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INÉDITOS. 40

27-01-2015 09:39

[António Telmo, aos seis anos, em Moçâmedes, Angola, entre os irmãos, Orlando, à esquerda do leitor, e Rui, à direita]

 

Primeiras memórias*

 

África, Moçâmedes:

4 anos. Roubei um leãozinho a uma senhora que o tinha estado a mostrar aos meus pais dentro de uma arca.

Corri com ele ao colo por uma rua movimentada, pela qual atingiria a minha casa. A dona do leão corria atrás de mim, gritando: “Menino, menino, dê cá o leão!” As pessoas tinham parado a ver o espectáculo. Sorriam. Esse sorriso ainda me acompanha hoje, a acompanhar-me divertido e amigo quando me vejo em situações análogas à do roubo do leão à senhora pela criança[1], seu verdadeiro dono por direito divino. 

 

Almeida

Regressáramos de África. Vi passar o cadáver do meu avô, lembro-me do meu olhar: ver sem ver.

Outra lembrança:

Com outras crianças brincando nas muralhas. Estávamos juntos a olhar não sei o quê. De repente, um dos rapazinhos grita: “Vem ali a Senhora da Manta”. Fugimos apavorados. Eu de uma imagem informe e sombria, que, depois, toda a vida me tem perseguido e que eu tenho tentado dissolver atirando-lhe luz para cima.

 

António Telmo

____________

* Título da responsabilidade do editor.

[1] Nota do editor – Certamente por lapso, António Telmo escreveu: «(…) em situações análogas à do roubo do leão à criança pela senhora (…)».

DOS LIVROS. 32

25-01-2015 17:51

O pêndulo

 

Houve uma época, não há muitos anos, em que frequentei, com alguma assiduidade e algum interesse, uma associação de neopitagóricos e foi aí que conheci, felizmente por um só dia, um desses curandeiros ocultistas com consultório a imitar os da medicina oficial. Digo felizmente por um só dia pois bastou uma breve conversa com ele para que me lançasse num abismo de preocupações. Foi o caso que logo descobriu no lóbulo da minha orelha um risco que lhe dizia, sem qualquer dúvida, que eu estava a ser minado por uma angina de peito e que devia tomar consciência disso e ver o que se podia ainda fazer.

Por uma daquelas coincidências tão frequentes que já ninguém se espanta com elas, o meu médico de família, achando-me uma tensão arterial demasiado elevada, levara-me a consultar um cardiologista e a obter o inevitável electrocardiograma, coisa que se realizaria três dias depois da conversa com o neopitagórico. As duas coisas juntas puseram-me a alma em pânico. Regressei de Lisboa a Estremoz tão preocupado com a ameaça da angina pectoris que não disse palavra durante toda a viagem e nem sequer ouvi o que diziam os meus dois companheiros.

No dia seguinte, dirigia-me eu, como de costume, logo pela manhã para o Café onde tenho escrito todos os meus livros, quando aconteceu o inexplicável.

Num dos bancos do jardim que por ali há no Rossio, na grande praça de Estremoz, estava sentado um desses alentejanos como se vêem tantos, com o seu típico boné.

– Chegue aqui, senhor professor.

O homem conhecia-me. Tinha um rosto simpático. Aproximei-me.

– Sabe o que é isto?

– Sei. É um pêndulo.

– Sabe para que serve?

– Diga-me o senhor.

– Para ver se uma pessoa está doente ou goza de saúde.

– E como se vê?

– Se o pêndulo se deslocar a direito (fez o gesto com a mão) é porque a pessoa está mal. Se começar a girar em círculos é sinal que a pessoa está bem. Quer saber o que se passa consigo?

– Então não hei-de querer?

Eu estava espantado. Tudo aquilo vinha de encontro à terrível preocupação que me criara o neopitagórico.

O pêndulo, suspenso de um fio entre o indicador e o polegar, começou a mover-se em círculos harmoniosos. O rosto do homem iluminou-se:

– Oh! Como tem saúde!

Balbuciei, como que atordoado, algumas palavras de agradecimento e fiz o gesto de prosseguir o meu caminho.

– Olhe! Disse-me ele, não sou eu que movo o pêndulo. São os anjos.    

O cardiologista, que consultei dois dias depois, nada encontrou de inquietante. Eu contei-lhe da angina pectoris. Com minha surpresa, não negou que houvesse a tal relação com o risco na orelha, mas explicou que isso nem sempre batia certo.

 

António Telmo

 

(publicado em Congeminações de um Neopitagórico, 2006-2009)

VERDES ANOS. 10

24-01-2015 16:39

Problemas do estilo em Sampaio Bruno[1]

 

Na literatura portuguesa não há mais problemático estilo que o do «portuense ilustre» que escreveu com o pseudónimo de Bruno. É um obscuro, raro e estranho estilo, sobretudo para quem faz da prosa portuguesa uma imagem mais ou menos cingida ao modelo da prosa francesa. Não surpreende, por isso, que tenha sido mal apreciado pela generalidade dos nossos escritores, a ponto de ser frequente dizer-se que Sampaio Bruno é ilegível. De estranhar é que tal opinião seja um pretexto, isto é, sirva para não ler e assim ignorar o pensamento do fundador da filosofia portuguesa. Todavia, dizer-se de um escritor que é ilegível, quando o pensador constitui uma tão poderosa influência, dá lugar a um problema que merece ser meditado demoradamente.

Sobre o estilo de Sampaio Bruno pronunciaram-se também alguns dos discípulos de Leonardo Coimbra. Como o pensamento do autor do Criacionismo de certo modo se funda no pensamento do autor de Análise da Crença Cristã, convém ouvir aquelas opiniões, na esperança de que surja um ponto de vista donde, a luz diferente, seja visto e compreendido o enigmático estilo.

Num aforismo do seu Pensamento Invertebrado, livro publicado em 1934, Sant’Anna Dionísio não exprime opinião diversa da citada opinião geral. Depois disso, até hoje, nada publicou sobre Sampaio Bruno este estudioso de Raul Proença e Antero de Quental, Teixeira de Pascoais, Leonardo Coimbra e Raul Brandão, do qual o lirismo faz recordar certas páginas da «Carta Íntima» que prefacia a Ideia de Deus. Somos, por isso, constrangidos a tomar aquela opinião por sua, enquanto Sant’Anna Dionísio não nos esclarecer, por escrito, quanto ao que actualmente pensa. Os seus estudos acerca de Pascoais e Leonardo Coimbra, guiados por uma penetrante e admirativa inteligência, se o conduziram até aos fundamentos do movimento renascentista português, levaram-no com certeza a considerar, com melhor sentido horoscopal, os génios e as acções de Guerra Junqueiro e de Sampaio Bruno.

José Marinho foi o segundo a dizer-nos alguma coisa sobre o estilo do autor da Geração Nova. Fê-lo no seu livro O Pensamento Filosófico de Leonardo Coimbra, editado em 1945: «Leonardo revela sempre maravilhosa espontaneidade. Bruno pertence, pelo contrário, ao grupo de pensadores que vivem na constante exigência, mais ou menos dolorosa, de exprimir uma ideia remota e obscura, sempre fugitiva.»[2] Num estudo que publicou depois na Perspectiva da Literatura Portuguesa do Século XX, apenas teoreticamente se ocupa do pensamento de Bruno. Estilisticamente, na brevidade do parágrafo citado, de certo modo nos elucida. Vemos assim que José Marinho não acompanha a opinião da generalidade. A problemática obscuridade do estilo de Bruno, ele a considera do ponto de vista muito mais fecundo da filosofia pensada pelo filósofo, no grau atingido da inspiração. É, por um lado, a dificuldade de exprimir um pensamento que, por outro lado, profundamente visionário e real na visão, não é apreensível pela razão iluminista e surge em unitiva e secreta obscuridade que vela e revela as verdades invisíveis. Tememos, contudo, não interpretar bem o difícil pensamento de José Marinho.

O que diz o terceiro dos discípulos de Leonardo Coimbra interessa mais ao assunto deste ensaio – ou tentativa –, porque na Arte de Filosofar, agora editada, Álvaro Ribeiro inclui um estudo estilístico, extenso e aprofundado, do autor do Encoberto. Citaremos e resumiremos, incorrendo no ridículo de citar e na deslealdade de resumir, o que nos diz o teorizador da filosofia portuguesa. A páginas 161 do seu livro, escreve: «…se para muitos pensadores é certo que na obra escrita não exprimem algo do muito que queriam dizer, para Sampaio Bruno o aparentemente descosido da sua exposição significava, pelo contrário, a perseguição oculta das suas intuições essenciais.»

Cremos que, no fito de descobrir as normas secretas do estilo de Sampaio Bruno, procura ver, em seguida, quais os processos estilísticos que ele valorizara nos outros escritores. No Porto Culto, seu autor parece dizer-nos que a metáfora é o mais fecundo dos tropos, o que, com efeito e com causa, intimamente se harmoniza com o seu pensamento atlântico, que aventurosamente progride de plano para plano de conhecimento. Álvaro Ribeiro conclui: «A relacionação metafórica de imagens, perfeitamente admissível num pensador que atribuiu à revelação o processo único de aproximação da verdade, mas de difícil seguimento para os pensadores que desejam que o estilo filosófico represente literariamente os processos lógicos da indução e da dedução, igualmente prosaicos, dá causa a que se diga ser a obra de Sampaio Bruno quase completamente ilegível.»[3] Estamos aqui já muito além da opinião geral. Podemos agora atribuir uma significação à obscuridade do estilo de Sampaio Bruno. Muito longe de representar deficiência de expressão, exprime um processo metafórico de transcensão para o ignoto.

Assim se desenham atitudes e se apresentam soluções perante o maior problema estilístico da nossa literatura.

É bastante significativo que o estilo de Guerra Junqueiro tenha sido também combatido pela mesma corrente que se opõe ao estilo de Sampaio Bruno, e é significativo porque são dois estilos, não diremos diversos, mas distintos. Todavia, poeta e filósofo são ambos os fundadores da Renascença Portuguesa. Num país dominado pelo espírito de negação das línguas, nas suas várias formas, mas principalmente na positivista, difícil seria o progresso do novo e original verbo. Na profunda altissonância da voz junqueiriana e na pletórica obscuridade da palavra brunica viu a crítica dos estrangeirados o sinal negativo, como não podia deixar de ser. Se a opinião da maioria é a opinião feita – e a que faz quem não pensa –, o diálogo da Poesia e da Filosofia continuará a seduzir e a mover os melhores espíritos.

O estilo de Sampaio Bruno nunca podia ser bem acolhido pela mentalidade que domina a nossa cultura, porque não é um estilo de tradição helénica. Não o move a preocupação, que os europeus herdaram dos gregos, de fazer literatura. Na tradição portuguesa, que é atlântica, a língua assume uma significação diversa e superior. É muito menos expressão, é muito mais comunicação. Assim, Sampaio Bruno não utiliza as palavras para fazer uma obra literária, não o atrai a exterioridade linear e geométrica das construções literárias que têm por paradigma o edifício de pedra em vez da coluna de fogo. Escreve invocando, confia e espera das palavras a revelação de segredos, mas, para isso, emprega certos conhecimentos estilísticos que aprendeu na tradição que segue. Havendo estudado a prosa portuguesa, soube que há um processo português de filosofar, diferente dos processos utilizados pelos outros povos. Assim parece ter de interpretar-se o que diz do seu próprio estilo no Porto Culto, quando nos informa de que a obscuridade dele é propositada.

Bem se compreende, pois, que, olhado do estrangeiro, tal estilo chocasse os espíritos. Mas, se bem atentarmos, veremos, nos bons escritores portugueses, certas maneiras de dizer pouco claras, mas nem por isso menos dignas de serem consideradas. Para nós, dos exemplos mais altos da língua portuguesa são, na poesia, a Pátria e, na prosa, o Encoberto. Quem, evitando seguir a opinião feita, souber relacionar uma com o outro não mais se enganará quanto à língua em que escrevemos, falamos e pensamos; muita luz fará sobre uma e outra obra dos dois pensadores, e também sobre a real existência da nossa filosofia.

Insistimos em que a animadversidade para com os estilos em que foram escritos estes dois livros não deixou ainda perfeitamente compreender a originalidade e a finalidade da Renascença Portuguesa. Se se considerasse o estilo de Sampaio Bruno de modo a apreender a acção peculiar da sua personalidade ver-se-ia como, afinal, a verificada influência do pensador não contradiz o modo de existir do escritor. Se, ao contrário de Junqueiro, cujo estilo foi imitado por Pascoais e Leonardo Coimbra, Sampaio Bruno não exerceu literária influência estilística, isso não significa que a Renascença Portuguesa se possa considerar um movimento infundado no autor do Porto Culto. As características do seu estilo, as características do estilo brunico, sinalam uma influência tanto mais poderosa e efectiva quanto menos aparente no domínio da ficção literária. Do ilustre portuense, do portuense ilustre pode assim dizer-se o que de outro ele mesmo escreveu: «a sua acção não se exerceu sobre o instável campo dos factos, mas sobre a zona do espírito eterno, a que os factos, tarde ou cedo, hajam, irremissivelmente, de subordinar-se.»[4]

 

António Telmo

 


[1] Diário de Notícias (suplemento Artes e Letras), ano 91, n.º 32136, Lisboa, 11 de Agosto de 1955, pp. 7 e 8.

[2] José Marinho – O Pensamento Filosófico de Leonardo Coimbra, Porto, 1945, p. 65.

[3] Álvaro Ribeiro – A Arte de Filosofar, Lisboa, 1955, p. 167.

[4] Sampaio Bruno – O Porto Culto, Porto, 1912, pág. 230.

 

INÉDITOS. 39

20-01-2015 19:34

Cadáveres adiados que procriam[1]

 

É interessante e até divertido observar que aquilo pelo qual nós julgamos ser diferentes dos outros, quando pronunciamos a palavra eu, afirmando com ela a nossa singularidade, é precisamente aquilo pelo qual lhes somos iguais. Há um fundo comum a todos nós, formado de vaidade e outras misérias, transmitido de pais para filhos, no qual se incorporou, ao nascer, a nossa verdadeira individualidade, «essa parcela da mente divina», para falar como o poeta iniciado mantuano que guiou Dante pelos Infernos. É esse fundo comum que nós afirmamos sempre que dizemos eu para nos distinguirmos dos outros.

É ao que alguns esoteristas chamam a falsa personalidade. Fabricámo-la ao longo da vida sobre os elementos herdados, reagindo à circunstância por sucessivas adaptações, com o fim de nos protegermos contra a hostilidade ambiente.

O verdadeiro indivíduo fica oculto, mas o que é perturbante é que fica também oculto de nós mesmos, chegando até, no pior dos casos, a deixar de ser. A esses, em que o verdadeiro indivíduo morreu, chamou Fernando Pessoa «cadáveres adiados que procriam». No rosto de cada um deles pode ver-se a decomposição da alma que precede a do corpo, deixando de si o suficiente para simular o espírito que já não têm. Com alguma atenção podemos ver que já estão mortos. Eu nunca vi um camponês sem feição, isto é, de rosto incaracterístico, mas o mundo humano que passa pela televisão aparece-me muitas vezes.

 
António Telmo


[1] Título da responsabilidade do editor.

 

INÉDITOS. 38

18-01-2015 18:33

Da Ciência[1]

 

O homem medíocre caracteriza-se pelo medo constante do imprevisível e daí, no ilustrado analfabeto que é o burguês civilizado, a inabalável confiança na Ciência, que admira e à qual está intimamente agradecido porque lhe permite ter automóvel, televisão e frigorífico, mas sobretudo porque funciona para ele como a grande redutora do mistério que o perturba e inquieta. Nada há, para ele, que a Ciência não possa e saiba explicar. Deus será uma vaga ideia remota de que falam livros que nos vêm da época da ignorância humana e as religiões, tão antigas como a treva em que vivemos, como as lendas e a crendice popular. Pelo sim pelo não, alguns vão à missa, porque na Igreja está um Deus socializado, em relação ao qual a religião estabeleceu formas inócuas de convivência, que porventura lhes garantam a comodidade e o bem-estar na outra vida, se for caso dessa vida existir.

A Ciência é assim com inicial maiúscula o órgão de conhecimento da burguesia. Mas, se Deus puder vir a ser contado, pesado e medido, só então se torna indubitável para ela a sua existência. De vez em quando, porém, nasce um extravagante genial, que traz a inquietação que se julgara ter expurgado de uma vez para sempre, e que de novo acorda os outros homens para o sentido do mistério. Um Fernando Pessoa ou um Álvaro Ribeiro não se podem ignorar como ninguém pode ignorar Shakespeare, porque souberam escrever as palavras que fazem ver. Como neutralizá-los? Há dois processos: um é o de lhes calar o nome, como se eles não tivessem existido, mas como, mais tarde ou mais cedo, isso se torna impossível de manter, recorrem ao outro processo que é o de tomá-los como objectos da Ciência, estudando-os como se de plantas ou de animais se tratassem ou, quando muito, de fenómenos psicológicos ou parapsicológicos.    

 
António Telmo


[1] Título da responsabilidade do editor.

 

POEMAS. 08

15-01-2015 16:12

Leibnitz

 

Se olho o mundo, segundo a regra e o rito

E me lembro de mim vendo-me a olhá-lo

E no eu olhá-lo ele subsisto inscrito,

…………………………………………..

Negarei que sou cristão perante o galo

Que anuncia o renascer do meu corpo aflito?

 

Tu e o teu Templo hás-de levantá-lo

Sobre o instante roubado ao Infinito.

“A pedra é um espírito instantâneo”

Em que o acto interno com o externo é simultâneo.

Nela pousei a cabeça estonteada.

 

Aqui é a terrível casa de Deus.

Mas entre a terra e os infinitos céus

Descem e sobem anjos uma escada.

            

António Telmo

DOS LIVROS. 31

13-01-2015 20:49

De um caderno de apontamentos. 09

 

Thomé Nathanael é o nome daquele antiquário de Estremoz que alguns dos leitores dos meus livros chegaram a pensar que existia realmente com loja posta numa das ruas daquela cidade. Existe, mas não desse modo. Se não existisse, como seria possível falar dele?

Eu tirei-o das letras do meu nome e pu-lo a ser como se fosse a essência da minha alma, o amigo um dia anunciado da minha essência. Thomé Nathanael é, com efeito, anagrama de António Telmo, mas possui virtudes que em mim são imperfeitas, como se patenteia pelos dois agás que o constituem, dois sopros ou modos de vida espiritual unificados pelo divino El da última sílaba do nome.

Os diálogos que fizestes o favor de ouvir, páginas atrás, resultam da confrontação daqueles dois espíritos no espelho da alma do sábio em coisas antigas. Thomé é o cristão gnóstico à semelhança do Apóstolo, tal como a sua imagem interior se compõe a nossos olhos através da leitura do Evangelho segundo São Thomé e sobretudo de O Canto da Pérola. Nathan é o judeu cabalista. Ambos olham a mesma estrela. São distintos, mas harmoniosos entre si pela comum origem persa das suas doutrinas. Daqui, como portugueses, participarem do mesmo entusiasmo perante Luís de Camões, cuja lira e os seus sete sons essenciais vibram no divino El.

 

António Telmo

 

(Publicado em Congeminações de um Neopitagórico, 2006/2009)

DOS LIVROS. 30

11-01-2015 21:57

As Tradições Heterodoxas da Filosofia Portuguesa

 

É necessário sujeitar-se ao perigo de errar. Não se alcança a verdade sem a experiência do erro. Devemos, por conseguinte, falar do direito de procurar e de errar. Eu reclamo a liberdade para a conquista da verdade.

João Paulo II

 

Quem leu O Papa ou A Inquisição Espanhola, livros de José de Maistre, traduzidos para português por esse inquieto e subtil pensador católico de filosofia portuguesa que é Pinharanda Gomes, não deixará de perturbar-se quando souber que o famoso Conde era um «encoberto»: dentro da própria Maçonaria formava parte de um Colégio secreto, ignorado dos outros irmãos. Disso nos dá notícia Emílio Dermenghem, na introdução a La Franc-Maçonnerie, Mémoire au Duc de Brunswisck, par Joseph de Maistre, escrito que julgaríamos impossível, se não tivesse sido encontrado entre as obras do filósofo com outros documentos de convergente interesse, guardados nos arquivos das lojas do Sul de França. «Dés 1774», escreve Dermenghem, «Joseph de Maistre (né en 1753) faisait partie de la loge des Trois Mortiers où il était  grand orateur, substitut des généraux et maître symbolique. Mais la Maçonnerie vulgaire était un enfantillage, comme il écrivit le 9 décembre 1793 à son ami Vignet, et ses réunions mondaines finissaient par le lasser quand il fut conquis par la Réforme écossaisse. Le 4 septembre 1778, il entre en effet, avec quinze autres frères, à la loge de la Sincérité et il fait, en même temps, partie, sous le surnom de Josephus a Floribus, d’un groupe três secret de quatre initiés supérieurs, le collège particulier de Chambéry, dont les autres membres étaient son ami Salteur (a Cane), le Chevalier de Ville (a Castro) et le bourgeois Marc Rivoire (a Leone Alto). Ces collèges, placés dans les diferents chefs-lieux du rite écossais, étaient formés par la classe secrète ds Grands Profès, chevaliers maçons de l’ordre bienfaisant de la Cité Sainte, ‘dernier grade em France – disait Willermoz – du regime rectifié’. Cette classe était ‘répandue en petit nombre et partout inconnue’. Son existence même était ‘cachée depuis son origine à tous les chevaliers qui n’ont pas encore été reconnus dignes et capables d’y étre admis avec fruit’. On voit à quel rang Joseph de Maistre s’était élevé dans la hierarchie oculte.» (F. Rieder et Cie., Éditeurs, Paris, 1925, p. 14)

O abandono da Maçonaria vulgar correspondeu à descoberta do «martinismo», em cujos «mistérios», teóricos e práticos, Joseph de Maistre foi iniciado pelo citado Willermoz, discípulo, como Saint-Martin, de Pascoal Martins e, por morte deste, seu continuador na chefia da Ordem. É a formação martinista do autor de Os Serões de São Petersburgo que para nós tem interesse, obrigados como somos a ter em linha de conta o que Álvaro Ribeiro escreveu sobre filosofia e tradição portuguesa: «A tradição portuguesa, a esperança de que o Cristianismo reintegrará o Homem e a Natureza no Reino de Deus, durante o século XVIII passa a exprimir-se em termos diferentes dos que ficaram estabelecidos na nomenclatura da teologia católica e da filosofia aristotélica. A obra de Pascoal Martins, vertida maravilhosamente na cultura da Europa Central, dá-nos uma síntese, ainda hoje admirável, das tradições peninsulares.» (A Arte de Filosofar, Portugália – Lisboa, 1955, pág. 142).

Neste mesmo capítulo sobre A Tradição Portuguesa, diz-nos Álvaro Ribeiro ter sido «Sampaio Bruno o pensador que mais inteligentemente no-la revelou». Com efeito, em O Encoberto, depois de ter estudado a influência de Saint-Martin na Revolução Francesa, ao expor a doutrina esotérica pela tríade de Liberdade, Igualdade, Fraternidade, escreve assim:

«O ternário sagrado! Saint-Martin, seu inventor e promotor!»

«Mas, sem embargo de sua peculiar originalidade, cumpre não esquecer que Saint-Martin começara por ser discípulo d’outrem, d’um desses homens extraordinários que gravam a sua personalidade na sua época; e esse homem era português, «misterioso português», consoante (realista, romanescamente) se compraz em lhe chamar o biógrafo crítico do philosophe inconnu, o sr. Matter. Português-judeu, cristão-novo, «de raça oriental e de origem insólita, mas tornado cristão à laia como assim se tornavam os gnósticos dos primeiros séculos». Quem?»    

«Quanto mais se estuda Saint-Martin, com o tratado de seu mestre, Da Reintegração, à vista, tanto mais se sente, em toda a sua profundidade, a influência do teurgista de Portugal sobre o mais célebre dos seus discípulos de Bordéus.»

O tratado de Pascoal Martins, Da Reintegração, é, de seu título completo, Tratado da Reintegração de Todos os Seres nos seus Princípios Primitivos. Está traduzido por Manuel Joaquim Gandra na Colecção Esfinge das Edições 70.

Não se deduz de tudo isto que haja um exclusivo de identidade entre a tradição portuguesa e o martinismo. Este terá sido durante o século XVIII e para a Europa Central a expressão oportuna dessa tradição. Mas a relação pode constituir o fio que nos conduza à cabala pelo judaísmo, à gnose pelo cristianismo, à sabedoria sufi pelo islamismo. «Três tradições concorrem na formação do pensamento português: a judaica, a cristã e a islâmica.» A filosofia portuguesa terá por fim realizar a sua síntese católica. Porquê a filosofia portuguesa?

A História de Portugal cinde-se em dois períodos radicalmente distintos. Sobretudo através da Pátria e da Mensagem, os nossos poetas, prolongando neste ou naquele sentido o ensino de O Encoberto, os nossos filósofos, tiveram disso perfeita consciência e o correspondente saber. O primeiro período, de um só rei para três Repúblicas – a judaica, a cristã e a islâmica –, vai até D. João III; com D. João III e o estabelecimento da Inquisição em Portugal tem início o segundo período. A tese de Sampaio Bruno é, porém, que foi no segundo período que se deu o maior avanço no aperfeiçoamento dos espíritos, cada vez mais próximos, de vinténio para vinténio, da era messiânica. O segredo deste contrassenso terá sido o aparecimento na história do cristão-novo. Deste ponto de vista, o estabelecimento da Inquisição foi providencial. É certo que os aspectos negativos ou sinistros da nossa sociabilidade se devem à especial complexão dessa criatura híbrida pela qual se define o cristão-novo: os judeus e os muçulmanos que não puderam ou não quiseram partir para o exílio, ao verem-se de repente obrigados a praticarem outra religião, aterrorizados com a destruição das suas mesquitas e sinagogas, tiveram de fingir o fanatismo, de cultivar a hipocrisia e a traição, de praticar a denúncia ou então tiveram de viver em medo e inquietação constantes o seu criptojudaísmo ou o seu criptoislamismo. O ateísmo é também, em certos casos, um dejecto desta situação. A astúcia e o espírito diplomático, a capacidade de falar ou de pensar em duas línguas e o subtil sentido da metáfora ou da ironia são, entre outros, os seus produtos superiores. Esta última é a da nobreza espiritual sufi ou sefardi.

Toda a psicologia do cristão-novo converge para o dar como o elemento activo capaz de realizar a síntese entre duas religiões, a antiga dos seus pais e a nova dos dominadores, isto no caso evidentemente de não ter sido corrompido pela hipocrisia, pela cobardia ou pelo ódio. (...)

 

António Telmo   

 

(Publicado em Filosofia e Kabbalah, 1989)

DOS LIVROS. 29

08-01-2015 21:57

O Adamastor

 

Foi muito aplaudida na revista Colóquio, julgo que pelo António Cândido Franco, a ideia, que lancei em Filosofia e Kabbalah e noutros lugares, de ser a palavra Adamastor, quase só pela simples troca de suas letras, interpretável como Adão astral. O achado não teria qualquer importância, se de achado se trata, se não pudesse dar lugar ao entendimento daquilo que talvez representasse, no espírito do poeta, o tenebroso gigante.

Desde já, há que pensá-lo como uma forma do mundo intermediário ou subtil ou, como se prefere dizer por via de um estrangeirismo, do «mundo imaginal».Vimos como Thetys, a rainha do Oceano que esposou Gama, e Thétis, «das águas a princesa» por quem se apaixonou o Titan, dificilmente se distinguem pelo nome. Parecem ser dois aspectos da mesma entidade feminina. É o que nos leva a conjecturar que o Adamastor será, no segredo do Poeta, a forma astral do Gama, a projecção do seu ser violento no mundo imaginal, a figura do que nele era impulso e desejo incontrolado. Ora, como, por outro lado, Gama é o avatar poético de Camões, tanto faz dizer que a aparição do Titan é Gama como a forma astral de Adão ou Luís de Camões como a mesma forma astral.

Eu sei que esta ideia é muito difícil de admitir, por isso mesmo se deve insistir nela pois, como dizia Sócrates no Crátilo, «as coisas belas são difíceis».

A aparição do Adamastor acontece de noite. É a aparição de um fantasma, uma criação da fantasia que põe perante os olhos do avatar do Poeta a forma horrível do seu próprio ser. É uma fantasia criada a partir de uma «nuvem escura», a matéria subtil da alma tenebrosa, irmã da noite. É na treva que se dão as transformações que depois aparecem à luz do dia. De olhos vendados é que se viajam as viagens de descobrimento. Se, enquanto o corpo se desloca no espaço, a alma permanece ligada às formas de percepção habituais, se não procura ver porque se fez treva, ir de continente para continente ou de mar para mar é não sair do mesmo, é levar consigo todo o peso oco do seu não-ser. 

 

António Telmo

 

(Publicado em Luís de Camões, 2010)

DOS LIVROS. 28

06-01-2015 08:56

Taprobana Ilha do Paraíso  

 

Taprobana é uma ilha ao Sul da Índia. Taprobana é uma palavra feia, que tendemos a ler como Trapobana, associando-a automaticamente a trapos. Dir-se-ia que o Poeta a foi buscar por exigência de rima. Todavia, esconde-se aqui um grande segredo.

Taprobana é a Ilha do Ceilão, o lugar que no Oriente se diz ser o lugar do Paraíso. Daí que «passar além da Taprobana» significa realmente «passar além do Paraíso, do lugar onde o homem e a mulher viviam antes da Queda».

Ir além da própria origem, eis tudo. Para compreender, devemos distinguir entre Pequenos Mistérios e Grandes Mistérios. A Maçonaria é o que hoje nos resta como base de elucidação desta obscuridade. As igrejas cristãs também o poderiam ser, mas, infelizmente, ou não têm teólogos ou, se os têm, não prestam atenção a estes aspectos da sabedoria milenária.

Mas falemos de Luís de Camões, poeta católico. Ele sabia superiormente do assunto, embora não o entendessem assim os Inquisidores que o obrigaram, já velho e doente, a deslocar-se a um centro paroquial onde passava pela humilhação de estudar, com alguns rapazes, as noções elementares do catecismo.

Passemos, porém, esta matéria perigosa.   

A que corresponde na Maçonaria a celebração dos Pequenos Mistérios? Têm início no grau de Aprendiz e cumprem-se no grau de Mestre (aquele ao qual os Fiéis de Amor, aqui «os varões assinalados», chamavam o Terceiro Céu), quando o peregrino atinge definitivamente o Oriente.

Todavia, o que é que tudo isto significa?

«O que é o número três na realidade?» perguntava Fernando Pessoa pela voz de Alberto Caeiro. Embora aqui o três seja menos significativo do que o nove (como se verá adiante).

Aquilo que na realidade se cumpre nos Pequenos Mistérios é a teatralização da regeneração psíquica, pela qual nos libertamos das escórias que se acumulam em volta da nossa alma e não nos deixam ser o que somos. Somos recebidos na Câmara do Meio, onde, se o rito for vivido como ritmo, reconquistaremos a forma original antes da Queda.

Da horizontal passa-se então à vertical, do esquadro ao compasso. No círculo brilha agora equidistante de todos os seus pontos o centro que é o Meio, «el mezzo di nostra vita» como ensinou Dante. Têm início os Grandes Mistérios pelos quais se cumpre a ascensão aos mundos informais ou angélicos.

Luís de Camões no Canto IX situa a consumação dos Pequenos Mistérios, cujo início equivale ao momento em que as naus se apartam da Ocidental praia lusitana.

 

Portugueses somos do Ocidente

Irmos buscando as Terras do Oriente

 

Mas o Oriente encontrado não foi a Índia, foi a Ilha do Amor, o lugar do Paraíso, a Taprobana que não vem nos mapas.

Também no rito maçónico, as viagens partem do Ocidente buscando o Oriente.

No terceiro grau, onde findam os Pequenos Mistérios, o número simbólico por excelência, como sabem os iniciados, é o 9.

No canto X (9+1=10) d’Os Lusíadas assistimos à subida da montanha, por um caminho difícil e árduo e esta ascensão começa ao anoitecer, quando os jasmins, libertos enfim do calor do dia, abrem felizes as suas pétalas.

No canto IX, a Aurora é o tempo da união amorosa.

No canto X, a Noite é o tempo da dádiva suprema do Amor por intermédio da deusa Tethys.

 

António Telmo  

 

(Publicado em Luís de Camões, 2010) 

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