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INÉDITOS. 49
11-04-2015 17:47Explicitamente inspirados nos diálogos de Berkeley, filósofo que António Telmo muito admirava, os “Novos diálogos de Hylas e Philonous” (acrescidos de um “Fragmento dum diálogo entre muitos de Hylas e Philonous, ainda na Irlanda, logo após a morte do seu progenitor, o episcopal Berkeley”) surgiram em Congeminações de um Neopitagórico, de 2006, na sequência dos “Diálogos de Thomé e Nathan”, dissociação dialogal do alter ego ou do maggid télmico, Thomé Nathanael. No espólio de António Telmo conserva-se, entre dezenas deles, um caderno manuscrito onde nos deparamos com um outro diálogo, ainda inédito, entre o homem hílico e o homem noético criados por Berkeley. O título deste diálogo é o mesmo que o autor havia publicado nas Congeminações, como quem porventura quisesse frisar a inscrição desta fórmula num contínuo inspirado pela matriz do filósofo irlandês. Numa das páginas do caderno, Telmo intercalou o que parece ser uma nota introdutória com a seguinte indicação: “Para juntar aos diálogos:”. Damo-la assim na abertura do texto, precedendo o início do diálogo, onde a elevação de António Telmo ao grau de Mestre Maçon do Regime Escocês Rectificado constitui o eixo ao redor do qual as duas personagens discorrem, reflectindo, até ao corolário da ligação da tradição dantesca com o Regime Escocês Rectificado, rito maçónico cuja instituição é amplamente tributária da influência magistral do português Pascoal Martins. Porventura mais do que nunca, encontramos neste inédito o discípulo iluminando, pela operatividade maçónica, o que Álvaro Ribeiro, seu mestre, apenas havia assinalado, com elíptica discrição, no capítulo sobre “A Tradição Portuguesa” de A Arte de Filosofar, livro de 1955. Neste sentido, estaremos mesmo perante um escrito télmico da maior importância. Aliás, decisivo.

[António Telmo falando aos Irmãos, durante um ágape ritual, após uma sessão de Loja]
Novos diálogos de Hylas e Philonous
Nos diálogos de Berkeley são dois contrários a discutir, o homem noético (é preferível dizer noético a pneumático) e o homem hílico. Se os dois se completassem com mais um, isto é, com o homem psíquico, não haveria a tensão, pela diferença de nível, saltar a chispa.
O homem psíquico. A palavra alma é impensável provir de anima por evolução fonética. Mas pode provir do aramaico alma que, nessa língua, significa, mundo. A raiz da palavra aramaica parece ser a mesma que a do grego olos, todo. A alma não será, pois, o sopro que vem sugerido em anima, mas o todo de que o corpo é uma ínfima parte. Temos a percepção de que isto é assim quando, num dia de céu límpido, tomamos consciência do horizonte todo à volta e do céu que nos envolve como de nós próprios. Há homens, porém, os hílicos, que apenas são um corpo sem olhar, não digo o corpo de um cego, porque o cego não vê mas procura com o olhar interior.
Hylas:
Faz hoje quatro séculos que vimos ambos a luz da vida. Como Athena saiu da cabeça de Zeus, e Diónisos da sua coxa, assim tu e eu fomos gerados por Berkeley, tu do cérebro e eu do fémur. O idealista e o materialista! Que contradição!
Agora, basta alguém pensar profundamente em nós, invocar-nos do fundo da alma, para que de ideias ou de fantasmas nos sintamos viver em carne e osso.
Philonous:
Vê-se por essas palavras que já não duvidas de que somos existentes, pois pões como condição que alguém pense em nós. O nosso pai Berkeley partiu há quatro séculos para a terra dos imortais e nós suas criaturas temos na terra mais realidade do que ele.
Hylas:
Temo-la agora aqui em Portugal, o País do Fim. Saímos das páginas do livro onde durante séculos uns nos viram por entre obscuridades e outros à luz clara da inteligência. Falamos em séculos. Lembras-te porventura há quantos anos estamos em Portugal?
Philonous:
Desde a morte de Teixeira de Pascoaes, esse sublime poeta que ensinou ser a criatura mais real do que o seu criador. E dava o exemplo de D. Quixote e Cervantes, de Portugal e de Camões.
Hylas:
Portugal só existe depois de Camões? Alguma vez Teixeira de Pascoaes disse isso?
Philonous:
Disse-o por analogia com Quixote e Cervantes.
Hylas:
O que eu aprendi contigo e o que continuo a aprender. Chamo-me Hylas mas o que eu tenho aprendido contigo dia após dia, durante quatro mil anos, dialogando contigo, e o que continuo a aprender. Não sou já Hylas. O meu materialismo espiritualizou-se, pois não tinha sentido que, derrotado pelos teus argumentos, ficasse como dantes. Em consequência, depois que nos incorporámos no País do Fim, o que não se tem passado comigo de maravilhoso! É como se me estivessem a preparar para um acontecimento extraordinário. Não te disse ainda que entrei para a Maçonaria…
Philonous:
É um lugar que está cheio de espíritos hílicos, mas a sua essência é noética.
Hylas:
Falas como se estivesses dentro.
Philonous:
E quem te diz que não estou? E quem te diz que estou? Ah! A língua portuguesa! Como sabe dizer o sim com o não! Mas fala-me das coisas maravilhosas que se deram contigo.
Hylas:
Queres que te conte como cheguei à Maçonaria?
Tudo começou com o número 13 e no dia em que deparei com um trevo de 4 folhas.
Philonous:
Diz-me como foi isso do trevo? Tenho um especial interesse em sabê-lo porque estou precisamente lendo um livro que, a dada altura, explica o que significa encontrar um trevo de 4 folhas para a pessoa que o encontra. Logo me falas no 13.
Hylas:
Foi a coisa mais simples deste mundo. Eu estava lendo no meu quintal O Homem de Luz de Henry Corbin. Em dado momento, levantei os olhos do livro e vi três passos à minha frente num tufo de trevos um de quatro folhas. Cortei com muito cuidado, pu-lo entre duas páginas do livro e fixei o número de uma das páginas para poder revê-lo sempre que quisesse. Era a pg. 113.
Philonous:
És um homem com sorte. Eis o que diz Ernst Jünger: «Um trevo de quatro folhas traz felicidade. Contudo, há uma condição. Consiste ela em encontrá-lo sem andar a procurá-lo.»
Hylas:
Foi exactamente o que sucedeu comigo. Destacou-se ao meu olhar de entre um tufo de mil trevos.
Philonous:
«A felicidade não está contida nas folhas; consiste na capacidade que a pessoa tem em si de encontrar sem que o queira. Aquele que a possui encontra também outras coisas preciosas. Se encontra a felicidade é porque tem a felicidade; a felicidade é a sua propriedade.»
Hylas:
No tempo em que Berkeley me criou, eu era como sabes materialista, mas não era espesso. Ele conhecia certamente a classificação dos polos gravíticos que os dividia em hílicos, psíquicos e pneumáticos. Podia ter-me criado como psíquico, mas com isso anulava a enorme diferença de nível entre mim e ti, eliminava a tensão entre os dois contrários, de modo que não se produzia a chispa de luz do seu pensamento. Foi esse contraste, essa fricção que permitiu que em mim o homem hílico desse lugar ao homem psíquico. Na verdade, são maravilhosas as coisas que me têm acontecido desde que deparei com o trevo de quatro folhas ou desde que ele se me ofereceu ao olhar.
Philonous:
Escuta, há mais e para teu gáudio. «Segundo a crença popular o trevo de quatro filhas torna clarividente, confere a quem o encontra involuntariamente o poder de um áugure.» Enfim, eu passo-te o livro e lês em casa todo o capítulo. Ou, se preferires comprar o livro, podes anotar: Grafitti/Frontalières, Bibliothèques 10/18, 12, Avenue d’Italie – Paris XIIIe
Hylas:
Posso falar-te agora do número 13 que passou a aparecer-me continuamente durante três anos em tudo que se relacionava comigo, relógio, quadros, carro, cães…
Philonous:
O trevo de quatro folhas, já que é uma excepção nos trevos campestres que contêm sempre três folhas, é 3+1 e, portanto, representativo do 13 ou do 31.
Hylas:
Presumo que me anunciava a recepção na Maçonaria, pois deixou de aparecer logo que isso se deu.
Philonous:
A entrada na Maçonaria é o que chamas uma coisa maravilhosa?
Hylas:
Só Deus sabe se foi uma coisa maravilhosa ou se foi um desastre. Eu fui lá encontrar uma multidão de homens hílicos e poucos dos psíquicos. Os noéticos, como tu, devem estar na sombra vigiando e guardando a fidelidade à tradição imemorial.
Philonous:
Não digas como tu. Chamo-me Philonous. Procuro o amor que pelo intelecto move o mundo. Eu amo aquela ciência que Aristóteles diz ter por essência o ser procurada. Espero que um dia ela se me ofereça ao olhar do intelecto como ao teu olhar se ofereceu a mágica planta. Conversemos, pois, sempre como o estamos a fazer, de igual para igual, como súbditos conformes do mesmo Rei.
Hylas:
Eu tenho medo de falar daquelas coisas e, se não fosse para ti, a minha boca não se abriria para ninguém. Não que sejam temíveis, embora sejam assombrosas. Mas eu não sei o que elas significam, que realidade lhes corresponde na minha vida, na medida em que a procuro orientar para Deus. Talvez tu me ajudes a ver claro nesta obscuridade. O que eu tenho de canino, tens tu de felino.
Philonous:
Só depois de te ouvir, saberei se sei ajudar-te.
Hylas:
Depois do 13 veio o 9.
Tão misteriosamente como aconteceu com o Dante e analogamente ao Dante se virmos em Beatriz não propriamente uma mulher, mas, como querem Sampaio Bruno e outros, a Loja e a Sabedoria que dela, através dele e nela se recebe.
Não veio com o grau de Aprendiz nem com o grau de Companheiro, mas com o de Mestre, embora o 9 já estivesse na soma teosófica do dia e do ano em que fui iniciado: 18 de Dezembro de 1998[1].
Philonous:
Não chega a ser um sinal incontroverso.
Hylas:
Sem dúvida. Não entrei em conta com o mês de Dezembro. Mas também não ligo importância a essa data. Como não ligo assim tanta importância ao facto de o carro que veio substituir um que tinha num dos números da matrícula o 67, carro que ainda tenho, fosse o 66-99, conquanto a multiplicação de 6 por 6 dê 36=9 e de 9 por 9 dê 81.
Philonous:
Tudo simpatiza numa vida humana como no Universo. Quem estiver atento a todos os pormenores que se vão dando no curso do dia, dos meses e dos anos encontrará sempre coincidências importantes que, no entanto, são menos significativas que a semelhança com o Sol nas flores que bebem a sua luz.
Há, além disso, um perigo na procura de relações e coincidências ocasionais[:]é o de nos tornarmos supersticiosos e daí até à autolatria que é a pior forma de idolatria a distância não é nenhuma.
Hylas:
Quem virá dizer que não tens razão? Eu próprio não teria dado por essas coincidências, as que se verificaram com o número 13 e depois com o número nove, se as primeiras não tivessem sido anunciada pelo encontro do trevo de quatro folhas e as segundas pelo que te vou contar agora.
Philonous:
Nunca te passou pela cabeça que o 13 fosse um número aziago e até o 9, como havemos de verificar.
Hylas:
Não, nunca me passou. Eu sabia que o seu aparecimento estava associado ao trevo de 4 folhas cujo encontro sempre soube desde criança que era sinal de felicidade, embora só tenha sabido agora que é necessário que ele se ofereça ao olhar sem ser procurado. E quanto ao número 9… É melhor que te revele primeiro o carácter extraordinário do seu surgimento no interior e no exterior de mim mesmo… Eu disse-te há pouco que o 9 veio com o grau de Mestre Maçon, mas não te revelei que uma voz durante o sono, na noite anterior à revelação no grau, foi ouvida dizendo: Hylas, o psíquico, vai ser associado ao número 9. Calcularás o meu assombro quando me foi mostrado, durante o ritual, o completo sistema simbólico do número 9, com perfeita nitidez meridiana. “Esta cerimónia, ensina o Irmão Orador, é presidida do início até ao fim pelo número 9.”
Philonous:
Devo dizer-te que sei em que consiste, nos vários ritos e regimes, o grau de Mestre, não porque seja maçon, mas porque na minha biblioteca tenho livros por onde posso saber tudo o que se passa dentro das Lojas. Por isso mesmo, ao dizeres-me que o n.º 9 caracteriza o ritual que te elevou a esse grau, conjecturo que o Regime a que pertences é o Regime Escossez Rectificado, pois nenhum outro o iguala na importância dada ao número 9.
Hylas:
Pertenço sim. Todavia, não acredito que seja pelos livros que sabes o que se passa no interior das Lojas. Em ti Berkeley se representou a si próprio e todos os que o leem sabem que aos oito anos não só compreendia Platão como discutia com ele. Pertencia, como presumo que tu pertences, à linhagem dos que nascem trazendo consigo uma luz que só espera um pequeno estímulo para, mais tarde ou mais cedo, se manifestar. Foi o caso de Berkeley como o de Jacob Boehme. E já que falamos de Maçonaria, lembra-te que em Portugal há 50 anos os dois homens que melhor conheciam os seus mistérios e que mais de perto se lhe identificaram não eram maçons.
Falo de Sampaio Bruno e de Fernando Pessoa.
Philonous:
Também tu és uma criação de Berkeley, uma ideia e uma alma vivente. Não falemos, porém, de nós próprios. O que me contas sobre o número nove, excede infinitamente o que possa haver de ti nos acontecimentos.
O número 9 é, em meu entender, o mais misterioso dos números.
Gostava de ter o segredo dele, já que o mistério tu me poderás dizer em que consiste, recapitulando o que ambos sabemos, embora por diferentes caminhos.
Hylas:
Eu fui confiante. Nessa noite, a lua alcançava o momento em que recomeçava novo crescimento.
Philonous:
A Lua Nova tem, como se vê significado no adjectivo, uma íntima relação com o nove. Por isso, o livro de Dante, em que ele faz a exaltação de Beatriz como sendo ela mesma o 9, tem por título Vita Nuova. Digo-o em italiano para fazer observar que também nesta língua como em português novo e nove são a mesma palavra com uma pequena diferença no último fonema. O mesmo acontece em espanhol onde temos nuevo e nueve e certamente acontecerá o mesmo em romeno.
Observe-se também que a ideia de ovo aparece igualmente nas línguas latinas.
Ovo, novo, nove. O princípio que renova e move todas as coisas.
Mas a renovação é precedida, sendo acompanhada, de uma decomposição. Pelo nove se torna vivente a relação do ser com o não-ser.
Hylas:
O que dizes está bem patente no rito pelo qual, conforme ao que foi anunciado em sonho, fui associado ao nove.
Temo, porém, quebrar o compromisso a que me obriguei, jurando, a não revelar aos profanos os nossos mistérios.
Philonous:
Tens-me então por um profano? Não sei eu que passaste por um rito que te tornou livre de todos os compromissos a que, antes dele, te ligaste?
Hylas:
Também sabes isso? O que eu queria dizer é que algum profano pode estar-nos a ouvir!
Philonous:
Pode ouvir o que quiser que nada saberá. Eurípides foi julgado e condenado não por ter dito o que se passava nos Mistérios de Elêusis, mas por ter revelado a outro por meio de gestos, palavras e movimentos o que lá se passava. Maçons de superior qualidade, como Oswald Wirth e René Guénon, trouxeram para os livros a reflexão do que viram e viveram no interior das Lojas.
Hylas:
Fui confiante, como te dizia. Não foi só a Lua Nova. É que, uns dias antes de ter recebido a elevação, já estava confirmado na qualidade de Mestre Maçon por uma estranha personagem que me apareceu vinda do nada no Café onde conversava com uns amigos. Aparentemente, era um louco. Traçava com a mão direita figuras geométricas sobre o peito e sobre o rosto. Falava correntemente, e sem o mínimo obstáculo fonético, português, francês, espanhol, italiano e árabe! Trauteava canções populares em francês e espanhol. Tinha o aspecto de um nórdico; era louro e de olhos azuis. Não era português, mas falava o português como nós o falamos. A noite estava fria, gelada. Perguntei-lhe onde ia dormir, onde tinha casa? Com um gesto apontou o Oriente, depois o Ocidente, o Sul e o Norte: “Eis a minha casa.” Durante a hora que esteve connosco, não deixou de fixar os meus olhos com os seus olhos azuis extraordinariamente brilhantes. Disse que eu era uma pessoa limpa, quando lhe falaram de Fernando Pessoa, e eu espero que por essas palavras me tivessem sido perdoados todos os meus pecados. No fim, beijou-me fraternalmente nas duas faces.
Philonous:
Recomendo-te que não indagues quem era realmente a misteriosa aparição. Guarda a imagem do acontecimento no santuário da tua alma. Se o não fizeres, pode acontecer-te ficares com um pouco de cinza nas mãos e não veres nisso qualquer mistério, apenas o caso de teres conversado com um estrangeiro meio louco num Café da cidade onde vives.
Hylas:
Vou pensar no que me recomendas.
Fui confiante, mas qual não foi o meu espanto, mais que espanto o meu assombro, quando vi que tudo se passava como a divina voz anunciara. Fui ligado ao nove por um compromisso severo. Ele estava nas nove pancadas da bateria (3x3), nos nove mestres, três que foram pelo Oriente, três pelo Norte e três pelo Sul à procura de Hirão, nas nove velas acesas, nas nove esferas que suportavam a urna onde estavam escritas estas legendas: Ternario formatur, novenario dissolvitur, ascendit unus. E ainda nas 81 lágrimas com que chorámos a morte de Hirão.
Philonous:
Devias estudar Dante, com a experiência que tens.
Hylas:
Conheço o Dante, A Divina Comédia, a Monarquia, o Convívio, a Vida Nova. Não me parece, porém, que essa minha experiência, o passar pelos três primeiros graus do Rito Escossez Rectificado, vá além de uma conotação superficial com a experiência e com a sabedoria de Dante.
Philonous:
E se vires nesses três graus sucessivos momentos de uma descida aos Infernos? Nove são os círculos infernais nove são as viagens em torno do tapete durante a elevação ao terceiro grau. Não é esse o sentido da legenda inscrita na urna: Ternario formatur, novenario dissolvitur, o que foi formado pelo três é dissolvido pelo nove? Jesus Cristo não foi crucificado na hora terceira, as trevas não cobriram a Terra na hora sexta e não nasceu Ele na hora nona? Entre o Monte Moriá, onde os 9 mestres encontraram o cadáver de Hirão, e o Monte do Calvário não há nenhuma analogia?
Hylas:
Podias continuar assim indefinidamente a pôr perguntas em torno da Metáfora Essencial. Por isso afirmei que me têm acontecido coisas maravilhosas. Mas o modo como lhes tenho reagido parece-me nulo. É apenas um vago reflexo no espelho da mente, não chega a ser pensamento e muito menos conhecimento.
Philonous:
A hora é tardia. Combinámos ir amanhã a Montemor, subir ao castelo lá no alto e daí assistir ao despontar da aurora.
Hylas:
Compreendo. Sim, compreendo.
António Telmo
[1] Nota do editor – Presumimos haver lapso. A data em apreço é a da elevação de António Telmo ao grau de Mestre Maçon do Regime Escocês Rectificado, como o próprio confirma noutro texto, ainda inédito, do caderno de onde o presente diálogo foi transcrito. Num outro caderno, em apontamento também inédito, o filósofo consigna a data da sua iniciação: 17 de Abril de 1998.
CORRESPONDÊNCIA. 19
06-04-2015 21:50CARTAS DE ANTÓNIO TELMO PARA ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO. 02

[António Cândido Franco e António Telmo em Évora, em 1992]
Estremoz
5 de Fevereiro de 1992
Meu caro Amigo
De um livro sobre Freud (São Freud, como v. escreve): “D’après une certaine tradition, l’année de la transition se situe à trente-six ans. Il est dit que c’est à l’âge de trente-six ans que le Baal Shem Tov se révéla au monde. Et c’est aussi vers cet âge que Freud commença à se faire connaître, emergeant de la période de latence des années precedentes. Freud eut trente-six ans le 6 Mai 1892. Jones écrit:
“Bien qu’il fût doué d’une intuition assez vive que l’on vit se manifester librement dans les années de maturité, nous avons tout lieu de croire que, pendant les annés dont nous venons de parler, en particulier entre 1875 et 1892, son évolution fut lente et labourieuse…”
O seu livro[1], que ontem recebi pelo correio, foi editado cem anos depois, quando o António Cândido está prestes a tocar o limiar dos trinta e seis anos. A Arte Poética tem, como pode verificar, a data de 1963, quando eu tinha trinta e seis anos. Não me limito, por isso, a agradecer-lhe a dedicatória. O que eu fiz ao Álvaro Ribeiro, faz v. agora, passados 28 anos, ao António Telmo, exactamente nos mesmos termos[2]. O sinal renova-se e reaparece pitagoricamente. Dentro do mesmo mistério vemos que as Notas do Exílio, A Alegria, a Dor e a Graça e O Problema da Filosofia Portuguesa, livros que inauguram o futuro, foram editados aos trinta e seis anos. Assim se vão dando os nós na corda secreta. Na ou com a?
Creio, com isto, ter tudo dito.
Um grande abraço do
António Telmo
P. S. – Claro que já li o livro. Há vinte e quatro horas que estou consigo.
[1] Nota do editor - António Telmo refere-se a Teoria e Palavra, Lisboa: Átrio, 1991.
[2] Nota do editor - António Telmo é o dedicatário público de Teoria e Palavra. Na dedicatória, António Cândido Franco escreve: “Ao António Telmo, sinal de reconhecimento”. A dedicatória impressa é, pois, similar à que António Telmo apusera ao seu livro Arte Poética: “Ao Álvaro Ribeiro, sinal de reconhecimento”.
VOZ PASSIVA. 48
05-04-2015 12:26
Recordando António Telmo*
Eduardo Aroso
Páscoa oceano de sonho,
Páscoa terra em flor!
Na saudade tudo somos,
Sabe-se da vida pelo amor.
Um ano vem e outro chega
Nesta pátria, nação e país.
Juntos p’la mesma viagem
Num barco solto com raiz.
Terras de Viriato, sábado de Aleluia, 4-4-2015
____________
* Versos lidos ontem a D. Maria Antónia Vitorino, pelo telefone.
FOTOS COM HISTÓRIA(S). 05: PORTFOLIO
05-04-2015 00:10Actualizado
AGOSTINHO DA SILVA, 21 ANOS DEPOIS: OS DIAS DE BRASÍLIA
com a colaboração especial de João Ferreira e Maria Antónia Vitorino
Agostinho da Silva, um dos quatro mestres de António Telmo, partiu há 21 anos, num Domingo de Páscoa. Foi no dia 3 de Abril, o que levou a que este ano a efeméride se assinalasse anteontem, numa Sexta-feira Santa. Preferimos, porém, evocá-lo ao terceiro dia, frisando o halo de imortalidade com que os fados marcaram a hora da sua exaltação. Fazemo-lo com a publicação de um portfolio proveniente do espólio télmico, cujo acervo fotográfico está agora a ser digitalizado. São sete fotografias que julgamos inéditas, e que nos dão a conhecer os professores portugueses que, sob a égide de Agostinho e de Eudoro de Sousa, chegaram à Universidade de Brasília entre os anos de 1966 e 1968. Não nos alongaremos em informações. Para isso já o leitor tinha as notas e comentários às Cartas de Agostinho da Silva para António Telmo. Agora dispõe ainda de O Estranhíssimo Colosso - Uma Biografia de Agostinho da Silva, da autoria de António Cândido Franco, membro fundador do Projecto António Telmo. Vida e Obra, onde a fase da Universidade de Brasília é amplamente abordada. Como quer que seja, um outro membro do nosso projecto, o Professor João Ferreira, elucida-nos, a partir da capital brasileira, vários aspectos de pormenor deste políptico. As suas palavras, preciosas, dão-nos assim importantes elementos biográficos sobre o círculo candango de Agostinho da Silva. Tal como Carlos Francisco Moura, actualmente radicado no Rio de Janeiro, João Ferreira dá-nos a honra e o contentamento de integrar a nossa equipa. Por ambos se firmam pontes, no tempo e no espaço, com o Brasil de Agostinho e de Telmo. As imagens que se seguem constituem, estamos em crer, um relevante contributo para a iconografia do universo agostiniano, numa época em que, parafraseando António Telmo, se assistiu ao desembarque dos lusíadas no planalto de Brasília.

António Telmo e Agostinho da Silva em Brasília, por ocasião de uma palestra do autor de Um Fernando Pessoa, no que parece ser o Centro de Tradições Populares do Teodoro-Bumba-meu Boi, que foi funcionário do Centro Brasileiro de Estudos Portugueses (CBEP), no Sobradinho. A quarta figura, da esquerda para a direita, é Maria Augusta Bezerra, Bibliotecária do Centro Brasileiro de Estudos Portugueses, muito guerreira, fiel e dedicada amiga de Agostinho da Silva, que lutou denodadamente pelo Centro, por sua razão cultural e Biblioteca, mesmo depois da ida de Agostinho para Portugal, incluindo a época de agonia e extinção do Centro (1971-1972), quando era Coordenador o Professor José Luís Conceição Silva, também grande amigo de Maria Augusta. A outra figura feminina, primeira da direita, é Maria Cecília de Sousa, arquivista na Universidade de Brasília, irmã do helenista Eudoro de Sousa.

Um padrinho enlevado diante da afilhada. Mestre Agostinho no dia do baptizado de Anahi. Foi em 3 de Dezembro de 1967.

Da esquerda para a direita: Eudoro de Sousa, Coordenador do Centro de Estudos Clássicos (CEC) da Universidade de Brasília (UnB), Maria Antónia Vitorino, esposa de António Telmo, professor da UnB e Maria Luísa Macieira de Sousa, esposa do Professor Eudoro de Sousa e Secretária Executiva do Centro de Estudos Clássicos da UnB.

João Ferreira, que chega à Universidade da nova capital brasileira, onde será colega de António Telmo (aqui o fotógrafo) no Centro de Estudos Clássicos, no ano de 1968, no velho aeroporto de Brasília ainda tentando se afimar -- frisa o autor de Existência e Fundamentação Geral do Problema da Filosofia Portuguesa. Nesta e nas duas fotos subsequentes, trata-se do dia da partida da família Vitorino (António Telmo, Maria Antónia e Anahi), de regresso à Europa, em Julho de 1968. Amigos e colegas marcam presença na despedida. Ao fundo, Carlos Francisco Moura, olhando para o fotógrafo. Bem visível, o rótulo luminoso da Varig, que era a nova companhia aérea se afirmando no Brasil. Há duas figuras femininas no plano subsequente ao de João Ferreira. Maria Antónia Vitorino, à esquerda, e Maria Luísa Macieira de Sousa, à direita. Vê-se ainda uma presumível balança (à moda antiga) para pesagem da bagagem.

No aeroporto de Brasília. Arquiteto Carlos Francisco Moura, membro do Centro Brasileiro de Estudos Portugueses e professor da UnB. Ao fundo, à direita, Lígia Preto, então professora da UnB.

Ainda no aeroporto de Brasília. Da esquerda para direita: Arquiteto Carlos Francisco Moura e Engenheiro José Luís Poças Conceição Silva, membros do CBEP e professores da Universidade de Brasília, e Dona Celestina, esposa do Professor Conceição Silva.

No casamento de Eudoro Augusto Macieira de Sousa, "Dorito", filho de Eudoro de Sousa, em 1968. Considerando os pares, da esquerda para a direita: Maria Cecília de Sousa (fila da frente) e João Ferreira (fila de trás), professor recém-chegado de Portugal, lotado no CEC, orientador da dissertação de Mestrado de Eudoro Augusto, cuja temática versou sobre Grande Sertão: Veredas de Guimarães, padrinhos de casamento dos noivos; Maria Antónia Vitorino (fila da frente) e António Telmo (fila de trás), professor da Universidade de Brasília, lotado no CEC e amigo do noivo, ambos também padrinhos do noivo. Ao centro, o noivo Eudoro Augusto e a noiva. À direita, segundo informação de Maria Antónia Vitorino, os pais da noiva, que eventualmente terão sido também seus padrinhos.
DOS LIVROS. 40
02-04-2015 09:17Coincidências, 3
Escreveu Fernando Pessoa, numa escondida mas evidente alusão a Teixeira de Pascoaes, haver poetas que, tendo um dia criado um poema extraordinário, depois o repetem incansavelmente até ao aborrecimento. E Miguel de Unamuno, dirigindo-se a Teixeira de Pascoaes directamente numa carta, aconselha-o a encurtar os poemas que, longos como os escreve, se tornam monótonos e cansativos.
Ambos, Fernando Pessoa e Miguel de Unamuno são nisto como alguém que estivesse diante do misterioso mar assistindo ao seu espraiar-se e lhe voltasse as costas cansado de ondas após ondas até ao fim do tempo.
Perante este mesmo mar, contemplando-o ou imaginando-o, o primeiro daqueles dois poetas escreveu estas duas admiráveis quadras:
Onda que enrolada tornas
Ao mar que te trouxe
E ao rolar te transtornas
Como se o mar nada fosse,
Porque levas contigo
Só a tua cessação
E, ao voltares ao mar antigo,
Não levas meu coração?
Escreveu-as talvez à mesa de um café. À mesa de um café, imaginando os longos poemas de Pascoaes, talvez devesse ter escrito:
Verso, que enrolado tornas
À alma que te trouxe
E que, ao rolar, te transtornas
Como se a alma nada fosse,
Porque levas contigo
Só a tua cessação
E ao voltares à alma antiga
Não levas meu coração?
Tão certo é que, aprendendo a estar diante do mar, se aprende a compreender os grandes ritmos verbais da alma. Da alma do homem e da alma do mundo.
António Telmo
(Publicado em A Terra Prometida, 2014)
CORRESPONDÊNCIA. 18
30-03-2015 09:48Iniciamos hoje a publicação de uma vasta selecção de cartas de António Telmo para António Cândido Franco. O começo é acompanhado de um testemunho deste último, membro fundador do nosso projecto, em que nos conta como conheceu Telmo. As cartas não serão necessariamente publicadas por ordem cronológica, mas por ela serão arquivadas. Agradecemos, uma vez mais, a António Cândido Franco a generosidade com que pôs à nossa disposição o epistolário télmico que agora se dará a conhecer.

CARTAS DE ANTÓNIO TELMO PARA ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO. 01
Estremoz
14-11-87
Meu caro Amigo
Claro que me lembro muito bem do encontro em Vila Viçosa e logo nesse momento soube ou pressenti que o era de caminhos. Em breve lhe enviarei um escrito sobre o Regresso ao Paraíso.
Acompanharei então esse envio de uma carta mais longa do que esta. Agora apenas pretendo não deixar passar mais dias sem lhe dar uma resposta.
Com os cumprimentos do sempre ao seu dispor
António Telmo
VOZ PASSIVA. 47
30-03-2015 09:42António Telmo*
António Cândido Franco
Encontrei António Telmo cara a cara nos primeiros dias de Junho de 1987, em Vila Viçosa, num evento organizado pela Associação Cultural Património XXI, animada então pelo escritor Orlando Neves, e que decorreu entre 6 e 10 de Junho. O evento previa uma homenagem a Ruy Cinatti, que falecera no ano anterior; por esse motivo foi convidado um dos amigos de juventude de Cinatti, José Blanc de Portugal. O poeta de Parva Naturalia, já idoso, com dificuldades de visão, surgiu acompanhado por Fiama Hasse Pais Brandão, arrimo que não podia dispensar. Ora Fiama, por causa do Camões heterodoxo dela, mantinha desde há anos um diálogo próximo e vivo com António Telmo. Fez então questão de me apresentar o autor de Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões, que vivia em Estremoz e vinha regularmente a Vila Viçosa. – Quer conhecer o António Telmo? É tão fácil – disse-me. Combinou-se o encontro no café da avenida central, onde mais tarde se fez o almoço do livro António Telmo e as Gerações Novas. Aí o conheci num dia de Primavera cheio de luz e de fogo. Logo uma forte corrente de calorosa simpatia nos uniu para não mais se desfazer até ao momento da sua partida no Verão de 2010.
25 Março de 2015
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*Título da responsabilidade do editor.
VOZ PASSIVA. 46
27-03-2015 17:34Como conheci António Telmo*
Zuzu Baleiro
Através de amigos como a Risoleta, o Rui Arimateia, Hernâni Matos e outros sempre ouvi falar de António Telmo e da sua obra. Contudo, apesar de ter alguns livros seus, para além do de Contos ilustrado pelo Armando Alves, nunca privei com ele. Soube da sua morte, e das diversas homenagens que lhe têm sido feitas, mas como não tinha qualquer ligação afectiva e de amizade com ele nunca estive presente em nenhuma.
Agora, há cerca de 15 dias, o Hernâni Matos organizou, em Estremoz, a apresentação do livro dedicado ao Armando Alves e convidou-me para ir ler alguns textos. Foi nesse dia, que tive a oportunidade de conhecer Maria Antónia Vitorino, e naquele momento criou-se entre nós as duas uma empatia e uma comunhão de ideias, que senti que tinha encontrado ali uma amiga.
Trocámos números de telefones e a partir desse dia tenho tido oportunidade de ser convidada para sua casa, o que muito me honra.
Ao entrar no "santuário" de António Telmo senti uma emoção fortíssima, pois ali ainda se respira o ambiente em que António Telmo escreveu, pensou, meditou e viveu. Aquele escritório repleto de estantes carregadas de livros até ao tecto, onde em primeiro plano se podem ver molduras com retratos de António Telmo com várias personalidades ligadas ao estudo da língua Portuguesa, da filosofia, da pintura deixou-me deslumbrada. Eu estava a ter a felicidade de poder olhar, apreciar, tocar.
A Mitó (é assim que ela quer que eu a chame) foi-me apresentar a filha Anahi, e aí ficámos sentadas numa salinha de estar onde ela está a convalescer de uma forte gripe. Conversámos, trocámos ideias, partilhámos muitas das nossas ideias e dos nossos conhecimentos. A Mitó insistiu em oferecer-me um chá e num ambiente muito acolhedor passámos o resto da tarde, conversando as três, sobretudo de António Telmo, o homem que nos ligou. Fez-se de noite. Estava uma noite fria e gelada de Dezembro. Como eu tinha ido para casa da Mitó em pleno dia e com sol, não levei casaco, pois pensava não me demorar.
A Mitó foi buscar um casaco de malha do António Telmo, que insistiu para que eu o vestisse, para poder sair à rua.
E lá fui eu, de casaco do António Telmo vestido, para minha casa. Sentia-me como se estivesse a viver um sonho; deslumbrada e feliz com aquela tarde tranquila, passada com duas mulheres maravilhosas. Um sonho bom, onde para terminar eu levava vestido o casaco de malha verde seco, de lã matizada com castanhos escuros e claros, que com certeza tantas e tantas vezes António Telmo usara quando se sentava à secretária ou no sofá para escrever, ler ou pensar!!!
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*Publicado originalmente em: https://zuzu-luzazul.blogspot.pt/2014/12/como-conheci-antonio-telmo.html#links
UNIVERSO TÉLMICO. 09
25-03-2015 12:55Na edição de hoje do jornal Raio de Luz, mensário de opinião e informação do concelho de Sesimbra, Pedro Martins, na sua habitual coluna, escreve sobre O Estranhíssimo Colosso - Uma Biografia de Agostinho da Silva, de António Cândido Franco, membro fundador do Projecto António Telmo. Vida e Obra.
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Colosso
Pedro Martins
À atenção da rapariga do mês passado,
Pode parecer irónico, mas não é. O homem que entre nós mais sabe de Teixeira de Pascoaes demora-se por vezes na Rua Fernando Pessoa, onde tem casa. A artéria fica em São João do Estoril e o sabedor chama-se António Cândido Franco. Não lhe revelo aqui a porta, não só porque não sou indiscreto, mas também porque poderia dar azar. Desde já, porém, vos afianço que o número de polícia condiz na perfeição com a vida do nome dado à placa.
Por vezes calha-me visitá-lo, e, pasme-se, acabamos a jantar na Galiza! Não que esta seja aquela em que o leitor já estará a pensar. Trata-se de um bairro silente, conurbado paredes meias com o dito São João, abrindo portas para uma encruzilhada.
Não é pois a mesma em que Agostinho da Silva tantas vezes estacionou depois do regresso definitivo do Brasil, em 1969, no período em que, até ao 25 de Abril, permaneceu em solo pátrio como cidadão estrangeiro. Por mor desta sua condição, tinha volta e meia de transpor a fronteira, elegendo de ordinário os caminhos medievos da Galiza, moça viçosa que, como o filósofo assevera na Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa, cedo os fados separaram do seu noivo, Portugal.
Depois, Agostinho regressava ao rincão que o viu nascer. Mas enquanto cirandava por Lugo ou por Compostela jamais esquecia a afilhada Anahi, daqui lhe enviando, por vezes para Sesimbra, postais de um lúdico enlevo saudoso. De tudo isto, e de muito mais, nos dá conta António Cândido Franco em O Estranhíssimo Colosso: uma Biografia de Agostinho da Silva, livro que chegou aos escaparates a 13 de Fevereiro, data do aniversário de Agostinho. É um monumento com mais de setecentas páginas que, como não poderia deixar de ser, está a dar que falar.
Uma semana antes do lançamento, fiz valer o privilégio da amizade fraterna que há mais de uma década me liga ao autor e na noite galega do dédalo cascalense, ao repasto, recebi das suas mãos o ansiado exemplar. O António Cândido já me lançara, dias antes, o repto de uma subida honra, qual seja a de com ele tomar parte na apresentação da obra que em Sesimbra terá lugar, no dia 9 de Maio, no começo das Tardes Télmicas deste ano. Estão desde já convidados!
Acabei há dias de lê-la, numa manhã de domingo, no Café Esperança, e, ao poisar a última página da narrativa, tive sérias dificuldades em reprimir as lágrimas, avassalado por uma comoção súbita e poderosa, tal a força poética que dela se desprende.
Aqui vos quero deixar algumas notas dessa leitura. A primeira, porque afinal se trata de uma biografia, é a de que a cada instante se sente pulsar o frémito da vida nas dobras aluviais das suas laudas. O Estranhíssimo Colosso é um hino selvagem, infrene, inextinguível, e nisto se atesta sua original autenticidade. Sem hesitações, vacilações, complacências, dá bem o retrato de corpo inteiro a esse homem de uma só peça que o biografado soube ser.
Havia por certo o perigo, que é sempre maior no caso de Agostinho, de se cair no devocionismo. Com mestria, mas sem jamais se furtar à admiração do seu colosso, o biógrafo soube evitá-lo. Cândido Franco desfia-nos, de forma nua e crua, o ror de sucessos que ao acaso, em catadupa, de supetão, animam a existência do filósofo. Da caça aos lagartos nas paragens adustas de Barca de Alva às primícias incríveis do imberbe plumitivo no Comércio do Porto; das pautas corridas a vintes nas escolas da Invicta ao doutoramento em raiva ao cair do pano, manu militari, sobre a Faculdade de Letras de Leonardo Coimbra, com uma dissertação escrita em semanas, aos 23 anos, depois de uma licenciatura em liberdade também coroada pela nota máxima; da afronta corajosa a maiorais como o tolo Agostinho Fortes, o torpe Alfredo Pimenta ou o insidioso Manuel Múrias à obra impressionante de Palhavã, quando, entre biografias e cadernos de iniciação cultural, um só homem, em poucos anos, brinda o povo português com uma verdadeira enciclopédia.
Não é pois um qualquer, este homem extraordinário. Não direi que é único, mas o resultado é impar. Ao longo do século que passou, poucas parcelas haverá a aditar na soma desta conta, em que se apuram quantos, no triste Portugalinho, afirmaram o estro indómito da acção heróica, forjada na experiência e no perigo. Penso, por exemplo, naquele que viria ser o avô de seis dos seus filhos, esse grandioso Jaime Cortesão cuja vida, bem vistas as coisas, em muito prenuncia a do genro.
Não teve quebras, fraquezas, sequer deslizes, este sublime marau que Agostinho da Silva nos saiu? Decerto que sim. Um episódio de excepção confirma a regra do nobre pedagogo e didacta que desde cedo se revelou. Certo dia, em Lisboa, no anfiteatro do Infante de Sagres, colégio do improvável Pavão Leal onde lograra já instituir o município escolar que tempos antes, no Liceu de Aveiro, começara a congeminar, Agostinho, ao cabo de sérios avisos, perde a tramontana perante o auditório em pulgas com um ratinho acossado. Ergue um pupilo e arremessa-o pelo ar de encontro à porta, abatida com estrépito! Pergunto se sem o contraste insólito de um tal desvario poderíamos aquilatar inteiramente o ouro de lei que debruava a envergadura deste homem?
Muito honestamente, Cândido Franco dá-nos ainda conta dos espinhos que houve por entre as rosas do amor, das crises excruciantes de consciência que por isso passou, ou dessa outra em que, na enxovia do Aljube, então às mãos da polícia política de Salazar por ousar pensar livremente a essência do cristianismo e da sua doutrina, parece abdicar, numa carta de retractação, de quanto até então propugnara. Ainda aqui, Cândido Franco vê muito bem, como compete a biógrafo que se preze. O caso não é de derrota ou de desistência. Será talvez dissimulação; ou antes a sincera metanoia que, por essa década de quarenta, se começa a topar na evolução espiritualista do seu pensamento, num trajecto a que o Brasil, com o Pessoa (cá está ele, ó António Cândido!) na bagagem e os encontros sebastianistas com os sertanejos da Paraíba, dará curso largo.
Que fez Agostinho por terras de Vera Cruz? Sobre isso seria mister (e por que não?) haver uma outra crónica. Para vos falar da sua bondade, do seu génio oratório, do entusiasmo com que concorre a fundar universidades, do desassombro com que, em circunstâncias as menos críveis e as mais difíceis, institui centros de estudos – o da Baía, dos Afro-Orientais, é ainda hoje o testemunho vivo e glorioso de um bicho-carpinteiro contumaz…
Entre a renúncia ao mundo, no que este tem de mundano, e a afronta ao mando, onde apenas vê desmando, Agostinho é realmente um colosso – o colosso. Estranhíssimo, como diz Cândido Franco, tomando de empréstimo o verso de Camões? Como não, se o vemos a passear, pelo campus de Brasília, com a japonesa que desde Tóquio lhe segue os passos até à Trapa, os dois de quimono vestido, açulando, exóticos, o pasmo dos circunstantes? Como não, se ao Presidente Soares, seu explicando meio século antes, manda dizer, já nos anos finais de Lisboa, que somente o poderá receber, na Travessa do Abarracamento de Peniche, daí a uma semana, pois, sobre ter de ensinar a ler a sua empregada doméstica, até lá já ele tem muita conversa aprazada com os amigos? Como a amigo lhe quer ele franquear a porta, e não como a Presidente, caso em que o não poderá insultar…
Eis o cerne intocável da hombridade que o nosso biógrafo, neste livro, nos resgata de uma vez por todas, para sempre. Desejavelmente, outras biografias de Agostinho virão a ser escritas, e talvez nem esta, que é a primeira, escape a segunda demão. Mas nenhuma das outras poderá fugir ao estalão agora instaurado. Neste sentido, O Estranhíssimo Colosso é um livro definitivo.
Sabendo tirar o máximo proveito das fontes de que entendeu lançar mão, e abrindo novos caminhos no estudo do escritor que nunca quis ser filósofo, faceta que a menos se tem atendido em detrimento do pensador ou do homem de acção, António Cândido Franco dessacraliza Agostinho para melhor o exaltar, envolvendo o leitor e o biografado numa trama irresistível de cumplicidade, urdida pelo emprego recorrente do pronome possessivo meu. Sagrado, de sacer, é o que está distante, e este Agostinho da Silva é um companheiro…
Surtido da monta deste tomo, um outro efeito magnífico vem no modo como nos mostra que Agostinho atravessa o século para o iluminar com o fulgor incandescente dos cometas. Andarilho, corre mundo, sem deixar um só continente que seja à margem da sua peugada lendária. E as amizades são um bruaá de multidão na sua vida. O Estranhíssimo Colosso pode bem ser uma hagiografia, como alguém, incompreensivo, já acusou; mas Agostinho da Silva, graças a Deus!, não sai dele como um santarrão, muito menos como um totem. Deste risco escusado nem sempre se têm sabido ou querido libertar quantos justamente o elevam. Talvez agora sejam forçados a reconhecer que a grandeza do mestre está menos nos passos em volta do que na vida conversável que a sua farta fratria nos sugere.
Saber admirar, eis o segredo do António Cândido. Por estes dias, vieram alguns, polícias do estilo, presuntivamente escamados com a estatura insolente do velho sublime, repreender o biógrafo por ter exaltado um dos grandes homens portugueses, como se fosse proibido havê-los por cá. Até o acusaram de impressionista. Pela minha parte, concedo. O Estranhíssimo Colosso vale bem, numa das suas margens, todo o Museu d’Orsay. Na outra descobre-se o Louvre, Delacroix, A Liberdade guiando o Povo…
DOS LIVROS. 39
25-03-2015 09:31Coincidências, 2
No Café com Rui P. Dizia-me ele que Bagão Félix vinha nessa noite falar em Estremoz contra o desmancho artificial do projecto de organismo que a enteléquia feminina forma no ventre fecundado das mulheres. No meio da conversa à volta do assunto, o meu interlocutor esqueceu-se do nome de Bagão Félix, perdeu-o e não foi capaz de o achar. Eu quis ajudá-lo, mas verifiquei que também o tinha esquecido. O homem, um velho de oitenta anos, irritou-se. Pelo seu espírito passou a sombra de Alzheimer.
Este esquecer-se de um nome próprio quando o outro que connosco fala se esqueceu antes é frequente e até se dá com mais do que dois interlocutores. Há um outro caso típico de relação psíquica supranormal que também me foi dado experimentar frequentes vezes. Esperamos alguém em lugar e hora combinados. A pessoa não chegou. Passaram largos minutos. Quando já pensávamos que não viria, aparece alguém que, por instantes, julgámos ser ela, tão semelhantes são no aspecto físico e até nos movimentos. Verificado o engano, não tivemos que esperar uns momentos para que o modelo que tínhamos no espírito aparecesse então em carne e alma verdadeiras.
Voltando ao Bagão Félix, o esquecimento que tivemos do seu nome foi seguido de um acontecimento tão extraordinário quanto feliz. Uma das empregadas do Café onde conversávamos veio levantar a mesa ao lado, e eu, movido por um súbito impulso, ordenei-lhe suavemente:
– Diz uma letra.
Ela disse: B. E o nome do político saltou das entranhas obscuras da memória de ambos para a luz da consciência e da vida de relação.
Procurei então conversar sobre estes labirintos do espírito, mas Rui P. disfarçou o íntimo receio do divino pegando num jornal que estava sobre a mesa, fingindo que estava nele interessado. Estou crente em que o leitor saberá ligar o que certamente ficou por ligar no espírito do meu ocasional interlocutor.
António Telmo
(Publicado em A Terra Prometida, 2014)
