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VOZ PASSIVA. 46

27-03-2015 17:34

Como conheci António Telmo*

Zuzu Baleiro

 Através de amigos como a Risoleta,  o Rui Arimateia, Hernâni Matos e outros sempre ouvi falar de António Telmo e da sua obra. Contudo, apesar de ter alguns livros seus, para além do de Contos ilustrado pelo Armando Alves, nunca privei com ele. Soube da sua morte, e das diversas homenagens que lhe têm sido feitas, mas como não tinha qualquer ligação afectiva e de amizade com  ele nunca estive presente em nenhuma.

Agora, há cerca de 15 dias, o Hernâni Matos organizou, em Estremoz, a apresentação do livro dedicado ao Armando Alves e convidou-me para ir ler alguns textos. Foi nesse dia, que tive a oportunidade de conhecer Maria Antónia Vitorino, e naquele momento criou-se entre nós as duas uma empatia e uma comunhão de ideias, que senti que tinha encontrado ali uma amiga.

Trocámos números de telefones e a partir desse dia tenho tido oportunidade de ser convidada para sua casa, o que muito me honra.

Ao entrar no "santuário" de António Telmo senti uma emoção fortíssima, pois ali ainda se respira o ambiente em que António Telmo escreveu, pensou, meditou e viveu. Aquele escritório repleto de estantes carregadas de livros até ao tecto, onde em primeiro plano se podem ver molduras com retratos de António Telmo com várias personalidades ligadas ao estudo da língua Portuguesa, da filosofia, da pintura  deixou-me deslumbrada. Eu estava a ter a felicidade de poder olhar, apreciar, tocar.

A Mitó (é assim que ela quer que eu a chame) foi-me apresentar a filha Anahi, e aí ficámos sentadas numa salinha de estar onde ela está a convalescer de uma forte gripe. Conversámos, trocámos ideias, partilhámos muitas das nossas  ideias e dos nossos conhecimentos. A Mitó insistiu em oferecer-me um chá e num ambiente muito acolhedor passámos o resto da tarde, conversando as três, sobretudo de António Telmo, o homem que nos ligou. Fez-se de noite. Estava uma noite fria e gelada de Dezembro. Como eu tinha ido para casa da Mitó em pleno dia e com sol, não levei casaco, pois pensava não me demorar. 

A Mitó foi buscar um casaco de malha do António Telmo, que insistiu para que eu o vestisse, para poder sair à rua.

E lá fui eu, de casaco do António Telmo vestido, para minha casa. Sentia-me como se estivesse a viver um sonho; deslumbrada e feliz com aquela tarde tranquila, passada com duas mulheres maravilhosas. Um sonho bom, onde para terminar eu levava vestido o casaco de malha verde seco, de lã matizada com castanhos escuros e claros, que com certeza tantas e tantas vezes António Telmo usara quando se sentava à secretária ou no sofá para escrever, ler ou pensar!!! 

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*Publicado originalmente em: https://zuzu-luzazul.blogspot.pt/2014/12/como-conheci-antonio-telmo.html#links

UNIVERSO TÉLMICO. 09

25-03-2015 12:55

Na edição de hoje do jornal Raio de Luz, mensário de opinião e informação do concelho de Sesimbra, Pedro Martins, na sua habitual coluna, escreve sobre O Estranhíssimo Colosso - Uma Biografia de Agostinho da Silva, de António Cândido Franco, membro fundador do Projecto António Telmo. Vida e Obra.

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Colosso

Pedro Martins

À atenção da rapariga do mês passado,

suave, outonal

 

Pode parecer irónico, mas não é. O homem que entre nós mais sabe de Teixeira de Pascoaes demora-se por vezes na Rua Fernando Pessoa, onde tem casa. A artéria fica em São João do Estoril e o sabedor chama-se António Cândido Franco. Não lhe revelo aqui a porta, não só porque não sou indiscreto, mas também porque poderia dar azar. Desde já, porém, vos afianço que o número de polícia condiz na perfeição com a vida do nome dado à placa. 

Por vezes calha-me visitá-lo, e, pasme-se, acabamos a jantar na Galiza! Não que esta seja aquela em que o leitor já estará a pensar. Trata-se de um bairro silente, conurbado paredes meias com o dito São João, abrindo portas para uma encruzilhada.

Não é pois a mesma em que Agostinho da Silva tantas vezes estacionou depois do regresso definitivo do Brasil, em 1969, no período em que, até ao 25 de Abril, permaneceu em solo pátrio como cidadão estrangeiro. Por mor desta sua condição, tinha volta e meia de transpor a fronteira, elegendo de ordinário os caminhos medievos da Galiza, moça viçosa que, como o filósofo assevera na Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa, cedo os fados separaram do seu noivo, Portugal.

Depois, Agostinho regressava ao rincão que o viu nascer. Mas enquanto cirandava por Lugo ou por Compostela jamais esquecia a afilhada Anahi, daqui lhe enviando, por vezes para Sesimbra, postais de um lúdico enlevo saudoso. De tudo isto, e de muito mais, nos dá conta António Cândido Franco em O Estranhíssimo Colosso: uma Biografia de Agostinho da Silva, livro que chegou aos escaparates a 13 de Fevereiro, data do aniversário de Agostinho. É um monumento com mais de setecentas páginas que, como não poderia deixar de ser, está a dar que falar.

Uma semana antes do lançamento, fiz valer o privilégio da amizade fraterna que há mais de uma década me liga ao autor e na noite galega do dédalo cascalense, ao repasto, recebi das suas mãos o ansiado exemplar. O António Cândido já me lançara, dias antes, o repto de uma subida honra, qual seja a de com ele tomar parte na apresentação da obra que em Sesimbra terá lugar, no dia 9 de Maio, no começo das Tardes Télmicas deste ano. Estão desde já convidados!

Acabei há dias de lê-la, numa manhã de domingo, no Café Esperança, e, ao poisar a última página da narrativa, tive sérias dificuldades em reprimir as lágrimas, avassalado por uma comoção súbita e poderosa, tal a força poética que dela se desprende.

Aqui vos quero deixar algumas notas dessa leitura. A primeira, porque afinal se trata de uma biografia, é a de que a cada instante se sente pulsar o frémito da vida nas dobras aluviais das suas laudas. O Estranhíssimo Colosso é um hino selvagem, infrene, inextinguível, e nisto se atesta sua original autenticidade. Sem hesitações, vacilações, complacências, dá bem o retrato de corpo inteiro a esse homem de uma só peça que o biografado soube ser.

Havia por certo o perigo, que é sempre maior no caso de Agostinho, de se cair no devocionismo. Com mestria, mas sem jamais se furtar à admiração do seu colosso, o biógrafo soube evitá-lo. Cândido Franco desfia-nos, de forma nua e crua, o ror de sucessos que ao acaso, em catadupa, de supetão, animam a existência do filósofo. Da caça aos lagartos nas paragens adustas de Barca de Alva às primícias incríveis do imberbe plumitivo no Comércio do Porto; das pautas corridas a vintes nas escolas da Invicta ao doutoramento em raiva ao cair do pano, manu militari, sobre a Faculdade de Letras de Leonardo Coimbra, com uma dissertação escrita em semanas, aos 23 anos, depois de uma licenciatura em liberdade também coroada pela nota máxima; da afronta corajosa a maiorais como o tolo Agostinho Fortes, o torpe Alfredo Pimenta ou o insidioso Manuel Múrias à obra impressionante de Palhavã, quando, entre biografias e cadernos de iniciação cultural, um só homem, em poucos anos, brinda o povo português com uma verdadeira enciclopédia.

Não é pois um qualquer, este homem extraordinário. Não direi que é único, mas o resultado é impar. Ao longo do século que passou, poucas parcelas haverá a aditar na soma desta conta, em que se apuram quantos, no triste Portugalinho, afirmaram o estro indómito da acção heróica, forjada na experiência e no perigo. Penso, por exemplo, naquele que viria ser o avô de seis dos seus filhos, esse grandioso Jaime Cortesão cuja vida, bem vistas as coisas, em muito prenuncia a do genro.

Não teve quebras, fraquezas, sequer deslizes, este sublime marau que Agostinho da Silva nos saiu? Decerto que sim. Um episódio de excepção confirma a regra do nobre pedagogo e didacta que desde cedo se revelou. Certo dia, em Lisboa, no anfiteatro do Infante de Sagres, colégio do improvável Pavão Leal onde lograra já instituir o município escolar que tempos antes, no Liceu de Aveiro, começara a congeminar, Agostinho, ao cabo de sérios avisos, perde a tramontana perante o auditório em pulgas com um ratinho acossado. Ergue um pupilo e arremessa-o pelo ar de encontro à porta, abatida com estrépito! Pergunto se sem o contraste insólito de um tal desvario poderíamos aquilatar inteiramente o ouro de lei que debruava a envergadura deste homem?

Muito honestamente, Cândido Franco dá-nos ainda conta dos espinhos que houve por entre as rosas do amor, das crises excruciantes de consciência que por isso passou, ou dessa outra em que, na enxovia do Aljube, então às mãos da polícia política de Salazar por ousar pensar livremente a essência do cristianismo e da sua doutrina, parece abdicar, numa carta de retractação, de quanto até então propugnara. Ainda aqui, Cândido Franco vê muito bem, como compete a biógrafo que se preze. O caso não é de derrota ou de desistência. Será talvez dissimulação; ou antes a sincera metanoia que, por essa década de quarenta, se começa a topar na evolução espiritualista do seu pensamento, num trajecto a que o Brasil, com o Pessoa (cá está ele, ó António Cândido!) na bagagem e os encontros sebastianistas com os sertanejos da Paraíba, dará curso largo. 

Que fez Agostinho por terras de Vera Cruz? Sobre isso seria mister (e por que não?) haver uma outra crónica. Para vos falar da sua bondade, do seu génio oratório, do entusiasmo com que concorre a fundar universidades, do desassombro com que, em circunstâncias as menos críveis e as mais difíceis, institui centros de estudos – o da Baía, dos Afro-Orientais, é ainda hoje o testemunho vivo e glorioso de um bicho-carpinteiro contumaz…

Entre a renúncia ao mundo, no que este tem de mundano, e a afronta ao mando, onde apenas vê desmando, Agostinho é realmente um colosso – o colosso. Estranhíssimo, como diz Cândido Franco, tomando de empréstimo o verso de Camões? Como não, se o vemos a passear, pelo campus de Brasília, com a japonesa que desde Tóquio lhe segue os passos até à Trapa, os dois de quimono vestido, açulando, exóticos, o pasmo dos circunstantes? Como não, se ao Presidente Soares, seu explicando meio século antes, manda dizer, já nos anos finais de Lisboa, que somente o poderá receber, na Travessa do Abarracamento de Peniche, daí a uma semana, pois, sobre ter de ensinar a ler a sua empregada doméstica, até lá já ele tem muita conversa aprazada com os amigos? Como a amigo lhe quer ele franquear a porta, e não como a Presidente, caso em que o não poderá insultar…

Eis o cerne intocável da hombridade que o nosso biógrafo, neste livro, nos resgata de uma vez por todas, para sempre. Desejavelmente, outras biografias de Agostinho virão a ser escritas, e talvez nem esta, que é a primeira, escape a segunda demão. Mas nenhuma das outras poderá fugir ao estalão agora instaurado. Neste sentido, O Estranhíssimo Colosso é um livro definitivo.

Sabendo tirar o máximo proveito das fontes de que entendeu lançar mão, e abrindo novos caminhos no estudo do escritor que nunca quis ser filósofo, faceta que a menos se tem atendido em detrimento do pensador ou do homem de acção, António Cândido Franco dessacraliza Agostinho para melhor o exaltar, envolvendo o leitor e o biografado numa trama irresistível de cumplicidade, urdida pelo emprego recorrente do pronome possessivo meu. Sagrado, de sacer, é o que está distante, e este Agostinho da Silva é um companheiro…

Surtido da monta deste tomo, um outro efeito magnífico vem no modo como nos mostra que Agostinho atravessa o século para o iluminar com o fulgor incandescente dos cometas. Andarilho, corre mundo, sem deixar um só continente que seja à margem da sua peugada lendária. E as amizades são um bruaá de multidão na sua vida. O Estranhíssimo Colosso pode bem ser uma hagiografia, como alguém, incompreensivo, já acusou; mas Agostinho da Silva, graças a Deus!, não sai dele como um santarrão, muito menos como um totem. Deste risco escusado nem sempre se têm sabido ou querido libertar quantos justamente o elevam. Talvez agora sejam forçados a reconhecer que a grandeza do mestre está menos nos passos em volta do que na vida conversável que a sua farta fratria nos sugere.

Saber admirar, eis o segredo do António Cândido. Por estes dias, vieram  alguns, polícias do estilo, presuntivamente escamados com a estatura insolente do velho sublime, repreender o biógrafo por ter exaltado um dos grandes homens portugueses , como se fosse proibido havê-los por cá. Até o acusaram de impressionista. Pela minha parte, concedo. O Estranhíssimo Colosso vale bem, numa das suas margens, todo o Museu d’Orsay. Na outra descobre-se o Louvre, Delacroix, A Liberdade guiando o Povo…      

DOS LIVROS. 39

25-03-2015 09:31

Coincidências, 2

 

No Café com Rui P. Dizia-me ele que Bagão Félix vinha nessa noite falar em Estremoz contra o desmancho artificial do projecto de organismo que a enteléquia feminina forma no ventre fecundado das mulheres. No meio da conversa à volta do assunto, o meu interlocutor esqueceu-se do nome de Bagão Félix, perdeu-o e não foi capaz de o achar. Eu quis ajudá-lo, mas verifiquei que também o tinha esquecido. O homem, um velho de oitenta anos, irritou-se. Pelo seu espírito passou a sombra de Alzheimer.

Este esquecer-se de um nome próprio quando o outro que connosco fala se esqueceu antes é frequente e até se dá com mais do que dois interlocutores. Há um outro caso típico de relação psíquica supranormal que também me foi dado experimentar frequentes vezes. Esperamos alguém em lugar e hora combinados. A pessoa não chegou. Passaram largos minutos. Quando já pensávamos que não viria, aparece alguém que, por instantes, julgámos ser ela, tão semelhantes são no aspecto físico e até nos movimentos. Verificado o engano, não tivemos que esperar uns momentos para que o modelo que tínhamos no espírito aparecesse então em carne e alma verdadeiras.

Voltando ao Bagão Félix, o esquecimento que tivemos do seu nome foi seguido de um acontecimento tão extraordinário quanto feliz. Uma das empregadas do Café onde conversávamos veio levantar a mesa ao lado, e eu, movido por um súbito impulso, ordenei-lhe suavemente:

– Diz uma letra. 

Ela disse: B. E o nome do político saltou das entranhas obscuras da memória de ambos para a luz da consciência e da vida de relação.   

Procurei então conversar sobre estes labirintos do espírito, mas Rui P. disfarçou o íntimo receio do divino pegando num jornal que estava sobre a mesa, fingindo que estava nele interessado. Estou crente em que o leitor saberá ligar o que certamente ficou por ligar no espírito do meu ocasional interlocutor.

 

António Telmo

 

(Publicado em A Terra Prometida, 2014)

VOZ PASSIVA. 45

24-03-2015 09:34

Católicos ateus?

Ruy Ventura

Cristo é, porém, mediador, está entre o mal e o bem, transforma o mal em bem,

porque a mediação realiza aquela síntese, aquele infinito aumento de ser,

 que é a garantia do nosso religioso optimismo.

Álvaro Ribeiro, A Arte de Filosofar

 

 

"A utilização da língua para fazer o mal, pecando por palavras, é [...] obra de católicos ateus e digo ateus porque não poderá crer em Deus e no Senhor Jesus Cristo quem aplaude as atrocidades da Inquisição." Referia-se António Telmo, em Setembro de 2007, à transformação malévola do termo marrano - judeu convertido à força ao catolicismo - em marrão. O termo pode ser lido como vitupério dirigido àqueles que se dedicam ao estudo e à reflexão. Em tempos de monstruosidade inquisitorial era sobretudo o masculino de marrã, sinónimo de porco, desse animal humilde que Santo Antão do Deserto muito valorizou (ao ponto de se tornar no seu atributo iconográfico) como um dos símbolos do serviço cristão e até de Jesus Cristo, d' Aquele que se dá totalmente aos outros até na sua carne e no seu sangue, e que gente sem instrução nem dignidade transformou em sinónimo de sujidade e de infidelidade religiosa. (É mau sintoma quando um grupo humano desvaloriza assim o conhecimento, a humildade e a dádiva, invertendo-os e maculando-os…)

Terá sido obra de "católicos ateus" tal confusão deliberada? De cristãos não foi certamente e de crentes também não. E nem de católicos terá sido, se entendermos a catolicidade na sua vera acepção, outra maneira de afirmar e sublinhar a abertura universal e universalizante. Dizem que há duas realidades sem limites, o universo e a estupidez. Só em relação ao universo existem dúvidas... É, portanto, obra da estupidez a paronímia/sinonímia sinalizada por António Telmo Vitorino, estupidez que, de braço dado com a maldade, de vez em quando adopta as vestes do fundamentalismo tirânico e da servidão aos poderes políticos, económicos e sociais ilegítimos, mesmo quando envergam vestes religiosas. Obra de ateus? Pois claro... (Melhor seria chamar-lhes, contudo, anti-teístas...) Quem acredita num Deus misericordioso, como o cristão, não pode matar ou perseguir em seu nome.

Esta página télmica trouxe-me à memória algumas lembranças. A primeira diz respeito ao botas nascido em Santa Comba, que um dia se zangou com o cardeal Cerejeira quando este lutava pela consagração legal do descanso semanal ao domingo, à qual o ditador se opunha. Contava-me um secretário particular de D. Manuel Gonçalves, de quem fui amigo até à hora da morte (e cujo espólio guardo em parte na minha posse), que a zanga durou até ao falecimento de António de Oliveira Salazar e que o patriarca de Lisboa lhe dizia muitas vezes: "Sabe, padre João de Sousa, o senhor Presidente do Conselho é um homem muito católico... mas é ateu!" Ou seja, faltava-lhe a grandeza moral e a humildade intrínseca para ser verdadeiramente crente. E deu no que deu, para nossa desgraça colectiva. Perseguiu republicanos e monárquicos, anarquistas e comunistas, católicos e agnósticos, clérigos e leigos, bispos e sacerdotes... e a lista poderia continuar. Até Paiva Couceiro foi perseguido, segundo conta António Cândido Franco, num escrito recente que sublinha a grandeza moral e intelectual do escritor e professor da Universidade de Évora, de quem tive a honra de ser mestrando, pensador que, como os melhores, não confunde a história com a historiografia.

Do monárquico Paiva Couceiro contava meu bisavô Joaquim Francisco Pedro (um dos defensores de Chaves homenageados na avenida lisboeta) que poderia ter muitos defeitos, mas entre eles não se contava a baixeza moral nem a pequenez mental. Era essa a opinião de um pobre soldado do exército republicano, de quem guardo como relíquia a sua velha marmita militar. E corria, sem desvios, entre os seus companheiros de armas, entre aqueles que enterravam os pés nas margens do rio Tâmega, junto das nascentes cálidas da urbe flaviense, para não os verem congelados. Os tempos eram outros e nesses não estava ainda em desuso a palavra honra – essa "cal para caiar o universo", como escreveu um dia o filósofo Agostinho da Silva num bilhete que dele recebi.

UNIVERSO TÉLMICO. 08

23-03-2015 09:30

António Cândido Franco, membro fundador do Projecto António Telmo. Vida e Obra, responde ao que sobre a sua biografia de Agostinho da Silva foi escrito no blogue Liceu Aristotélico. Com um ponto final, que é também o nosso. Acabou-se o recreio na Travessa do Fala-Só. 

[29 de Maio de 2010. Visivelmente doente, António Telmo faz a sua derradeira oração pública na Sala Polivalente da Biblioteca Municipal de Sesimbra, casa de que foi o primeiro director. É manifesto o sacrifício com que o orador, bastante debilitado, fala para a assistência. Surpreende, porém, pelo tom empolgante com que a arrebata num apólogo estrénuo da República, suscitando-lhe, a final, tremenda ovação. No âmbito do colóquio "Anarquia, Monarquia e República", do ciclo Portugal Renascente, colóquio inteiramente idealizado por Telmo, este fala sobre "Monarquia e República". A seu lado, António Cândido Franco aborda o tema "Anarquia e República", além de apresentar o livro Luís de Camões, de Telmo, lançado nesse mesmo dia.]

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O Estranhíssimo Colosso – Uma Biografia de Agostinho da Silva no Liceu Aristotélico

António Cândido Franco

 

Conta algures Tomaz de Figueiredo, monárquico contumaz, a seguinte história. Na noite de 11 para 12 de Fevereiro de 1944, num dos quartos da sua casa de Lisboa, na Avenida Praia da Vitória, ao pé do Saldanha, era velado Henrique de Paiva Couceiro, que ficara fiel à monarquia no levantamento revolucionário de 5 de Outubro de 1910 e fizera depois as incursões monárquicas do norte em 1911, 1912 e 1919. Tomaz de Figueiredo, que o conhecera na infância na estrada de Pontevedra, compareceu para velar o homem que lhe aparecera em criança. A noite correu fria e muda, até que alguém o puxou pelo braço, para lhe confessar, varado de espanto:

– Sabe quem esteve aqui? Não? Pois um revolucionário do 5 de Outubro! E disse-me isto: Eu fui, sempre hei-de ser republicano; Paiva Couceiro foi sempre monárquico, também nunca torceu. Homens destes respeitam-se. É o que eu faço.  

Esta bela e comovente história não se repete mais. Os adversários de hoje não têm grandeza de alma. É tudo tão pequeno que nem paga o trabalho citar-lhes o nome. Em lugar de heróis, há hoje delatores. O Liceu Aristotélico (blog.spot), ao falar da minha biografia de Agostinho da Silva, O Estranhíssimo Colosso, chamando-me anarco-comunista, indica o seguinte por baixo da coroa de sua majestade: Don’t suspect an anarchist; report them. Vertido em português de lei: se vires um anarquista, não te contentes com meias medidas; denuncia-o à polícia! Se Paiva Couceiro por cá andasse, havia de ser o belo e o bonito! Homens daqueles não suportavam baixezas destas.

Do responsável do Liceu Aristotélico o que até aqui sabíamos era que elogiava o “portuguesismo” do ditadorzeco de Santa Comba, o mesmo que, em 1937, sem qualquer decência, atirou para o exílio com um homem a caminho dos 80 anos. Chamava-se esse homem Henrique de Paiva Couceiro.

Sabemos hoje mais. O nosso liceal anda muito preocupado com a História. Quer tudo nos eixos e cheio de rigor. Não admite a troca duma data e enfurece-se com qualquer descuido. Não se pode escrever uma linha fora da disciplina de Clio. Um erro, uma desatenção, a mais leve inadvertência é crime de lesa-majestade. A História é tudo! A História – as fontes documentais, como ele faz questão de dizer – é a madre de todas as verdades.

Pobre Aristóteles que escreveu o tão lúcido e exigente capítulo IX da Poética e tão tripudiado anda. Aures habent et non audient.

 

21 Março de 2015

«OS MEUS PREFÁCIOS». 10

22-03-2015 12:06

A compilação dos dispersos de António Telmo a que o nosso projecto vem procedendo tem sobretudo obedecido a dois vectores principais: a recuperação dos artigos de imprensa do seu período formativo, que vêm sendo republicados na rubrica "Verdes Anos", e a redescoberta dos seus escritos de natureza prefacial ou posfacial, que o filósofo, no final da vida, idealizou recolher num volume intitulado Os meus prefácios. De um lado temos, pois, mais do que já o discípulo, sobretudo o ainda aprendiz de filosofia, de outro o mestre em diálogo com mestres, condiscípulos ou discípulos. A um grande Amigo e Mestre se refere José Manuel Anes quando fala de António Telmo na Introdução às suas Re-criações Herméticas II, por este último prefaciadas. Dignificante prova de humildade de um Grão-Mestre da Grande Loja Legal de Portugal. É porventura neste contexto que melhor compreendemos a afirmação de Miguel Real, quando considera Telmo o grande pensador da segunda metade do século XX, na esteira de Sampaio Bruno e Fernando Pessoa, a teorizar o esoterismo.

PREFÁCIO A RE-CRIAÇÕES HERMÉTICAS II, DE JOSÉ MANUEL ANES[1]

 

Temos, pois, diante de nós ou à nossa frente, o 2.º volume de Recreações Herméticas.

Logo o título, com o hífen, Recreações Herméticas, dá que pensar, na sua aparente displicência como quem, no intervalo de sérios estudos e de profundas meditações, viesse para o recreio conversar com o leitor sobre e aquilo à volta de Hermes e dos seus segredos. O recreio é o lugar e o tempo onde as crianças crescem, onde aprendem com as outras crianças a conhecer o mundo que a família lhes escondia, a fazerem-se rapazes e raparigas, homens e mulheres, abrindo-se para o amor que é o verdadeiro caminho do conhecimento.

José Manuel Anes aparece, neste livro, mais como o companheiro do que como o mestre que verdadeiramente é. E assim, conversando connosco nos intervalos do tempo, isto é, quando nos esquecemos de que ele existe, nos vai ensinando, como quem não quer, sobre “o que mais importa”. Sofrer uma aula, com a sensação de um tempo que nunca mais passa, é angustiante.

Senhor de uma vasta erudição, no autor deste magnífico livro não se cumpre o preceito de Plotino, como não se cumpre em Pinharanda Gomes e em Joaquim Domingues, segundo o qual as pessoas inteligentes não dispõem de uma boa memória. E isto porque entre a memória dos factos e a inteligência das ideias não se interpõe uma imaginação opaca, mas aquela imaginação de que nos fala Henry Corbin, que Anes tão bem conhece, essa senhora das relações subtis entre uma e outra. E é esse o campo magnético para onde nos chama e atrai e onde banha tudo de quanto trata.

José Manuel Anes é um homem experimentado, que percorreu um longo e demorado caminho, como pode ver-se pela breve biografia que acompanha o livro. O que é para ponderar, sendo como é significativo, está no que parece acaso de ter começado pela cosmologia, com o estudo das ciências físicas e químicas e matemáticas, passar depois pela antropologia (criminologia, sociologia, etc.) e de culminar na teologia, se por teologia entendermos aquela forma de imaginação que nos liga a Deus.

Cosmologia, antropologia, teologia. Como quem ascende por uma escada. Sem, no entanto, que se esqueça o seguinte. Quando se sobe uma escada, atingido o alto degrau, todos os que foram deixados para trás continuam necessários para que a ascensão não seja derrocada. Ascensão ou ascese, pois, como já fiz ver, a teologia pensada, vivida e ensinada por José Manuel Anes é a do logos principal do Evangelho de S. João, do logos que é luz e é vida, luz e vida que tanto nos vêm de Cristo como de Hermes ou, sobretudo, segundo o autor, do encontro de ambos.

A principal recreação de Anes é a Regaleira, a Quinta da Regaleira, que vê como a conjunção de um Templo e de um Jardim Iniciático. Tem apostado boa parte das suas convicções a mostrar que, no Palácio da Regaleira, estamos perante um Templo Maçónico-templário e alquímico, de excepcional importância na espiritualidade de uma parte da Maçonaria portuguesa e, principalmente, por quanto nos diz do mistério oculto do ser. Pena é que, olhando do mesmo ponto de vista o jardim que o cerca, não se tenha lembrado de desenvolver a analogia com a Ilha do Amor imaginada por Luís de Camões. Mas fá-lo com outros jardins e é este um dos aspectos mais cativantes do livro por vermos que num autor português a natureza tinha de aparecer como um dos caminhos metafísicos do homem, se sobrenaturalizada pela arte.

Não vou, neste breve prefácio, nem isso seria possível, passar o livro folha a folha com a necessária demora que se usa quando de um prefácio não se trata. Direi, no entanto, que todos os aspectos nele focados são de um interesse excepcional, isto é, de um interesse para espíritos de excepção que sejam capazes de seguir José Manuel Anes quando nos conduz do exoterismo para o esoterismo: reflexão de alguns enigmas históricos como o dos Templários e sua relação com o presente pela Maçonaria actual, sobretudo pelo Regime Escocês Rectificado com os seus graduais ritos de cosmologia para a teologia pela antropologia, renovando e tornando activo o que parecia ter sido destruído por Filipe o Belo e Clemente Quinto.

Eis, pois, neste livro, a erudição que não está ao serviço da erudição, como habitualmente acontece entre os universitários menos livres. E, coisa curiosa: o autor que também é universitário, não se esquece do tempo que passou pela Polícia Judiciária, onde pôs na luta contra o crime todo o seu vasto saber de químico experimentado e licenciado, isto é, com licença para exercer. É esse um capítulo do livro difícil pela especificidade do assunto, pelo rigor seco da sua cientificidade. Alude a uma fase da evolução psíquica do autor. Porque, da química, em dado momento, surge a alquimia. A química transcendentalizou-se.

Somos chegados à época, anunciada nos livros antigos, em que todo o esotérico se divulgou pelo mundo profano. Dir-se-á que, hoje, tudo está ao alcance do homem. O que parece um bem é causa de muitos enganos. Cruzam-se as correntes, envolvem-se umas nas outras, confunde-se o que é luminoso com o que é tenebroso. Neste caos, são poucos os que conservam a necessária lucidez. Aquilo que havia antes dele era, como todos sabemos, medíocre, superficial, ordeiro. A propagação do esoterismo e de tudo que lhe anda ligado veio causar a dissolução de um mundo que só aparentemente era sólido. Mas para o caos que daí resultou invoca-se um novo fiat. Recreação não é tão só recreio. É também e sobretudo uma nova creação. Confiada a Hermes, pedida a Hermes por José Manuel Anes. Que bem haja!

 

António Telmo  



[1] José Manuel Anes, Re-Criações Herméticas, Lisboa, Hugin, 2004, pp. 7 a 9.

 

VERDES ANOS. 11

21-03-2015 13:34

O leitor está perante um escrito histórico. Tanto quanto se sabe, trata-se do primeiro artigo de imprensa de António Telmo, e revela já uma evidente e firme feição filosofal. Publicado em 15 de Novembro de 1952 no jornal A Semana, reflecte, de certo modo, a preocupação com os problemas da tradução, mormente com o efeito desvirtuador que a mediação corrente das versões francesas inflige ao livre desenvolvimento da cultura filosófica portuguesa, tópico que Álvaro Ribeiro, pouco tempo depois, tratará admiravelmente nos capítulos inaugurais de Apologia e Filosofia (1953) – "Do aristotelismo ao positivismo" – e de A Arte de Filosofar (1955) – "A língua portuguesa". Mas a influência mais notória neste alvorar da ideação télmica deve talvez ser procurada no artigo de Eudoro de Sousa “Sejamos contemporâneos de Aristóteles”, publicado no Diário Popular de 7 de Março de 1949, (cfr. Eudoro de Sousa, Origem da Poesia e da Mitologia, Lisboa, INCM, 2000, pp. 101-103). Compreende-se tudo isto se nos lembrarmos do convívio de Telmo com os dois mestres nas tertúlias lisboetas, no início da década de 50. Como quer que seja, as reflexões dadas à estampa são também as de um jovem estudante do curso de Filologia Clássica da Faculdade de Letras de Lisboa que, por esses dias, ainda cumpre o serviço militar em Évora. Prestes a ser promovido a alferes miliciano, o que sucederá por portaria de 19 de Dezembro, o sr. Aspirante Vitorino não conclui, neste mesmo ano de 1952, qualquer cadeira na escola pública (ficara porém aprovado em três disciplinas curriculares em Junho e Julho do ano anterior), exemplo paradigmático de um percurso académico cuja irregularidade se explica por factores vários.

Lusismo e obscurantismo dos estudos clássicos[1]

 

Diz-se e pensa-se, em Portugal, repercutindo, como de costume, estrangeiras vozes, que toda a moderna cultura europeia radica na «antiguidade clássica». O motivo dos estudos clássicos resulta da atribuição desta origem e, visto como Portugal seja uma parte do grande todo evolutivo cujo centro irradiante e absorvente é a França, entre nós, portugueses, esses estudos exercem-se de uma perspectiva eminentemente europeia. Mas os portugueses mostram, como sempre mostraram, relutância perante os estudos clássicos. Desta antipatia há eruditos lamentos de personalidades ilustres. Dar-se-á acaso o caso que Portugal, como povo europeu que seja, renegue a origem, e também a finalidade, que europeus ou naturais seus europeizados lhe atribuem?

O nosso modo de reagir aos movimentos sociais trans-pirenaicos, de os adoptar, adaptar e interpretar, a feição especial pela que tomamos as doutrinas empiristas ou racionalistas exógenas, sinalam um terrível compromisso entre a vocação de um destino e a imposição de outro, compromisso no povo subjacente e obscuro, mas que se consciencializa em certos espíritos e neles se efectiva pela utilização da letra das doutrinas e do corpo das acções para fins, que nessa letra e nesse corpo, não estão contidos, nem original, nem finalmente, assim se desenvolve o espírito de argúcia, muitas vezes mal compreendido.

Não são, pois, nem o povo nem os homens representativos, aqueles de quem se deve dizer que estão atrasados em relação à Europa, mas dos ilusória e ingloriamente tentados a divulgar entre nós a cultura estrangeira. Também estes têm, ao fim e ao cabo, direito de cidadania portuguesa, pois a sua incapacidade de suplantar a Europa, ou, simplesmente, de acompanhá-la, pode-se, benignamente, explicar na mesma linha de fidelidade ao destino do povo a que pertencem. Se, porém, replicam com a irredutibilidade da alma nacional, com a sua tenaz resistência, que defronta o seu esforço, obrigado assim a ser lento nos resultados, denunciam-se, nesse caso, por um crime contra a tradição, vocábulo de complexas relações etimológicas. Decerto que por tradição não se entendem aqui as formas pretéritas, passadas ou perfeitas, mas o movimento imorredoiro de aspiração de liberdade, corporizado na nossa história, segundo ciclos mais ou menos transparentes, mas sempre representativos. Este movimento sinala direcção atlântica. Concretizou-se pelas descobertas; desceu depois às zonas profundas da alma popular; surgiu finalmente revigorado e renovado, num estádio superior, mas ainda, como sempre, de finalidade atlântica.

Compreendemos agora a lusitânia incúria dos estudos clássicos. O espírito de uma Grécia mediterrânea já não nos podia atrair; muito menos quando filtrado pela Europa central. Não que não haja, como há, uma visão nossa da Helenidade. Quem estude as vicissitudes por que passou entre nós o aristotelismo e, concomitantemente, as atitudes pelas quais[2] reagimos às diversas formas racionalistas que assumiu, verificará como o empirismo biológico do Estagirita é o lado pelo qual a visão portuguesa aponta para uma teoria que termina e recomeça aos pés de Deus. Dest’arte, não convém ao nosso pensamento específico, antes se oferece antagónica, a delineação de quadros que fixam a realidade movente, a inexaurível florescência das formas. O sentido da nossa visão romântica consiste de interpretar as metamorfoses dos seres, não pela dialéctica do espaço e do tempo, que subordina a imobilidade daquele à mobilidade deste, mas por aquela relação em que o espaço, constante e gradualmente, reverte em tempo libertador.

Também, talvez que no amor português ao pensamento aristotélico não haja mais que o anelo obscuro de fechar um círculo que outrora se rompeu quando a Discórdia, pela maçã fatal, cindiu o ocidente do oriente. Este anelo constituirá também o motivo fundo porque os portugueses que, com real vocação, se habilitam em estudos clássicos, não só não seguem a lição da França, como manifestam especial predilecção em investigar os cultos helénicos relativamente a um remoto segredo transmitido.

A arte interpretada sem implicação cultual, a filosofia estudada no sentido de uma ciência demasiado humana, a religião compreendida pelo aspecto meramente ético-político-social, tais as linhas gerais do classicismo francês, caracteristicamente europeu. Isto não podia, como não pode, interessar a portugueses. Consciente ou inconscientemente, não queremos filologar com o sr. Meillet ou com o sr. Marouzeau. Desta tríplice interpretação congénere ressalta evidente o carácter impiedoso do classicismo. A impiedade assinala-se, em arte, pelo corte das relações das musas com o «mistério»; em filosofia, pelo racionalismo, metafísico e matemático; em religião, pela autonomização da moral.

Ao sentido do espírito que nos tem conduzido, durante esta curta digressão, mostra-se flagrante a necessidade de ir colher directamente nas fontes originárias o que nos chega pela via da tradução, quase sempre, entre nós, oriunda da pátria de Racine. É demasiado sabido que, em política, o intérprete infiel pode perturbar a intenção de um povo. Aqui, nas zonas da cultura, política do espírito, o intermediário é, mesmo sem intenção de infidelidade, necessariamente infiel. O acto de traduzir exerce-se como que por um processo de alotropia química em que o elemento originário perde todas as originárias qualidades.

Urge, portanto, que o português dialogue com a Grécia, sem intermediários: – defrontando o idioma original, portuguesmente traduzindo. Contribuir-se-á, assim, para que se desfaça o compromisso entre o que somos e o que nos fazem ser; para que se desfaça não no sentido de que fique só o vestuário importado, mas no sentido de que o que somos substancial e irredutivelmente somos [sic][3], livremente se desenvolva. Então, certamente, a ninguém já se esconderá o que a princípio afirmámos: – no modo original e próprio de interpretar uma cultura de que não provimos, afirmar-se-á mais uma vez o sentido atlântico do nosso génio descobridor. Este génio, a quem o futuro misterioso se revela como reintegração no tempo primordial e mítico, não pode, é certo, desconhecer o mais oriental e o mais antigo dos povos europeus. Mas certo é, também, que a europeia visão da Grécia contradiz a vocação natural e o desígnio transcendente.     

 

António Telmo



[1] A Semana, Lisboa, 15 de Novembro de 1952.

[2] Nota do editor – No texto impresso: “pelas que”, o que nos parece ser manifesta gralha tipográfica.

[3] Nota do editor – Presumimos ser erro a repetição da forma verbal “somos” na presente estrutura sintáctica.

 

 

DOS LIVROS. 38

20-03-2015 11:57

De repente tive a ideia de mostrar Natália como uma projecção na alma do filósofo da beleza satânica contudo bem feminina no seu fascínio.

Substituí a apoteose de Natália pela apoteose de Leonardo, unindo-se pelo sacramento do matrimónio e resgatando-se pela sacralização do seu filho, no alto do Marão.

É neste ponto que a minha vida de escritor é de novo assistida pelo sobrenatural.

Era uma segunda-feira. O café onde todas as manhãs costumava ir escrever, ler, pensar fechava neste dia da semana. Dirigi-me por isso para uma esplanada na Mata, que é o nome que em Vila Viçosa dão ao seu belo jardim. Sentei-me e escrevi dum fôlego o novo desenlace da peça, pondo os seus no seu devido lugar.

O extraordinário e ao mesmo tempo encantador foi o que aconteceu quando pus a última linha. Duas felosas verdes vieram pousar à minha direita e à minha esquerda nos espaldares das cadeiras de um e de outro lado da mesa. Entre mim e cada uma das duas avezinhas havia a distância de um braço. Estavam voltadas uma para a outra, mas moviam as cabecinhas fitando-me. Depois desapareceram num voo que foi como um sopro.

A alegria, como nunca a tinha sentido, veio visitar o meu espírito.  

(António Telmo, in Páginas Autobiográficas)

 

António Telmo não disse tudo na “Breve Explicação do que foi escrito atrás” que justapõe aos três actos em que se estrutura a sua peça A Verdade do Amor, editada pela Zéfiro em 2008. Ficamos a sabê-lo pelo excerto sobre Leonardo Coimbra acabado de citar, retirado de Autobiografia e Sobrenatural, uma das muitas novidades que o III Volume das suas Obras Completas, a sair em Junho na Zéfiro, nos vai trazer. O leitor poderá verificar o que lhe dizemos, recordando o final desta peça tão densamente simbólica, em que Álvaro, ali dado pelo mestre como o baluarte da Filosofia Portuguesa, é efectivamente Álvaro Ribeiro. Mesmo que António Telmo não no-lo tivesse revelado, bastaria a nossa atenção para a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro que o dramaturgo não deixou de colocar na sua sala de estudo.

[Lilith, por Dante-Gabriel Rossetti]

 

Final do Terceiro Acto de 

A Verdade do Amor

 

(…)

 

Aparece Natália fazendo grandes gestos de chamamento para Leonardo e para Álvaro.

 

LEONARDO

Não atravesses o caminho! É uma miragem.

 

O CEGO

Volta-se para Natália, tocando e cantando.

Em vinte e cinco de Abril

A princesinha acordou,

Cem anos depois de morta,

Sentou-se toda torta,

Longe do mundo e bem só.

 

Era um esplendor de cravos

Cem anos depois de cega.

A liberdade não chega

Por causa da cegarrega

Que amolece os mais bravos.

 

Disse Camões ao seu povo

Mil anos antes de Abril:

Mas que tristeza tão vil!

A liberdade não chega

Tudo é velho, nada é novo

Continua a cegarrega.

 

Veio o Quim dos Alcatruzes

E ganhou as eleições,

Já se calou o Camões.

Alegram-se as avestruzes

Co’a liberdade que chega

Entre vivas e canções,

Mas não cessa a cegarrega.

 

Em vinte e cinco de Abril

A princesinha acordou

Cem anos depois de morta.

Esperou três anos mais

Sentada e toda torta

Até que por fim ganhou

E nos fez todos iguais;

O deus dos cegos ganhou

Que nos fez todos iguais.

O deus dos cegos ganhou

Que nos fez todos iguais.

 

A voz repetitiva perde-se progressivamente. Fica só o som da guitarra.

 

NATÁLIA

Ó vinte e cinco de Abril,

Venha a orgia, venha a ordália!...

Portugal beija o Brasil,

E Leonardo a Natália.

 

TODOS

Toca um rock! Toca um rock!

Vamos todos a galope!

 

O cego levanta-se e a sua guitarra, agora eléctrica, solta sons frenéticos. Começam todos a dançar. Do meio deles sai uma mulher muito branca, magríssima e só com órbitas. Para e dança como que esperando.

 

ÁLVARO

Mestre, que figura horrorosa é aquela?

 

LEONARDO

Aqui todo o medo deve desaparecer. Mantém-te calmo e distante, mas não percas nada do espectáculo!

 

A MORTE

Sou um caso muito sério

Não é só com preservativos

Que resolveis o mistério.

 

LEONARDO

Tudo isto enoja, mas é só uma miragem.

 

ÁLVARO

É só uma miragem?

 

LEONARDO

Uma miragem que, com a ajuda de Deus, vou fazer desaparecer.

 

Atravessa corajosamente o caminho que os defende daquela gente. E, ao sinal da cruz que traça sobre o peito, segue-se um estrondo que abala toda a cena.

 

Louvado seja Deus!

 

Uma doce paz invade toda a paisagem, ainda envolvido na noite. A manhã começa a clarear, mas do lado do Poente. Daí se vai elevando o Sol. Sob o Sol nascente, forma-se a figura de um Templo.

 

O teatro findou. Álvaro, vou deixar-te só. Arranja companheiros que sigam a nossa estrela. Aquele é o Templo de Salomão, daquele que fez o Cantar dos Cantares. Ali me espera Catarina com o nosso filho. Ele será lavado em águas santas e receberá na língua o sal da terra. Renascerá. Eu e Catarina também, mas pelo supremo sacramento. Sinto que é a partir dali que vou conhecer o mundo misterioso de Deus.

Tu ainda tens de descer, de regressar ao mundo dos homens. Vai e faz o que tens que fazer.

 

António Telmo

 

(Publicado em A Verdade do Amor, 2008)

DOS LIVROS. 37

19-03-2015 13:03

Coincidências, 1

 

Tenho observado que um certo tipo de intelectual muito comum, antípoda do homem do povo, receia o sobrenatural, até no que ele tem de maravilhoso mas de imprevisível, até quando lhe falam simplesmente de uma das suas indesmentíveis manifestações.

Já lá vão uns vinte ou trinta anos. Depois do jantar, fumava eu o meu cigarro, o meu filho trouxe-me um frasco cheio de água muito bem rolhado, com uma mosca morta lá dentro, dizendo que a tinha ali afogada há longos quatro meses. Eu sabia, até por o ter verificado algumas vezes, que, cobrindo de cinza uma mosca em tais condições, ela começava a andar e, uma vez bem seca, até a voar.

Tomei uns ares de mágico:

- Tira-a daí, sem a magoares. Vou ressuscitá-la.

E assim que ele a colocou sobre a mesa, deitei-lhe sobre o corpo a cinza do cigarro. Passados alguns instantes, emergiu da cinza, esticou as asas e começou a andar.

Contei isto no café, onde fui como de costume. Mudaram imediatamente de conversa. O que se lhes afigurava excepcional enchia-os de medo.

Todavia, só lhes disse metade. O mais importante guardei para mim.

Levo sempre comigo um livro, para onde quer que vá. Neste caso, nessa noite, como nas outras, depois de vinte ou trinta minutos de conversa, retirava-me para uma mesa onde ficava sozinho a ler. Antes de sair de casa e logo a seguir ao acontecimento da mosca, procurei pois na estante um livro. Tirei um do filósofo alemão Leibniz. Abri-o ao acaso e percorri com o olhar umas linhas para ver se, na altura, me agradaria lê-lo. Deparei, espantado, com as seguintes:

 “… não há ninguém que possa marcar o verdadeiro momento da morte, a qual poderá passar muito tempo por uma simples suspensão das acções habituais e, no fundo, não é outra coisa nunca nos simples animais; o melhor testemunho disso é a ressuscitação das moscas afogadas e envolvidas em giz pulverizado.”

Há coincidências inexplicáveis, mais misteriosas do que o voltar à vida dos animais mortos.

 

António Telmo

 

(Publicado em A Terra Prometida, 2014)

EDITORIAL. 03

18-03-2015 14:30

Justa medida

Miguel Bruno Duarte, no seu blogue Liceu Aristotélico, página que, ao invés do que a sua denominação faria supor, se tem brilhantemente distinguido pela difusão, entre nós, das artes marciais (o facto pode parecer insólito, mas, dado o implícito diapasão alvarino, recordamos que já Álvaro Ribeiro, em carta a António Telmo, considerava que à revista Escola Formal melhor caberia a designação de Quartel General), Miguel Bruno Duarte, escrevíamos, publica no seu blogue o artigo “Agostinho da Silva: biografia falhada”, da autoria de António Araújo, crítico de livros, constitucionalista e consultor do Presidente da República, que nesse seu escrito ajuíza sobre o livro O Estranhíssimo Colosso: uma biografia de Agostinho da Silva, da autoria de António Cândido Franco, membro fundador, para nosso júbilo, do Projecto António Telmo. Vida e Obra.

O referido Miguel Bruno Duarte faz, porém, preceder a publicação do escrito de Araújo do seguinte introito:

 

O texto que se segue, da lavra de António Araújo, já é do conhecimento público (ver aqui). Trata-se, no âmbito de uma pseudo-biografia sobre Agostinho da Silva, de uma crítica dirigida a um professor da Universidade de Évora - aliás anarco-comunista e também ele membro fundador do Projecto António Telmo. No mais, a resposta do visado já veio igualmente a público (ver aqui), para assim alegar "que uma biografia não é um género linear, como de resto nenhum género poético o é". Ora, sobre isso, não levantamos nenhuma objecção, sem prejuízo para as eventuais fontes documentais. Mas, no que respeita a Agostinho da Silva, já é caso para perguntar que valor literário ou poético revelam expressões do tipo: "Matava com a mão o apetite do bicho mas o que ele queria mesmo era o corpo meio nu da prima nas mãos"? Enfim, não há dúvida de que estamos perante um sinistro e estranhíssimo biógrafo de um singular quão inestimável missionário do Espírito Santo. 

 

Verifica-se que, num curriculum tão vasto e tão rico como o de António Cândido Franco, somente três qualidades lhe são aqui relevadas: a de professor universitário; a de anarco-comunista; e a de também ele membro fundador do Projecto António Telmo. Vida e Obra.

O também ele, aqui, alude provavelmente a Pedro Martins, dados os antecedentes próximos que os leitores da nossa página possivelmente recordarão.

Registamos, com agrado, a atenção, com seu quê de obsessivo, com que, enquanto projecto de investigação, Miguel Bruno Duarte nos distingue.

Registamos ainda, aqui com subido orgulho, o modo como nos associa a uma polémica em torno de uma obra sobre Agostinho da Silva, um dos mestres do nosso patrono, mas não o nosso patrono. Será, da sua parte, sinal de reconhecimento do trabalho singular e, em certa medida, incomparável no último ano, que o nosso projecto tem desenvolvido em torno do estudo e da divulgação da vida e da obra de Mestre Agostinho, algo que, ainda há semanas, na tertúlia promovida pela Associação Cais de Culturas em que participaram Rui Lopo e Pedro Martins, o escritor Fernando Dacosta sublinhou publicamente? Só Bruno Duarte o poderá esclarecer...

Quanto ao epíteto de “anarco-comunista”, por sinal aquele que, literalmente, Teixeira de Pascoaes para si reservou em A Minha Cartilha (já Sampaio Bruno, fundador da Filosofia Portuguesa, se definira, n'O Brasil Mental, como "socialista-anarquista"), terá de ser António Cândido Franco, se assim o entender, claro está, a pronunciar-se sobre ele, a par de uma ou outra aleivosia pertinaz com que Miguel Bruno Duarte se lhe dirige.

Com efeito, António Cândido Franco irá responder-lhe, nesta página, na próxima semana. Será aliás, da sua parte, o ponto final nesta polémica que ganha novos contornos.

A Miguel Bruno Duarte, e aos leitores em geral, recordamos que o Projecto António Telmo. Vida e Obra é antes de mais um grupo de amigos, onde coexistem e convivem pessoas das mais variadas orientações políticas e religiosas: monárquicos e republicanos, católicos e maçons, cristãos e filo-judaicos, anarquistas, comunistas, socialistas, crentes, ateus, etc. O que, possivelmente, explicará, em parte, a obsessão com que Bruno Duarte nos distingue. E que, como o mesmo imaginará, nos deixa muito satisfeitos. Tão satisfeitos, aliás, que não perderemos mais tempo a responder às suas provocações. Nisto, na senda de António Telmo, somos aristotélicos, atentos, pois, à justa medida.

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