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INÉDITOS. 47

09-03-2015 12:05

Na Escola Nacional de Lisboa[1]

            (…)

 

Ainda bem que me fala, na sua segunda carta, do General Vicente de Freitas. Ele era o gestor ou coisa que o valha da Escola Académica, no Largo da Anunciada, onde conheci o Álvaro Ribeiro, isto é, em que o vi pela primeira vez falar, de que lhe ouvi, pela primeira vez, a voz. Nessa Escola estive eu interno como aluno, no ano seguinte a ter ali estado o meu irmão Rui, que Deus haja. O General dava-nos aulas de moral. Era um velho resmungão que nós gostávamos de ridicularizar para nos vingarmos da moral que nos era impingida e que todas as crianças odeiam, porque estão antes do pecado original. O aluno que estava sentado na cadeira ao pé da porta da sala, batia nela várias vezes com os nós dos dedos. O General dizia-lhe para ver quem batia à porta e naturalmente não estava lá ninguém. Ficava furioso, mas, como ignorava quem tivesse batido, reprimia-se. A brincadeira repetia-se em cada aula. Um dia, porém, quando se abriu a porta, vinha por acaso um aluno a entrar. Levou uma sova de bofetadas e estava verdadeiramente espantado, porque não via porque era assim castigado, sem se atribuir qualquer culpa.

            (…)

 

António Telmo



[1] Nota do editor – O título é da nossa responsabilidade. Publica-se um excerto de uma carta escrita por António Telmo, que nela visivelmente se engana no nome da escola que menciona. Trata-se, com efeito, da Escola Nacional de Lisboa, que Telmo frequentou, como aluno interno, no ano lectivo de 1943-44. Sobre o General Vicente de Freitas, que foi docente e comproprietário da referida escola, fundada, com outra localização, no ano de 1869, remetemos o leitor para o livro de Francisco Fernandes, General José Vicente de Freitas – A Liberdade de Pensar, Lisboa, Colibri, 2010. 

 

DOS LIVROS. 36

06-03-2015 12:01

Martinismo e filosofia portuguesa[1]

 

Não será, talvez, mau, para abrir estas páginas, ver o que portugueses pensaram sobre Pascoal Martins ou sobre o martinismo. Escolhemos três nomes bem representativos do génio nacional, que são Fernando Pessoa, Álvaro Ribeiro e Sampaio Bruno. Passamos a citar:

“O ternário sagrado! Saint-Martin, seu inventor e promotor! Mas, sem embargo de sua peculiar originalidade, cumpre não esquecer que Saint-Martin começara por ser discípulo de outrem, de um desses homens extraordinários que gravam sua personalidade na sua época; e esse homem era português, “misterioso português”, consoante (realista, romanescamente) se compraz em lhe chamar o biógrafo crítico do “philosophe inconnu”, o sr. Matter. Português-judeu, cristão-novo, “de raça oriental e de origem insólita, mas tornado cristão à laia como assim se tornavam os gnósticos dos primeiros séculos.” Quem?

“Quanto mais se estuda Saint-Martin, com o tratado do seu mestre, Da Reintegração, à vista, tanto mais se sente, em toda a sua profundidade, a influência do teurgista de Portugal sobre o mais célebre dos seus discípulos de Bordéus.”

O autor do tratado Da Reintegração, manuscrito com que, na data, teve a felicidade de deparar o sr. Matter, designa-o este por teor equívoco para ouvidos lusitanos, apesar, todavia, de seus propósitos correctivos. “Toda a vida de Martinez de Pascualis está envolta em mistérios. Chega a uma cidade não se sabe de onde nem para quê. Deixa-a não se sabe quando nem como. Sabemos que dom Martinez findou seus dias em 1779 em São-Domingos, em Port-au-Prince, o que por muitas vezes fez com que o dessem por espanhol.”

Vê-se, por estas linhas de Sampaio Bruno (O Encoberto, pgs. 331-332), a preocupação em acentuar a nacionalidade portuguesa de Pascoal Martins. Não certamente por patrioteirismo, assim como a massa imbecil se orgulha de que o Figo ou o Eusébio ou o Saramago sejam portugueses. Mas sim, como se vê depois, lendo todo o capítulo, para mostrar que martinismo e filosofia portuguesa são a mesma verdade, pela origem e pelo desenvolvimento. 

É o que vem afirmado na segunda citação:

“A tradição portuguesa, a esperança de que o Cristianismo reintegrará o Homem e a Natureza no Reino de Deus, durante o século XVIII passa a exprimir-se em termos diferentes dos que ficaram estabelecidos na nomenclatura da teologia católica e da filosofia aristotélica. A obra de Pascoal Martins, vertida maravilhosamente na cultura da Europa Central, dá-nos uma síntese, ainda hoje admirável, das tradições peninsulares.” (Álvaro Ribeiro, A Arte de Filosofar, pg. 142).

Com efeito, a pureza do ensino da Kabbala, doutrina que se forma pelo cruzamento do esoterismo judaico com o esoterismo cristão, teve a Península Ibérica como principal foco de irradiação, do século XII em diante.

O martinismo foi-nos devolvido mais tarde, predominantemente no início do século XX, pelos franceses, mas a forma degenerada de que se revestiu até então aparece denunciada na terceira citação, que é de Fernando Pessoa, nos seus textos sobre a Maçonaria, falando dos conhecimentos superiores que porventura desçam ou tenham descido até ela:

“Melhor será se estes conhecimentos especiais estiverem apoiados em, ou fundamentalmente derivem de, uma iniciação de tipo supermaçónico. Há, porém que notar que há iniciações extramaçónicas que não habilitam em nada à compreensão da Maçonaria; outras ainda, que são postiças; mais conduzem ao desentendimento que ao entendimento dela. Está no primeiro caso a iniciação em certa Ordem, de tipo rosacruciano, que tem sede em Londres; está no segundo caso o pseudomartinismo fundado por Gérard Encausse (Papus).” (Obras de Fernando Pessoa, Lello & Irmão, pg. 436 do Vol. III)

Mas de França, felizmente, no que a martinismo diz respeito, não recebemos só o pseudomartinismo de Papus. Um dos discípulos de Pascoal Martins, que dele recebeu directamente o ensino, estabeleceu a partir da Ordem Templária da Estricta Observância o Regime Escocês Rectificado, combinando uma tradição que, segundo Jean Tourniac, tem raízes na Ordem Militar de Avis, com a que, através do seu mestre, prolonga, na Europa Central, a Kabbala peninsular. Esse discípulo foi, como se sabe, Willermoz. De Claude Saint-Martin que com ele colaborou na formação do referido Regime maçónico não há qualquer prova segura de uma transmissão iniciática em que se funde esta ou aquela organização, não obstante a profunda e vastíssima influência que exerceu através dos livros.

O que é que se conclui daquelas três citações e da existência entre nós do Regime Escocês Rectificado?

Por mim concluo que dispomos de um caminho simbólico de tudo quanto o martinismo ensina e que, mais uma vez se verifica, não precisamos de sair de Portugal na aventura do conhecimento. N’A Ideia de Deus de Sampaio Bruno temos a mais admirável reformulação filosófica do Tratado de Reintegração dos Seres nos seus Princípios Primitivos. De Sampaio Bruno “partem todos os caminhos”. Claro que não podemos reduzir o pensamento de Álvaro Ribeiro, de Leonardo Coimbra, de José Marinho ou de Agostinho da Silva à Ideia de Deus, tal como a concebeu o filósofo obscuro, porque onde o Espírito sopra não há repetição. Por isso mesmo, não podemos cair no erro de pensar que Pascoaes, Pessoa e Régio dizem coisas diferentes. Estão juntos no essencial, naquele essencial mais directamente apreensível no primeiro, dado que a teoria da saudade para o Regresso ao Paraíso é, logo à partida, o movimento da Reintegração dos Seres nos seus Princípios Primitivos.  

 

António Telmo

 

(Publicado em A Terra Prometida, 2014)



[1] Título da responsabilidade do editor.

 

INÉDITOS. 46

03-03-2015 09:36

O estudo do espólio de António Telmo permitiu já identificar o propósito do filósofo de, na segunda metade da década de 90, escrever um novo estudo sobre Camões, face ao silêncio -- ao sacer esto -- que, com a excepção honrosíssima de Agostinho da Silva, se havia abatido sobre o Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões. Dessa tentativa chegaram até nós algumas páginas que vão integrar Luís de Camões seguido de Páginas Autobiográficas, III Volume das Obras Completas de António Telmo, a sair a lume em Junho próximo, com a chancela da Zéfiro. É uma dessas páginas que agora antecipamos aos nossos leitores. O diálogo admirativo que o filósofo então mantém com a obra, ao tempo acabada de sair, de Moisés Espírito Santo, Os Mouros Fatimidas e as Aparições de Fátima, não tem apenas o mérito de nos permitir situar cronologicamente estes textos camoninos e todos os mais que integram o respectivo caderno manuscrito. Mostram também um livre-pensador religioso aberto ao diálogo com tendências de pensamento que não são exactamente as suas, e que por certo escapam àquele cânone pretensamente ortodoxo que certas correntes reaccionárias, abusivamente propensas à associação com o movimento da Escola Portuense, pretendem impor. A este propósito, verificamos com satisfação que a publicação da obra, incluindo a inédita, de António Telmo vem causando notório e perplexo incómodo a algumas pessoas, que julgavam poder transportar o seu pensamento a um qualquer redil doméstico. Estamos em crer que isto é saudável, porque nos mostra uma obra viva e vivaz, merecendo por isso a maior atenção. Fora das nossas preocupações ficará apenas a grosseria epigonal do insulto que se surpreende num ou noutro daqueles que não querem ver.   

Sobre o Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões[1]

 

Eu compreendo o silêncio que se fez à volta do meu livro Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões. É certo que houve uma excepção, a do homem mais inteligente do Portugal de então, o celebrado e célebre e inspirado Agostinho da Silva num breve escrito publicado logo após a saída do livro num jornal da tarde e mais tarde recolhido em Considerações e em Obras Completas simultaneamente. Como poderia dar na cabeça de alguém a ideia de fazer do catolicíssimo Camões um persa da linhagem espiritual de Zaratustra e de Mani?

Todavia, assim é, sem prejuízo da tese de Fiama Hasse Pais Brandão que faz dele um cabalista ou da tese de Sampaio Bruno que o associa a Dante como um “Fiel de Amor”. É que, como já ensinava o filósofo do Encoberto, da Pérsia descem as três correntes da gnose hebraica, da gnose cristã e da gnose shiita (que não devem confundir-se com os três fanatismos que são o talmudismo, o catolicismo e o islamismo), correntes essas vindas das altas montanhas e que confluem em Portugal formando um lago onde, como na Ilha do Amor, vogam os cisnes de Vénus. Um livro recente, Fátima e os Fatimidas[2] de Moisés Espírito Santo mostra como em Portugal, com as chamadas invasões árabes, se instalou a gnose shiita no seu aspecto popular. Os sefarditas portugueses [foram] uma implantação que ficou guardada pelos Templários acusados de cumplicidade com a mesma gnose por influência dos ismaelitas do velho da montanha. A gnose cristã dominou desde o século IV por meio de Prisciliano. Há ainda no Algarve Ibn Ramana [a] que[m] Asín Palacios assinala a afinidade com Prisciliano.

 

António Telmo



[1] Título da responsabilidade do editor.

[2] Rigorosamente, o título do livro de Moisés Espírito Santo a que António Telmo se refere é Os Mouros Fatimidas e as Aparições de Fátima. A primeira edição, com a chancela do Instituto de Sociologia e Etnologia das Religiões da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, data de 1995. A referência a este livro permite situar cronologicamente os diversos escritos do caderno de onde o presente texto provém. 

 

INÉDITOS. 45

01-03-2015 19:11

No dia em que se completam 110 anos sobre o nascimento de Álvaro Ribeiro, mestre dos mestres de António Telmo, lembramos o filósofo da razão animada a partir de um inédito do discípulo que ilustra a sua relação com o mestre e ilumina um aspecto fundamental do pensamento alvarino, também na estreita ligação que o relaciona com Sampaio Bruno. Trata-se de escrito que irá figurar nas Páginas Autobiográficas de António Telmo, a segunda parte do III Volume das suas Obras Completas, cuja fixação de texto o Projecto António Telmo. Vida e Obra está a ultimar.

Os guizos[1]

 

O som de guizos dá uma nota de beleza ao que não pode entender-se senão como a manifestação de uma força do género daquelas que, no domínio das ciências ocultas, se designam por subtis. Os guizos põem-se suspensos do pescoço dos gatos para avisar da sua presença e mais facilmente os encontrarmos se tiverem desaparecido. Há instrumentos musicais, como a pandeireta por exemplo, que funcionam com guizos que não são mais, afinal, do que pequenos sinos de forma ligeiramente diferente. O som do sino limpava a atmosfera da aldeia de Fernando Pessoa e torna as almas claras, mas o gemido de uma sirene gera angústia e pavor.

O mundo subtil tem os seus aspectos macabros que os filmes de terror exploram, fazendo acompanhar de um som contínuo, cavo e opressivo a aparição, por exemplo, do fantasma do pai de Hamlet. Os fantasmas são pálidos como que formados de uma matéria gelatinosa. Imaginamos assim o reino dos mortos e damos graças a Deus de vivermos no esplendoroso mundo sensível, onde brilham o Sol e as estrelas. Só as almas doentes podem comprazer-se com as sessões de espiritismo.

Falei ao Álvaro Ribeiro o que me aconteceu na casa do alfaiate.

– Foi qualquer coisa que estava a mais e que deitou fora – disse-me ele e pôs-se a falar noutro assunto.

O filósofo de A Razão Animada só atribuía valor e realidade às expressões do sobrenatural pela literatura. A fenomenologia do mundo subtil que não passasse pela palavra mental, oral e escrita, isto é, pelo pensamento, tinha uma garantia até menor do que a fenomenologia do mundo sensível que ele tinha por irreal. Neste ponto, como noutros que com ele se associam, e por ele se coordenam, a coincidência com Sampaio Bruno é flagrante.

O autor de A Ideia de Deus só atribui insofismável realidade às comunicações angélicas formadas por palavras. Desdenha das sensações visuais cuja transcendentalidade é, segundo ele, manifestamente ilusória.

No entanto, as palavras iluminam porque fazem ver naquele domínio invisível que é o do pensamento. “Ver ou não ver, eis a questão.” O essencial é sempre a luz. A visão de Ezequiel é um esplendor. O som que se constitui como letra é uma modalidade da luz.

«O olho, ensinou Jesus, é a lâmpada do corpo. Se o olho é mau todo o corpo é treva, se é bom todo o corpo é luz.»

O cinzento é o que resulta, como as cinzas de um incêndio, da combustão das cores. Os fantasmas são as formas cinzentas do informe.

Ver é tudo. Mas este maravilhoso mundo coroado de azul é apenas uma imagem?

Não há imagem que não o seja de alguma coisa, isto é, que não imite. Ou imita outra imagem ou o que não é imagem e este é o caso das imagens cosmológicas e da natureza que se devem conceber numa árvore cujas raízes estão para além da imagem.

 

António Telmo    

____________


[1] Título da responsabilidade do editor. O episódio a que António Telmo alude vem narrado aqui.

 

VOZ PASSIVA. 43

27-02-2015 18:00


Sobre António Telmo e Teixeira de Pascoaes, a propósito de uma afirmação de Miguel Bruno Duarte

Pedro Martins

 

A propósito de António Telmo e Teixeira de Pascoaes, Miguel Bruno Duarte identifica-me num texto que publicou em 20 de Maio de 2013 na sua página na Internet, Liceu Aristotélico. Passo a transcrever:

 

«... Os valiosos estudos da obra de Pascoaes que até agora têm vindo a ser feitos por pensadores da tradição portuguesa, os estudos de um Afonso Botelho, de um António Cândido Franco, de um Manuel Patrício, de um Paulo Borges ou de um Pedro Sinde, se obedeceram à preocupação de situar essa obra no quadro da nossa filosofia, nem sempre o fizeram de acordo com o conceito de filosofia portuguesa, e de tudo o que nela se implica, tal como foi formulado por Álvaro Ribeiro, o mestre entre nós dos que sabem...» [Curiosamente, o kabbalista de Estremoz esquecera-se de mencionar, entre aqueles autores, o caso do socialista maçon Pedro Martins].  

António Telmo (Prefácio ao volume 21 das Obras de Teixeira de Pascoaes - Assírio & Alvim, 2002).

 

Curiosamente, atribuindo-me os epítetos de socialista e de maçon – quanto ao primeiro, num determinado sentido, e ao lado de um Sampaio Bruno, de um Teixeira de Pascoaes ou de um Agostinho da Silva, não o enjeito; quanto ao segundo, não o confirmo nem o desminto, mas desde já, ao lado de um António Telmo, protesto a minha adesão ao ideário da Arte Real -, Miguel Bruno Duarte opera, como o leitor pôde constatar, ligação para um artigo que dei à estampa em Agosto de 2014, no jornal de inspiração católica Raio de Luz, republicado depois nesta página.

Sendo o artigo de Miguel Bruno Duarte de Maio de 2013, poderíamos estranhar esta ligação serôdia com que o dito Duarte tão atenciosamente me distingue, e que lhe agradeço.

Poderíamos, mas não estranhamos. Miguel Bruno Duarte, decididamente, revela dificuldades em situar-se no tempo. Diz que António Telmo se esqueceu de me mencionar, a propósito de Pascoaes, no prefácio de 2002. Não se esqueceu – porque não se poderia ter lembrado. Pela razão singela, que porventura não se cruzou com a inteligência ou, vá lá, com a memória do dito Duarte, de em 2002 não ter eu ainda escrito uma única linha sequer, quanto mais um estudo, sobre Pascoaes. António Telmo era um homem de dons, mas neste caso não atingiu a prognose da vidência.

Escreveu, porém, em 2007 (permita-me Miguel Bruno Duarte mais um daqueles saltos cronológicos em que tanto parece comprazer-se), na carta com que prefaciou o meu livro de estreia O Anjo e a Sombra – Teixeira de Pascoaes e a Filosofia Portuguesa, estas entre outras palavras, das quais sublinho algumas:

 

Devo confessar-lhe que, não obstante os laços de amizade que nos puseram a mim e a si colaborantes em vários momentos de expressão cultural e até cultual, não esperava que, de repente, efeito talvez de um fiat lux, emergisse da Sombra da sua alma o Anjo do seu intelecto a dizer-nos as palavras que faziam falta e que ainda não tinham sido ditas sobre Teixeira de Pascoaes e a filosofia portuguesa, a filosofia portuguesa e a redenção de Portugal.

 

Poderia ainda transcrever o que António Telmo escreveu em seguida naquele prefácio, nomeadamente o modo como liga Pascoaes a Álvaro Ribeiro. Impede-me porém que o faça certa modéstia que gosto de cultivar e sobretudo o sentimento cristão da caridade, a que até perante Miguel Bruno Duarte me sinto obrigado.

VOZ PASSIVA. 42

25-02-2015 12:29

De O Estranhíssimo Colosso - Uma Biografia de Agostinho da Silva, de António Cândido Franco, membro fundador do Projecto António Telmo. Vida e Obra, publicamos hoje um breve excerto relativo ao período brasiliense de Agostinho, com particular importância para a biografia de António Telmo. Nele, o autor transcreve aliás um inédito télmico que nos dá conta das tensões vividas durante a crise académica provocada pela Ditadura Militar a que o Brasil estava então sujeito, e que acabaria por determinar os regressos a Portugal de Telmo (em 1968) e de Agostinho (em 1969). João Ferreira, membro do nosso projecto, é outro dos grandes protagonistas das linhas que se seguem. À sua coragem, generosa e inesquecível, ficaram então António Telmo e Maria Antónia devendo a alimentação para a sua filhinha Anahi...

Brasília, 1968[1]

António Cândido Franco

 

No momento em que Agostinho se apresentou diante da Comissão Parlamentar de Inquérito, a 23 de Maio de 1968, já não alimenta ilusões sobre o destino da escola em que está. Toma-a por uma universidade serôdia, sem vigor nem ousadia. Não admira pois que Agostinho tenha duvidado do seu futuro na escola de Brasília. Cheirou-lhe que o tempo dele por ali não havia de durar muito. Aquela paralisia formal em que a escola caíra não era para um Silva que dormia num barracão do cerrado e tinha por lá à sua conta uma dúzia de estudantes. Quando recebe Conceição e Silva em 1967 já ele está a preparar a terra para meter sucessor. É o arranque da reitoria de Caio Benjamim Dias. Ele ainda não sabe o que lá vem mas percebe que a atmosfera em formação, as negras nuvens que se acumulam, e que tão bem retrata no que diz à Comissão Parlamentar de Inquérito, não bate certo com a liberdade do seu modo de vida nem com o seu projecto de escola como comuna geradora de vida fraterna. Do período relativo ao primeiro semestre de 1968, sei que a UnB viveu um duro cerco militar e que a asa norte da cidade esteve durante vários dias sem contacto com a asa sul. Foi a terceira invasão militar da UnB e a mais dura das três. António Telmo, então ao serviço do Instituto de Letras, deixou um escrito sobre o momento que precedeu a invasão e que aqui transcrevo por gentileza da sua esposa, Maria António, visto que nunca foi dado em letra redonda. É uma fotografia daquilo que então aconteceu na Universidade de Brasília e que Agostinho também viveu. Diz assim: «Duas semanas depois de começarem as aulas e quando tudo parecia seguir um curso normal, sem greves e sem motins, a rádio trouxe a notícia de que, no Rio de Janeiro, a polícia tinha matado a tiro um estudante. A notícia chegou pela noite; no dia seguinte de manhã, quando chegámos à universidade, as paredes, os muros, os vidros, a entrada estavam cheios de legendas contra a Ditadura de Costa e Silva. Que chegara ao ponto de ter de derramar sangue inocente para se manter de pé. Havia uma muito brasileira: era o retrato amarelecido reitor que tinha escrito por baixo “Procura-se um Assassino”. A polícia militar cercou a universidade. Passámos o dia passeando pelo campus. Ninguém tinha nada que fazer, mas isso não constituía problema. Os estudantes espalhavam-se em grupos, falando em surdina e combinando modos de irritar a polícia. Os leaders, entretanto, estavam reunidos no directório académico. Soava, por todo o recinto, a voz de Nara Leão cantando canções de protesto.»

A invasão acabou com quinhentos estudantes presos e um gravemente ferido a tiro. A família Vitorino viu-se metida em assados, pois tinha uma menina de meses e precisava de recursos que faltavam na parte norte. Foi João Ferreira, chegado em princípios de Janeiro de 1968, que furou as linhas militares e salvou a situação. Maria Antónia nunca esqueceu este corajoso gesto, que lhe pode ter salvado a vida da filha. Eu, que sei João Ferreira activo nos mastodontes de Brasília aos 90 anos, atribuo o facto ao hábito com que este transmontano viveu desde novo situações de aperto, entre elas as da guerra civil de Espanha e as dos tempos da Guiné-Bissau, que não hão de ter sido doces. Daqui o saúdo com uma vénia de preito e um sinal de admiração pela coragem que sempre mostrou em afirmar as suas convicções e em ajudar o parceiro. Despiu a batina e tirou fora o colarinho de goma de padre mas nunca deixou de ser um seguidor de Francisco de Assis.

 


[1] Título da responsabilidade do editor.

 

 

DOS LIVROS. 35

24-02-2015 09:12

Marranos


                                                        17 – 9 – 07

 

Em conversa telefónica, ontem, com o Pedro Sinde.

Disse-me que “marrano” corresponde a uma palavra hebreia que significa “aquele que se converte a outra religião”. Mas essa palavra em hebreu não tem dois rs mas um só, pelo que Teixeira de Pascoaes soube o que fazia quando pôs ao seu poema o nome de Marános.

O duplo r permitiu que de marrano se passasse a marrão, aquele que marra, pousando a cabeça sobre os livros e que, simultaneamente, se confundisse porco com marrão.

Tudo isto me foi dito com melhores palavras pelo Pedro Sinde.

A utilização da língua para fazer o mal, pecando por palavras, é aqui obra de católicos ateus e digo ateus porque não poderá crer em Deus e no Senhor Jesus Cristo quem aplaude as atrocidades da Inquisição.

Tenho reflectido muito, depois da leitura de O Judeu de Camilo Castelo Branco, nas repercussões que esse horror que foi a Inquisição poderá ter tido no mundo actual português. Todos somos filhos da Inquisição. Os nossos antepassados transmitiram-nos pelo sangue o medo e, mais do que o medo, a censura automática a tudo quanto seja menos certinho, a qualquer desvio da norma geral, em suma, à afirmação de uma personalidade original. Na aliança do medo e da autocensura emerge a inveja, essa hiena da alma.

 

António Telmo

 

(Publicado em A Terra Prometida, 2014)

EDITORIAL. 02

23-02-2015 11:56

Uma comoção juvenil profundamente conturbada

Há coisas do Diabo! Os anúncios, quase simultâneos, nesta página, no final do ano passado, da participação de António Carlos Carvalho no Congresso Internacional sobre Judeus e Cristãos-Novos no Mundo Lusófono, a ter lugar em Dezembro próximo, com a comunicação «Um filósofo em busca das raízes: António Telmo, marrano», e da edição do livro Um António Telmo: Marranismo, Kabbalah e Maçonaria, de Pedro Martins, parecem ter provocado, nalguns meandros prostrados em perpétuo suspiro pela efígie do Professor António de Oliveira Salazar, uma comoção juvenil profundamente conturbada, que se diria incrédula.

Sobre o marranismo de António Telmo, remetemos piedosamente as almas ora desvairadas para escritos seus tão vários, no tempo e na motivação, como sejam as suas páginas autobiográficas sobre Arruda (de presumível factura nos anos 70), o ensaio “As Tradições Heterodoxas da Filosofia Portuguesa”, de 1987, o artigo “Sampaio Bruno, o «Encoberto», de 1989, ou a carta prefacial ao livro Barros Basto – A Miragem Marrana, de Alexandre Teixeira Mendes, escrito em 2007, três anos antes do filósofo partir.

Piedosamente ainda, lembramos a estas almas penadas pelo desvario antissemita tudo quanto Sampaio Bruno escreveu n’O Encoberto a propósito do judaísmo e deixamos-lhes também, já de seguida, a transcrição de dois parágrafos de A Literatura de José Régio, de Álvaro Ribeiro, mestre dos mestres de António Telmo pouco ou nada afeito às «barbaridades cartaginesas da Santa Inquisição» que, em carta para o mesmo Telmo, escrita ainda em vida de José Marinho, reputava o discípulo como o seu «melhor amigo»:

 

A nossa tese, recebida da filosofia da história que entre nós foi escrita por Sampaio Bruno, é a de que a principal causa da decadência dos povos peninsulares está maravilhosamente descrita no livro O Encoberto (1904). É portanto uma interpretação religiosa, referida ao primeiro sistema de filosofia da história, seja o providencialismo messiânico da Bíblia. A Península Ibérica decaiu por consequência da expulsão dos Judeus.

A influência cultural deste povo de monoteísmo transcendente, que não reconhece representação nem representante de Deus na Terra, povo de doutores fiéis a uma Doutrina que não impõem por métodos de proselitismo, mas, que defendem pelo sacrifício da própria vida, povo para o qual são pecados mortais só o homicídio, o adultério e a idolatria, povo que considera a aliança como padrão da vida religiosa, que antecede de um ritual belo, sério e santo o próprio acto conjugal, que santifica o sábado como dia de festa da família, que pratica a oração com simplicidade, modéstia e alegria, que espera pela era messiânica de redenção da humanidade, a influência de tal povo, repetimos, ainda não foi assaz reconhecida por etnógrafos e historiadores. Este povo que vive, respeita e pratica um admirável preceito, segundo o qual «o pai que não manda ensinar um ofício ao seu filho faz dele um pedinte ou um ladrão», trabalhando destituído de instituições políticas e fixado na vida civil ou privada, foi o educador filosófico e religioso de outros povos migrantes, exerceu uma influência civilizadora que permaneceu latente e oculta depois de ser expulso da Península Ibérica. Este factor é muito mais importante do que aquele que aparece sublinhado pelo materialismo histórico, ou seja, a falta de tais homens no comércio, na indústria e na agricultura, ocupações que poderiam ser igualmente distribuídas pelas várias camadas da população católica.

 

Como não é de supor que estas linhas de Álvaro Ribeiro tenham sido escritas por Jorge de Sena, esperamos, com sincera boa vontade, que os dislates aleivosos fiquem por aqui. Foi por estas e por outras que o Projecto António Telmo. Vida e Obra foi criado…   

INÉDITOS. 44

20-02-2015 11:56

Uma esplêndida figura[1]

Henrique Barrilaro Ruas, na sua monumental edição d’Os Lusíadas, achou por bem não incluir na bibliografia as minhas “invenções”. Como sabe quem as conhece, pus o poeta a dialogar com esoteristas e sábios persas e terei por isso de reconhecer que o desnacionalizei e descatolizei, criando uma esplêndida figura, mas antipática para aqueles que no dia 10 de Junho a põem a significar Nação e Igreja de mãos dadas com a Democracia.

 

António Telmo 

 


[1] Título da responsabilidade do editor.

 

DOS LIVROS. 34

18-02-2015 11:33

Luís de Camões é verdadeiramente o Gama

A identificação de Luís de Camões com Vasco da Gama necessita de ser fundada. Não é, porém, difícil ver que Os Lusíadas, não deixando de ser os Lusitanos, descendentes de Luso, como Fiéis de Amor, têm em si o Luís, porquanto o poema é o cantar épico do Luís (de Camões), da sua navegação material e imaterial. Luís como Luso são duas formas da palavra luz.

Por outro lado, n’Os Lusíadas, se declara que o homem Vasco da Gama, se o compararmos a César e a Alexandre, a Marco António e a Augusto tendo, como herói, a mesma bravura, era nulo no domínio do Espírito. Não tinha «na mão uma espada e na outra o livro», como de si diz Camões. Era rude, áspero e minguado de engenho.

Explicitamente, na estrofe 99 do Canto V, afirma ser ele, o Gama, pouco amado das musas que inspiram Os Lusíadas, das Tágides e de Calíope. Daí podermos afirmar que o Vasco da Gama do Poema não é, senão por empréstimo, o homem Vasco da Gama.

Luís de Camões também fez materialmente a mesma viagem e, como o outro, sofreu as inclemências do mar. Como é possível, e mais do que possível, ver no «herói» um Cavaleiro do Amor, um Adepto, somos forçados a pensar que o nauta e a sua navegação, no que significa de iniciático, são a expressão da própria vivência do Poeta naquele domínio da alma em que a contemplação e a acção se reflectem uma na outra. 

Posto isto, o caminho fica aberto para identificar Luís de Camões com também o Adamastor, como propusemos já. Luís de Camões é o Gama e é, no seu aspecto terrível, o Adamastor. Não se deve passar por alto aquilo que dele pensavam os seus contemporâneos, que era possuidor de uma natureza extraordinária, que tinham por terrível. 

 

António Telmo

 

(Publicado em Luís de Camões, 2010)

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