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CORRESPONDÊNCIA. 22

27-04-2015 20:17

CARTAS DE ANTÓNIO TELMO PARA ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO. 05

 



Estremoz, 21 de Agosto de 1990

 

De António Telmo a António Cândido Franco

Vale!

 

Se falasse consigo sobre o belo livro de versos[1] que me enviou não me limitaria a dar-lhe os parabéns, mas teria de fazer-lhe algumas perguntas para poder, consoante as respostas, entrar deste ou daquele modo na intimidade dos seus poemas. Todas as perguntas convergiriam para esta: Sendo aquilo a que v. chama cosmologia ôntica ou ontologia cósmica duas expressões germânicas da velha relação do microcosmos com o macrocosmos, a direito ou no avesso, gostaria de saber se essa relação é actualizada e vivida no momento em que escreve ou se, antes, dela teve maior ou menor experiência. Eu sei que o leitor não deve meter o nariz onde não é chamado e o que lhe é entregue como o primeiro dado é o poema. Mas sei também a diferença que há entre um médio (medium) literário com a sua tripeça verbal que fabrica as metáforas de sete léguas e um espírito que é activamente livre na experiência daquela relação. Seja como for, já li três vezes o seu livro, fascinado pela sua beleza e profundidade. Envio-lhe um grande abraço. Até um dia destes.

 

                                                                       Seu

                                                                                  António Telmo

 



[1] Nota do editor – António Telmo refere-se, por certo, ao livro de António Cândido Franco Corpos Celestes, Lisboa, Limiar, 1990.

 

UNIVERSO TÉLMICO. 15

23-04-2015 14:59

Na edição de hoje do jornal Raio de Luz, mensário de opinião e informação do concelho de Sesimbra, Pedro Martins, na sua habitual coluna, escreve sobre o marranismo de Herberto Helder, à luz de premissas que partem de António Telmo.

Lad

Pedro Martins

 

O primeiro poema que li de Teixeira de Pascoaes devo-o ao poeta Herberto Helder. Descobri-o, pelos meus dezoito anos, nas páginas de Edoi Lelia Doura, a antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa que o escritor organizou para a Assírio & Alvim, casa editora que já por esses dias dava à estampa as obras do mago do Marão.

Deu-se o caso em Lisboa, no quarto de estudante onde o António Ladeira então se demorava pela capital, na Rua Marquês de Sá da Bandeira, paredes meias com a Fundação Calouste Gulbenkian e o seu jardim deleitoso de sombras, à distância de alguns passos no passeio fronteiro.

Certo dia, a senhoria do Ladeira, Dona Hortense, dona de casa e da casa, sólida senhora já avançada na idade, pasmou num ai de credo quando me viu irromper, em tropel, qual avejão, pelo corredor dos seus aposentos na companhia do seu jovem hóspede. Revestido de um pano preto, quadrilátero que na praxe lisbonense de Direito, nascida, anos antes, de um levantamento de rancho na cantina, fazia as vezes do traje académico coimbrão, mais lhe terei sugerido o causídico de toga que ainda o não era do que o sofrido estudante de leis cumprindo a agrura lutuosa das penas com que ensaiava esvoaçar. Nos dias subsequentes, a memória da minha presença ecoava ainda entre aquelas paredes, sob a fórmula respeitosa observada pela Dona Hortense, sempre que me mencionava ao António Ladeira: “Aquele seu amigo adbogado...” Não estou lembrado de que a proprietária trocasse o v pelo b ao pronunciar a última palavra. Pode muito bem ter sido o ponto de pilhéria que o Ladeira, esse marau de fina inventiva, acrescentava então ao conto, como por certo competia ao escolar irreverente de Estudos Portugueses que, à distância de alguns quarteirões, cursava com distinção Línguas e Literaturas Modernas na Universidade Nova, à Avenida de Berna.

Por essa altura, estávamos ainda todos à procura dos caminhos. O Ladeira trocara a Junqueira pela Senhora de Fátima, mandando às malvas a Comunicação Social. No DN Jovem, editado pelo generoso Manuel Dias, despontava já o meu amigo letrado como um dos mais promissores poetas da novíssima geração. A promessa, de resto, haveria de se cumprir à distância de um oceano, só que o país persiste desatento. Pela minha parte, versado no Eça haurido no sótão da Quintinha, escrevinhei in illo tempore algumas prosas miméticas para o imberbe suplemento do Notícias, imitando com denodo os escritores então em voga, de Saramago a Lobo Antunes. A coisa não deve ter saído mal de todo, pois a um primeiro prémio logo se me sucedeu um segundo, para não mais repisar o pódio ilusório. Sáfara, a lógica jurídica, em infusões assépticas, derribou-me o estro, mas da bravata resta ainda um escrito laureado na Antologia do DN Jovem, vez primeira que me vi em volume.

Do que eu e o Ladeira então fazíamos nestas páginas do Raio de Luz, já lá vai um quarto de século, fica a promessa de escritura para crónica futura, que bem virá a calhar neste ano de quarentena. Na verdade, releva da melhor prática que o plumitivo aprovisione temas no alfobre da sua inspiração e para mais, ao contrário do que lhe é costumado, o bom do António Marques meteu-se em empenhos quanto ao destino desta minha narrativa. Pelo correio electrónico, indagou-me há dias se eu não quereria escrever sobre Herberto Helder. Não lhe soube dizer que não.

O poeta morrera havia pouco e o nosso director topou-lhe o obituário na página digital do Projecto António Telmo. Vida e Obra. Façam o favor de a visitar. Como então ali se escreveu, o filósofo de Arte Poética tinha Herberto em altíssima conta. A par de Fiama Hasse Pais Brandão, com quem desvelou o Camões gnóstico e cabalista, via nele uma inspiração contínua. E, em preito de homenagem ao escritor, seguia-se, nessa lembrança electrónica, a publicação do final de um estudo que dediquei ao autor de Os Passos em Volta, perspectivando-lhe este genial livro de contos à luz da condição marrana que, até prova em contrário, presumo ser a sua. Poderão encontrá-lo, lá para o fim de Maio, no meu próximo livro, passe a publicidade.

Será bem pouco, reconheço, como credencial para a evocação de um dos maiores poetas portugueses das últimas décadas. Meu caro António Marques, neste ponto deveria simplesmente passar o chá ao António Ladeira, para aqui recordar uma das magníficas expressões com que o António Cândido Franco, n’O Estranhíssimo Colosso, nos dá a beber das suas fontes. Entregava-lhe o bule fumegante e, sem mais, chegava-lhe a minha xícara, pois quando o Ladeira partiu para a América, pouco tempo depois da nossa histórica entrevista com o Agostinho da Silva, já ele levava fisgada, no bornal, a dissertação de doutoramento sobre Herberto Helder que brilhantemente viria a concretizar em Santa Bárbara, na West Coast. Qual Rodrigues Soromenho do século que passou, voltou costas à pequena Califórnia que no Caneiro se arrima a Argéis, acenou longamente à Fortaleza, por uma última vez mirou na lonjura o farol sinalizando a doca e, qual seta despedida, assentou praça no outro lado do mar, nessoutra Califórnia onde as praias são miríade. Sei-o agora numa universidade do Texas, depois de haver leccionado por Yale, numa passagem meritória que a minha colecção de t-shirts, graças à sua generosa lembrança, ainda hoje permite atestar.

Vai a crónica a mais de meio e dou-me conta de que ainda mal falei de Herberto. Não é o mesmo que falar mal, nem eu disso seria capaz em tratando-se do poeta admirado da Última Ciência, mas pressinto que o leitor, se acaso não demandou outras paragens do nosso jornal, já topou à légua este meu jeito esquivo e atrapalhado de me furtar à incumbência que aceitei.

Bem vistas as coisas, quem, inocentemente, me meteu neste imbróglio foi o António Cândido Franco, e por isso me parece de justiça trazê-lo de novo à colação, um mês após a exaltação do Colosso que nos ofereceu. Há mais de dois anos, pediu-me colaboração para A IDEIA, revista de cultura libertária que então passou a dirigir. Tinha em mente dedicar dois números ao surrealismo em Portugal e deu-me a escolher entre Herberto Helder e Ernesto Sampaio. Fui pelo primeiro. Estudei-lhe Os Passos em Volta e, para minha surpresa, deparei-me nessa prosa mágica com um poeta de funda religiosidade, aquela que se cumpre na demanda que da descrença vai à crença, para, aqui e ali, se fixar num humilde agnosticismo. Bem sabendo que Herberto, tal como Telmo, descendia de gente de nação, não me custou ver nesse seu livro autobiográfico o testemunho do judeu errante, inteligente e inquieto como o Santo Ofício os perscrutava. Homens assim respeitam-se, e muito, ainda que não pensem como nós.

António Telmo considerava, pelo curso dos séculos, vários tipos de marranos ou cristãos-novos. Os que degeneram no fanatismo religioso, modo odiento e violento de a sua dissimulação adquirir segunda natureza; os que, pela prática automática, mecânica, sem crença, do ritual a que o novo e imposto credo os obriga, desembocam no materialismo ateu; os que brava e ocultamente persistem no culto velho, refinando pela metáfora a hipocrisia diplomática a que se veêm forçados; e os que superiormente fazem a síntese dos dois credos antagónicos, ambos tidos por verdadeiros e sublimes. É este o caso do próprio Telmo, como é também o de Agostinho.

Mas o filósofo admite a possibilidade de outros resultados. Será o caso de Herberto, numa falta de fé que a si mesma se procura superar pelo exercício da metáfora. Ocluso, jacente, soterrado, o seu judaísmo emerge do subconsciente pelo sortilégio das imagens exaltadas que nos dizem palavras como terra, corpo, mulher, mãe, vida, casa, quarto. Tudo isto transportam Os Passos em Volta, numa deriva circular que em espiralada ascensão se soergue. Estará também, admito, na sua poesia em verso, mas para dessa nos falar falta-nos aqui o António Ladeira.

Se há frase de Herberto que sempre me fascinou pela sua estranheza é aquela em que nos diz que um poeta está sentado na Holanda, a mesma que, para todos os efeitos, nos levou Espinosa, filósofo que não poeta, e onde o nosso Sampaio Bruno, fundador da filosofia portuguesa, conheceu a metanoia transfiguradora do seu pensamento, à sombra presumível da sinagoga de Amesterdão. Sempre que releio essa frase, vejo nela um ciclope sentado à beira do mapa, imaginando, lá para o Setentrião, a faixa de perímetro que os Países Baixos resgataram ao mar.

Uma figura assim majorada resulta inverosímil, colossal. Diz bem com a grandeza de Herberto, pois que por ela, afinal, de si ele nos fale. A mesma grandeza que pressenti no torvelinho cósmico do “Vento do Espírito”, as primícias de Pascoaes que um dia, em Lisboa, como no princípio vos contei, o poeta da Madeira me proporcionou.

E eis que, de um mês para o outro, em tempo de anões, fomos de um colosso para um gigante. A passos largos, como os de Agostinho, e em volta, como os de Herberto. Às voltas tenho eu aliás andado com esta minha narrativa, na esperança de que se avistem, no contador, ao fundo do ecrã, as mil e quinhentas palavras da ordem. Não sei se o nosso director se vai dar por satisfeito, mas não lhe soube dizer que não. Para o Herberto, meu caro Marques, melhor seria que batesses à porta do nosso amigo americano. Ele sabe da poda. Parece que este ano vem por aí, com alguma demora, e talvez então te saiba falar do que eu agora não pude escrever. Estou a vê-lo, sorriso leve nos olhos, a parodiar-nos, qual Roger Moore, na esplanada do Café Pipau: My name is Lad. Tony Lad.     

UNIVERSO TÉLMICO. 14

22-04-2015 09:31

SeZimbra

Pedro Martins

É conhecida a oposição de António Telmo ao acordo ortográfico. O filósofo sabia bem os riscos de dementação que a sua aplicação envolveria. Infelizmente, vai-se vendo todos os dias que assim é. Mas há motivos para ter esperança.

Na era fria e desoladora da electrónica, recebi ontem uma carta. Anónima. Sem remetente, claro está. Nada que me apoquente.

Fui porém compensado pelo esmero do lavor depositado na identificação do endereço do destinatário. Em lugar da palavra Sesimbra, alguém escreveu Sezimbra. Com Z na sílaba do meio. Mas Sesimbra com o Z justiceiramente traçado em cruz, à Zorro. Um Z gótico. 

Ora Sesimbra, tal como Sintra, já se escreveu com C. Na inicial maiúscula, claro está. Nessa altura, o nome da terra grafava-se Cezimbra. Cá está o Z. Cá está o Zorro.

Mais tarde, terá evoluído para Sezimbra. Com o Z de novo. De Zorro. Claro que estas mutações não são lineares. Envolvem períodos de hesitação na grafia. Levou tempo a que Sesimbra, finalmente, se fixasse na fórmula actual, escrita com os dois SS quais serpentes a lembrarem a sombra ominosa do mal.

Vejo assim que o remetente, apesar do seu anonimato, optou por grafia mais benévola. E, sobretudo, bem mais saborosa, no jeito quase arcaico com que deu corpo ao nome da capital da Arrábida. Por isso lhe estou grato. Por este belo e nobre gesto de resistência.

Como quer que seja, já Almada Negreiros, pelo final dos anos 60, consoante nos conta António Telmo, que então o visitou em Lisboa com Rafael Monteiro, asseverava que Sesimbra era tão bela que nem uma bomba atómica a poderia destruir. Agostinho da Silva, que via na Piscosa um microcosmo de Portugal, disse de outro modo a mesma coisa. Chamou-lhe o lugar onde se não morre...

INÉDITOS. 51

21-04-2015 21:54

Que o final de A Verdade do Amor, de António Telmo, esteve para ser outro, ficáramos já a sabê-lo por um trecho das suas Páginas Autobiográficas, parte integrante do III Volume das Obras Completas do nosso patrono, a sair a lume em Junho com a proverbial chancela da Zéfiro. No espólio télmico conserva-se, inédita, a primitiva versão da última cena, que agora damos a conhecer ao leitor.

Última cena

 

Ao meio, arde uma fogueira. É noite de São João. Um aluno entra de capa e batina, despe-se e lança-se para as chamas que se levantam, alegres. Seguem-se outros até doze. No lado direito da cena, sentados em grandes cadeiras, vestido de negro, um coro de sacerdotes católicos.

                                                               Coro, levantando-se  e os braços solta uma exclamação prolongada e soturna de indignação e espanto. 

Os estudantes dançam em volta da fogueira. Dançam com ela e saltam-na. Surge uma rapariga lindíssima. É a Natália. Diz:

“Por este rito queimamos o velho hábito secular de andarmos vestidos de preto, como se Cristo, apesar de ter ressuscitado, continuasse eternamente morto. Vede! Eu sou a filosofia, como a ensina Leonardo. Quem me ama pode andar vestido de luto?

“Triste e pesada como uma cruz é a religião de nossos pais.”

Alguns rapazes pegam nela e atiram-na por cima das chamas para que outros a recebam nos braços. Ela vem para a frente dançar com um de cada vez. Começa a soar um harmónio.

                                                                              Uma voz canta:

 

                                                                                          1    

                                                                            Como é bom dançar

                                                                            Ao som do harmónio

                                                                            Sem pensar

                                                                            Que o toca o demónio,

                                                                            Ter Lilith por par

                                                                            No adro da igreja

                                                                            E todos a dançar

                                                                            E ninguém com inveja.

 

                                                                                           2

                                                                            Tão contente está Lilith

                                                                            No seu trajo de campónia

                                                                            Que se esquece que é demónia

                                                                            E enteada de Afrodite.

                                                                            Ao som do harmónio

                                                                            Todos batem palmas…

                                                                            Está tão feliz o demónio

                                                                            Que se esquece das almas.

 

Cala-se o harmónio e a voz prossegue:

 

                                                                                           3

                                                                             Ah! Mas fora da dança

                                                                             Renasce a inveja.

                                                                             Calou-se o harmónio

                                                                             No adro da igreja.

                                                                             Findou a festança.

                                                                             Só há o demónio

                                                                             E a demonia.

                                                                             E esta balada

                                                                             Na noite calada

                                                                             Na noite vazia.

 

        CORO de sacerdotes

Ai!, ai!, ai de nós!

 

António Telmo

UNIVERSO TÉLMICO. 13

21-04-2015 10:44

CARTAS DE AGOSTINHO DA SILVA PARA RUY VENTURA. 01

1

[carimbo do correio – Lisboa, Patriarcal, 30.4.93; folha A4]

 

            27.4.93

 

            Meu prezado Amigo

            Sua carta, tão preciosa por seus originais, chegou mesmo e muita alegria me deu, não só pelas páginas sobre Régio (1) como pelo seu próprio e excelente Poema (2). Junto vão as três Folhinhas de agora. Se algum dia vier por Lisboa terei muito gosto em que nos conheçamos e me pode avisar pelo telefone 3424036, de que chegará. De novo, muito obrigado e um abraço a nosso Nicolau Sayão [sic] (3).

            Afectuosamente do

            A.

____________

 

Notas de Ruy Ventura:

 

(1) Referência a um texto sobre o autor de Fado, lido por mim aos microfones da Rádio Portalegre em data que não posso precisar.

(2) Não recordo que poema terei enviado a Agostinho da Silva (talvez esteja no seu espólio, à guarda da Associação que tem como incumbência o estudo e a divulgação da sua vida e da sua obra). Será certamente um daqueles que depois incluí no meu primeiro livro, Arquitectura do Silêncio, galardoado em 1997 como o Prémio Revelação de Poesia, da Associação Portuguesa de Escritores, e editado em 2000 pela Difel.

(3) Nicolau Saião (Monforte, 1946), poeta e pintor relacionado com o movimento surrealista, com quem coordenei o suplemento cultural Fanal, editado no jornal O Distrito de Portalegre, do qual saíram 36 números entre Abril de 2000 e Junho de 2003. Foi ele quem me incitou a escrever, pela primeira vez, a Agostinho, bem como a Matilde Rosa Araújo, de quem fui amigo até à hora da morte. 

UNIVERSO TÉLMICO. 12

21-04-2015 10:30

Depoimento sobre Agostinho da Silva*

Ruy Ventura

 

Não tinha ainda vinte anos quando me carteei com Agostinho da Silva. O intercâmbio epistolar não durou mais do que seis meses. Aprendiz de professor que eu era e, sobretudo, noviço na irmandade (por vezes desavinda) dos que escrevem poesia, os seis bilhetes e pequenas cartas que dele recebi – acompanhados por um número apreciável de “folhinhas”, com poemas seus, traduções de poesia estrangeira e cartas-circulares (que mais poderiam chamar-se “sagitárias”, sendo elas setas de saber) – foram, todavia, instrumentos paráclitos (se entendermos este adjectivo como sinónimo de “espicaçador” espiritual, conforme nos ensinou, com rara penetração, o grande poeta inglês Gerald Manley Hopkins). Obrigaram-me a dar crescimento à semente que em mim havia. Quanto devo a Agostinho por isso! Nunca cheguei a privar com ele. Por timidez e por distância física, nunca correspondi ao seu convite. Perdi? Ganhei? Só Deus sabe…

Se hoje me distancio de várias facetas do seu ideário, reconheço ainda assim neste estranhíssimo colosso (como diria o seu grande biógrafo, António Cândido Franco) um dos maiores escritores e pensadores que Portugal houve na sua História. Por isso mesmo, recorrendo a uma parte do seu pensamento, me servi da sua inspiração na concepção, com Nuno Matos Duarte, do projecto da Devir, revista ibero-americana de cultura cujo primeiro número sairá até final do Verão.

Tratando-se de textos além da circunstância aqueles que me escreveu, na sua caligrafia quantas vezes a roçar a ilegibilidade, julgo útil voltar a divulgá-los, depois de terem visto a luz da imprensa pela primeira vez nas actas do colóquio Agostinho da Silva e o Espírito Universal, ocorrido em Sesimbra a 30 de Setembro de 2006. Junto-lhes agora algumas notas, brevíssimas, para que alguns passos sejam melhor entendidos.

 

Vila Nogueira, cerca de frei Agostinho da Cruz,

21 de Abril de 2015

____________

* Título da responsabildiade do editor.

CORRESPONDÊNCIA. 21

19-04-2015 14:48

CARTAS DE ANTÓNIO TELMO PARA ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO. 04

Estremoz, 9 de Dezembro de 1995

 

Querido Amigo

 

Pede-me para lhe escrever e eu, que nunca lhe falei do seu belo trabalho in Galicia quando passou por Estremoz depois de tanto tempo passado sobre o seu envio, acordo agora com o carteiro a bater-me à porta trazendo-me a mais bela e inteligente carta que em minha vida recebi, a ao Afonso Botelho, ao filósofo exemplar que sempre me lembra Rabelais e o misterioso oráculo. Ao mesmo tempo, vieram um opúsculo de Francisco Soares (magnífico da filologia para a filosofia) e um livro de Luís Pacheco satirizando admiravelmente a vida literária.

Há muito tempo que não escrevo para gáudio dos pequenos diabos que têm passado pelo meu destino. Vai-me desculpar de lhe vir tomar o tempo falando-lhe do que der e vier sobre o assunto da sua carta. Só escrevendo poderei talvez ficar a saber o que eu penso sobre a saudade, estimulado pelas suas palavras de apreço sobre quanto deixei na Gramática. Faço, porém, minhas as linhas que escreveu no primeiro parágrafo da página 5 da sua Carta. Que felicidade a sua em saber como ali escrever tão bem! É tal e qual como diz o que se passa comigo, só que não o sei dizer assim. Elas, essas linhas, servem-me porém como o serviram a si para que não se pense que pretendo ensinar de cátedra.

Começo por lhe comunicar uma coincidência impressionante que descobri depois de ter sido publicada a Gramática. O mundo da Formação (que os cabalistas assim designam) é o que corresponde na árvore dos fonemas ao triângulo das líquidas:

 

          ~

N__________M

          L

 

O R, líquida também, mas vibrante por excelência, corresponde ao plano da Fabricação. Está lembrado, não é assim?

Na terminologia de René Guénon, diferente da da Cabala, o R corresponderia ao mundo grosseiro, o M, o N e o L ao mundo subtil. Os dois mundos que se lhe sobrepõem são, no mesmo Guénon, os mundos informais, dado que só os dois últimos se caracterizam pela forma. A coincidência é a seguinte: na árvore dos fonemas imaginada por mim, o M, o N e o L estão sob o til, a pura ressonância (sub til). Isto, que descobri depois, é um dos sinais de que a árvore está certa com o que ela significa, como me foi um outro sinal, também só depois de ela ter nascido no espelho do meu espírito, o facto das iniciais de Jesus Cristo (em grego, língua dos Evangelhos, o I e o X) terem, por necessitação matemática, o seu lugar em Tiphereth, sephira donde irradiam todas as outras menos a décima, e que é o centro ou coração do Universo.

Pedi ao desenhista que compôs a capa do meu livro que ali pusesse a vermelho as três ressonâncias subtis em caracteres hebraicos. Na língua portuguesa, esta tríade com o R é constituída pelas consoantes que são final de palavra. Éden, som, sal, ir. O S, o Z e o X também aparecem na mesma posição, mas sem formar ditongo. São puros sopros. Têm, por isso, de ser interpretados diferentemente. Não são crepusculares ou outonais. O Câmara Júnior é o único linguista que vi classificar como ressonâncias os fonemas sob o til.

O mundo subtil ou intermediário entre o mundo grosseiro e o munda da inteligência é, como sabe, o reino da imaginação. É ali que a imagem reflecte e recebe a ideia, é dali que a imagem desce a formar o corpo, movimentada pela energia física que o R, a vibrante, representa. A Física, enquanto ciência, não vai além deste plano, a da energia enquanto força física. Os ocultistas, pretendendo estar de acordo com a ciência, não se cansam de proclamar que tudo é energia, que esta é a noção das noções, a pedra filosofal. Só a Arte Poética ou simplesmente a Poética pode perceber e activar essa energia bem mais subtil que um iluminado francês caracterizou como a do Mundo Imaginal.

E que nós devemos caracterizar como a da saudade, ali onde se casam o Céu e a Terra, ali “onde a Terra se acaba e o Mar começa”. Veio-me um dia a ideia de que Portugal é um barzakh, um entre-dois, nem isto nem aquilo, mas onde isto e aquilo transitam de um para outro. País da saudade e da imaginação intermediária entre o corpo e o espírito. A saudade é assim a actividade essencial da alma.

Pede-me o meu Amigo para dar opinião sobre o modo como na sua carta fala de Álvaro Ribeiro, quando, entre outras certeiras asserções, refere que “nas poucas vezes em que ele se dignou tratar do problema da saudade o tenha sempre abordado como um problema da solidão”, explicando depois: “quer dizer como um problema de filosofia existencial, problema a que ele era pouco sensível, não que a filosofia existencial não lhe pudesse interessar mas porque à solidão preferia a convivência, antepondo assim o amor à saudade.” Eu direi, divergindo daqueles que antepõem a saudade ao amor, que ela e ele são o anverso e o reverso da mesma relação, quando essa relação se dá totalmente. Vejo assim: a saudade é o amor em que o feminino está ausente e a sua forma presente, o amor é a saudade em que o feminino está presente e a sua forma ausente; naquela vive-se a ausência do feminino na forma que o torna presente, neste vive-se a ausência da forma no feminino que a torna presente. E esta duplicidade que ata os mundos ou, noutras palavras, que faz que o mesmo mundo seja simultaneamente espírito e carne não sendo nem um nem outra.

É deste modo que me parece possível pôr alguma objecção ao Álvaro Ribeiro, quando antepõe o amor à saudade. E digo só deste modo porque se enganam quantos interpretam o racionalismo do Álvaro Ribeiro como aristotelismo, pegados à falsa ideia de que o aristotelismo se opõe ao platonismo como um pensamento da Terra perante um Pensamento do Céu. Para Álvaro Ribeiro é na contemplação que reside o princípio da filosofia, tal como para José Marinho, mas, enquanto o primeiro haure na contemplação os princípios e as formas, isto é, as ideias que a razão pensa e transforma em acção, o segundo vai nela colher os movimentos que nos dêem asas para sair do mundo. Daqui que um anteponha o amor á saudade e o outro a saudade ao amor, não esquecendo que ambos são uma relação do masculino com o feminino. Aqui também, como para Portugal, temos que pensar um entre-dois.

Eis o que me foi dado tirar da sua carta. É muito? É pouco? Não é nada? Talvez bem mais decisiva do que me foi dado pensar a partir dela é a impressão que recebi ao ler a sua carta, ao sentir nela a expressão de uma das mais belas almas que me foi dado encontrar ao longo da vida. Certas frases dela fizeram nascer em mim uma emoção quase divina, como, por exemplo: “…a palavra cujos sons são luz visível”, “signo sumptuoso, que cauteriza a cisão babélica”, “ a alta e montesina nascente de Pascoaes”, “água boa e pura, de limpidez imperturbável”.

Meu caro confrade no neoplatonismo, que vê palavras e ouve luzes, estou feliz por lhe enviar esta carta na quadra de Natal, por lhe poder enviar os votos das maiores felicidades em modo litúrgico.

Um abraço do seu amigo e admirador

António Telmo

«OS MEUS PREFÁCIOS». 11

18-04-2015 11:31

PREFÁCIO A ARTE E TRANSCENDÊNCIA, DE MARIA DE LURDES PELICANO[1]

Ao escrever este prefácio, conhecia Maria de Lurdes Pelicano apenas pela voz, de a ouvir ao telefone, e pelo vozear, de ler os seus transcendentes poemas. Quando não vemos, julgamos não conhecer, tão habitual e dominador é o sentido da vista que até, quando dorminos, se desenha no sonho a paisagem das imagens. O ouvido, porém, se o sabemos utilizar metafisicamente (e é só não nos esquecermos de que também existe em nós), é bem mais atento ao essencial.

Quando lemos, conhecemos pela vista ou pelo ouvido ou simultaneamente pelos dois? É que o corpo da palavra, na sua dupla natureza oral e escrita, emerge uno da treva e do silêncio, é luz que soa e som que ilumina, ela é portadora da única sinestesia que está ao alcance de toda a gente. O espaço revela-se-nos pela vista; o tempo pelo ouvido. Como observou Aristóteles, o nosso desejo de conhecer utiliza a vista para determinar semelhanças e diferenças, o ouvido para aprender. O que é que aprendemos com este Florilégio Poético de Maria de Lurdes Pelicano? Aprendemos a ser atentos à desgraça da humanidade neste fim de ciclo e ao que há em nós capaz de nessa desgraça viver em esperança. Ambas as coisas em perfeita simultaneidade, como a Cruz que se alia à Rosa. O título é tão belo – Arte e Transcendência – que se eu não tivesse ouvido Maria de Lurdes Pelicano pelo telefone seria na mesma atraído para conhecer o livro e não me sentiria logrado, antes exaltado, depois de o percorrer, por sentir na minha alma uma diferença que não havia antes. Perante os seus poemas, tal como me aconteceu lendo Dalila Pereira da Costa ou Natália Correia ou Maria Filomena Molder, e perante esta desgraça de uma humanidade feita pelos homens, não pude deixar de lembrar a profecia de Joseph de Maistre de que “a salvação virá pelas mulheres”, assim no plural sem alegoria ou sofisma.

 

António Telmo



[1] Maria de Lurdes Pelicano, Arte e Transcendência: florilégio poético, Edições Margem, 1997, pp. 9-10.

 

VERDES ANOS. 12

17-04-2015 12:40

Da cultura portuguesa ao romance francês[1]

 

A tese defendida por João Gaspar Simões, em artigo saído no Diário Popular com o título “O Pensamento Poético de Teixeira de Pascoais”, segundo a qual a originalidade, isto é, as origens ou as fontes da verdadeira poesia residem no pensamento do sobrenatural, como exemplifica através de Victor Hugo, Rimbaud, Milton, William Blake, Guerra Junqueiro e Fernando Pessoa, é tese tão válida para a poesia como para os restantes géneros literários. Intuiu, além disso, muito bem que a realidade invisível que designa por «pensamento poético» se apreende e conhece por meio da analogia. À luz destes princípios poéticos torna-se fácil explicar a frustração dos escritores da Presença e verificar que, se José Régio constitui uma excepção, o motivo reside em só este poeta ter sido um pensador do sobrenatural.

Entre os géneros literários o romance é aquele que mais depende da antropologia. Parecem, todavia, ignorá-lo todos quantos baseiam o seu juízo de valor acerca do nosso romance na comparação da sociedade portuguesa com as sociedades estrangeiras. Pela antropologia se caracterizam as filosofias dos povos, e, por conseguinte, é lícito supor que só o predomínio da sociologia positivista na crítica literária permitiu negar a possibilidade do romance português.

O realismo, também chamado naturalismo, não é mais do que a subordinação da literatura ao positivismo, embora devesse ser etimologicamente adequação à realidade ou imitação da natureza. Quando J. K. Huysmans, depois de uma fase de obediência ao realismo, escreve À Rebours, livro pelo qual se reatava a autêntica tradição francesa do romance, derivada do ensino do português Pascoal Martins, Emílio Zola manifestou viva discordância. Como Zola, protestou unanimemente a multidão dos críticos. Somente Barbey d’Aurevilly soube antever os efeitos revolucionários do livro. Huysmans e Barbey d’Aurevilly formam com Léon Bloy uma tríade de romancistas odiada, por terem denunciado repetidamente nos seus livros a aliança secreta que o positivismo estabeleceu nos três sectores principais da sociedade francesa: – na política, na religião e na literatura. Assim, cada um destes escritores propôs-se demonstrar quanto é falso o preconceito de que a literatura é expressão da sociedade, pois se o chamado realismo soubesse levar ao limite este seu princípio condutor, sondando a vida social parisiense nas suas zonas mais cobertas, logo a sociologia se dissolveria para mostrar o princípio do mal, isto é, o príncipe das trevas ou o príncipe deste mundo.

Quem compare Marcel Proust com Barbey d’Aurevilly, André Gide com Huysmans, Paul Bourget com Léon Bloy poderá então avaliar a grandeza e a força do malefício que a Presença fez à cultura portuguesa e sobretudo à cultura francesa, ao esconder os seus maiores valores, divulgando outros para os quais facilmente encontramos equivalência na nossa literatura. Não caiu nesse erro Teófilo Braga, quando, num dos volumes das Modernas Ideias na Literatura Portuguesa, chamou a atenção para Balzac. Sem dúvida que encontrou, também, a resistência dum certo sector da mentalidade nacional, representado, então, por Amorim Viana, que algures se refere com desdém ao autor do Louis Lambert. Teófilo Braga, temperamento impestuoso e irascível, impreca violentamente o deísta. Torna-se interessantíssimo entender como é o positivista quem defende o pensador duma filosofia heterodoxa que foi Balzac.

Em nenhum outro romancista como no autor de Serafita podemos surpreender tão bem as origens que transmitem originalidade ao romance francês. Discípulo de Claude de Saint-Martin, conforme mostrou Ernst Curtius, num livro muito divulgado em Portugal, Balzac filia-se, pelas ideias que animam o seu pensamento literário, no martinismo, isto é, naquela corrente filosófica cujo promotor foi o português Pascoal Martins. A influência deste contemporâneo de Pascoal de Melo determina, aliás, todo o romantismo francês, consoante se entrelê nas obras de Victor Hugo, Lamartine, Alexandre Dumas ou Gérard de Nerval. Daqui o interesse de excepção que tem para nós, portugueses, a literatura francesa iniciada na Revolução. A ocultação dos verdadeiros valores da França explica as justas reacções periodicamente movidas contra a cultura desse país por aqueles portugueses que se negam a aceitar a superioridade de escritores que, nem na terra natal deles, é inteiramente reconhecida. Lícito é, então, preferir a literatura inglesa para a qual nos atrai, além disso, a afinidade atlântica.

Uma fonte de equívocos é a promovida pela confusão que se estabelece entre o romance como expressão do sobrenatural e, por conseguinte, de função educativa ou iniciática, e o romance como expressão de uma doutrina moral e, por conseguinte, de intenção didáctica ao serviço de um universalismo qualquer. O romance, como a poesia, como, em geral, toda a literatura didáctica, tem sido justamente combatido pelo simples motivo de que constitui uma transgressão do género. À poesia didáctica dedicou Sampaio Bruno algumas página de crítica e combate no Brasil Mental. Mas quem não estabeleça aquela confusão (e, para isso, é condição não a levar dentro de si), só tem de estar atento para reconhecer e receber o ensino artisticamente ministrado pelos grandes mestres do romance, espíritos para quem o moralismo e o didactismo, sociológico ou outro, constituem eternos obstáculos à evolução ininterrupta da humanidade.

 

António Telmo   



[1] 57, ano I, n.º 2, Lisboa, Agosto de 1957, p. 7.

 

UNIVERSO TÉLMICO. 11

16-04-2015 12:44

Escrito no início dos anos setenta para a Revista Municipal, de Sesimbra, de que António Telmo, então Director da Biblioteca Municipal, seria também o director, "Projecto", de Agostinho da Silva, é um autêntico hino à capital da Arrábida e ao seu termo, microcosmo de Portugal a que o filósofo assina um destino messiânico. A revista não se concretizou, mas o escrito agostiniano foi publicado originalmente em 2004 por Pedro Martins na agenda Sesimbra Eventos, e republicado nas actas do grande colóquio sesimbrense do centenário de Agostinho. Irá também ser recolhido na Marginália do III Volume das Obras Completas de António Telmo, Luís de Camões seguido de Páginas Autobiográficas, a sair em Junho, na Zéfiro, com o apoio institucional e científico do nosso projecto. 

Projecto

Agostinho da Silva

 

A quem chega, esfomeado de sol que não seja apenas uma entidade de cálculo astronáutico; de mar que não seja somente o das velhas imagens de cinza e chumbo; de céu que não evoque fatalmente todos os pessimismos prognósticos de uma poluição em que a humanidade se suicide; a quem vem de todos os medíocres países humanos cujo ideal mais alto parece ser o de constituírem um mercado comum que, dados os pontos fundamentais em que assenta não será mais do que um supermercado de excesso de produção e de consumo em que o que vale é o dinheiro de que cada um dispõe e não a fome que tem para satisfazer; aos que atravessam os Pirinéus, não com as incomodidades e os desastres de quem, por não ser rei em terra própria, vai ser na alheia escravo, mas com os confortos que mais rápida do que lentamente lhes estão destruindo a alma, pelo pecado mortal de ter sempre mais do que precisam e menos do que desejam; a esses tais, indo-europeus, brancos e pragmáticos, que dominaram o mundo e cujo afã é o de organizarem o trabalho de tal modo que ele os obrigue a trabalhar mais; àqueles que estão inquietos pela existência de nações em que ainda o indivíduo existe, as atraem a seu supermercado e já tentam a Espanha, e em que apesar dos desesperos se espera que volte o Rei Artur ou O de Alcácer; a esses todos oferece Sesimbra sol, céu e mar; que os ilumine, os proteja, os embale.

Homem, porém, nunca pode ser grande na medida em que recebe; as ascensões se fazem pelas curvas da dádiva, e pouco dão do que vale os que apenas nos deixam suas moedas fortes; porque isso neles não é dar, é desembaraçar-se do que, bem sabem no fundo, os está destruindo; de seus bolsos o tiram, não de si mesmos; e o que deles fica entra muito bem numa estatística dum país que recebe, o que não é a mesma coisa que uma estatística de país que ganha; cada dólar turístico é preço de uma nação que se vende; abaixa os dois termos da troca; e o que fica quando fica, de comércio feito, é apenas o que pode ter havido de realmente divino no puro humano que é seu aspecto exterior; no caminhante que chega alguma lembrança daquele São Francisco que reinventou o ser itinerante, percorreu com alegria a inteira Itália e ainda tentou converter o maometano, descobrindo no fundo de si próprio que o catequista que de Deus vem só tem de operar uma real conversão, a de si próprio àquilo que diz ser; no sedentário que o recebe, o que por dinheiro se não deu, aquele acolhimento que não obedece a políticas económicas e sobrevive neste nosso povo português apesar de tanta tentação de ser fechado, defensivo e duro; mas ignorar o Diabo é talvez o único ponto luminoso que se pode descortinar na ignorância; os outros sabem tanto que nem ao Diabo desconhecem; mas pescador, lojista, empregado de Sesimbra tanto não sabe do que não vale e tanto é o que importa que as artes demoníacas, no pior, se lhe escapam.

Creio, no entanto, que estamos ou entramos num tempo em que se tem de ir para além do franciscanismo; ou, se franciscanos temos de continuar, atentemos em dois pontos essenciais: seja o primeiro de que só vale ser franciscano quando o franciscanismo é voluntário, não se esquecendo que o pregador inicial e seus primeiros amigos ricos eram, fartos de sua riqueza, e que nenhuma santidade vem de se ter falta, mas decorre toda ela de um sentido excesso; seja o segundo o de que São Francisco, além do Santo que a Igreja a si tomou e com que Portugal tentou santificar o mundo a seus discípulos levando nos primeiros navios, era poeta, tanto nas imaginações de sua vida quanto nos versos que cantou, e que, inventando o presépio, pôs a claro que valor máximo para ele era o da criança, que toda nasce poeta e que o mundo a quase toda a gente mata como poeta, pronto, porém, a celebrar, mas já bem morto, seguramente enterrado, inofensivamente desfeito em cinza, o que, afrontando-o, a ele mundo, sua infância salvou, para escarmento e exemplo de adultos. A que tempo dizíamos então que estamos pelos menos entrando? Pois a um em que o mais importante de toda a santidade seja a poesia que nela há. Deus se mostrou na história do mundo já poderoso e já piedoso; já organizou cidades e já consolou os que choravam de haver cidades; já constituiu o direito romano e esteve nas prisões construídas pelo direito romano; já foi Jeová e já foi Jesus; creio que está agora de novo examinando sua obra, achando bom o que fez, apesar de todas as linhas tortas que os homens, instrumento e fim de Deus, em seus textos descobrem, e parecendo-lhe que se ruma a outro capítulo: que só agora verdadeiramente as trevas se vão separar da luz; que só agora ao homem se vai comunicar o pleno dom da criação; que todos vão poder ser poetas, acrescentando beleza à beleza do mundo. E que nisso Portugal, redivivo, resgatado para sempre Alcácer, reencontrado Dom Sebastião não num Messias salvador, mas no homem que todos morremos na batalha, tem papel de guia, de condutor do mundo, de moço de cego de todas essas nações que nada vêem; utópico sonho? Oxalá o seja, pois, como já se disse, “amanhã é dos loucos de hoje”; melhor, além de tudo, que só o manter fazendo prudentemente suas continhas de fim de mês ou só o ver, para o futuro, como nova encarnação da Dinamarca, de que já há uma; pelo menos uma, tão descuidado vai o mundo de ser monótono e sem esperança.

Portugal, porém, é grande demais, e se pensamos em Portugal, e no que tem a fazer, acabamos por lhe entregar como tarefa aquilo de que nós outros nos deveríamos encarregar. Vai, pois, o meu discurso, não àquele Portugal, e só esse vale a pena considerar, que inclui Corumbá na fronteira da Bolívia e Macau na fronteira da China, Lourenço Marques na fronteira da segregação e Chaves naquela fronteira que traçaram políticos esquecendo-se do preceito de que não separem os homens o que Deus juntou, mas ao Portugal que se concentra em Sesimbra, que em Sesimbra tem seu perfeito resumo com litoral de alcantil e praia, com seu castelo e seu porto, suas encostas e seus plainos, seus ocres e seus verdes, seu arreigamento no concreto e sua pronta partida para as nuvens, e que, dentro de Sesimbra, é ainda rijo núcleo em meus amigos de pesca ou pensamento, de mar ou alto, esses tais grandes em que o entusiasmo significa estar calmo e o cepticismo quer dizer, etimologicamente, não se cansar da busca. Para lhes dizer que estrangeiro que chega não tem apenas de deixar dinheiro para o orçamento da nação, mas de contribuir com o que sabe – e muito se sabe para além-Pirinéus, muito se ignora dos Pirinéus para cá – para que possamos viver um dia numa nação sem orçamento; para lhes dizer que em Sesimbra devem surgir os primeiros núcleos em que o poder de criação que está oculto em Portugal desde o século XV desperte, ganhe forças e ajude a tirar Europa e América dos becos em que se meteram, os de se julgarem superiores, e ajude a tirar pretos, amarelos e vermelhos dos outros becos, os de se julgarem inferiores, em que a ciência volte a ser humana e de todos, como nas caravelas o foi; para lhes dizer que tem Sesimbra de pensar em que nunca mais portugueses deixem sua terra, a não ser por franciscanamente o quererem, e que, fazendo-o, não apareçam em Paris ou Los Angeles como os escravos que deles fazem os homens, mas com a fidalguia que Deus lhes deu ao nascerem. Que Sesimbra e os Amigos acordem e aprendam com quem vem e tem obrigação de ensinar o muito que ainda têm, temos de aprender; que despertem e insuflem na sensatez do mundo a loucura que lhe falta e exorcismem de vez as múmias da prudência, da sabedoria linfática e do deixa estar como está para ver como fica; e que, ressuscitados eles próprios, passem a fazer de todo o emigrante um missionário, o missionário daquela missão de tornar fraterno o mundo que Portugal não cumpriu outrora, peado como se encontrou por uma Igreja que só o Vaticano II passou a ver como história; por um sistema económico que só o socialismo liberal poderá mitigar e só a automação lançará também aos armazéns do passado; por um sistema político, o dos Césares de Roma, que só verdadeiramente poderá desaparecer do mundo quando renunciar cada homem a ser ele próprio, em sonho ou realidade, dentro de sua casa ou de sua nação, para seu empregado ou para seu cão, César pior que o de Roma.

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