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UNIVERSO TÉLMICO. 10

15-04-2015 11:53

Testemunhos sobre Agostinho da Silva no centenário do seu nascimento*

António Reis Marques



Quis a Câmara Municipal de Sesimbra associar-se às comemorações do centenário do nascimento de Agostinho da Silva.

Em boa hora o fez, porquanto, ele foi um grande amigo desta terra, onde teve casa e gostava de permanecer e contactar com a sua gente.

Talvez por ser um dos poucos sobreviventes dos amigos que teve em Sesimbra, merecesse a honra do convite para vir dar-vos o testemunho da convivência que com ele tive o privilégio de manter, durante muitos anos.

Todavia, será mais em homenagem à sua memória, que tanto venero, que aqui me encontro, pois as minhas pobres palavras pouco ou nada poderão acrescentar ao lustre do muito que, no decurso deste ano, se tem dito e escrito sobre essa singular figura que marcou o século XX português.

Na tentativa, talvez vã, de superar limitações, decidi trazer-vos algumas breves recordações de aspectos da sua vida, comigo partilhadas, principalmente os relacionados com Sesimbra, para depois salientar particularidades do seu pensamento e, por fim, do seu ideal de liberdade.

Durante a sua permanência no Brasil, Agostinho da Silva criou, ou ajudou a criar, estabelecimentos de ensino universitário em algumas da suas cidades.

Quando falava disso, recordava sempre as dificuldades que enfrentava com as respectivas autoridades, as quais alegavam a inexistência de edifícios com a dimensão necessária para a respectiva instalação e funcionamento.

Nada de mais errado, contestava ele. Ao princípio, e tal como acontecia na velha Grécia, basta apenas que haja um mestre disponível e alguns alunos interessados, pois o resto virá depois.

Num país como este, de bom clima, poderá ser ao ar livre, sob uma árvore frondosa, à beira de um rio ou no recanto de um parque, que poderão sentar-se os discípulos a volta do mestre, para escutarem os seus ensinamentos e, sobre eles, reflectirem e fazerem perguntas.

E foi de facto assim, em regime ambulatório, sem burocracias ou preocupações administrativas, que ele iniciou o funcionamento de pequenos pólos de ensino, que mais tarde se tornariam em verdadeiras universidades.

Aponto esta interessante faceta da sua vida para revelar a intenção que teve de criar, na nossa terra, uma universidade aberta ou um centro de estudos sesimbrenses que, a título experimental, começaria por ser um curso de verão, cuja temática seria a vida de Sesimbra, nas suas principais vertentes, para o que havia até esboçado o respectivo programa. Recorrendo à memória e a excertos de cartas que me escreveu a esse propósito, pareceu-me de interesse referir aqui a súmula dos temas a leccionar, que depois seriam compilados e desenvolvidos para a publicação, que também preconizava, de uma espécie de compêndio de cultura geral sesimbrense.

Obviamente que, de acordo com a sua maneira de ser e agir, seria tudo muito prático, e as conversas, como ele gostava de dizer em vez de lições, seriam todas ao ar livre e em lugares emblemáticos da vida do concelho.

Permito-me abrir um parêntesis para recordar, que foi passeando nas alamedas do Campo Grande, em Lisboa, que ele deu as primeiras explicações ao Dr. Mário Soares, como este já teve oportunidade de referir, com a admiração que tinha pelo Professor.

A primeira conversa seria na Fortaleza de Santiago. É importante, dizia ele, começar ali em frente ao mar que é a matriz de Sesimbra, onde já se pescava ainda antes de Portugal existir.

Poderemos então falar da importância da nossa estreita plataforma ou planalto continental que, por ser estreita, traz por consequência que num espaço limitado, junto à costa, viva um maior número de espécies e de indivíduos de cada espécie.

Isso explica, a bem conhecida variedade e riqueza piscícola sesimbrense. É também por isso que a pesca se pode fazer em embarcações de pequeno porte, como está patente no elevado índice artesanal que caracteriza a faina marítima local.

Associada a esta actividade andou sempre outra com ela relacionada: a produção de sal.

Haverá então lugar para recordarmos a época da chamada “guerra do sal”, esse difícil período da história de Sesimbra, entre os séculos XV e XVI, por Setúbal ter embargado o fornecimento de sal para a conservação do pescado em salmoura, então tão necessário para o consumo público como para a exportação.

E só a pesca, fulcro da economia, com o tipicismo da vida dos seus pescadores, a variedade dos seus barcos e artes de pesca, e todas as actividades correlativas, como a construção naval e a cordoaria, passando pelo pitoresco do que foi a antiga lota, o desembarque e transporte do peixe, constitui motivação mais que suficiente não só para merecer várias conversas mas também para a criação, que idealizara, de uma instituição que expressamente se dedicasse ao seu estudo, investigação e divulgação.

A segunda conversa seria no Castelo, onde o amigo Rafael Monteiro, com o poder da sua vasta cultura, dissertaria sobre a história da sua terra, desde a origem até aos nossos dias.

Julgamos que teria até oportunidade de esclarecer e desenvolver a sua tese, de não ser aquele o primitivo castelo, mas outro mais a nascente, no lugar da “Meia Velha” ou “Ameia Velha”, perto do chamado Vale da Vitória onde, segundo a tradição, D. Afonso Henriques venceu as tropas do rei mouro de Badajoz.

A seguir iríamos à Lagoa de Albufeira, onde seria abordada a importância ecológica daquela zona húmida que terá sido, no início do quaternário, o lugar onde o Tejo se lançava no oceano para, no séc. XV, segundo os antigos mapas, ou portulanos, mostrar-se como uma reentrância da costa, aberta ao mar e, mais tarde, tornar-se então lagoa, como a conhecemos, por efeito da erosão que formou o cordão de dunas, separando-a do mar.

Por último, demandaríamos o Cabo Espichel, a finisterra d’Arrábida, rico no seu património geológico e histórico-religioso, onde vários factores se conjugaram para, desde a antiguidade, ser lugar privilegiado no campo do sobrenatural.

A força mística do lugar, transmitida pela grandiosidade da paisagem, feita de rochedos, ventos agrestes e os abismos marítimos que fazem sentir a pequenez da nossa dimensão será uma proposição aliciante para a visita ao Cabo e ao seu santuário.

O programa era mais vasto e diversificado, pois propunha como que a descoberta de Sesimbra para os sesimbrenses, criando-lhes uma forte identidade e um maior espírito de apego à vida do concelho.

Por vários motivos adversos, mas principalmente pela doença que o abateu, esta ideia não se realizou. Dela releva porém, aliado ao excelente nível de conhecimentos, o seu amor a Sesimbra, que dizia, e deixou escrito, ser uma das terras de que mais gostava, tanto na sua dimensão física como na humana.

Agostinho da Silva considerava-se cristão, e deixou escrito que aquilo a que chamava civilização cristã não existia e, por isso, era preciso construí-la.

Vivia pobre e, para ele, isso implicava não ter coisas, e gracejava dizendo, não ter sequer gente, pois tentar ser gente já dava muito que fazer.

Não se dar a si próprio, mas estar sempre ao serviço dos outros, em inteira disponibilidade, era também o que dizia e praticava.

 

Não aceitava que o chamassem de filósofo, pois na verdade era mais por S. Francisco de Assis do que por Aristóteles.

 

O franciscanismo era o seu modelo. Lembro-me de lhe ter ouvido, que na “Declaração Universal dos Direitos do Homem” se esqueceram de acrescentar o direito à pobreza.

Esclarecia porém, não se tratar da pobreza involuntária, resultante de fatalismo ou das desigualdades sociais, mas da que era assumida pelo despojamento dos bens materiais, pela sobriedade do viver, do vestir e do comer.

E essa sua maneira de ser e de estar na vida implicava ainda um dever: o de que a comunidade em que estamos inseridos receba sempre algo de nós próprios, estando cada um mais ao seu serviço do que esperando que ela o sirva.

E acrescentava a necessidade de uma cultura de deveres cívicos, de uma cidadania responsável – que infelizmente é muito frágil entre nós – e também de um espírito de tolerância no sentido de que “possa cada um ser o que realmente é, respeitando e entendendo o que os outros são, sobretudo aqueles que estejam em minoria de opinião”.

Sublinhava também que a pobreza, de que fizera modo de vida, já S. Francisco, que lhe chamara santa, tinha proclamado as suas virtudes, uma das quais é a liberdade.

E escandalizava aqueles que não o compreendiam, quando fazia a apologia do ócio e da necessidade de libertar o homem da servidão do trabalho, dado que a questão do trabalho não está em produzir bens essenciais, alimentos, vestuário e abrigo, pois na realidade o que todos procuram é produzir dinheiro, com o objectivo de o multiplicar e alcançar sempre mais e mais dinheiro.

O homem de hoje não usufrui da liberdade que apregoa, ou que lhe apregoam, porquanto está cada vez mais enleado na teia de várias servidões, submetido a novas formas de escravidão.

Produzem-se hoje cada vez mais bens, não essenciais à vida, mas apenas necessários ao sistema de mercado, lembrando a propósito o que ouvira ao seu amigo, António José Saraiva: “só escapando à sociedade mercantil pode o homem possuir-se verdadeiramente a si próprio e contribuir para inverter o ciclo infernal da mercantilização da vida”.

Por isso, pretendia que, em vez de se perder tanto tempo a definir e discutir capitalismo e socialismo, melhor seria que todos se empenhassem em abolir um sistema de produção que se alicerça no trabalho involuntário, ou forçado, da maior parte dos homens.

Com asserções como estas, que hoje se diriam politicamente incorrectas, não admira que houvesse quem o apelidasse de utópico, visionário ou sonhador.

Que seria porém da vida, onde parece que os valores estão a desaparecer, se não houvesse sonhadores como Agostinho da Silva?

Cabe aqui a lembrança do poeta quando falava “dos que não sabem, nem sonham, que o sonho comanda a vida”.

Um dia fiquei surpreendido ao vê-lo desembarcar ali no terminal das carreiras, vindo de Lisboa, e manifestei-lhe a minha surpresa porquanto, e segundo tinha sido amplamente noticiado, era suposto encontrar-se àquela hora num acto oficial, onde seria condecorado com a “Ordem da Liberdade”, conjuntamente com outras individualidades.

Disse-me então, com aquela bonomia que lhe era peculiar: “Fui sempre, tanto quanto se pode ser, um homem livre! Assim, aqui estou eu em Sesimbra a usufruir da minha liberdade, pois só renunciei à condecoração com o seu nome.

De vários quadrantes há quem tenha pretendido usar-me como bandeira da revolução de Abril, cujos rumos se estão desviando dos propósitos proclamados.

É quase sempre assim, com as revoluções, e já o mesmo tinha acontecido a quando da implantação da República e todos sabemos das consequências.

A liberdade é um bem essencial que, tal como a saúde, só a avaliamos bem quando a perdemos.

A prática da famosa trilogia da revolução francesa, Liberdade, Igualdade e Fraternidade, mais citada do que vivida, nunca foi dada aos homens senão parcelar e esporadicamente, e esses valores só fazem sentido na sua globalidade.

Vejamos o exemplo ainda recente das duas superpotências mundiais: os Estados Unidos d’América e a União Soviética.

Na América, há liberdade mas não há igualdade.

Na União Soviética havia igualdade mas não havia liberdade.

Tanto num caso, como no outro, foi esquecida a fraternidade, o espírito fraternal, próprio de irmãos, que poderia realmente estabelecer a harmonia entre os homens. E tudo porque, uma coisa tem falhado sempre: que o homem mude!

É bom que haja confronto de ideias, adversários e opositores, mas nunca inimigos dentro de uma comunidade nacional.

Tem sido sempre mais fácil mudar as instituições. Difícil, é mudar a natureza humana e isso ainda nenhuma doutrina ou revolução o conseguiu até hoje!”

____________

*Palestra proferida no Auditório Conde de Ferreira, em Sesimbra, em 17 de Setembro de 2006. Publicado em Agostinho da Silva em Sesimbra, de Pedro Martins e António Reis Marques, Setúbal, Centro de Estudos Bocageanos, 2014.

INÉDITOS. 50

14-04-2015 10:00

Fumo*

 

Fumo e o cigarro

É para me esquecer

De que só sou um que fuma.

 

A ideia a que me agarro

É o fumo a ser.

Não é coisa nenhuma.

 

António Telmo

 

____________

*Título da responsabilidade do editor.

CORRESPONDÊNCIA. 20

12-04-2015 17:57

CARTAS DE ANTÓNIO TELMO PARA ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO. 03

[António Cândido Franco entre João Raposo Nunes e António Quadros, na Livraria Universo, em Setúbal]

 

 

Estremoz, 15 de Dezembro de 1999

 

Meu muito estimado Amigo

Deixei-me primeiro desenvencilhar o espírito de preocupações práticas. O endereço do Pedro Sinde é (…). Gostaria que me apresentasse o livro[1] em Setúbal. O José Manuel[2] tem servido de intermediário para o João[3] da Universo. Fiquei com o número do seu apartado no Correio de Cuba, igual ao da minha porta, mas, se o quiser visitar com este corpo em que levo a alma, não sei que casa hei-de procurar. Para lhe roubar meia hora, não mais, pois sei que para si o tempo é sempre pouco, ao contrário do que é para mim que tenho andado para aqui a arrastar esta preguiça.

Quando me desculpava ao Álvaro Ribeiro com a preguiça por não escrever, ele dizia-me ser a preguiça só uma palavra, que deveria ver a que correspondia. Leonardo não sei onde dá-a como egoísmo. Eu, por mim, penso hoje que é uma espécie de descrença nos homens para quem trabalharmos. “Para quê?” perguntava aquela alma do Regresso ao Paraíso e punha a pergunta como um pecado na balança. E a sagrada balança estremecia. Como eu estremeço ao ler estas suas palavras de novo deus da literatura: “…o seu livro bate às portas do Céu e ali tem sido atendido. O seu livro poupa à pobre e desamparada humanidade algumas catástrofes. Ele ajuda a despertar o Deus que dorme.” A pobre e desamparada humanidade! Então sempre a preguiça é egoísmo. E se por acaso fosse assim mesmo? Se com o pensamento se impedissem catástrofes? Nunca acreditei que tivesse esse poder. Afinal, a descrença não é naqueles que me possam vir a ler, é em mim próprio. Hoje, pelo menos, como ontem ao ler o Jornal de Letras[4], as suas palavras tiveram o condão de levantar do abismo do desalento este pobre e desamparado homem. É bom ter amigos. Ter Amigos. Amigos.

Bem sei que há dois. Um desamparado e pedinte, outro senhor de si e da palavra que faz ver. A preguiça é com o primeiro; com a glória o segundo. Mas este segundo já não somos nós, mas o Deus que desperta. E há ainda aquele que está entre os dois e que é, no meu caso, aquele que lhe escreve esta carta.

A sua sugestão de escrever um conto para cada um dos sentidos humanos fez-me lembrar uma discussão habitual à mesa do Café da Brasileira sobre qual dos sentidos, o da vista ou o do ouvido, era medianeiro do mais profundo conhecimento. Argumentavam uns e outros com as primeiras páginas da Metafísica de Aristóteles. Hoje vejo que é legítimo pôr a mesma interpretação relativamente ao olfacto, ao paladar e ao tacto. Dou-lhe inteira razão no que sugere. A verdade, porém, é que eu, no conto, descrevo uma experiência real, em grande parte passada comigo. A Arte de Olhar é uma história que deve ser lida à luz da minha relação com o poeta austríaco Max Hölzer noticiada em Trabalho de Grupo. Não é que ele ensinasse a arte de olhar ou de ver (esta é uma maneira minha e desviada ou substitutiva de contar a coisa). O que ele ensinava era a estabelecer contactos por um processo análogo ao que descrevo no conto. Sensação, não imagem (visual ou sonora), ou não muito como um gosto à maneira dos sufis…Mas, ao princípio era o Verbo. Daí o Leonardo Coimbra e a teoria da ressonância.

Eu gostei muito do seu escrito no Jornal de Letras. Admiro tudo quanto escreve, mas há o pior e o melhor e a notícia sobre mim e os meus contos é do melhor. Admiramo-nos, escrevemo-nos como o fizeram outros antes de nós. Porém, o que me parece importante é que sendo ambos artistas do dizível admiramos o mesmo indizível ou indivisível ou invisível no qual vivemos e somos. O António Cândido tem-lhe chamado o Nada. Na mesma linha deve situar o seu anarquismo. Também eu sou anarquista perante uma política sem príncipes ou princípios, sem arqueus e com gente arquiestúpida. Onde é que foi arranjar essa da minha democracia? O povo que criou a língua não é o mesmo que vota nas eleições. A cidade de Deus não se faz com votos, nem com desejos, nem com opiniões. A cidade de Deus não é, não será fruto da doxia, orto ou hétero. É um paradoxo que só os poetas-filósofos estão em condições de conceber. Não acha?

O paradoxo de… (perdi a ideia). É difícil. Paciência. Não será esta ausência o sinal de que devo pôr fim a esta carta?

Um grande abraço do seu muito amigo   

 

António Telmo



[1] Nota do editor - António Telmo refere-se ao seu livro Contos, publicado em 1999 pela Árion. António Cândido Franco é o dedicatário público do conto “Doutoramento e Incesto”.

[2] Nota do editor - José Manuel Capêlo, editor da Árion.

[3] Nota do editor - João Raposo Nunes, poeta e livreiro. Proprietário da Livraria Universo, em Setúbal.

[4] Nota do editor – António Telmo refere-se ao artigo “António Telmo – Fábulas com pinturas”, que António Cândido Franco publicou, sobre os Contos, na edição de 1 de Dezembro de 1999 de JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias.

 

INÉDITOS. 49

11-04-2015 17:47

Explicitamente inspirados nos diálogos de Berkeley, filósofo que António Telmo muito admirava, os “Novos diálogos de Hylas e Philonous” (acrescidos de um “Fragmento dum diálogo entre muitos de Hylas e Philonous, ainda na Irlanda, logo após a morte do seu progenitor, o episcopal Berkeley”) surgiram em Congeminações de um Neopitagórico, de 2006, na sequência dos “Diálogos de Thomé e Nathan”, dissociação dialogal do alter ego ou do maggid télmico, Thomé Nathanael. No espólio de António Telmo conserva-se, entre dezenas deles, um caderno manuscrito onde nos deparamos com um outro diálogo, ainda inédito, entre o homem hílico e o homem noético criados por Berkeley. O título deste diálogo é o mesmo que o autor havia publicado nas Congeminações, como quem porventura quisesse frisar a inscrição desta fórmula num contínuo inspirado pela matriz do filósofo irlandês. Numa das páginas do caderno, Telmo intercalou o que parece ser uma nota introdutória com a seguinte indicação: “Para juntar aos diálogos:”. Damo-la assim na abertura do texto, precedendo o início do diálogo, onde a elevação de António Telmo ao grau de Mestre Maçon do Regime Escocês Rectificado constitui o eixo ao redor do qual as duas personagens discorrem, reflectindo, até ao corolário da ligação da tradição dantesca com o Regime Escocês Rectificado, rito maçónico cuja instituição é amplamente tributária da influência magistral do português Pascoal Martins. Porventura mais do que nunca, encontramos neste inédito o discípulo iluminando, pela operatividade maçónica, o que Álvaro Ribeiro, seu mestre, apenas havia assinalado, com elíptica discrição, no capítulo sobre “A Tradição Portuguesa” de A Arte de Filosofar, livro de 1955. Neste sentido, estaremos mesmo perante um escrito télmico da maior importância. Aliás, decisivo.

[António Telmo falando aos Irmãos, durante um ágape ritual, após uma sessão de Loja]

 

Novos diálogos de Hylas e Philonous

 

Nos diálogos de Berkeley são dois contrários a discutir, o homem noético (é preferível dizer noético a pneumático) e o homem hílico. Se os dois se completassem com mais um, isto é, com o homem psíquico, não haveria a tensão, pela diferença de nível, saltar a chispa.

O homem psíquico. A palavra alma é impensável provir de anima por evolução fonética. Mas pode provir do aramaico alma que, nessa língua, significa, mundo. A raiz da palavra aramaica parece ser a mesma que a do grego olos, todo. A alma não será, pois, o sopro que vem sugerido em anima, mas o todo de que o corpo é uma ínfima parte. Temos a percepção de que isto é assim quando, num dia de céu límpido, tomamos consciência do horizonte todo à volta e do céu que nos envolve como de nós próprios. Há homens, porém, os hílicos, que apenas são um corpo sem olhar, não digo o corpo de um cego, porque o cego não vê mas procura com o olhar interior.

 

Hylas:

Faz hoje quatro séculos que vimos ambos a luz da vida. Como Athena saiu da cabeça de Zeus, e Diónisos da sua coxa, assim tu e eu fomos gerados por Berkeley, tu do cérebro e eu do fémur. O idealista e o materialista! Que contradição!

Agora, basta alguém pensar profundamente em nós, invocar-nos do fundo da alma, para que de ideias ou de fantasmas nos sintamos viver em carne e osso.  

 

Philonous:

Vê-se por essas palavras que já não duvidas de que somos existentes, pois pões como condição que alguém pense em nós. O nosso pai Berkeley partiu há quatro séculos para a terra dos imortais e nós suas criaturas temos na terra mais realidade do que ele.

 

Hylas:

Temo-la agora aqui em Portugal, o País do Fim. Saímos das páginas do livro onde durante séculos uns nos viram por entre obscuridades e outros à luz clara da inteligência. Falamos em séculos. Lembras-te porventura há quantos anos estamos em Portugal?

 

Philonous:

Desde a morte de Teixeira de Pascoaes, esse sublime poeta que ensinou ser a criatura mais real do que o seu criador. E dava o exemplo de D. Quixote e Cervantes, de Portugal e de Camões.

 

Hylas:

Portugal só existe depois de Camões? Alguma vez Teixeira de Pascoaes disse isso?

 

Philonous:

Disse-o por analogia com Quixote e Cervantes.

 

Hylas:

O que eu aprendi contigo e o que continuo a aprender. Chamo-me Hylas mas o que eu tenho aprendido contigo dia após dia, durante quatro mil anos, dialogando contigo, e o que continuo a aprender. Não sou já Hylas. O meu materialismo espiritualizou-se, pois não tinha sentido que, derrotado pelos teus argumentos, ficasse como dantes. Em consequência, depois que nos incorporámos no País do Fim, o que não se tem passado comigo de maravilhoso! É como se me estivessem a preparar para um acontecimento extraordinário. Não te disse ainda que entrei para a Maçonaria…

 

Philonous:

É um lugar que está cheio de espíritos hílicos, mas a sua essência é noética.

 

Hylas:

Falas como se estivesses dentro.

 

Philonous:

E quem te diz que não estou? E quem te diz que estou? Ah! A língua portuguesa! Como sabe dizer o sim com o não! Mas fala-me das coisas maravilhosas que se deram contigo.

 

Hylas:

Queres que te conte como cheguei à Maçonaria?

Tudo começou com o número 13 e no dia em que deparei com um trevo de 4 folhas.

 

Philonous:

Diz-me como foi isso do trevo? Tenho um especial interesse em sabê-lo porque estou precisamente lendo um livro que, a dada altura, explica o que significa encontrar um trevo de 4 folhas para a pessoa que o encontra. Logo me falas no 13.

 

Hylas:

Foi a coisa mais simples deste mundo. Eu estava lendo no meu quintal O Homem de Luz de Henry Corbin. Em dado momento, levantei os olhos do livro e vi três passos à minha frente num tufo de trevos um de quatro folhas. Cortei com muito cuidado, pu-lo entre duas páginas do livro e fixei o número de uma das páginas para poder revê-lo sempre que quisesse. Era a pg. 113.

 

Philonous:

És um homem com sorte. Eis o que diz Ernst Jünger: «Um trevo de quatro folhas traz felicidade. Contudo, há uma condição. Consiste ela em encontrá-lo sem andar a procurá-lo.»

 

Hylas:

Foi exactamente o que sucedeu comigo. Destacou-se ao meu olhar de entre um tufo de mil trevos. 

 

Philonous:

«A felicidade não está contida nas folhas; consiste na capacidade que a pessoa tem em si de encontrar sem que o queira. Aquele que a possui encontra também outras coisas preciosas. Se encontra a felicidade é porque tem a felicidade; a felicidade é a sua propriedade.»

 

Hylas:

No tempo em que Berkeley me criou, eu era como sabes materialista, mas não era espesso. Ele conhecia certamente a classificação dos polos gravíticos que os dividia em hílicos, psíquicos e pneumáticos. Podia ter-me criado como psíquico, mas com isso anulava a enorme diferença de nível entre mim e ti, eliminava a tensão entre os dois contrários, de modo que não se produzia a chispa de luz do seu pensamento. Foi esse contraste, essa fricção que permitiu que em mim o homem hílico desse lugar ao homem psíquico. Na verdade, são maravilhosas as coisas que me têm acontecido desde que deparei com o trevo de quatro folhas ou desde que ele se me ofereceu ao olhar.

 

Philonous:

Escuta, há mais e para teu gáudio. «Segundo a crença popular o trevo de quatro filhas torna clarividente, confere a quem o encontra involuntariamente o poder de um áugure.» Enfim, eu passo-te o livro e lês em casa todo o capítulo. Ou, se preferires comprar o livro, podes anotar: Grafitti/Frontalières, Bibliothèques 10/18, 12, Avenue d’Italie – Paris XIIIe

 

Hylas:

Posso falar-te agora do número 13 que passou a aparecer-me continuamente durante três anos em tudo que se relacionava comigo, relógio, quadros, carro, cães…

 

Philonous:

O trevo de quatro folhas, já que é uma excepção nos trevos campestres que contêm sempre três folhas, é 3+1 e, portanto, representativo do 13 ou do 31.

 

Hylas:

Presumo que me anunciava a recepção na Maçonaria, pois deixou de aparecer logo que isso se deu.

 

Philonous:

A entrada na Maçonaria é o que chamas uma coisa maravilhosa?

 

Hylas:

Só Deus sabe se foi uma coisa maravilhosa ou se foi um desastre. Eu fui lá encontrar uma multidão de homens hílicos e poucos dos psíquicos. Os noéticos, como tu, devem estar na sombra vigiando e guardando a fidelidade à tradição imemorial.

 

Philonous:

Não digas como tu. Chamo-me Philonous. Procuro o amor que pelo intelecto move o mundo. Eu amo aquela ciência que Aristóteles diz ter por essência o ser procurada. Espero que um dia ela se me ofereça ao olhar do intelecto como ao teu olhar se ofereceu a mágica planta. Conversemos, pois, sempre como o estamos a fazer, de igual para igual, como súbditos conformes do mesmo Rei.

 

Hylas:

Eu tenho medo de falar daquelas coisas e, se não fosse para ti, a minha boca não se abriria para ninguém. Não que sejam temíveis, embora sejam assombrosas. Mas eu não sei o que elas significam, que realidade lhes corresponde na minha vida, na medida em que a procuro orientar para Deus. Talvez tu me ajudes a ver claro nesta obscuridade. O que eu tenho de canino, tens tu de felino.

 

Philonous:

Só depois de te ouvir, saberei se sei ajudar-te.

 

Hylas:

Depois do 13 veio o 9.

Tão misteriosamente como aconteceu com o Dante e analogamente ao Dante se virmos em Beatriz não propriamente uma mulher, mas, como querem Sampaio Bruno e outros, a Loja e a Sabedoria que dela, através dele e nela se recebe.

Não veio com o grau de Aprendiz nem com o grau de Companheiro, mas com o de Mestre, embora o 9 já estivesse na soma teosófica do dia e do ano em que fui iniciado: 18 de Dezembro de 1998[1].

 

Philonous:

Não chega a ser um sinal incontroverso.

 

Hylas:

Sem dúvida. Não entrei em conta com o mês de Dezembro. Mas também não ligo importância a essa data. Como não ligo assim tanta importância ao facto de o carro que veio substituir um que tinha num dos números da matrícula o 67, carro que ainda tenho, fosse o 66-99, conquanto a multiplicação de 6 por 6 dê 36=9 e de 9 por 9 dê 81.

 

Philonous:

Tudo simpatiza numa vida humana como no Universo. Quem estiver atento a todos os pormenores que se vão dando no curso do dia, dos meses e dos anos encontrará sempre coincidências importantes que, no entanto, são menos significativas que a semelhança com o Sol nas flores que bebem a sua luz.

Há, além disso, um perigo na procura de relações e coincidências ocasionais[:]é o de nos tornarmos supersticiosos e daí até à autolatria que é a pior forma de idolatria a distância não é nenhuma.

 

Hylas:

Quem virá dizer que não tens razão? Eu próprio não teria dado por essas coincidências, as que se verificaram com o número 13 e depois com o número nove, se as primeiras não tivessem sido anunciada pelo encontro do trevo de quatro folhas e as segundas pelo que te vou contar agora.

 

Philonous:

Nunca te passou pela cabeça que o 13 fosse um número aziago e até o 9, como havemos de verificar.

 

Hylas:

Não, nunca me passou. Eu sabia que o seu aparecimento estava associado ao trevo de 4 folhas cujo encontro sempre soube desde criança que era sinal de felicidade, embora só tenha sabido agora que é necessário que ele se ofereça ao olhar sem ser procurado. E quanto ao número 9… É melhor que te revele primeiro o carácter extraordinário do seu surgimento no interior e no exterior de mim mesmo… Eu disse-te há pouco que o 9 veio com o grau de Mestre Maçon, mas não te revelei que uma voz durante o sono, na noite anterior à revelação no grau, foi ouvida dizendo: Hylas, o psíquico, vai ser associado ao número 9. Calcularás o meu assombro quando me foi mostrado, durante o ritual, o completo sistema simbólico do número 9, com perfeita nitidez meridiana. “Esta cerimónia, ensina o Irmão Orador, é presidida do início até ao fim pelo número 9.”   

 

Philonous:

Devo dizer-te que sei em que consiste, nos vários ritos e regimes, o grau de Mestre, não porque seja maçon, mas porque na minha biblioteca tenho livros por onde posso saber tudo o que se passa dentro das Lojas. Por isso mesmo, ao dizeres-me que o n.º 9 caracteriza o ritual que te elevou a esse grau, conjecturo que o Regime a que pertences é o Regime Escossez Rectificado, pois nenhum outro o iguala na importância dada ao número 9.

 

Hylas:

Pertenço sim. Todavia, não acredito que seja pelos livros que sabes o que se passa no interior das Lojas. Em ti Berkeley se representou a si próprio e todos os que o leem sabem que aos oito anos não só compreendia Platão como discutia com ele. Pertencia, como presumo que tu pertences, à linhagem dos que nascem trazendo consigo uma luz que só espera um pequeno estímulo para, mais tarde ou mais cedo, se manifestar. Foi o caso de Berkeley como o de Jacob Boehme. E já que falamos de Maçonaria, lembra-te que em Portugal há 50 anos os dois homens que melhor conheciam os seus mistérios e que mais de perto se lhe identificaram não eram maçons.

Falo de Sampaio Bruno e de Fernando Pessoa.

 

Philonous:

Também tu és uma criação de Berkeley, uma ideia e uma alma vivente. Não falemos, porém, de nós próprios. O que me contas sobre o número nove, excede infinitamente o que possa haver de ti nos acontecimentos.

O número 9 é, em meu entender, o mais misterioso dos números.

Gostava de ter o segredo dele, já que o mistério tu me poderás dizer em que consiste, recapitulando o que ambos sabemos, embora por diferentes caminhos.

 

Hylas:

Eu fui confiante. Nessa noite, a lua alcançava o momento em que recomeçava novo crescimento.

 

Philonous:

A Lua Nova tem, como se vê significado no adjectivo, uma íntima relação com o nove. Por isso, o livro de Dante, em que ele faz a exaltação de Beatriz como sendo ela mesma o 9, tem por título Vita Nuova. Digo-o em italiano para fazer observar que também nesta língua como em português novo e nove são a mesma palavra com uma pequena diferença no último fonema. O mesmo acontece em espanhol onde temos nuevo e nueve e certamente acontecerá o mesmo em romeno.

Observe-se também que a ideia de ovo aparece igualmente nas línguas latinas.

Ovo, novo, nove. O princípio que renova e move todas as coisas.

Mas a renovação é precedida, sendo acompanhada, de uma decomposição. Pelo nove se torna vivente a relação do ser com o não-ser.

 

Hylas:

O que dizes está bem patente no rito pelo qual, conforme ao que foi anunciado em sonho, fui associado ao nove.

Temo, porém, quebrar o compromisso a que me obriguei, jurando, a não revelar aos profanos os nossos mistérios.

 

Philonous:

Tens-me então por um profano? Não sei eu que passaste por um rito que te tornou livre de todos os compromissos a que, antes dele, te ligaste?

 

Hylas:

Também sabes isso? O que eu queria dizer é que algum profano pode estar-nos a ouvir!

 

Philonous:

Pode ouvir o que quiser que nada saberá. Eurípides foi julgado e condenado não por ter dito o que se passava nos Mistérios de Elêusis, mas por ter revelado a outro por meio de gestos, palavras e movimentos o que lá se passava. Maçons de superior qualidade, como Oswald Wirth e René Guénon, trouxeram para os livros a reflexão do que viram e viveram no interior das Lojas.

 

Hylas:

Fui confiante, como te dizia. Não foi só a Lua Nova. É que, uns dias antes de ter recebido a elevação, já estava confirmado na qualidade de Mestre Maçon por uma estranha personagem que me apareceu vinda do nada no Café onde conversava com uns amigos. Aparentemente, era um louco. Traçava com a mão direita figuras geométricas sobre o peito e sobre o rosto. Falava correntemente, e sem o mínimo obstáculo fonético, português, francês, espanhol, italiano e árabe! Trauteava canções populares em francês e espanhol. Tinha o aspecto de um nórdico; era louro e de olhos azuis. Não era português, mas falava o português como nós o falamos. A noite estava fria, gelada. Perguntei-lhe onde ia dormir, onde tinha casa? Com um gesto apontou o Oriente, depois o Ocidente, o Sul e o Norte: “Eis a minha casa.” Durante a hora que esteve connosco, não deixou de fixar os meus olhos com os seus olhos azuis extraordinariamente brilhantes. Disse que eu era uma pessoa limpa, quando lhe falaram de Fernando Pessoa, e eu espero que por essas palavras me tivessem sido perdoados todos os meus pecados. No fim, beijou-me fraternalmente nas duas faces.

 

Philonous:

Recomendo-te que não indagues quem era realmente a misteriosa aparição. Guarda a imagem do acontecimento no santuário da tua alma. Se o não fizeres, pode acontecer-te ficares com um pouco de cinza nas mãos e não veres nisso qualquer mistério, apenas o caso de teres conversado com um estrangeiro meio louco num Café da cidade onde vives.

 

Hylas:

Vou pensar no que me recomendas.

Fui confiante, mas qual não foi o meu espanto, mais que espanto o meu assombro, quando vi que tudo se passava como a divina voz anunciara. Fui ligado ao nove por um compromisso severo. Ele estava nas nove pancadas da bateria (3x3), nos nove mestres, três que foram pelo Oriente, três pelo Norte e três pelo Sul à procura de Hirão, nas nove velas acesas, nas nove esferas que suportavam a urna onde estavam escritas estas legendas: Ternario formatur, novenario dissolvitur, ascendit unus. E ainda nas 81 lágrimas com que chorámos a morte de Hirão.

 

Philonous:

Devias estudar Dante, com a experiência que tens.

 

Hylas:

Conheço o Dante, A Divina Comédia, a Monarquia, o Convívio, a Vida Nova. Não me parece, porém, que essa minha experiência, o passar pelos três primeiros graus do Rito Escossez Rectificado, vá além de uma conotação superficial com a experiência e com a sabedoria de Dante.

 

Philonous:

E se vires nesses três graus sucessivos momentos de uma descida aos Infernos? Nove são os círculos infernais nove são as viagens em torno do tapete durante a elevação ao terceiro grau. Não é esse o sentido da legenda inscrita na urna: Ternario formatur, novenario dissolvitur, o que foi formado pelo três é dissolvido pelo nove? Jesus Cristo não foi crucificado na hora terceira, as trevas não cobriram a Terra na hora sexta e não nasceu Ele na hora nona? Entre o Monte Moriá, onde os 9 mestres encontraram o cadáver de Hirão, e o Monte do Calvário não há nenhuma analogia?

 

Hylas:

Podias continuar assim indefinidamente a pôr perguntas em torno da Metáfora Essencial. Por isso afirmei que me têm acontecido coisas maravilhosas. Mas o modo como lhes tenho reagido parece-me nulo. É apenas um vago reflexo no espelho da mente, não chega a ser pensamento e muito menos conhecimento.

 

Philonous:

A hora é tardia. Combinámos ir amanhã a Montemor, subir ao castelo lá no alto e daí assistir ao despontar da aurora.

 

Hylas:

Compreendo. Sim, compreendo.

 

António Telmo



[1] Nota do editor – Presumimos haver lapso. A data em apreço é a da elevação de António Telmo ao grau de Mestre Maçon do Regime Escocês Rectificado, como o próprio confirma noutro texto, ainda inédito, do caderno de onde o presente diálogo foi transcrito. Num outro caderno, em apontamento também inédito, o filósofo consigna a data da sua iniciação: 17 de Abril de 1998. 

 

CORRESPONDÊNCIA. 19

06-04-2015 21:50

CARTAS DE ANTÓNIO TELMO PARA ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO. 02

[António Cândido Franco e António Telmo em Évora, em 1992]

 

 

Estremoz

5 de Fevereiro de 1992

 

Meu caro Amigo

 

De um livro sobre Freud (São Freud, como v. escreve): “D’après une certaine tradition, l’année de la transition se situe à trente-six ans. Il est dit que c’est à l’âge de trente-six ans que le Baal Shem Tov se révéla au monde. Et c’est aussi vers cet âge que Freud commença à se faire connaître, emergeant de la période de latence des années precedentes. Freud eut trente-six ans le 6 Mai 1892. Jones écrit:

“Bien qu’il fût doué d’une intuition assez vive que l’on vit se manifester librement dans les années de maturité, nous avons tout lieu de croire que, pendant les annés dont nous venons de parler, en particulier entre 1875 et 1892, son évolution fut lente et labourieuse…”

O seu livro[1], que ontem recebi pelo correio, foi editado cem anos depois, quando o António Cândido está prestes a tocar o limiar dos trinta e seis anos. A Arte Poética tem, como pode verificar, a data de 1963, quando eu tinha trinta e seis anos. Não me limito, por isso, a agradecer-lhe a dedicatória. O que eu fiz ao Álvaro Ribeiro, faz v. agora, passados 28 anos, ao António Telmo, exactamente nos mesmos termos[2]. O sinal renova-se e reaparece pitagoricamente. Dentro do mesmo mistério vemos que as Notas do ExílioA Alegria, a Dor e a Graça e O Problema da Filosofia Portuguesa, livros que inauguram o futuro, foram editados aos trinta e seis anos. Assim se vão dando os nós na corda secreta. Na ou com a?

Creio, com isto, ter tudo dito.

                       

                                                           Um grande abraço do

António Telmo

 

P. S. – Claro que já li o livro. Há vinte e quatro horas que estou consigo.

                                  



[1] Nota do editor - António Telmo refere-se a Teoria e Palavra, Lisboa: Átrio, 1991.

[2] Nota do editor -  António Telmo é o dedicatário público de Teoria e Palavra. Na dedicatória, António Cândido Franco escreve: “Ao António Telmo, sinal de reconhecimento”. A dedicatória impressa é, pois, similar à que António Telmo apusera ao seu livro Arte Poética: “Ao Álvaro Ribeiro, sinal de reconhecimento”. 

 

 

VOZ PASSIVA. 48

05-04-2015 12:26

Recordando António Telmo*

Eduardo Aroso

 

Páscoa oceano de sonho,

Páscoa terra em flor!

Na saudade tudo somos,

Sabe-se da vida pelo amor.

 

Um ano vem e outro chega

Nesta pátria, nação e país.

Juntos p’la mesma viagem

Num barco solto com raiz.

 

Terras de Viriato, sábado de Aleluia, 4-4-2015

____________

* Versos lidos ontem a D. Maria Antónia Vitorino, pelo telefone.

 

 

 

FOTOS COM HISTÓRIA(S). 05: PORTFOLIO

05-04-2015 00:10

Actualizado

AGOSTINHO DA SILVA, 21 ANOS DEPOIS: OS DIAS DE BRASÍLIA

 

com a colaboração especial de João Ferreira e Maria Antónia Vitorino

 

Agostinho da Silva, um dos quatro mestres de António Telmo, partiu há 21 anos, num Domingo de Páscoa. Foi no dia 3 de Abril, o que levou a que este ano a efeméride se assinalasse anteontem, numa Sexta-feira Santa. Preferimos, porém, evocá-lo ao terceiro dia, frisando o halo de imortalidade com que os fados marcaram a hora da sua exaltação. Fazemo-lo com a publicação de um portfolio proveniente do espólio télmico, cujo acervo fotográfico está agora a ser digitalizado. São sete fotografias que julgamos inéditas, e que nos dão a conhecer os professores portugueses que, sob a égide de Agostinho e de Eudoro de Sousa, chegaram à Universidade de Brasília entre os anos de 1966 e 1968. Não nos alongaremos em informações. Para isso já o leitor tinha as notas e comentários às Cartas de Agostinho da Silva para António Telmo. Agora dispõe ainda de O Estranhíssimo Colosso - Uma Biografia de Agostinho da Silva, da autoria de António Cândido Franco, membro fundador do Projecto António Telmo. Vida e Obra, onde a fase da Universidade de Brasília é amplamente abordada. Como quer que seja, um outro membro do nosso projecto, o Professor João Ferreira, elucida-nos, a partir da capital brasileira, vários aspectos de pormenor deste políptico. As suas palavras, preciosas, dão-nos assim importantes elementos biográficos sobre o círculo candango de Agostinho da Silva. Tal como Carlos Francisco Moura, actualmente radicado no Rio de Janeiro, João Ferreira dá-nos a honra e o contentamento de integrar a nossa equipa. Por ambos se firmam pontes, no tempo e no espaço, com o Brasil de Agostinho e de Telmo. As imagens que se seguem constituem, estamos em crer, um relevante contributo para a iconografia do universo agostiniano, numa época em que, parafraseando António Telmo, se assistiu ao desembarque dos lusíadas no planalto de Brasília.   

António Telmo e Agostinho da Silva em Brasília, por ocasião de uma palestra do autor de Um Fernando Pessoa, no que parece ser o Centro de Tradições Populares do Teodoro-Bumba-meu Boi, que foi funcionário do Centro Brasileiro de Estudos Portugueses (CBEP), no Sobradinho. A quarta figura, da esquerda para a direita, é Maria Augusta Bezerra, Bibliotecária do Centro Brasileiro de Estudos Portugueses, muito guerreira, fiel e dedicada amiga de Agostinho da Silva, que lutou denodadamente pelo Centro, por sua razão cultural e Biblioteca, mesmo depois da ida de Agostinho para Portugal, incluindo a época de agonia e extinção do Centro (1971-1972), quando era Coordenador o Professor José Luís Conceição Silva, também grande amigo de Maria Augusta. A outra figura feminina, primeira da direita, é Maria Cecília de Sousa, arquivista na Universidade de Brasília, irmã do helenista Eudoro de Sousa.

 

Um padrinho enlevado diante da afilhada. Mestre Agostinho no dia do baptizado de Anahi. Foi em 3 de Dezembro de 1967.

 

Da esquerda para a direita: Eudoro de Sousa, Coordenador do Centro de Estudos Clássicos (CEC) da Universidade de Brasília (UnB), Maria Antónia Vitorino, esposa de António Telmo, professor da UnB e Maria Luísa Macieira de Sousa, esposa do Professor Eudoro de Sousa e Secretária Executiva do Centro de Estudos Clássicos da UnB.

 

João Ferreira, que chega à Universidade da nova capital brasileira, onde será colega de António Telmo (aqui o fotógrafo) no Centro de Estudos Clássicos, no ano de 1968, no velho aeroporto de Brasília ainda tentando se afimar -- frisa o autor de Existência e Fundamentação Geral do Problema da Filosofia Portuguesa. Nesta e nas duas fotos subsequentes, trata-se do dia da partida da família Vitorino (António Telmo, Maria Antónia e Anahi), de regresso à Europa, em Julho de 1968. Amigos e colegas marcam presença na despedida. Ao fundo, Carlos Francisco Moura, olhando para o fotógrafo. Bem visível, o rótulo luminoso da Varig, que era a nova companhia aérea se afirmando no Brasil. Há duas figuras femininas no plano subsequente ao de João Ferreira. Maria Antónia Vitorino, à esquerda, e Maria Luísa Macieira de Sousa, à direita. Vê-se ainda uma presumível balança (à moda antiga) para pesagem da bagagem.

 

No aeroporto de Brasília. Arquiteto Carlos Francisco Moura, membro do Centro Brasileiro de Estudos Portugueses e professor da UnB. Ao fundo, à direita, Lígia Preto, então professora da UnB.

 

Ainda no aeroporto de Brasília. Da esquerda para direita: Arquiteto Carlos Francisco Moura e Engenheiro José Luís Poças Conceição Silva, membros do CBEP e professores da Universidade de Brasília, e Dona Celestina, esposa do Professor Conceição Silva.

 

No casamento de Eudoro Augusto Macieira de Sousa, "Dorito", filho de Eudoro de Sousa, em 1968. Considerando os pares, da esquerda para a direita: Maria Cecília de Sousa (fila da frente) e João Ferreira (fila de trás), professor recém-chegado de Portugal, lotado no CEC, orientador da dissertação de Mestrado de Eudoro Augusto, cuja temática versou sobre Grande Sertão: Veredas de Guimarães, padrinhos de casamento dos noivos; Maria Antónia Vitorino (fila da frente) e  António Telmo (fila de trás), professor da Universidade de Brasília, lotado no CEC e amigo do noivo, ambos também padrinhos do noivo. Ao centro, o noivo Eudoro Augusto e a noiva. À direita, segundo informação de Maria Antónia Vitorino, os pais da noiva, que eventualmente terão sido também seus padrinhos. 

DOS LIVROS. 40

02-04-2015 09:17

Coincidências, 3

 

Escreveu Fernando Pessoa, numa escondida mas evidente alusão a Teixeira de Pascoaes, haver poetas que, tendo um dia criado um poema extraordinário, depois o repetem incansavelmente até ao aborrecimento. E Miguel de Unamuno, dirigindo-se a Teixeira de Pascoaes directamente numa carta, aconselha-o a encurtar os poemas que, longos como os escreve, se tornam monótonos e cansativos.

Ambos, Fernando Pessoa e Miguel de Unamuno são nisto como alguém que estivesse diante do misterioso mar assistindo ao seu espraiar-se e lhe voltasse as costas cansado de ondas após ondas até ao fim do tempo.

Perante este mesmo mar, contemplando-o ou imaginando-o, o primeiro daqueles dois poetas escreveu estas duas admiráveis quadras:

 

                        Onda que enrolada tornas

                        Ao mar que te trouxe

                        E ao rolar te transtornas

                        Como se o mar nada fosse,

 

                        Porque levas contigo

                        Só a tua cessação

                        E, ao voltares ao mar antigo,

                        Não levas meu coração?

 

Escreveu-as talvez à mesa de um café. À mesa de um café, imaginando os longos poemas de Pascoaes, talvez devesse ter escrito:

 

                        Verso, que enrolado tornas

                        À alma que te trouxe

                        E que, ao rolar, te transtornas

                        Como se a alma nada fosse,

 

                        Porque levas contigo

                        Só a tua cessação

                        E ao voltares à alma antiga

                        Não levas meu coração?

 

Tão certo é que, aprendendo a estar diante do mar, se aprende a compreender os grandes ritmos verbais da alma. Da alma do homem e da alma do mundo.

 

António Telmo

 

(Publicado em A Terra Prometida, 2014) 

CORRESPONDÊNCIA. 18

30-03-2015 09:48

Iniciamos hoje a publicação de uma vasta selecção de cartas de António Telmo para António Cândido Franco. O começo é acompanhado de um testemunho deste último, membro fundador do nosso projecto, em que nos conta como conheceu Telmo. As cartas não serão necessariamente publicadas por ordem cronológica, mas por ela serão arquivadas. Agradecemos, uma vez mais, a António Cândido Franco a generosidade com que pôs à nossa disposição o epistolário télmico que agora se dará a conhecer.

CARTAS DE ANTÓNIO TELMO PARA ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO. 01

 

Estremoz

 

14-11-87

 

Meu caro Amigo

 

            Claro que me lembro muito bem do encontro em Vila Viçosa e logo nesse momento soube ou pressenti que o era de caminhos. Em breve lhe enviarei um escrito sobre o Regresso ao Paraíso.

            Acompanharei então esse envio de uma carta mais longa do que esta. Agora apenas pretendo não deixar passar mais dias sem lhe dar uma resposta.

 

Com os cumprimentos do sempre ao seu dispor

António Telmo

 

VOZ PASSIVA. 47

30-03-2015 09:42

António Telmo*

António Cândido Franco

Encontrei António Telmo cara a cara nos primeiros dias de Junho de 1987, em Vila Viçosa, num evento organizado pela Associação Cultural Património XXI, animada então pelo escritor Orlando Neves, e que decorreu entre 6 e 10 de Junho. O evento previa uma homenagem a Ruy Cinatti, que falecera no ano anterior; por esse motivo foi convidado um dos amigos de juventude de Cinatti, José Blanc de Portugal. O poeta de Parva Naturalia, já idoso, com dificuldades de visão, surgiu acompanhado por Fiama Hasse Pais Brandão, arrimo que não podia dispensar. Ora Fiama, por causa do Camões heterodoxo dela, mantinha desde há anos um diálogo próximo e vivo com António Telmo. Fez então questão de me apresentar o autor de Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões, que vivia em Estremoz e vinha regularmente a Vila Viçosa. – Quer conhecer o António Telmo? É tão fácil – disse-me. Combinou-se o encontro no café da avenida central, onde mais tarde se fez o almoço do livro António Telmo e as Gerações Novas. Aí o conheci num dia de Primavera cheio de luz e de fogo. Logo uma forte corrente de calorosa simpatia nos uniu para não mais se desfazer até ao momento da sua partida no Verão de 2010.

 

25 Março de 2015

____________

*Título da responsabilidade do editor.

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