e glória.

Na parada, o sr. coronel Plácido Bravo da Costa, comandante do regimento, passou revista aos soldados e recrutas formados sob o comando do sr. major Orlando Luís de Oliveira. O aspirante sr. António Telmo Carvalho Vitorino leu aos soldados a breve e patriótica alocução que a seguir publicamos e que foi ouvida com prazer por todos os assistentes.

A seguir foi prestada continência à bandeira e realizou-se, no antigo picadeiro, um alegre festival dedicado aos recrutas, com vários números de cântico e orquestra, que revelaram, entre os soldados, autênticas vocações artísticas. O orfeão actuou sob a direcção do sr. tenente Manuel João Alves.

Assistiram muitos convidados.»

 

____________

 

Alocução do Sr. Aspirante Vitorino

 

Hoje, dia do nosso Regimento, estamos aqui reunidos, uns com a consciência plena do significado da comemoração, outros, os soldados recrutas, a quem esta festa é dedicada, no seu maior número não sabendo o que aqui os trouxe. É, pois, a vós, soldados, que a minha palavra sobretudo se dedica.

Disseram-vos com certeza que este é o dia do nosso Regimento, o dia escolhido? Ides sabê-lo: nesta data se comemora a vitória do combate de Grijó, para a qual mais do que ninguém contribuiu o 1.º Batalhão do Regimento de Infantaria 16. Foi em Maio de 1809, há mais de um século. Os franceses, enviados por Napoleão, general sedento de domínio, tinham penetrado em Portugal. A nossa querida terra gemia ao peso do inimigo. Eram nossos aliados os ingleses. Combatíamos lado a lado. Em 11 de Maio de 1809, 4.000 franceses ocupavam uma óptima posição entre Souto Redondo e Grijó, protegidos pelo mato e pelo arvoredo. Foi mandado ao 1.º Batalhão do Regimento de Infantaria 16 atacar pela direita. E tão heroica foi a sua acção, tão impetuoso e irresistível o ataque, que em breve o inimigo cedeu. O combate estava ganho.

Convém, aqui, recordar a acção do seu chefe, do comandante do 1.º batalhão, o coronel Machado Mendonça. Ele era um herói. Um homem cuja presença desafia o tempo.

Eis o que diz antes do combate: «Soldados, chegada é a ocasião de mostrardes vosso valor e patriotismo. Melhor é morrer no combate que deixar-se vencer pelo inimigo. Eu vou para a frente. Segui-me todos! Se virem que tenho medo do fogo do inimigo, matem-me!»

Povo que nenhum iguala, o povo português destes chefes necessita e destes chefes sempre tem tido. Por isso, vós, soldados recrutas, em breve sentireis honra e orgulho em pertencerdes ao Regimento de Infantaria 16.

Os ingleses não pouparam elogiosos comentários, impregnados de sincera admiração, ao bravo comportamento do Batalhão comandado pelo coronel Machado Mendonça. Como Montgomery, o marechal inglês, deixaram inscrita, em palavras duradoiras, a funda impressão que lhes causou o soldado português. O tempo é como um círculo: repete-se. Gira à roda das horas e no curso histórico dos povos situações idênticas surgem. Então, o sonho napoleónico de império não venceu a resistência, para cá dos Pireneus. Hoje ambição idêntica que surja ou que já tenha surgido não surtirá também, pois os soldados estão sendo adestrados e os chefes estão alerta.

11 de Maio de 1809 foi realmente o grande dia, o dia de oiro do nosso Regimento. Mas não julgueis que a sua acção foi só esta. Albergaria, Malijoso, Bussaco, Almeida tiveram ocasião de assistir à sua bravura. E tantas terras mais! Por toda a parte e em todo o tempo da sua existência a conduta foi só uma: «brava e em tudo distinta.»

Esta é a nossa divisa! Da boca de um marechal inglês a tomamos, mas antes a inscrevemos a sangue no campo de batalha. Está gravada nos nossos corações. Batam sempre serenos e fortes, nunca se apagará. Ontem, hoje e sempre ela incarna a mais íntima essência do nosso sentido.

Sabemos agora todos porque é hoje o dia da nossa Festa. Ela serve para reavivar a memória de um passado glorioso, para manter sólidos os laços da tradição, para fazer um só indivíduo dos múltiplos indivíduos que compõem o nosso Regimento. Por ela nos sentiremos verdadeiramente juntos, oficiais, sargentos, cabos e soldados.

 

~

 

Vai-vos agora ser mostrada a nossa bandeira. Ela, em Grijó, tremulou azul e branca na fúria do combate. O nosso sistema de governo era então a Monarquia. Com a República as cores foram mudadas para verde e vermelho. A bandeira é, contudo, a mesma, porque o espírito é o mesmo. Aquilo que o coronel Machado Mendonça fez pela outra, faria também por esta. E nós, o que fazemos por esta, faríamos também pela outra. Através das vicissitudes da política, o povo permanece o mesmo. Mudam as cores da natureza, o Inverno substitui a Primavera, a Primavera o Inverno, mas subsiste a natureza. Mudam as cores da bandeira, o espírito que incarna é sempre o mesmo, idêntico e imperecível. Ela é um sinal, uma representação, um símbolo. Ides vê-la!

VOZ PASSIVA. 44

10-03-2015 17:13

Na edição n.º 458 do jornal Raio de Luz, mensário de opinião e informação do concelho de Sesimbra, que saiu no passado mês de Fevereiro, Pedro Martins, na sua habitual coluna, deixa o convite para as Tardes Télmicas 2015...

Convite

Pedro Martins

 

Seríamos meia-dúzia à porta da Biblioteca Municipal de Sesimbra, ao cimo da breve escadaria. Foi no último sábado de Outubro. A Biblioteca tinha acabado de encerrar e nós saíamos de mais uma Tarde Télmica, sessão onde António Telmo, Agostinho da Silva e Rafael Monteiro haviam sido exaltados. Formávamos uma pequena multidão. Pelo menos, deve ter sido assim que para nós olhou a rapariga que, naquele momento, se acercou do grupo. Forasteira, teria cerca de 20 anos e vinha ao fresco, vaporosa, balnear, esperançada na réstia de um Verão a destempo face à iminência da hora em mudança.

Quis saber o que ali se iria passar. Dissemos-lhe que já se tinha passado. Alguém lhe terá então falado da homenagem prestada a Agostinho, do lançamento do livro com as suas cartas para António Telmo. E a palavra filosofia, naturalmente, veio à baila. A jovem não escondeu o seu desapontamento perante o quadro: – Filosofia??!! – quase protestou, envolvendo o desdém da pergunta num esgar de desconsolo. Esperaria talvez poder assistir à projecção de um filme, suplemento prazenteiro à inopinada vilegiatura, e deparara-se afinal com um bando plúmbeo de monos dissecadores de alfarrábios. Em suma: uma seca!

Não obstante, reteve o nome de Agostinho: – Agostinho da Silva? Mas ele ainda é vivo? – indagou. Paciente, proficientemente, esclarecemo-la, explicando-lhe que a apresentação das Cartas de Agostinho da Silva para António Telmo constituíra, justamente, uma comemoração, entre outras, em que Sesimbra foi aliás pródiga no ano passado, dos vinte anos da sua partida. Para o nosso desespero ser completo, veio ainda uma terceira questão: – E a filosofia dele era estilo quê? Tipo Platão?

Apesar do jeito platónico com que Agostinho sacraliza a criança entrevista no Menino Imperador do culto açoriano do Espírito Santo, não lhe quis dar o prazer de julgar que, por uma vez, tinha posto a cruz certeira nos quadradinhos do teste americano. Até porque o filósofo, verdadeiramente, desejou sempre congraçar Platão e Aristóteles, ou o Céu e a Terra. Disse-lhe apenas que a filosofia de Agostinho era tipo ele mesmo, num homem que tinha criado o seu próprio estilo, decerto por entender que o principal dever de cada um para consigo consiste em se ser aquilo que se é.

Mais disse a suave rapariga outonal ser aluna do IADE, em Lisboa. Muito gostaria de lhe ter feito a pergunta que então me não ocorreu: se acaso sabia quem tinha fundado a escola que frequentava? Imagine o leitor que se trata de um filósofo, para mais um filósofo português, de seu nome António Quadros. Este amigo de António Telmo e Agostinho da Silva, regressado à pátria após uma estada no Brasil, onde fora realizar conferências, foi o núncio do convite que o segundo, com Eudoro de Sousa, dirigira ao primeiro para se lhes juntar, em Brasília, como professor da Universidade onde os dois então pontificavam. Corria pelo meado a década de sessenta. E o resto é sabido. Telmo aceitou o repto e quando, dois anos e meio depois, se assomou entre nós de torna-viagem, não tardou muito que Agostinho o reencontrasse em Sesimbra, vila onde este último, por via de regra, passou a assentar praça sempre que o apelo sortílego de andarilhas peregrinações o não reclamasse à morada principal de Lisboa.

Felizmente, naquele fim de tarde, nenhum de nós participou à graciosa banhista serôdia que Agostinho da Silva, tantas e tantas vezes suspenso da contemplação do mar de Sesimbra na sua varanda de Argéis, preferia contudo o Castelo à praia, como aliás fez saber na conversa com que, no final do Verão de 1993, por obra e graça do destino, viria a consumar, neste mesmo jornal, o histórico rol de entrevistas de imprensa com que deu coerente testemunho do seu ideal de vida conversável. Segundo então afirmou, não gostava muito de praia, pois que esta só servisse para as pessoas irem lá bronzear-se ou nadar. «A vida tem sido muito estragada por gente que nada. E talvez muita gente devesse aprender a flutuar. A deixar que a vida o vá conduzindo a isto ou aquilo…» – acrescentou o filósofo à comitiva do agora quarentão Raio de Luz,… 

Por muito que custe à excelente moça balnear, parece haver sempre uma opção filosófica depositada nos gestos, mesmo os mais pequenos, só na aparência insignificantes, com que urdimos as teias das nossas vidas. Quando Agostinho da Silva virava costas ao mergulho nas ondas do mar a seus pés, e com estes de abalada se afoitava a calcorrear os morros que circundam a cova funda, para visitar o amigo Rafael Monteiro na sua casa castelã, estava por certo a fazer uma escolha, tão escorada no sentimento como no pensamento. E quando António Quadros congeminou o desígnio, entre nós pioneiro, de criar uma escola de arte e decoração que viria a concretizar em 1969, facultando aos estudantes portugueses um curso de Design de Interiores e Equipamento Geral concebido sob padrões internacionais de vanguarda, bem sabia que as imagens não raro decidem das ideias por que guiamos os nossos passos.

É ainda em 1969 que, Verão adentro, Agostinho regressa ao torrão nativo, após o quartel assombroso em que, no Brasil, reinventa Portugal. Cinco lustros de um exílio com pouco de voluntário perante o aguilhão político com que o regime de Salazar o perseguira serão o bastante para atrás de si sulcar um profundo, fecundo rasto de aventura e criação, fundando escolas, fazendo escola, escrevendo livros e artigos onde fulgura um pensamento tanto mais controverso quanto mais original ele se mostra.  

Não tardou muito que, nesse mesmo ano, pela dobra da década, António Telmo, da Piscosa, onde dirigia a novel Biblioteca Municipal, lhe lançasse a escada, impetrando-o a falar, de improviso e sem parança, durante uma hora e meia, na antiga Capela do Espírito Santo. António Quadros viera semanas antes, inaugurando a série de palestras com uma conferência sobre “O Homem Português e o Barroco”. O arrojo foi um sucesso, todas as sessões registando, invariavelmente, uma assistência copiosa e interessada.    

A Biblioteca, entretanto, desceu a calçada, passando à porta juvenil do Rafael; teve casa posta na velha escola do ciclo; e ainda um breve poiso temporário, intercalar, nessa outra, bem mais antiga, devida à bondade do Conde de Ferreira. Hoje, de novo entre escolas, sob a direcção competentíssima da Dr.ª Maria José Albuquerque, abre as suas portas ao público no moderno edifício modelar da Avenida da Liberdade, à ilharga do jardim-de-infância de Santa Joana e da escola básica a que, com vossa licença, continuarei a chamar primária, por primeira.

A meio da década passada, ainda sob a égide de António Telmo, ali celebrámos o centenário de Agostinho da Silva, com um colóquio realizado a 30 de Setembro, no exacto transcurso de treze anos sobre a data em que a derradeira entrevista do autor de Um Fernando Pessoa assinalara as páginas do Raio de Luz. Naqueles que se seguiram, antes e depois da partida de Telmo, a prática manteve-se, quase sem hiatos, a ponto de se tornar um hábito para certos monges devotos da palavra.

Contra a fúria dos ventos, o contínuo costumeiro persiste agora sob a fórmula das Tardes Télmicas, que este ano conhecem segunda edição, parceria confiada e proveitosa do Projecto António Telmo. Vida e Obra com a Câmara Municipal. O começo recai em Maio, mês de Telmo, no dia 9, com a apresentação de O Estranhíssimo Colosso, monumental biografia que António Cândido Franco, numa porfia de décadas de estudo e investigação, dedicou ao insigne sesimbrense por eleição que foi Agostinho da Silva, e onde António Telmo, Rafael Monteiro e António Reis Marques são presenças das mais marcantes. Mas haverá mais, muito mais, neste renovo do encontro: um certo livro sobre António Telmo e dois novos volumes das suas Obras Completas, empresa que o Projecto vem conduzindo com a chancela da editora Zéfiro; o lançamento da reedição dos míticos Noventa e Tal Contos, de António Cagica Rapaz – “Boa noite, ó mestre!” –, livro onde Telmo, com proverbial mestria, joga o bilhar; uma tertúlia e uma exposição sobre Rafael Monteiro; várias conferências ao redor do nosso patrono e do universo infindo em que se inscreve; e, ainda segundo este propósito dialogal, colóquios sobre Sampaio Bruno (nos cem anos da sua morte), Teixeira de Pascoaes (no centenário da Arte de Ser Português) e Fernando Pessoa (na primeira centúria da revista Orpheu). São mais de vinte oradores, vindos de várias partes de Portugal, do Porto ao Alentejo!...

As Tardes Télmicas continuam, sempre aos sábados, porque as primeiras foram um êxito e porque sim. Porque a tradição da herança impõe responsabilidade. E porque a memória é um caso sério, sobretudo quando começa a falhar. São para todos estas Tardes. Até para as suaves raparigas outonais. Sobretudo para estas. Porque a filosofia, longe do enfado com que a querem pintar, por cá é apenas o nome para dizer a nossa história e o exemplo sublime dos maiores, a literatura e a poesia que nela há, o sagrado e a arte que o revela, tudo aquilo que vem no sopro de que se alenta a vida e nenhuma senhora Merkel poderá jamais resgatar.  

Dizem que Sesimbra é peixe e este mês, depois de faltar ao aviso para Janeiro, aqui estou eu, de balde cheio, a vender o meu…

INÉDITOS. 47

09-03-2015 12:05

Na Escola Nacional de Lisboa[1]

            (…)

 

Ainda bem que me fala, na sua segunda carta, do General Vicente de Freitas. Ele era o gestor ou coisa que o valha da Escola Académica, no Largo da Anunciada, onde conheci o Álvaro Ribeiro, isto é, em que o vi pela primeira vez falar, de que lhe ouvi, pela primeira vez, a voz. Nessa Escola estive eu interno como aluno, no ano seguinte a ter ali estado o meu irmão Rui, que Deus haja. O General dava-nos aulas de moral. Era um velho resmungão que nós gostávamos de ridicularizar para nos vingarmos da moral que nos era impingida e que todas as crianças odeiam, porque estão antes do pecado original. O aluno que estava sentado na cadeira ao pé da porta da sala, batia nela várias vezes com os nós dos dedos. O General dizia-lhe para ver quem batia à porta e naturalmente não estava lá ninguém. Ficava furioso, mas, como ignorava quem tivesse batido, reprimia-se. A brincadeira repetia-se em cada aula. Um dia, porém, quando se abriu a porta, vinha por acaso um aluno a entrar. Levou uma sova de bofetadas e estava verdadeiramente espantado, porque não via porque era assim castigado, sem se atribuir qualquer culpa.

            (…)

 

António Telmo



[1] Nota do editor – O título é da nossa responsabilidade. Publica-se um excerto de uma carta escrita por António Telmo, que nela visivelmente se engana no nome da escola que menciona. Trata-se, com efeito, da Escola Nacional de Lisboa, que Telmo frequentou, como aluno interno, no ano lectivo de 1943-44. Sobre o General Vicente de Freitas, que foi docente e comproprietário da referida escola, fundada, com outra localização, no ano de 1869, remetemos o leitor para o livro de Francisco Fernandes, General José Vicente de Freitas – A Liberdade de Pensar, Lisboa, Colibri, 2010. 

 

DOS LIVROS. 36

06-03-2015 12:01

Martinismo e filosofia portuguesa[1]

 

Não será, talvez, mau, para abrir estas páginas, ver o que portugueses pensaram sobre Pascoal Martins ou sobre o martinismo. Escolhemos três nomes bem representativos do génio nacional, que são Fernando Pessoa, Álvaro Ribeiro e Sampaio Bruno. Passamos a citar:

“O ternário sagrado! Saint-Martin, seu inventor e promotor! Mas, sem embargo de sua peculiar originalidade, cumpre não esquecer que Saint-Martin começara por ser discípulo de outrem, de um desses homens extraordinários que gravam sua personalidade na sua época; e esse homem era português, “misterioso português”, consoante (realista, romanescamente) se compraz em lhe chamar o biógrafo crítico do “philosophe inconnu”, o sr. Matter. Português-judeu, cristão-novo, “de raça oriental e de origem insólita, mas tornado cristão à laia como assim se tornavam os gnósticos dos primeiros séculos.” Quem?

“Quanto mais se estuda Saint-Martin, com o tratado do seu mestre, Da Reintegração, à vista, tanto mais se sente, em toda a sua profundidade, a influência do teurgista de Portugal sobre o mais célebre dos seus discípulos de Bordéus.”

O autor do tratado Da Reintegração, manuscrito com que, na data, teve a felicidade de deparar o sr. Matter, designa-o este por teor equívoco para ouvidos lusitanos, apesar, todavia, de seus propósitos correctivos. “Toda a vida de Martinez de Pascualis está envolta em mistérios. Chega a uma cidade não se sabe de onde nem para quê. Deixa-a não se sabe quando nem como. Sabemos que dom Martinez findou seus dias em 1779 em São-Domingos, em Port-au-Prince, o que por muitas vezes fez com que o dessem por espanhol.”

Vê-se, por estas linhas de Sampaio Bruno (O Encoberto, pgs. 331-332), a preocupação em acentuar a nacionalidade portuguesa de Pascoal Martins. Não certamente por patrioteirismo, assim como a massa imbecil se orgulha de que o Figo ou o Eusébio ou o Saramago sejam portugueses. Mas sim, como se vê depois, lendo todo o capítulo, para mostrar que martinismo e filosofia portuguesa são a mesma verdade, pela origem e pelo desenvolvimento. 

É o que vem afirmado na segunda citação:

“A tradição portuguesa, a esperança de que o Cristianismo reintegrará o Homem e a Natureza no Reino de Deus, durante o século XVIII passa a exprimir-se em termos diferentes dos que ficaram estabelecidos na nomenclatura da teologia católica e da filosofia aristotélica. A obra de Pascoal Martins, vertida maravilhosamente na cultura da Europa Central, dá-nos uma síntese, ainda hoje admirável, das tradições peninsulares.” (Álvaro Ribeiro, A Arte de Filosofar, pg. 142).

Com efeito, a pureza do ensino da Kabbala, doutrina que se forma pelo cruzamento do esoterismo judaico com o esoterismo cristão, teve a Península Ibérica como principal foco de irradiação, do século XII em diante.

O martinismo foi-nos devolvido mais tarde, predominantemente no início do século XX, pelos franceses, mas a forma degenerada de que se revestiu até então aparece denunciada na terceira citação, que é de Fernando Pessoa, nos seus textos sobre a Maçonaria, falando dos conhecimentos superiores que porventura desçam ou tenham descido até ela:

“Melhor será se estes conhecimentos especiais estiverem apoiados em, ou fundamentalmente derivem de, uma iniciação de tipo supermaçónico. Há, porém que notar que há iniciações extramaçónicas que não habilitam em nada à compreensão da Maçonaria; outras ainda, que são postiças; mais conduzem ao desentendimento que ao entendimento dela. Está no primeiro caso a iniciação em certa Ordem, de tipo rosacruciano, que tem sede em Londres; está no segundo caso o pseudomartinismo fundado por Gérard Encausse (Papus).” (Obras de Fernando Pessoa, Lello & Irmão, pg. 436 do Vol. III)

Mas de França, felizmente, no que a martinismo diz respeito, não recebemos só o pseudomartinismo de Papus. Um dos discípulos de Pascoal Martins, que dele recebeu directamente o ensino, estabeleceu a partir da Ordem Templária da Estricta Observância o Regime Escocês Rectificado, combinando uma tradição que, segundo Jean Tourniac, tem raízes na Ordem Militar de Avis, com a que, através do seu mestre, prolonga, na Europa Central, a Kabbala peninsular. Esse discípulo foi, como se sabe, Willermoz. De Claude Saint-Martin que com ele colaborou na formação do referido Regime maçónico não há qualquer prova segura de uma transmissão iniciática em que se funde esta ou aquela organização, não obstante a profunda e vastíssima influência que exerceu através dos livros.

O que é que se conclui daquelas três citações e da existência entre nós do Regime Escocês Rectificado?

Por mim concluo que dispomos de um caminho simbólico de tudo quanto o martinismo ensina e que, mais uma vez se verifica, não precisamos de sair de Portugal na aventura do conhecimento. N’A Ideia de Deus de Sampaio Bruno temos a mais admirável reformulação filosófica do Tratado de Reintegração dos Seres nos seus Princípios Primitivos. De Sampaio Bruno “partem todos os caminhos”. Claro que não podemos reduzir o pensamento de Álvaro Ribeiro, de Leonardo Coimbra, de José Marinho ou de Agostinho da Silva à Ideia de Deus, tal como a concebeu o filósofo obscuro, porque onde o Espírito sopra não há repetição. Por isso mesmo, não podemos cair no erro de pensar que Pascoaes, Pessoa e Régio dizem coisas diferentes. Estão juntos no essencial, naquele essencial mais directamente apreensível no primeiro, dado que a teoria da saudade para o Regresso ao Paraíso é, logo à partida, o movimento da Reintegração dos Seres nos seus Princípios Primitivos.  

 

António Telmo

 

(Publicado em A Terra Prometida, 2014)



[1] Título da responsabilidade do editor.

 

INÉDITOS. 46

03-03-2015 09:36

O estudo do espólio de António Telmo permitiu já identificar o propósito do filósofo de, na segunda metade da década de 90, escrever um novo estudo sobre Camões, face ao silêncio -- ao sacer esto -- que, com a excepção honrosíssima de Agostinho da Silva, se havia abatido sobre o Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões. Dessa tentativa chegaram até nós algumas páginas que vão integrar Luís de Camões seguido de Páginas Autobiográficas, III Volume das Obras Completas de António Telmo, a sair a lume em Junho próximo, com a chancela da Zéfiro. É uma dessas páginas que agora antecipamos aos nossos leitores. O diálogo admirativo que o filósofo então mantém com a obra, ao tempo acabada de sair, de Moisés Espírito Santo, Os Mouros Fatimidas e as Aparições de Fátima, não tem apenas o mérito de nos permitir situar cronologicamente estes textos camoninos e todos os mais que integram o respectivo caderno manuscrito. Mostram também um livre-pensador religioso aberto ao diálogo com tendências de pensamento que não são exactamente as suas, e que por certo escapam àquele cânone pretensamente ortodoxo que certas correntes reaccionárias, abusivamente propensas à associação com o movimento da Escola Portuense, pretendem impor. A este propósito, verificamos com satisfação que a publicação da obra, incluindo a inédita, de António Telmo vem causando notório e perplexo incómodo a algumas pessoas, que julgavam poder transportar o seu pensamento a um qualquer redil doméstico. Estamos em crer que isto é saudável, porque nos mostra uma obra viva e vivaz, merecendo por isso a maior atenção. Fora das nossas preocupações ficará apenas a grosseria epigonal do insulto que se surpreende num ou noutro daqueles que não querem ver.   

Sobre o Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões[1]

 

Eu compreendo o silêncio que se fez à volta do meu livro Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões. É certo que houve uma excepção, a do homem mais inteligente do Portugal de então, o celebrado e célebre e inspirado Agostinho da Silva num breve escrito publicado logo após a saída do livro num jornal da tarde e mais tarde recolhido em Considerações e em Obras Completas simultaneamente. Como poderia dar na cabeça de alguém a ideia de fazer do catolicíssimo Camões um persa da linhagem espiritual de Zaratustra e de Mani?

Todavia, assim é, sem prejuízo da tese de Fiama Hasse Pais Brandão que faz dele um cabalista ou da tese de Sampaio Bruno que o associa a Dante como um “Fiel de Amor”. É que, como já ensinava o filósofo do Encoberto, da Pérsia descem as três correntes da gnose hebraica, da gnose cristã e da gnose shiita (que não devem confundir-se com os três fanatismos que são o talmudismo, o catolicismo e o islamismo), correntes essas vindas das altas montanhas e que confluem em Portugal formando um lago onde, como na Ilha do Amor, vogam os cisnes de Vénus. Um livro recente, Fátima e os Fatimidas[2] de Moisés Espírito Santo mostra como em Portugal, com as chamadas invasões árabes, se instalou a gnose shiita no seu aspecto popular. Os sefarditas portugueses [foram] uma implantação que ficou guardada pelos Templários acusados de cumplicidade com a mesma gnose por influência dos ismaelitas do velho da montanha. A gnose cristã dominou desde o século IV por meio de Prisciliano. Há ainda no Algarve Ibn Ramana [a] que[m] Asín Palacios assinala a afinidade com Prisciliano.

 

António Telmo



[1] Título da responsabilidade do editor.

[2] Rigorosamente, o título do livro de Moisés Espírito Santo a que António Telmo se refere é Os Mouros Fatimidas e as Aparições de Fátima. A primeira edição, com a chancela do Instituto de Sociologia e Etnologia das Religiões da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, data de 1995. A referência a este livro permite situar cronologicamente os diversos escritos do caderno de onde o presente texto provém. 

 

INÉDITOS. 45

01-03-2015 19:11

No dia em que se completam 110 anos sobre o nascimento de Álvaro Ribeiro, mestre dos mestres de António Telmo, lembramos o filósofo da razão animada a partir de um inédito do discípulo que ilustra a sua relação com o mestre e ilumina um aspecto fundamental do pensamento alvarino, também na estreita ligação que o relaciona com Sampaio Bruno. Trata-se de escrito que irá figurar nas Páginas Autobiográficas de António Telmo, a segunda parte do III Volume das suas Obras Completas, cuja fixação de texto o Projecto António Telmo. Vida e Obra está a ultimar.

Os guizos[1]

 

O som de guizos dá uma nota de beleza ao que não pode entender-se senão como a manifestação de uma força do género daquelas que, no domínio das ciências ocultas, se designam por subtis. Os guizos põem-se suspensos do pescoço dos gatos para avisar da sua presença e mais facilmente os encontrarmos se tiverem desaparecido. Há instrumentos musicais, como a pandeireta por exemplo, que funcionam com guizos que não são mais, afinal, do que pequenos sinos de forma ligeiramente diferente. O som do sino limpava a atmosfera da aldeia de Fernando Pessoa e torna as almas claras, mas o gemido de uma sirene gera angústia e pavor.

O mundo subtil tem os seus aspectos macabros que os filmes de terror exploram, fazendo acompanhar de um som contínuo, cavo e opressivo a aparição, por exemplo, do fantasma do pai de Hamlet. Os fantasmas são pálidos como que formados de uma matéria gelatinosa. Imaginamos assim o reino dos mortos e damos graças a Deus de vivermos no esplendoroso mundo sensível, onde brilham o Sol e as estrelas. Só as almas doentes podem comprazer-se com as sessões de espiritismo.

Falei ao Álvaro Ribeiro o que me aconteceu na casa do alfaiate.

– Foi qualquer coisa que estava a mais e que deitou fora – disse-me ele e pôs-se a falar noutro assunto.

O filósofo de A Razão Animada só atribuía valor e realidade às expressões do sobrenatural pela literatura. A fenomenologia do mundo subtil que não passasse pela palavra mental, oral e escrita, isto é, pelo pensamento, tinha uma garantia até menor do que a fenomenologia do mundo sensível que ele tinha por irreal. Neste ponto, como noutros que com ele se associam, e por ele se coordenam, a coincidência com Sampaio Bruno é flagrante.

O autor de A Ideia de Deus só atribui insofismável realidade às comunicações angélicas formadas por palavras. Desdenha das sensações visuais cuja transcendentalidade é, segundo ele, manifestamente ilusória.

No entanto, as palavras iluminam porque fazem ver naquele domínio invisível que é o do pensamento. “Ver ou não ver, eis a questão.” O essencial é sempre a luz. A visão de Ezequiel é um esplendor. O som que se constitui como letra é uma modalidade da luz.

«O olho, ensinou Jesus, é a lâmpada do corpo. Se o olho é mau todo o corpo é treva, se é bom todo o corpo é luz.»

O cinzento é o que resulta, como as cinzas de um incêndio, da combustão das cores. Os fantasmas são as formas cinzentas do informe.

Ver é tudo. Mas este maravilhoso mundo coroado de azul é apenas uma imagem?

Não há imagem que não o seja de alguma coisa, isto é, que não imite. Ou imita outra imagem ou o que não é imagem e este é o caso das imagens cosmológicas e da natureza que se devem conceber numa árvore cujas raízes estão para além da imagem.

 

António Telmo    

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[1] Título da responsabilidade do editor. O episódio a que António Telmo alude vem narrado aqui.

 

VOZ PASSIVA. 43

27-02-2015 18:00


Sobre António Telmo e Teixeira de Pascoaes, a propósito de uma afirmação de Miguel Bruno Duarte

Pedro Martins

 

A propósito de António Telmo e Teixeira de Pascoaes, Miguel Bruno Duarte identifica-me num texto que publicou em 20 de Maio de 2013 na sua página na Internet, Liceu Aristotélico. Passo a transcrever:

 

«... Os valiosos estudos da obra de Pascoaes que até agora têm vindo a ser feitos por pensadores da tradição portuguesa, os estudos de um Afonso Botelho, de um António Cândido Franco, de um Manuel Patrício, de um Paulo Borges ou de um Pedro Sinde, se obedeceram à preocupação de situar essa obra no quadro da nossa filosofia, nem sempre o fizeram de acordo com o conceito de filosofia portuguesa, e de tudo o que nela se implica, tal como foi formulado por Álvaro Ribeiro, o mestre entre nós dos que sabem...» [Curiosamente, o kabbalista de Estremoz esquecera-se de mencionar, entre aqueles autores, o caso do socialista maçon Pedro Martins].  

António Telmo (Prefácio ao volume 21 das Obras de Teixeira de Pascoaes - Assírio & Alvim, 2002).

 

Curiosamente, atribuindo-me os epítetos de socialista e de maçon – quanto ao primeiro, num determinado sentido, e ao lado de um Sampaio Bruno, de um Teixeira de Pascoaes ou de um Agostinho da Silva, não o enjeito; quanto ao segundo, não o confirmo nem o desminto, mas desde já, ao lado de um António Telmo, protesto a minha adesão ao ideário da Arte Real -, Miguel Bruno Duarte opera, como o leitor pôde constatar, ligação para um artigo que dei à estampa em Agosto de 2014, no jornal de inspiração católica Raio de Luz, republicado depois nesta página.

Sendo o artigo de Miguel Bruno Duarte de Maio de 2013, poderíamos estranhar esta ligação serôdia com que o dito Duarte tão atenciosamente me distingue, e que lhe agradeço.

Poderíamos, mas não estranhamos. Miguel Bruno Duarte, decididamente, revela dificuldades em situar-se no tempo. Diz que António Telmo se esqueceu de me mencionar, a propósito de Pascoaes, no prefácio de 2002. Não se esqueceu – porque não se poderia ter lembrado. Pela razão singela, que porventura não se cruzou com a inteligência ou, vá lá, com a memória do dito Duarte, de em 2002 não ter eu ainda escrito uma única linha sequer, quanto mais um estudo, sobre Pascoaes. António Telmo era um homem de dons, mas neste caso não atingiu a prognose da vidência.

Escreveu, porém, em 2007 (permita-me Miguel Bruno Duarte mais um daqueles saltos cronológicos em que tanto parece comprazer-se), na carta com que prefaciou o meu livro de estreia O Anjo e a Sombra – Teixeira de Pascoaes e a Filosofia Portuguesa, estas entre outras palavras, das quais sublinho algumas:

 

Devo confessar-lhe que, não obstante os laços de amizade que nos puseram a mim e a si colaborantes em vários momentos de expressão cultural e até cultual, não esperava que, de repente, efeito talvez de um fiat lux, emergisse da Sombra da sua alma o Anjo do seu intelecto a dizer-nos as palavras que faziam falta e que ainda não tinham sido ditas sobre Teixeira de Pascoaes e a filosofia portuguesa, a filosofia portuguesa e a redenção de Portugal.

 

Poderia ainda transcrever o que António Telmo escreveu em seguida naquele prefácio, nomeadamente o modo como liga Pascoaes a Álvaro Ribeiro. Impede-me porém que o faça certa modéstia que gosto de cultivar e sobretudo o sentimento cristão da caridade, a que até perante Miguel Bruno Duarte me sinto obrigado.

VOZ PASSIVA. 42

25-02-2015 12:29

De O Estranhíssimo Colosso - Uma Biografia de Agostinho da Silva, de António Cândido Franco, membro fundador do Projecto António Telmo. Vida e Obra, publicamos hoje um breve excerto relativo ao período brasiliense de Agostinho, com particular importância para a biografia de António Telmo. Nele, o autor transcreve aliás um inédito télmico que nos dá conta das tensões vividas durante a crise académica provocada pela Ditadura Militar a que o Brasil estava então sujeito, e que acabaria por determinar os regressos a Portugal de Telmo (em 1968) e de Agostinho (em 1969). João Ferreira, membro do nosso projecto, é outro dos grandes protagonistas das linhas que se seguem. À sua coragem, generosa e inesquecível, ficaram então António Telmo e Maria Antónia devendo a alimentação para a sua filhinha Anahi...

Brasília, 1968[1]

António Cândido Franco

 

No momento em que Agostinho se apresentou diante da Comissão Parlamentar de Inquérito, a 23 de Maio de 1968, já não alimenta ilusões sobre o destino da escola em que está. Toma-a por uma universidade serôdia, sem vigor nem ousadia. Não admira pois que Agostinho tenha duvidado do seu futuro na escola de Brasília. Cheirou-lhe que o tempo dele por ali não havia de durar muito. Aquela paralisia formal em que a escola caíra não era para um Silva que dormia num barracão do cerrado e tinha por lá à sua conta uma dúzia de estudantes. Quando recebe Conceição e Silva em 1967 já ele está a preparar a terra para meter sucessor. É o arranque da reitoria de Caio Benjamim Dias. Ele ainda não sabe o que lá vem mas percebe que a atmosfera em formação, as negras nuvens que se acumulam, e que tão bem retrata no que diz à Comissão Parlamentar de Inquérito, não bate certo com a liberdade do seu modo de vida nem com o seu projecto de escola como comuna geradora de vida fraterna. Do período relativo ao primeiro semestre de 1968, sei que a UnB viveu um duro cerco militar e que a asa norte da cidade esteve durante vários dias sem contacto com a asa sul. Foi a terceira invasão militar da UnB e a mais dura das três. António Telmo, então ao serviço do Instituto de Letras, deixou um escrito sobre o momento que precedeu a invasão e que aqui transcrevo por gentileza da sua esposa, Maria António, visto que nunca foi dado em letra redonda. É uma fotografia daquilo que então aconteceu na Universidade de Brasília e que Agostinho também viveu. Diz assim: «Duas semanas depois de começarem as aulas e quando tudo parecia seguir um curso normal, sem greves e sem motins, a rádio trouxe a notícia de que, no Rio de Janeiro, a polícia tinha matado a tiro um estudante. A notícia chegou pela noite; no dia seguinte de manhã, quando chegámos à universidade, as paredes, os muros, os vidros, a entrada estavam cheios de legendas contra a Ditadura de Costa e Silva. Que chegara ao ponto de ter de derramar sangue inocente para se manter de pé. Havia uma muito brasileira: era o retrato amarelecido reitor que tinha escrito por baixo “Procura-se um Assassino”. A polícia militar cercou a universidade. Passámos o dia passeando pelo campus. Ninguém tinha nada que fazer, mas isso não constituía problema. Os estudantes espalhavam-se em grupos, falando em surdina e combinando modos de irritar a polícia. Os leaders, entretanto, estavam reunidos no directório académico. Soava, por todo o recinto, a voz de Nara Leão cantando canções de protesto.»

A invasão acabou com quinhentos estudantes presos e um gravemente ferido a tiro. A família Vitorino viu-se metida em assados, pois tinha uma menina de meses e precisava de recursos que faltavam na parte norte. Foi João Ferreira, chegado em princípios de Janeiro de 1968, que furou as linhas militares e salvou a situação. Maria Antónia nunca esqueceu este corajoso gesto, que lhe pode ter salvado a vida da filha. Eu, que sei João Ferreira activo nos mastodontes de Brasília aos 90 anos, atribuo o facto ao hábito com que este transmontano viveu desde novo situações de aperto, entre elas as da guerra civil de Espanha e as dos tempos da Guiné-Bissau, que não hão de ter sido doces. Daqui o saúdo com uma vénia de preito e um sinal de admiração pela coragem que sempre mostrou em afirmar as suas convicções e em ajudar o parceiro. Despiu a batina e tirou fora o colarinho de goma de padre mas nunca deixou de ser um seguidor de Francisco de Assis.

 


[1] Título da responsabilidade do editor.

 

 

DOS LIVROS. 35

24-02-2015 09:12

Marranos


                                                        17 – 9 – 07

 

Em conversa telefónica, ontem, com o Pedro Sinde.

Disse-me que “marrano” corresponde a uma palavra hebreia que significa “aquele que se converte a outra religião”. Mas essa palavra em hebreu não tem dois rs mas um só, pelo que Teixeira de Pascoaes soube o que fazia quando pôs ao seu poema o nome de Marános.

O duplo r permitiu que de marrano se passasse a marrão, aquele que marra, pousando a cabeça sobre os livros e que, simultaneamente, se confundisse porco com marrão.

Tudo isto me foi dito com melhores palavras pelo Pedro Sinde.

A utilização da língua para fazer o mal, pecando por palavras, é aqui obra de católicos ateus e digo ateus porque não poderá crer em Deus e no Senhor Jesus Cristo quem aplaude as atrocidades da Inquisição.

Tenho reflectido muito, depois da leitura de O Judeu de Camilo Castelo Branco, nas repercussões que esse horror que foi a Inquisição poderá ter tido no mundo actual português. Todos somos filhos da Inquisição. Os nossos antepassados transmitiram-nos pelo sangue o medo e, mais do que o medo, a censura automática a tudo quanto seja menos certinho, a qualquer desvio da norma geral, em suma, à afirmação de uma personalidade original. Na aliança do medo e da autocensura emerge a inveja, essa hiena da alma.

 

António Telmo

 

(Publicado em A Terra Prometida, 2014)

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