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INÉDITOS. 43

15-02-2015 20:32

Carta a um mestre maçon sobre o mundo subtil[1]

Como pode ver pelas primeiras linhas desta carta, retomo hoje o que comecei há uns quinze dias.

Claro que não andamos à procura de fenómenos extraordinários como os espiritistas, por exemplo. Todavia, quando eles se dão, não os recebemos como se nada fossem, como se nada acrescentassem.

Calcule que, uma ou duas semanas depois do que lhe contei, eu, e mais dois, estávamos à espera no Café Alentejano do Pedro Martins que vinha de Sesimbra para estar comigo e se encontrar ali pelas cinco e meia da tarde. Eram sete e ainda não tinha chegado. De repente entrou no café um homem estranhamente parecido com ele, assim uma espécie de grande ave caminhando de asas abertas, o mesmo nariz, o mesmo ar inteligente, etc., etc. Os três coincidimos, quando chamei para isso a atenção, em achá-lo em tudo semelhante ao Pedro Martins. Eu disse: Ele está a chegar, não tarda dois ou três minutos. Não esperámos tanto. Tudo se seguiu como se nada tivesse acontecido. Ficaram indiferentes.    

O que é enigmático é que, passados alguns dias sobre acontecimentos do tipo dos dois que venho de contar, eu também é como se eles não se tivessem dado e cheguei até a duvidar, tão pálida se tornou a sua imagem, se os vivemos de facto.

São fenómenos do mundo subtil. Nós vivemos no mundo grosseiro. Passamos daquele para este, onde eles nos aparecem revestidos da mesma banalidade dos fenómenos físicos. Será isto?

Eu vejo, por exemplo, no relato que escrevi na página anterior a mesma banalidade dos acontecimentos habituais. Uma explosão interior! Interior, mas uma explosão, banal como todas as explosões. Não, não foi e foi isso. É indescritível. Rezar, já no outro mundo e com a certeza de estar lá. Mas foi ao juntar as mãos em oração que acordei. Eu rezo sempre quando estou no outro lado de mim. Que sensação deverá corresponder no mundo subtil à nossa situação de mortos no ritual da elevação? Haverá alguma conexão íntima entre aquilo a que assisti na véspera e o que vivi enquanto dormia a sesta?

Meu caro Irmão, ajude-me a compreender tudo isto. Dê-me também notícias suas. Um grande abraço do

 

António Telmo



[1] Título da responsabilidade do editor.

 

VOZ PASSIVA. 41

13-02-2015 09:32

AGOSTINHO DA SILVA, 109 ANOS DEPOIS! 

No dia em que o calendário nos recorda o nascimento de Agostinho da Silva, temos o privilégio de publicar um escrito seu sobre um livro perdido de António Telmo, recentemente dado a lume, pela primeira vez, na revista de cultura libertária A IDEIA. A este privilégio, junta-se um outro: o de podermos hoje contar com o autorizado comentário do Professor João Ferreira, membro do Projecto António Telmo. Vida e Obra, amigo e colega de Agostinho e de Telmo na Universidade de Brasília, de que é professor aposentado, na década de sessenta. O escrito agostiniano e o comentário de João Ferreira irão aliás integrar a marginália do III Volume das Obras Completas de António Telmo, Luís de Camões seguido de Páginas Autobiográficas, a sair em 10 de Junho, na Zéfiro.  

Sobre um livro de António Telmo[1]

Agostinho da Silva

 

É bom reconhecerem os intuitivos ou poéticos uma vez por todas, mesmo quando tenham a habilidade de pensar e o talento de escrever como António Telmo os tem, que nada há no mundo de verdadeiramente compreendido, isto é, aprisionado numa cadeia de coerências, o que ainda é, apesar de tudo, um critério de verdade, que não indique no início ou no desenvolvimento um trabalho dos científicos, bastante maltratados neste livro, e se não deva à paciência, à erudição, à humildade, à modéstia crítica, à resignação do recomeçar que são qualidades do verdadeiro homem de ciência qualquer que seja o campo em que as exerça.

Parece, por outro lado, que se não aceita suficientemente que a parte mais importante da construção científica não é o colectar de dados e que ciência resulta fundamentalmente de uma invenção, de uma ideia criadora, de uma adivinhação, se assim se prefere, que depois é testada uma e outra vez pelo critério do fenómeno e posta implacavelmente de lado se um só facto parece opor-se ao que de início se apresentara como plausível. O científico é um criador, como o poeta, o músico ou o pintor e é ainda um de nossos primitivismos o de supor que cultura e ciência são dois domínios diferentes e que é mais culto o literato de esquina de livraria, que nunca raciocina em termos gerais e se encontra todo envolvido nas pequenas intrigas de suas medíocres prostituições, do que o químico ou o físico que buscam através de tudo leis universais e sistemas de comportamento válidos para qualquer lugar e para qualquer tempo, o que é, provavelmente, uma definição de cultura bastante válida.  

É evidente que não são esses os que António Telmo quer atingir, como não devem ser também, dentro do domínio filológico – e era bom que, no campo da língua portuguesa, se deixasse definitivamente de dizer literário ou de letras – um Menéndez Pidal ou um Adolfo Coelho ou um Américo Castro ou um Lindley Cintra; o que tem em vista é assestar um bom golpe, golpe nada misericordioso do teólogo e do homem de acção que ainda estão sem emprego dentro do escritor, ou nos que se desviaram por força de seus temperamentos e convicções, poremos por exemplo um Menéndez Pelayo e um Teófilo Braga, ou nos que, por literatura falhada, recorrem à crítica e à história, e aqui não poremos exemplo, mas faremos um monte, futuramente incendiável, de todos os chamados suplementos culturais.

Combinaremos, pois, salvar um grande número dos que estavam já condenados ao inferno e, sobre essa concessão, faremos outra, a de que é extremamente útil haver por estes prados de caça o que poderíamos chamar de perdigueiros culturais, os quais são os que, embora ensinados, e com mão de ferro, pelos tais científicos – e o próprio António Telmo os vai com inteligência e saber disciplinando nas suas funções de professor de cultura latina na Universidade de Brasília – repousam, no entanto, muito mais nas suas qualidades de faro. Taxinomia e caça são, efectivamente, duas qualidades distintas e é bom que tenha sido o mundo provido das duas raças de trabalhadores; pena que tão frequentemente rosnem uns contra os outros, sem se reconhecerem companheiros e sem quererem confessar, posto que muitas vezes o aceitem, que uns aos outros se ajudam, por aquilo a que na história dos organismos se vai chamando de retroacção positiva.

O que António Telmo nos vai levantando neste seu livro ou colecção de ensaios e depois de, apesar de tudo, ainda dar um ar de sua graça académica no primeiro capítulo, é extremamente importante para o entendimento do que somos no mundo, nós galegos, ou nós brasileiros, ou nós portugueses. Bom seria que os científicos pusessem de lado a irritação que talvez o escrito lhes cause e averiguassem tudo o que por ali se diz a respeito de maniqueísmo na mentalidade de cultura lusíada, de priscilianismo ainda tão mal averiguado, de culto do Espírito Santo de que tão imperfeitamente se conhecem as ligações aragonesas e catalãs ou os caminhos sicilianos, de conceitos de paraísos futuros, que conviria talvez ir ligar com a história da Comuna de Münster e as ideias de Jan de Leide quanto a uma Quinta Monarquia e a uma segunda vinda de Cristo.

O mal dos nossos científicos não está propriamente em serem científicos, o que é excelente; está em se fazerem de científicos, como se bastasse para isso passarem seus concursozinhos de cátedra e ficarem depois remoendo, plácidos, a ração da alcofa oficial; e está muito em se educarem em escolas de Europa, aplicando depois ao que não é Europa, e espero nunca o seja, critérios europeus, casos de história cultural europeia, perspectivas europeias. O resultado é que nunca ninguém se debruçou sobre o complexo galaico-português, que vem desde Paio Soares e D. Sancho a José Régio e Castelao, quaisquer que tenham sido as aventuras da História, e daí, atravessando os mares, se enriqueceu produzindo o Brasil, futuro senhor cultural do mundo, com olhos verdadeiramente portugueses, porque só se encontra no exterior o que se é por dentro. O heterodoxo de pensamento e de vida que é António Telmo logo deu pela nítida linha heterodoxa que atravessa a cultura portuguesa, não como um fenómeno de menor importância mas como a espinha dorsal do que somos; o inquieto ou dividido que talvez seja logo tocou o maniqueísmo com um dos nervos-chave, e apenas um deles, que vai a medula fundamental por outros caminhos, como ele próprio o apontou quando viu como os maiores não foram maniqueístas e passaram, não com implicações de Nietzsche mas com algum colorido de Lao-tse e Zen, para além da linha do bem e do mal, do Céu e do Inferno, cujas bodas, mais que Blake, celebrou durante setecentos anos o melhor da literatura portuguesa.

Só os portugueses menores, e é óptimo que haja portugueses menores chamados Sá-Carneiro ou Régio, foram monovalentes; os grandes são plurivalentes, o que se liga ao mesmo tempo com valentia e valência; Camões, soldado, Bocage, marinheiro de navio e taberna, Antero, conspirador, todos eles tiveram a coragem de assinar com um nome só a sua obra; Fernando Pessoa, tímido desempregado de escritório, fez como o caramujo da Inês Pereira; não saiu senão à porta e foi lançando seus pedúnculos oculares, ou seus variáveis pseudópodos de ameba para aquela exploração do mundo do sol e da verdade a que não ousava ir, bravo inteiro guerreiro; tudo isto viu muito bem António Telmo.

Mas são só plurais os Portugueses? Talvez não. O maior no mundo não é ser isto ou aquilo, e já bastante se citou Pascal a este respeito. O que há de maior num Fernão Lopes ou num Vieira é terem sido tudo isto e aquilo; terem reunido numa gema única todas as livres rutilações da vida e terem, apaixonados, desapaixonadamente contemplado o verdadeiro além do bem e do mal que não vem de se ser do Tao, como ficou acima, mas de ser dele e de Confúcio, numa perfeita reunião dos contrários. Como o consegue o português? Sabendo que a noção de contrário não está no mundo mas no nosso espírito, pondo o universo como inteiramente objectivo e natural em si próprio e reservando para si toda a imensa e dolorosa carga de paixão e juízo, com o desejo de que ele próprio se torne, morto ou vivo, um ser natural na naturalidade dos seres; o ideal português é ser coisa entre coisas, o que é talvez apenas outra forma de se ser deus entre deuses. Talvez, por isso tudo se tenha um dia de considerar como o maior dos nossos poetas, como o mais representativo dos portugueses, não um Camões, ou um Vieira, ou um Pessoa, mas um quasi obscuro homem, que viveu desconhecido numa aldeia e desconhecido morreu: Alberto Caeiro, tuberculoso e loiro.

 

Belém de Cachoeira, 7.3.68

 



[1] Nota do Editor – o título é da nossa responsabilidade. Agostinho da Silva refere-se, neste seu escrito, a um livro de António Telmo, autor que, à data, havia apenas publicado Arte Poética (1963), presumivelmente oferecido a Agostinho, no Brasil. Todavia, quer pelo tom prefacial do escrito agostiniano, quer pelas sucessivas referências que ele encerra, seja à estrutura formal da obra de Telmo (uma “colecção de ensaios”), seja ao seu teor (maniqueísmo, priscilianismo, culto do Espírito Santo), é evidente tratar-se de outro volume que não aquele seu livro de estreia. Na transcrição do escrito, procedeu-se à actualização da ortografia e à correcção de um ou outro lapso manifesto. 

 

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Comentário

Uma lição magistral de Agostinho

João Ferreira

Escrito em Belém da Cachoeira, no Recôncavo Baiano do Brasil, em 7 de março de 1968, dia de S. Tomás de Aquino, doutor da Igreja, símbolo da busca de conciliação entre Teologia e Filosofia, ou entre fé e razão, este texto  de Agostinho da Silva é, de certa maneira, um texto que, em seus detalhes, representa não apenas um comentário a um livro de António Telmo mas também um glossário de teses agostinianas e uma súmula de princípios com largos índices de uma linha de típica filosofia portuguesa moderna.

Entre as abordagens possíveis que poderíamos fazer deste texto, achamos interessante começar por valorizá-lo pelo profundo alcance didático que Agostinho lhe imprime: o Mestre ensina primeiro, como ouvir e conviver, como prestigiar a palavra, a inteligência e o saber; depois, também, como aproveitar a convivência a fim de melhorar a busca de caminhos.  O texto é, portanto, um fragmento que além de proporcionar uma leitura alargada de muitos outros textos e contextos na busca de sentidos, toca o fundo de várias temáticas, reconstruindo um sentido maior que elas contêm. Ligando-o a uma visão clássica onde as coisas têm uma ordem, uma medida, e uma proporção (ordo, mensura et proportio), Agostinho tem a habilidade de recolocar na mesa destacados temas visados pelo amigo Telmo. Fá-lo prestigiando a  consciência de si e a identidade pessoal do autor do livro que comenta. Elogiando, de passagem, "a habilidade de pensar e o talento de escrever" de António Telmo, não se esquece, estrategicamente, na qualidade de Mestre, de prevenir contra a tentação de qualquer arrogância  em relação aos adversários. Nesse sentido deixa um recado claro para os intuitivos ou poéticos, grupo a que Telmo pertence, dizendo que "nada há no mundo de verdadeiramente compreendido[...] que não indique, no início ou no desenvolvimento, um trabalho dos científicos, bastante maltratados neste livro[...]. O recado vale também para os "perdigueiros culturais" ensinados com mão de ferro pelos científicos, mostrando-lhes que seu poder não é absoluto. A esses, diz Agostinho, "o próprio Telmo os vai, com inteligência e saber, disciplinando". Colocando-se como árbitro da querela entre poéticos e científicos o Mestre ensina que não são pertinentes nem a arrogância nem a irritação de nenhum dos lados. O que vale mesmo é o talento e a criatividade: nuns e noutros, em intuitivos e científicos. Não há espaço para palavras vazias. Há sim necessidade de descobrir que poéticos e científicos "são duas raças de trabalhadores". Distintas, mas complementares.  Não importa que "rosnem uns contra os outros".Na realidade o que importa é que são dois grupos companheiros na busca da verdade das coisas. A advertência e o ensinamento de Agostinho tornam-se  estratégicos porque visam semear a racionalidade no debate da questão entre intuitivos e científicos. António Telmo é, nesse ano de 1968, um jovem intelectual de 40 anos, professor universitário em Brasília, e autor de um livro publicado havia cinco anos, em 1963. Um livro,  de nome Arte Poética,  que mostra a profunda ligação do jovem António Telmo com o intuicionismo e a galáxia gnoseológica  de Henri Bergson. Coincidentemente, no preâmbulo desse livro, intitulado "Propósito" (págs. 31-33, na edição Zéfiro, de 2014), Telmo já registra esta guerra entre intuitivos e científicos.

Torna-se por isso interessante notar que seja a intuição, exatamente, um dos temas centrais do debate neste texto de Agostinho.  O discurso de Agostinho explica que nem a intuição de  "poéticos, intuitivos e imaginativos" nem a simples coleta de dados de "científicos" chega a ser importante. As coisas, segundo Agostinho, só começam a ser importantes quando têm dentro uma "ideia criadora", ou representam uma "invenção" ou uma "adivinhação". Ora esta ideia criadora ou inventiva pode existir tanto entre intuitivos quanto entre científicos. Segundo Agostinho, há, por isso, que deixar de lado o primitivismo de supor que "cultura  e ciência são dois domínios diferentes e que é mais culto o literato de esquina de livraria" do que o químico ou o físico, por exemplo.

 

2. Feed back deste debate

Esta guerra entre intuitivos e científicos já está presente no "Propósito" de Arte Poética. O alvo de António Telmo, segundo Agostinho, são "aqueles que se desviaram por temperamento ou convicção e os falhados que têm como refúgio de salvação a "crítica e a história".

Sabemos que a briga entre "poéticos e científicos" é uma reedição de um repetido embate histórico já registrado entre os gregos, que se dividiam entre defensores da epistéme (ciência) e defensores da doxa (opinião), embate que os franceses reeditaram na Querela entre Antigos e Modernos, no período que vai de 1650 a 1715.

 

3. Crítica livre e crítica acadêmica

Em nosso mundo moderno e contemporâneo o debate continua. A crítica mantém-se dividida entre um modo informal e um modo formal ou rigoroso de debater os problemas. No modo informal cabem todas as atitudes. No modo formal cabem as conclusões rigorosas da ciência que tem seus métodos e suas formas metodológicas e rígidas de olhar a realidade. O debate é atual em nossas sociedades onde ainda se distingue entre crítica livre e crítica acadêmica. A crítica livre não tem uma metodologia de rigor. Sente-se à vontade para praticar o simples impressionismo, o achismo, e um ponto de vista inteiramente pessoal, mesmo quando este é ideológico e passional. A crítica acadêmica tem seu código de rigor. A esse rigor, a Academia chama objetividade. Na crítica acadêmica vale o peso dos argumentos e a lógica da argumentação baseada em dados científicos. Agostinho traz esta questão para dentro do texto que comentamos. Como moderador que tenta apaziguar, mostra os dois lados da questão, a uns e a outros. Aos "científicos" lembra que não há mal em haver científicos quando o forem  de verdade. O ruim está em alguém "querer parecer" científico. Na observação há uma carga clara em cima dos burocratas, universitários ou não, que se contentam em passar em seus concursozinhos, ficando depois, o tempo todo, remoendo "a ração da alcofa oficial".

 

4. A terceira via

Ao tentar mostrar o caminho da tolerância e da conciliação, Agostinho, ensina a possibilidade da terceira via. É um dado admitido  que na teoria do conhecimento há várias vias e que no debate entre poéticos e científicos se interpõe a via do diálogo. A variação e a legitimação da variedade de critérios de análise e interpretação do mundo fica portanto como um dado claro e necessário para a convivência social e acadêmica.

 

5. Distorção maniqueísta

Na prática nem todos aceitam o diálogo entre contrários. Telmo e Agostinho denunciam a existência de um certo maniqueísmo na mentalidade dos que tratam da cultura lusíada, e também de um certo priscilianismo em relação a teses que encontram todo o respaldo em dados e tradições portuguesas como o culto do Espírito Santo, "de que tão imperfeitamente, diz Agostinho, se conhecem as ligações aragonesas e catalãs ou os caminhos sicilianos, de conceitos de paraísos futuros, que conviria talvez ir ligar com a história da comuna de Münster e as ideias de Jan de Leide quanto a uma Quinta Monarquia e a uma segunda vinda de Cristo". No detalhe da citação de Agostinho estão dois nomes potencialmente ligados à ideia da Quinta Monarquia ou Quinto Império. O primeiro é  o reformador alemão contemporâneo de Lutero, Thomas Münster(1489-1525), para quem só haverá verdadeira medida num Humanismo social quando houver ordem e proporção entre as coisas (vera mensura humanismi socialis est ordo et proportio rerum). Thomas era um pregador apocalíptico, fundamentalista, que participou de uma revolta falhada de camponeses na Turíngia. Modernamente tornou-se um símbolo para os marxistas na  luta de classes, em virtude de sua insurreição contra o feudalismo. Agostinho cita também Jan Leiden(1509-1536), líder de massas, que tentou formar uma comunidade teocrática anabaptista e proclamar-se rei de Münster em 1534. Em 1536 a cidade foi tomada por tropas católicas e Jan foi preso, torturado e executado, segundo as crônicas.

 

6. A linha heterodoxa da cultura portuguesa

Além da quesília entre intuitivos, imaginativos e científicos, Agostinho centra-se sobre vários temas fulcrais que escolhe a dedo sacados do livro que comenta. Entre eles, faz ressaltar a linha heterodoxa de António Telmo: "O heterodoxo de pensamento e de vida que é António Telmo logo deu pela nítida linha heterodoxa que atravessa a cultura portuguesa, não como um fenómeno de menor importância, mas como a espinha dorsal do que somos."

 

7. O Complexo galaico-português

A par da linha heterodoxa, Agostinho coloca ainda um ponto essencial que valoriza na sequência da análise do livro de Telmo. Esse ponto é aquilo que Agostinho chama de "complexo galaico-português que vem desde Paio Soares e D. Sancho a José Régio e Castelao, quaisquer que tenham sido as aventuras da História, e daí, atravessando os mares, se enriqueceu produzindo o Brasil, futuro senhor cultural do mundo, com olhos verdadeiramente portugueses porque só se encontra no exterior o que se é por dentro."

Este fragmento tem a profundidade e a história que vai desde a fundação do reino de Portugal em 1138 até ao presente. Paio Soares de Taveirós foi um  trovador galego da primeira metade do século XIII, contemporâneo de D.Sancho I e seria o autor da famosa canção "No mundo nom me sei parelha", também conhecida pelo nome de canção da guarvaia que já chegou a ser considerado o primeiro documento literário em língua portuguesa. Ao destacar o "complexo galaico-português" no comentário ao livro de Telmo, Agostinho intenta celebrar as raízes da língua e da cultura do nascente reino de Portugal de D. Afonso Henriques que nasce geminado culturalmente com a Galiza. Ao lembrar Castelao,  Agostinho presta homenagem justa a uma das figuras cimeiras do renascimento galego do século XIX, ao lado de Rosalia de Castro (1837-1885) e de Curros Henriques. Toda esta linha de cultura do noroeste da Península Ibérica aportou efetivamente ao Brasil  no tempo das caravelas e depois. A profecia e o apodo apaixonado que Agostinho dá ao Brasil como  "futuro senhor cultural do mundo, com olhos verdadeiramente portugueses" fica arquivado como um extraordinário ato de amor e de carinho. Como uma fé.  Considerando, porém, a realidade antropológica e cultural do Brasil moderno ainda em evolução, parece que apesar das raízes lusas expressas em alguns costumes étnico-culturais e da comunhão profunda de um idioma materno impregnado de matizes portuguesas, o Brasil real de hoje, por ser uma convergência de muitas outras etnias e culturas vai ganhando um caráter e uma personalidade que vão além dos "olhos verdadeiramente portugueses".

 

8. O segredo português

Dentro daquilo que sempre foi o centro da conversação e da vivência cultural de Agostinho, uma parte importante do texto refere-se ao segredo português, que consiste na perfeita reunião dos contrários. Agostinho interpreta a capacidade portuguesa de lutar contra as adversidades no atravessamento vivencial da história, construindo uma personalidade própria e um ser natural na naturalidade das coisas. "O ideal português – diz – é ser coisa entre coisas".

 

9. Os portugueses maiores não foram maniqueístas

Apontando o "maniqueísmo como um dos nervos-chave da cultura portuguesa no terceiro quartel do século XX, Agostinho diz que "Os portugueses maiores não foram maniqueístas". Os grandes portugueses sempre foram plurivalentes, desdobrando-se na vida e na ação. E  mostra isso, falando de Camões como soldado, além de poeta. De Bocage como marinheiro de navio e taberna, além de poeta. De Antero, conspirador, além de poeta. Todos eles – diz – tiveram coragem de assinar com um nome só sua obra. Fernando Pessoa o mais plural de todos, "lançando seus pedúnculos oculares para a exploração do mundo do sol e da verdade". –"Tudo isto viu muito bem António Telmo", conclui Agostinho. Os portugueses menores foram monovalentes. Os maiores foram plurais.

 

10. Ser maior no mundo não é ser isto ou aquilo

"O que há de maior num Fernão Lopes ou num Vieira é terem sido "tudo isto" e "aquilo": terem reunido numa gema única todas as livres rutilações da vida. Terem uma alma grande com capacidade plural.

 

11. Caeiro, o maior dos poetas

Depois de falar do complexo galaico-português, do Brasil, de Camões, de Vieira e Pessoa, e de outros grandes portugueses, Agostinho se embrenha no segredo português e se pergunta como é que o português consegue a perfeita reunião dos contrários,  reservando em sua análise um cantinho especial para seu ídolo Caeiro.  "Sabendo – diz ele – que a noção de contrário não está no mundo mas no nosso espírito, pondo o universo inteiramente objetivo e natural em si próprio  e reservando para si toda a carga de paixão e juízo, com desejo de que ele próprio se torne, morto ou vivo, um ser natural na naturalidade dos seres, o ideal português é ser coisa entre coisas, o que é talvez outra forma de se ser deus entre deuses. Talvez por isso tudo se tenha um dia de considerar como o maior dos nossos poetas, como o mais representativo dos portugueses, não um Camões ou um Vieira ou um Pessoa, mas um quase obscuro homem que viveu desconhecido numa aldeia e desconhecido morreu: Alberto Caeiro, tuberculoso e loiro."[o sublinhado é nosso].

 

12. Telmo teólogo e homem de ação ainda sem emprego

Agostinho que define Telmo como  "um heterodoxo de pensamento e de vida", ao elogiar a combatividade do amigo realça que o que Telmo tem em vista ao criticar certos filólogos "é assestar um bom golpe, golpe nada misericordioso do teólogo e do homem de ação que ainda estão sem emprego dentro do escritor". Esta expressão de "teólogo e homem de ação que ainda estão sem emprego dentro do escritor" parece ser uma chamada em relação a qualidades específicas que admirava no pupilo mas que ainda estavam ociosas, por assim dizer, no autor de Arte Poética. Analisando o texto em sua globalidade, é nítido e claro que Telmo sai do comentário de Agostinho inteiramente prestigiado não só pelo elogio direto de ser um homem "hábil no pensar e talentoso no escrever" mas também pela sua combatividade crítica que sabe "disciplinar com inteligência e saber".

 

Brasília, 12 de fevereiro de 2015

João Ferreira

 

INÉDITOS. 42

10-02-2015 16:32

Com o Max Hölzer:

O endereço

 

Não me interessou aprender com este homem notável que o José Marinho me apresentou como um esoterista de alta qualidade. Era de facto um esoterista de alta qualidade, mas a sua íntima ligação à escola de Gurdjieff não me agradava.

Enviou-me de Paris dois volumes com a Gramática do Hebreu Restabelecido de Fabre d’Olivet[1], que me esqueci de agradecer.

Passaram-se meses desde que ele regressou a Paris. Além da oferta daquele livro tinha-me enviado postais.

Pelo Natal sentia-me incomodado por ter procedido tão grosseiramente. Agora já tinham passado bastantes dias sobre o envio do livro de Fabre d’Olivet e pareceu-me um despropósito agradecer-lhe tão depois.

De súbito, ocorreu-me que poderia remediar tudo, mandando-lhe um cartão de boas festas, com os votos de um feliz Natal. Estava em Sesimbra a passar férias em casa da minha mãe. Não tinha o endereço de Max Hölzer, que estaria em Borba, no Alentejo, no papel que envolvia a encomenda com o Fabre d’Olivet. Lembro-me da impossibilidade de lhe escrever, sem possuir o endereço.

Estava no Castelo com o Rafael Monteiro quando me lembrei que não o tinha. Saí logo para propor à minha mulher irmos a Borba buscá-lo, se ela soubesse onde estava o invólucro da encomenda, se não tivesse seguido com o lixo.

Deu-se então o espantoso. No assento do carro estava ali esse[2] invólucro, com o endereço bem visível do Max Hölzer. Não podia lá estar quando me meti no meu automóvel quando vim para o Castelo: ter-me-ia sentado em cima daquele grosso papel amarelado que envolvia dois grossos volumes.

Escrevi ao Max Hölzer dizendo-me disposto a seguir o seu ensino. Juntava também os votos de feliz Natal.

 

António Telmo


[1] N. do O. - O título desta obra, no original francês, é La Langue Hébraïque Restituée.

[2] N. do O. – Palavra de muito difícil leitura no manuscrito. Admitimos igualmente a hipótese de António Telmo haver escrito “um”.

 

VOZ PASSIVA. 40

05-02-2015 16:49

Da Gramática Secreta ao três, passando pelo mundo sensível

Risoleta Pinto Pedro

 

Para demonstrar que “não há progressão sem movimento triádico”, acrescentando que “O paradigma da progressão é o andar do homem que se faz a três tempos e não a dois, porque o esquerdo e o direito estão misteriosamente ligados a um centro de energia no baixo-ventre”, António Telmo, ainda na Gramática Secreta da Língua Portuguesa, sobre a qual escrevi na minha primeira participação neste projecto, vai escolher, como exemplo, o sol, da seguinte maneira:

“Seja qualquer ser sensível, o sol, por exemplo.”

E isto encanta-me. Porque me transporta para o mundo das coisas maravilhosas e verdadeiras onde o sol e outros seres que uma humanidade embrutecida por um racionalismo radical embruteceu, aqui é reabilitado para o mundo dos seres sensíveis.

Não é pela argumentação que se segue que aqui trago o exemplo, mas por dois aspectos aqui aflorados: que o três é o motor da progressão e que o sol é um ser sensível. E talvez estas duas afirmações não estejam assim tão distantes ou separadas.

Do sol como ser sensível falarei em breve. Ocupar-me-ei por agora, do três, inspirada pelo brilho do pensamento de António Telmo.

Recordo que publiquei, há tempos, sobre o três, o seguinte texto, que intitulei de 

 

“Matemática, nascimento, renascimento, recuo e progresso”:

 

“… Ou a diferença entre o 1 e o 3 a partir do 2.

Ouvia no outro dia, Nuno Michaels falar sobre um tema que nos é muito caro aos Renascedores: a passagem do dois para o três ou o recuo para o um? É uma questão fulcral.

Quando o bebé está no útero, e mesmo admitindo que nem sempre a vida intrauterina é a bem aventurança que costumamos atribuir a esta fase da vida, apesar de tudo, o ser vive, quando dentro do corpo da mãe, por muito difícil, repito, que seja essa fase para ambos, um sentimento de união, o bebé ainda não sabe o que é a separação,  está em íntima comunhão com o ser da mãe, de onde lhe vem o alimento e a vida, o “seu Deus”. Ele e a mãe são um. Não há oscilações de temperatura, não há ruídos excessivos, não há, em princípio, dor física. Embora possa sentir a dor psicológica da mãe, quando a houver. O seu Deus é um Deus que sofre. Mas é um Deus que o contém. Melhor, que ele É.

De qualquer modo, este é um estado de beatitude, se compararmos com o que encontramos ao sair: calor ou frio, ou ambos, ruídos agudos, manipulação sentida como violência, afastamento da mãe, que é sempre vivido pelo bebé como algo ameaçador, risco de vida, perigo de não sobreviver.

São já alguns os estudos sobre a psicologia do bebé no útero, e sabe-se que o bebé não é aquele livro branco e neutro que durante muito tempo se acreditou ser.

Então, a vida depois do nascer é, essencialmente, e mesmo nos casos em que se considera que “correu bem”, uma experiência de separação (passa a haver um eu e um tu), e o  mundo um desafiador local de experiências, a maioria das vezes, interpretado pelo ego, que apenas quer proteger, defender e ajudar, como um campo de batalha: tu de um lado da linha, eu do outro. Tu gritas, eu morro. Tu ameaças, eu fujo. Tu agrides, eu congelo. Tu atiras, eu destruo-te. Podemos assistir a isto nas famílias, nos casamentos, nas escolas, nas instituições em geral, nas ruas. É a experiência do 2. Surge, então, a nostalgia do um, o mito da bem-aventurança, da experiência de eu e Deus Mãe juntos e sem guerra.

Isto explica o impulso, quer consciente, quer inconsciente, para a autodestruição, que é, no fundo, um impulso de regresso ao amor; à suprema felicidade, fim dos problemas. E acontecem os suicídios, os “acidentes”, as doenças mortais: estratégias do ego para o recuo, escapismo, impulso para a felicidade, em última análise. O mítico e impossível recuo para o um. O problema é que não está garantido que tal aconteça, o caminho faz-se para a frente, não para trás e o grande desafio e a grande ferramenta são os relacionamentos. Os relacionamentos românticos, ou amorosos, como lhes queiramos chamar, embora não se trate da mesma coisa, são os mais difíceis e necessários, o trunfo de Deus, o Ás que atira  para cima da mesa quando se cansa dos truques que tiramos da manga. São os relacionamentos de casal os mais desafiantes e também os que mais (tantas vezes dolorosamente) nos libertam, porque nos fazem enfrentar o dilacerador sentimento de separação. Por isso tanto procuramos (no fundo, sabemos do que precisamos) um relacionamento amoroso.

Quando, após passarmos por todas as ilusões românticas e destrutivas, auto e “heterofágicas” compreendemos que somos um eu e um tu, não um eu contra um tu, mas ambos para o mundo, quando cada um já não se sente miseravelmente partido ao meio, mas um ser inteiro, e o outro igualmente assim se sente, e ambos aceitam, como cereja sobre o bolo, caminhar lado a lado numa relação livre, esses seres estão disponíveis para o terceiro elemento, o mundo. Só assim podem fazer a diferença para melhor: de cada um deles, da relação e do mundo. É a alteração da matemática, que se torna progressiva e não regressiva (ou agressiva): a passagem do 2 ao 3. Tudo o que não seja assim é ainda uma condenação à dilacerante experiência do 2 num impossível e suicidário um. Mas, enquanto assim tiver de ser, também isso está certo, porque faz parte da experiência e da aprendizagem.”

 

In: Diz-mecomo nasceste.blogspot

 

Este, o meu pequeno contributo para o mapa do caminho do um ao três.

 

Mas regressemos a A. Telmo. No seguimento do seu raciocínio, associa a dicotomia, como por exemplo sol lua, a um deslize das “almas poéticas e preguiçosas”, dado que “cada ser sensível”, como exemplificou com o sol, “é curvo num aspecto, rectilíneo noutro, luminoso ou ímpar ou masculino e os seus contrários se o aspecto muda…”.

Nada mais certo.  

Também em certas organizações de carácter secreto ou discreto, verificamos, e a informação está amplamente disponível na Internet, que o primeiro grau começa no três e o passo do neófito depois de iniciado tem um ritmo ternário:

 

 “A marcha do aprendiz é composta de três passos iguais e retilíneos, ... ou seja, a dualidade da manifestação, e o número três, ou seja, o ternário da perfeição”

In: Portal Pedreiros Livres

 

E recordo o início deste texto, citando Telmo: “não há progressão sem movimento triádico.”

 Este compasso ternário é aquele com que dançamos o tango.

Como na gravura de Jacob e o Anjo em que os passos, paradoxalmente miméticos de uma luta ou uma dança, ensaiam, afinal, a valsa do amor.

https://moradasdedeus.blogspot.pt/2011/04/jacob-e-o-anjo-em-imagens.html

Sobre este caminho do um ao três, recordo ainda a voz de Jesus, quando diz:

“onde dois ou mais se reunirem em Meu nome Eu estou no meio deles”

Isto é: no mundo d’Ele, o dois não existe. Em Seu nome, não é possível que dois estejam sozinhos. Ele, o Espírito, estará sempre lá como um terceiro ou “re-união”, reconciliação. É uma promessa. Ou lei. O dois pertence ao mundo da ilusão.

Quanto ao mundo sensível de Telmo, fica para outra ocasião.

INÉDITOS. 41

03-02-2015 11:50

Quem de vinte cinco tira…*

"Quantos são quem de vinte cinco tira?"

Desde criança que este e outros enigmas, herdados de tradição, encantavam a minha inteligência ainda adormecida, apenas acordada do longo sono que é o esquecimento do que porventura tenhamos sido antes de nascermos.

Primeiro era o espanto perante o absurdo da pergunta feita pelo adulto à criança: “Tira o quê?”

Depois, com a descoberta de que se tiravam cinco a vinte e restavam quinze, descoberta que fora afinal a revelação do adulto, era o encontro da luz que desfazia o absurdo e que punha tudo no lugar.

Hoje, passadas várias décadas, vejo, pensando nisso, que a solução do enigma não é o número quinze. Há quem de vinte tira cinco. O “quantos são” refere-se ao pensador. A resposta é: 1! Não o que pergunta que já sabe a solução e por isso já tirou cinco de vinte. Mas sim o que adivinha, porque esse ao ver a solução é quem tira cinco de vinte.

A resposta deveria ser: sou eu quem faz quinze subtraindo cinco de vinte.

Mas há ainda outro ensino naquela pergunta. Chama a atenção para ser vinte e cinco e não vinte cinco. O enigma e a sua solução só existem por um erro fonético, o de transformar vinticinco em vinte cinco.

 

António Telmo

 

* Título da responsabilidade do editor.

«OS MEUS PREFÁCIOS». 09

31-01-2015 10:51

PREFÁCIO A O BRASIL MENTAL, DE SAMPAIO BRUNO[1]

 

O Brasil Mental foi, pela primeira vez, editado em 1898, cinco anos depois das Notas do Exílio e quatro anos antes de A Ideia de Deus. O tempo que decorreu entre o primeiro e o terceiro destes livros formou o período de gestação do pensamento filosófico de Sampaio Bruno, como se não fosse o acaso a marcá-lo com o número nove. Os livros que o antecedem – Análise da Crença Cristã e A Geração Nova – estão ainda presos ao materialismo ateu que, sob a pressão das ideias correntes da época, marcou o rumo da ideação do filósofo até aos trinta e cinco anos, antes de se converter ao evolucionismo espiritualista de inspiração gnóstica e cabalista, cuja formulação mental viria a atingir a perfeição com o livro sublime.

Significa isto que O Brasil Mental, sendo como é a fase de um processo deve ser lido relativamente às Notas do Exílio e à A Ideia de Deus, sem o que a filosofia da história nele exposta corre o risco de ser compreendida como exclusivamente materialista. Com efeito, as doutrinas que ali aparecem a constituir a base dessa filosofia são, predominantemente, o positivismo de Augusto Comte, o evolucionismo de Herbert Spencer e o economismo de Carlos Marx. Sampaio Bruno não refuta o positivismo, corrige a lei dos três estados aceitando a classificação das ciências; não refuta nem aplaude o marxismo, apresenta-o simplesmente, não deixando porém, de o utilizar e de o aplicar no modo, exclusivamente economista, como interpreta a história de Portugal. Tal é o valor que atribui à vária, mas convergente, doutrinação progressista que, reagindo contra Proudhon, escreve: «Que nos quer ele, a nós, que partimos de Diderot e que, por Auguste Comte, o maior colosso mental do século, chegamos à sistematização evolucionista de Spencer, ao socialismo científico de Marx, às intuições sociológicas do americano Giddings!»

A filosofia da história de Sampaio Bruno não é, porém, nem positivista nem marxista. De Comte e de Marx, como de Spencer, o que destaca e retém é a possibilidade de entrar em linha de conta com o tempo, não já servo do espaço, pela estabilidade dos ciclos que voltam sempre ao ponto de partida nesse mesmo espaço, prendendo a humanidade e o mundo à fatalidade do mal. Daí a sua refutação do monismo, pelo qual a mesma substância permanece inalterável na variedade dos modos. Nem monismo nem dualismo. Mas, sem A Ideia de Deus, o evolucionismo pensado por Sampaio Bruno mal se distingue dos outros evolucionismos, tais como vêm expostos n’O Brasil Mental. Por outro lado, A Ideia de Deus sem a experiência do exílio envolver-se-á de irredutível obscuridade.

Foi, pois, de 1893 a 1902 que surgiu e se formou o pensamento filosófico de Sampaio Bruno. O momento decisivo foi o do exílio. Ali deflagrou a chispa de luz. Uma nova, antes inexistente, emoção alterou, transfigurando, o materialismo ateu da Análise da Crença Cristã no materialismo espiritualista de A Ideia de Deus. A «Carta Íntima» é o documento que torna completamente verosímil a tese de Álvaro Ribeiro dando a iniciação ou iluminação de Sampaio Bruno como tendo acontecido em Paris, para onde foi desterrado em consequência da sua participação no movimento revolucionário de 31 de Janeiro de 1891. É a «Carta Íntima», que antecede A Ideia de Deus, um texto autobiográfico. Aqui nos fala Bruno da crise interior que o assaltou longe da Pátria, em analogia com a experiência de Dante:

«Quase sempre, essa crise interior nos assalta a meio da caminhada da existência.» Bruno tinha como Dante trinta e cinco anos quando iniciou a viagem. «Tu recordas o florentino terrível:

 

                                                      Nel mezzo del cammino di nostra vita

                                                      Mi ritrovai per una selva oscura,

                                                      Chè la diritta via era smarrita.» 

 

E depois, no seu jeito de trazer para casa o estranho e o distante: «Um português, o Sr. Domingos Enes, traduziu, parafrasticamente:

 

                                                     Em meio do caminho desta vida,

                                                     Achei-me, um dia, numa selva escura,

                                                     Muito longe da senda, já perdida.»

 

Como o vate, que desceu ao Inferno, a alma ansiada remonta a rever as estrelas:

 

                                                     «Lo Duca ed io per quel cammino ascoso

                                                     Entrammo a ritornar nel chiaro mondo:

                                                     E senza cura aver d’alcun riposo.

 

                                                     Salimmo su, el primo ed io secondo,

                                                     Tanto ch’io vidi delle cose belle

                                                     Che porta il Ciel, per un pertugio tondo:

 

                                                     E quindi uscimmo a riveder le stelle.

 

Ou seja, na versão do Sr. Domingos Enes :

 

                                                     Pelo árduo trilho, junto ao curso manso,

                                                     Nós buscamos depois ter a ventura

                                                     De entrar no claro mundo. E, sem descanso,

 

                                                     ‘Pós do Mestre subi a senda escura;

                                                     Do Céu as maravilhas pude vê-las

                                                     Afinal, através de uma abertura.

 

                                                     E, saindo, revimos as estrelas.»

 

A ideia que, neste ponto, se nos impõe, da perspectiva derivada da leitura de O Brasil Mental, que motiva esta introdução, é que a filosofia da história, tal como a pensou Sampaio Bruno, neste livro e depois n’O Encoberto se faz pelo modelo do seu próprio itinerário espiritual. É verdade que a história de Portugal é nele interpretada de um ponto de vista exclusivamente economista. O quadro que pinta dos sucessivos momentos de uma miséria iludida por uma vida, aparentemente faustosa, sustentando-se de empréstimos, de roubos e de pirataria, tem por fim levar os espíritos à consciência do povo que são, acentuar o sentimento de uma crise interior colectiva donde possa saltar a chispa de luz que nos incendeie para uma nova vida. Mas esse incêndio ou essa iluminação já se deu: sua suprema expressão é a Pátria de Guerra Junqueiro. Dedica-lhe cerca de trinta páginas do primeiro capítulo de O Brasil Mental. Falar da Pátria diz ele que é «revoar para as zonas transcendentes». Para o acordar dos espíritos, só o movimento de 31 de Janeiro de 1891 se lhe compara:

«Todavia, concatenando, sempre conseguiremos explanar, de golpe, o alcance, histórico e social, do poema de Guerra Junqueiro. Ele fica determinado quando se apure, através das paixões do momento, que este livro afirmou (mercê das características intrínsecas, corroboradas pelo efeito exterior, correspondente, do seu êxito de venda) um momento culminante. Este foi o acume do progressivo – ainda que moroso – processo de desagregação da alma colectiva, desprendendo-se dos sentimentos tradicionais e abandonando, enfim, as suas velhas crenças, na troca de outras novas, mais retributivas e salutares.

A acção da obra sobre a consciência pública mostrou-se, assim, das mais vastas e profundas; o seu influxo ético, a sua permanência orientadora distinguir-se-á, a todo o tempo, como um dos fenómenos críticos mais notáveis da nossa cultura hodierna.

Senão, mesmo, o mais notável, pois que, na ordem espiritual, como generalidade e compreensividade de acção, nada existe que lhe seja assemelhável. Com efeito, só no domínio dos factos concretos qualquer coisa se lhe possa aditar, no mesmo sentido de convergência e com análoga flagrância de resultados sucessivos. É o movimento de 31 de Janeiro de 1891.»

Sampaio Bruno e Guerra Junqueiro representam, de facto, o binómio que, por irradiação, virá formar, no século XX, o hexagrama central do pensamento português, no diálogo sucessivamente renovado com a poesia. Leonardo Coimbra e Teixeira de Pascoaes, José Marinho e Fernando Pessoa, Álvaro Ribeiro e José Régio não teriam podido ser o que foram sem o fulgor nascido do encontro daqueles dois. Os restantes escritores de razão ou de imaginação que, hoje como ontem, têm tido algum valor no domínio do espírito volitam todos à volta daquela estrela que ergueu o pensamento português às zonas transcendentes. É no binómio Sampaio Bruno – Guerra Junqueiro que está a força propulsora, pela fascinação da Ideia, do criacionismo, do saudosismo e do futurismo que marcaram a doutrinação dos que se lhe seguiram, por vários modos trazendo ao domínio do pensamento a religião da Pátria.

O renascimento que se deu na literatura filosófica não foi acompanhado, como o sonharam os dois, pelo renascimento no domínio político. Neste, apesar da República, a desagregação da alma colectiva prosseguiu. Bruno, meses depois da queda da Monarquia, retirou-se da cena política. Tão certo é, como escreveu Hegel, que a ave de Minerva só voa ao anoitecer.

 

Foi, então, o movimento da Renascença Portuguesa um fogo-fátuo à superfície do corpo político? A noite que vem depois do anoitecer não é o domínio da ave de Minerva? E o que será a antemanhã dessa noite?

Muitas respostas para estas perguntas encontrou, de certo modo, o leitor que leu o Plano de Um Livro a Fazer que Joaquim Domingues superiormente organizou, prefaciou e anotou em recente edição da Imprensa Nacional. Ali se verá, se não se viu, que é durante a noite que floresce a árvore da sabedoria à volta da qual se juntam os Cavaleiros do Amor. Essa árvore tem, porém, um nome: Kabbalah.

Todo o sistema filosófico de Sampaio Bruno, se sistema devamos dizer, provém desta zona misteriosa. Na conjectura de Álvaro Ribeiro, derivada daquela citação de Dante de «Lo Duca ed io», terá sido de Joséphin Péladan que Bruno recebeu o ensino que o transformou num iluminado. Todavia, pelas Notas do Exílio, é-nos dado ver que foi na Holanda e não em França que tudo teve início. É de presumir, sem receio de engano, que o filósofo terá visitado a Biblioteca dos judeus portugueses de Amesterdão, cujo nome de Árvore da Vida (Etz Haiim) é já de si uma alusão ao pensamento cabalista de Isaac Lúria. Este pensamento ter-lhe-á aberto o espírito para o supremo sentido da sua experiência do exílio.

Com efeito, uma boa hermenêutica d’Ideia de Deus e, à luz desta ideia, da filosofia da história de O Brasil Mental, revela tão impressionantes coincidências entre o pensamento filosófico de Sampaio Bruno e o pensamento cabalista de Isaac Lúria que só o respeito pelo génio original do nosso filósofo, pelo génio que o inspira, nos pode fazer duvidar de que ele tivesse lido os escolastas de Safed. A ideia basilar é a de Deus em exílio de si próprio na sua mesma substância procurando reintegrar-se pela recuperação das «parcelas de luz», por cuja queda na matéria, mais precisamente por cuja queda que faz a matéria se encontra actualmente «diminuído». Os agentes da recuperação são os Anjos, emanações de luz em migração que comunicam com o homem, trazendo-o a participar no fim comum de redimir a natureza. A oração é eficaz porque chama o espírito puro ao espírito alterado. O Universo é movimento porquanto todos os seres, logo após a inexplicável queda em Deus, buscam regressar ao homogéneo inicial e, por isso, a ideia de Deus é a do Espírito interessado, pessoal, próximo, mas invisível, que acompanha o homem, principal centro dos seres naturais, e o seu povo Portugal-Israel ou Portugal-Humanidade, durante o grande exílio universal, drama imenso cujo desenlace se dará com a vinda do Messias, Paracleto ou Novo Cristo.

Repare-se que não há um só ponto desta doutrina que não possa ser referido à ideia de exílio. É o que lhe dá o tom próprio e vivencial. Ora tal característica encontramo-la predominantemente na filosofia de Isaac Lúria. Seguimos, ao evocar os principais aspectos desta filosofia, a lição de G. G. Scholem em Correntes da Mística Judaica.

Em primeiro lugar, a doutrina do Tsimtsum (concentração, contracção), segundo a qual Deus se teria retirado de si próprio para a realidade insondável da sua solidão imensa, deixando assim lugar para a criação do mundo. «Tentou-se interpretar esta retracção em termos de exílio, como se Deus se houvesse expulsado do seu todo numa profunda reclusão. Encarada assim, a ideia do Tsimtsum é o símbolo mais profundo do exílio, mais profundo até do que a Quebra dos Vasos. Na Quebra dos Vasos, qualquer coisa do ser divino é exilado fora d’Ele, mas o Tsimtsum pode ser interpretado como um exílio de Deus em Deus.»

Em que consiste a Quebra dos Vasos? «Primeiramente, as luzes estavam reunidas num todo (homogéneo inicial de Bruno), sem nenhuma diferenciação entre as Sephiras: neste estado, não precisavam de taças, copas ou vasos que as contivessem.»

«Os vasos correspondentes às três sephiras supremas abrigaram a luz emanada do Ain Soph, mas, ao ser recebida pelas seis sephiras seguintes, essa luz irrompeu de um jacto e a pancada foi tão grande que os vasos se quebraram e se fizeram em pedaços. O mesmo se deu, embora em menor medida, com o vaso da última sephira.»

Lúria explica como os gnósticos a queda dos átomos de luz divina até às profundidades mais baixas.

«Os mundos inferiores e infernais do mal, cujo poder se sente em todos os estágios do processo cosmológico, nasceram dos pedaços que retinham ainda alguns raios da Santa Luz. Deste modo, os bons elementos das esferas divinas misturaram-se com os elementos tenebrosos. Reciprocamente, a restauração da ordem ideal, que forma o objectivo original da criação, é também o fim secreto da existência. A redenção significa, pois, a restituição, a reintegração, o restabelecimento do todo original.»

A filosofia de Sampaio Bruno deve ser referida mais à Quebra dos Vasos do que ao Tsimtsum, apesar da ideia basilar do exílio de Deus em Deus. A ideia da Quebra dos Vasos, conquanto não explicitamente mencionada, está presente ali onde Bruno fala da alteração do Espírito Puro e das «parcelas luminosas espalhadas pelo mundo tenebroso». Os átomos que resistem, correspondem aos pedaços, aos fragmentos dos vasos.

Uma imensa, profunda religiosidade impedia Bruno de formular uma explicação que desse a razão da Queda em Deus, mas tinha de admitir tal queda para compreender a existência simultânea de Deus e do mal no mundo. Não chegou pois, a dizer como Isaac Lúria que todo o processo cosmológico se deve explicar como o processo que Deus desencadeou para se libertar do mal. Posto isto, compreende-se que: «O processo pelo qual Deus se concebe, se engendra e se desenvolve não depende completamente de Deus. Determinado papel, no processo de reintegração, é atribuído ao homem. As luzes, em cativeiro na matéria resistente e obscura, não se libertam pelo seu próprio esforço. É o homem que põe o ponto final na impossibilidade divina. É o homem que completa a entronização de Deus, – Rei e Criador de todas as coisas – no seu Reino dos Céus, é o homem que completa o Fabricador de tudo! Em certas esferas do Ser, entrecruzam-se o humano e o divino. O processo intrínseco extraterreno do Tikkun (reintegração) é descrito simbolicamente como o nascimento da personalidade de Deus e corresponde ao processo da história terrestre.»

Ouça-se, em ressonância, Sampaio Bruno: «O fim do homem é ajudar a evolução da natureza.»

«A partir da diferenciação inicial do espírito homogéneo e puro, consecutivamente, decaída, a parte diversificada buscou regressar à origem. Eis porque seja que o movimento resulte o facto irredutível, característico do mundo. O movimento é o início e o fundamento de tudo, porque seja o avance na série de formas evolutivas, com o fito final do regresso ao espírito homogéneo.»

«Se um triste ateísmo a não adoecesse, seria por este fundamento recôndito que Clémence Royer poderia justificar a sua ideia de que cada átomo sente e quer, segundo motivos percebidos, como excitações motoras reflexas, que determinam os seus movimentos.»

Não está mal que neste momento, transcrevendo mais um texto de G. G. Scholem, joguemos um jogo, talvez pouco recomendável mas perfeitamente esclarecedor, que é o de nesse texto substituirmos o nome de Isaac Lúria pelo de Sampaio Bruno, alterando em consequência certas referências, como seja, por exemplo, a dos Judeus:

«Em suma, podemos considerar a Kabbalah de Sampaio Bruno uma interpretação mística do exílio e da redenção ou até um grande mito do exílio. A substância dessa Kabbalah reflecte os sentimentos dos portugueses desterrados na sua própria Pátria. Para eles, o exílio e a redenção são, do modo mais exacto, grandes símbolos místicos. Esta nova doutrina de Deus e do Universo corresponde à nova ideia moral da humanidade que propagou nos seus livros: o ideal do filósofo, cujo fim é a reforma messiânica, a transcensão do mal do mundo, a reintegração de todos os seres em Deus. Assim, o homem de acção espiritual, graças ao movimento que recebe dos Anjos, pode quebrar o exílio, o exílio histórico de Portugal, o da humanidade, e este exílio interior no qual gemem todas as criaturas.»

Regressando a O Brasil Mental, estamos agora em condições, julgamos nós, de entender o interesse que Sampaio Bruno pôs naquelas doutrinas contemporâneas caracteristicamente evolucionistas. E com elas o papel da Ciência, por cujo desenvolvimento se define a idade positiva de Augusto Comte. Não há n’O Brasil Mental uma refutação repudiando o positivismo. Há uma correcção que o admite com a reserva de se pensar que a Ciência positiva é também essencialmente ciência de Deus e, portanto, teologia. Para que assim seja, também, ela, a Ciência precisa de ser corrigida, banindo a noção de inércia e o cálculo das probabilidades que a reduzem a um monismo mecanicista.

No termo deste prefácio, relembrando, reparamos enfim que nada dissemos sobre o Brasil, como se o título do livro nada tivesse que ver com as «mentações» nele apresentadas e discutidas. O Brasil Mental porquê? Álvaro Ribeiro deixou-nos uma explicação n’Os Positivistas. No período em que escreveu esta obra (1951) pensava ainda ser Sampaio Bruno um adversário, sem mercê, do positivismo, opinião que viria a abandonar mais tarde, por influência, que declarou, de Amorim de Carvalho. Havendo observado que não há, nos livros de Bruno, uma única palavra de desprimor sobre Teófilo Braga e muitas de sincera admiração, foi levado a conjecturar que a amizade pessoal e a confraternidade republicana tinham impedido o nosso filósofo de visar o positivismo enquanto coisa portuguesa, salvaguardando-as àquelas, destacando-o como coisa brasileira. De facto, a forma como Sampaio Bruno trata os intelectuais brasileiros chega a ser rude e violenta, roçando, por vezes, o sarcasmo.

Acusa os brasileiros de não gostarem dos portugueses, de chegarem ao ponto de atribuírem origens diferentes ou disparatadas à língua falada no Brasil e à língua falada em Portugal. A diferença que, por desventura, exista entre as duas explica-as ele pelos barbarismos africanos que terão contaminado e deformado a fonética, a morfologia e a sintaxe da língua original. Demora-se a mostrar e a demonstrar esta tese. Mas surpreendemos nas palavras que ferem um toque, mal escondido, de tristeza. Tristeza essa que também nos invade quando supomos latente uma unidade interior, profunda e transcendente na imanência da língua comum, entre os dois povos, contudo deles ignorada, sem que as conexões superficiais bastem para suster o progressivo afastamento. Não terá sido, pois, para recuperar essa unidade interior e a consciência dela, à semelhança do que fez Agostinho da Silva, em múltiplos escritos, que foi pensado e executado O Brasil Mental?

O positivismo adquiriu no Brasil a forma de um catolicismo sem Deus, com o seu ritual em volta da deusa Razão. Entretanto, em Portugal, dealbava ao longe, mas suficientemente próxima, a República positivista. Sampaio Bruno via em ambas abjecções que vinham paralisar o movimento evolucionista no momento preciso em que, pela Pátria de Guerra Junqueiro, a lusitanidade tomava consciência de si e acordava para o sentimento do exílio, promissor da liberdade vindoura. Igual tomada de consciência se esperaria nos brasileiros. Em vez disso, surgem no Brasil, como mais tarde vão surgir em Portugal, na roda de António Sérgio, sucessivos ataques ao poeta e ao seu livro.

Sampaio Bruno responde à letra e fala ao espírito. É desta reacção libertadora que emerge todo O Brasil Mental.  

 

António Telmo


[1] Sampaio Bruno, O Brasil Mental, 2.ª edição, Porto, Lello, 1997, pp. 7-15.

 

DOS LIVROS. 33

29-01-2015 15:20

O gato e o Corão

 

Recebi do Mário Rui, o islamita, uma preciosa oferta, o Corão em Árabe, com dourados, um livro muito belo que, infelizmente não posso ler.

Em casa, estive a folheá-lo com a minha mulher e pu-lo por fim sobre o tampo da camilha, à volta da qual estávamos sentados. O nosso gato saltou para cima da camilha, subiu para cima do livro, com as quatro patas nos seus quatro ângulos e estendeu-se deixando levantada a parte de trás como quem se espreguiça, desenhando exactamente a figura da prosternação, que é nos muçulmanos o terceiro momento da prece. E coisa ainda mais espantosa e assombro dos assombros, ficou nessa postura imóvel durante quinze minutos. Estava voltado para Meca.

Contei ao Mário Rui, mas, sem dizer uma palavra, despediu-se de mim com um aceno de cabeça. O que ficou pensando?

 

António Telmo

 

(publicado em Congeminações de um Neopitagórico, 2006-2009)

INÉDITOS. 40

27-01-2015 09:39

[António Telmo, aos seis anos, em Moçâmedes, Angola, entre os irmãos, Orlando, à esquerda do leitor, e Rui, à direita]

 

Primeiras memórias*

 

África, Moçâmedes:

4 anos. Roubei um leãozinho a uma senhora que o tinha estado a mostrar aos meus pais dentro de uma arca.

Corri com ele ao colo por uma rua movimentada, pela qual atingiria a minha casa. A dona do leão corria atrás de mim, gritando: “Menino, menino, dê cá o leão!” As pessoas tinham parado a ver o espectáculo. Sorriam. Esse sorriso ainda me acompanha hoje, a acompanhar-me divertido e amigo quando me vejo em situações análogas à do roubo do leão à senhora pela criança[1], seu verdadeiro dono por direito divino. 

 

Almeida

Regressáramos de África. Vi passar o cadáver do meu avô, lembro-me do meu olhar: ver sem ver.

Outra lembrança:

Com outras crianças brincando nas muralhas. Estávamos juntos a olhar não sei o quê. De repente, um dos rapazinhos grita: “Vem ali a Senhora da Manta”. Fugimos apavorados. Eu de uma imagem informe e sombria, que, depois, toda a vida me tem perseguido e que eu tenho tentado dissolver atirando-lhe luz para cima.

 

António Telmo

____________

* Título da responsabilidade do editor.

[1] Nota do editor – Certamente por lapso, António Telmo escreveu: «(…) em situações análogas à do roubo do leão à criança pela senhora (…)».

DOS LIVROS. 32

25-01-2015 17:51

O pêndulo

 

Houve uma época, não há muitos anos, em que frequentei, com alguma assiduidade e algum interesse, uma associação de neopitagóricos e foi aí que conheci, felizmente por um só dia, um desses curandeiros ocultistas com consultório a imitar os da medicina oficial. Digo felizmente por um só dia pois bastou uma breve conversa com ele para que me lançasse num abismo de preocupações. Foi o caso que logo descobriu no lóbulo da minha orelha um risco que lhe dizia, sem qualquer dúvida, que eu estava a ser minado por uma angina de peito e que devia tomar consciência disso e ver o que se podia ainda fazer.

Por uma daquelas coincidências tão frequentes que já ninguém se espanta com elas, o meu médico de família, achando-me uma tensão arterial demasiado elevada, levara-me a consultar um cardiologista e a obter o inevitável electrocardiograma, coisa que se realizaria três dias depois da conversa com o neopitagórico. As duas coisas juntas puseram-me a alma em pânico. Regressei de Lisboa a Estremoz tão preocupado com a ameaça da angina pectoris que não disse palavra durante toda a viagem e nem sequer ouvi o que diziam os meus dois companheiros.

No dia seguinte, dirigia-me eu, como de costume, logo pela manhã para o Café onde tenho escrito todos os meus livros, quando aconteceu o inexplicável.

Num dos bancos do jardim que por ali há no Rossio, na grande praça de Estremoz, estava sentado um desses alentejanos como se vêem tantos, com o seu típico boné.

– Chegue aqui, senhor professor.

O homem conhecia-me. Tinha um rosto simpático. Aproximei-me.

– Sabe o que é isto?

– Sei. É um pêndulo.

– Sabe para que serve?

– Diga-me o senhor.

– Para ver se uma pessoa está doente ou goza de saúde.

– E como se vê?

– Se o pêndulo se deslocar a direito (fez o gesto com a mão) é porque a pessoa está mal. Se começar a girar em círculos é sinal que a pessoa está bem. Quer saber o que se passa consigo?

– Então não hei-de querer?

Eu estava espantado. Tudo aquilo vinha de encontro à terrível preocupação que me criara o neopitagórico.

O pêndulo, suspenso de um fio entre o indicador e o polegar, começou a mover-se em círculos harmoniosos. O rosto do homem iluminou-se:

– Oh! Como tem saúde!

Balbuciei, como que atordoado, algumas palavras de agradecimento e fiz o gesto de prosseguir o meu caminho.

– Olhe! Disse-me ele, não sou eu que movo o pêndulo. São os anjos.    

O cardiologista, que consultei dois dias depois, nada encontrou de inquietante. Eu contei-lhe da angina pectoris. Com minha surpresa, não negou que houvesse a tal relação com o risco na orelha, mas explicou que isso nem sempre batia certo.

 

António Telmo

 

(publicado em Congeminações de um Neopitagórico, 2006-2009)

VERDES ANOS. 10

24-01-2015 16:39

Problemas do estilo em Sampaio Bruno[1]

 

Na literatura portuguesa não há mais problemático estilo que o do «portuense ilustre» que escreveu com o pseudónimo de Bruno. É um obscuro, raro e estranho estilo, sobretudo para quem faz da prosa portuguesa uma imagem mais ou menos cingida ao modelo da prosa francesa. Não surpreende, por isso, que tenha sido mal apreciado pela generalidade dos nossos escritores, a ponto de ser frequente dizer-se que Sampaio Bruno é ilegível. De estranhar é que tal opinião seja um pretexto, isto é, sirva para não ler e assim ignorar o pensamento do fundador da filosofia portuguesa. Todavia, dizer-se de um escritor que é ilegível, quando o pensador constitui uma tão poderosa influência, dá lugar a um problema que merece ser meditado demoradamente.

Sobre o estilo de Sampaio Bruno pronunciaram-se também alguns dos discípulos de Leonardo Coimbra. Como o pensamento do autor do Criacionismo de certo modo se funda no pensamento do autor de Análise da Crença Cristã, convém ouvir aquelas opiniões, na esperança de que surja um ponto de vista donde, a luz diferente, seja visto e compreendido o enigmático estilo.

Num aforismo do seu Pensamento Invertebrado, livro publicado em 1934, Sant’Anna Dionísio não exprime opinião diversa da citada opinião geral. Depois disso, até hoje, nada publicou sobre Sampaio Bruno este estudioso de Raul Proença e Antero de Quental, Teixeira de Pascoais, Leonardo Coimbra e Raul Brandão, do qual o lirismo faz recordar certas páginas da «Carta Íntima» que prefacia a Ideia de Deus. Somos, por isso, constrangidos a tomar aquela opinião por sua, enquanto Sant’Anna Dionísio não nos esclarecer, por escrito, quanto ao que actualmente pensa. Os seus estudos acerca de Pascoais e Leonardo Coimbra, guiados por uma penetrante e admirativa inteligência, se o conduziram até aos fundamentos do movimento renascentista português, levaram-no com certeza a considerar, com melhor sentido horoscopal, os génios e as acções de Guerra Junqueiro e de Sampaio Bruno.

José Marinho foi o segundo a dizer-nos alguma coisa sobre o estilo do autor da Geração Nova. Fê-lo no seu livro O Pensamento Filosófico de Leonardo Coimbra, editado em 1945: «Leonardo revela sempre maravilhosa espontaneidade. Bruno pertence, pelo contrário, ao grupo de pensadores que vivem na constante exigência, mais ou menos dolorosa, de exprimir uma ideia remota e obscura, sempre fugitiva.»[2] Num estudo que publicou depois na Perspectiva da Literatura Portuguesa do Século XX, apenas teoreticamente se ocupa do pensamento de Bruno. Estilisticamente, na brevidade do parágrafo citado, de certo modo nos elucida. Vemos assim que José Marinho não acompanha a opinião da generalidade. A problemática obscuridade do estilo de Bruno, ele a considera do ponto de vista muito mais fecundo da filosofia pensada pelo filósofo, no grau atingido da inspiração. É, por um lado, a dificuldade de exprimir um pensamento que, por outro lado, profundamente visionário e real na visão, não é apreensível pela razão iluminista e surge em unitiva e secreta obscuridade que vela e revela as verdades invisíveis. Tememos, contudo, não interpretar bem o difícil pensamento de José Marinho.

O que diz o terceiro dos discípulos de Leonardo Coimbra interessa mais ao assunto deste ensaio – ou tentativa –, porque na Arte de Filosofar, agora editada, Álvaro Ribeiro inclui um estudo estilístico, extenso e aprofundado, do autor do Encoberto. Citaremos e resumiremos, incorrendo no ridículo de citar e na deslealdade de resumir, o que nos diz o teorizador da filosofia portuguesa. A páginas 161 do seu livro, escreve: «…se para muitos pensadores é certo que na obra escrita não exprimem algo do muito que queriam dizer, para Sampaio Bruno o aparentemente descosido da sua exposição significava, pelo contrário, a perseguição oculta das suas intuições essenciais.»

Cremos que, no fito de descobrir as normas secretas do estilo de Sampaio Bruno, procura ver, em seguida, quais os processos estilísticos que ele valorizara nos outros escritores. No Porto Culto, seu autor parece dizer-nos que a metáfora é o mais fecundo dos tropos, o que, com efeito e com causa, intimamente se harmoniza com o seu pensamento atlântico, que aventurosamente progride de plano para plano de conhecimento. Álvaro Ribeiro conclui: «A relacionação metafórica de imagens, perfeitamente admissível num pensador que atribuiu à revelação o processo único de aproximação da verdade, mas de difícil seguimento para os pensadores que desejam que o estilo filosófico represente literariamente os processos lógicos da indução e da dedução, igualmente prosaicos, dá causa a que se diga ser a obra de Sampaio Bruno quase completamente ilegível.»[3] Estamos aqui já muito além da opinião geral. Podemos agora atribuir uma significação à obscuridade do estilo de Sampaio Bruno. Muito longe de representar deficiência de expressão, exprime um processo metafórico de transcensão para o ignoto.

Assim se desenham atitudes e se apresentam soluções perante o maior problema estilístico da nossa literatura.

É bastante significativo que o estilo de Guerra Junqueiro tenha sido também combatido pela mesma corrente que se opõe ao estilo de Sampaio Bruno, e é significativo porque são dois estilos, não diremos diversos, mas distintos. Todavia, poeta e filósofo são ambos os fundadores da Renascença Portuguesa. Num país dominado pelo espírito de negação das línguas, nas suas várias formas, mas principalmente na positivista, difícil seria o progresso do novo e original verbo. Na profunda altissonância da voz junqueiriana e na pletórica obscuridade da palavra brunica viu a crítica dos estrangeirados o sinal negativo, como não podia deixar de ser. Se a opinião da maioria é a opinião feita – e a que faz quem não pensa –, o diálogo da Poesia e da Filosofia continuará a seduzir e a mover os melhores espíritos.

O estilo de Sampaio Bruno nunca podia ser bem acolhido pela mentalidade que domina a nossa cultura, porque não é um estilo de tradição helénica. Não o move a preocupação, que os europeus herdaram dos gregos, de fazer literatura. Na tradição portuguesa, que é atlântica, a língua assume uma significação diversa e superior. É muito menos expressão, é muito mais comunicação. Assim, Sampaio Bruno não utiliza as palavras para fazer uma obra literária, não o atrai a exterioridade linear e geométrica das construções literárias que têm por paradigma o edifício de pedra em vez da coluna de fogo. Escreve invocando, confia e espera das palavras a revelação de segredos, mas, para isso, emprega certos conhecimentos estilísticos que aprendeu na tradição que segue. Havendo estudado a prosa portuguesa, soube que há um processo português de filosofar, diferente dos processos utilizados pelos outros povos. Assim parece ter de interpretar-se o que diz do seu próprio estilo no Porto Culto, quando nos informa de que a obscuridade dele é propositada.

Bem se compreende, pois, que, olhado do estrangeiro, tal estilo chocasse os espíritos. Mas, se bem atentarmos, veremos, nos bons escritores portugueses, certas maneiras de dizer pouco claras, mas nem por isso menos dignas de serem consideradas. Para nós, dos exemplos mais altos da língua portuguesa são, na poesia, a Pátria e, na prosa, o Encoberto. Quem, evitando seguir a opinião feita, souber relacionar uma com o outro não mais se enganará quanto à língua em que escrevemos, falamos e pensamos; muita luz fará sobre uma e outra obra dos dois pensadores, e também sobre a real existência da nossa filosofia.

Insistimos em que a animadversidade para com os estilos em que foram escritos estes dois livros não deixou ainda perfeitamente compreender a originalidade e a finalidade da Renascença Portuguesa. Se se considerasse o estilo de Sampaio Bruno de modo a apreender a acção peculiar da sua personalidade ver-se-ia como, afinal, a verificada influência do pensador não contradiz o modo de existir do escritor. Se, ao contrário de Junqueiro, cujo estilo foi imitado por Pascoais e Leonardo Coimbra, Sampaio Bruno não exerceu literária influência estilística, isso não significa que a Renascença Portuguesa se possa considerar um movimento infundado no autor do Porto Culto. As características do seu estilo, as características do estilo brunico, sinalam uma influência tanto mais poderosa e efectiva quanto menos aparente no domínio da ficção literária. Do ilustre portuense, do portuense ilustre pode assim dizer-se o que de outro ele mesmo escreveu: «a sua acção não se exerceu sobre o instável campo dos factos, mas sobre a zona do espírito eterno, a que os factos, tarde ou cedo, hajam, irremissivelmente, de subordinar-se.»[4]

 

António Telmo

 


[1] Diário de Notícias (suplemento Artes e Letras), ano 91, n.º 32136, Lisboa, 11 de Agosto de 1955, pp. 7 e 8.

[2] José Marinho – O Pensamento Filosófico de Leonardo Coimbra, Porto, 1945, p. 65.

[3] Álvaro Ribeiro – A Arte de Filosofar, Lisboa, 1955, p. 167.

[4] Sampaio Bruno – O Porto Culto, Porto, 1912, pág. 230.

 

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